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A REDE DE INTELECTUAIS SANTISTAS E O DISCURSO DO PROGRESSO PARA MODERNIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NA CIDADE (1889-1930) LUIZ HENRIQUE PORTELA FARIA Resumo Esta pesquisa tem por objetivo analisar a possível presença de uma rede de intelectuais que atuou na cidade de Santos durante a Primeira República, a qual reforçou ideologicamente, tanto na sociedade civil quanto na sociedade política, o discurso da modernidade educacional. Para isto, ressaltar a formação, a articulação política e social destes sujeitos, bem como analisar os discursos presentes nos periódicos da época, sobretudo, jornais. Busca-se fundamentação teórica em Gramsci, Sartre e Bobbio, autores que nos possibilitam pensar acerca da identidade, função e atuação dos intelectuais. A partir do diálogo com as evidências fontes históricas, conforme Thompson e da análise dos discursos presentes nos jornais, os quais são considerados em sua historicidade, considerando-o como artefato cultural que promove uma perspectiva acerca das práticas sociais, perceber o projeto civilizatório, bem como os valores e ideais concernentes à educação. Palavras-chave: Intelectuais. Educação. Modernidade Capitalista. Santos. O presente estudo investigativo busca compreender, em perspectiva histórica, a presença e atuação de uma possível rede de intelectuais no processo de modernização da educação em Santos, entre 1889 e 1930. Para isto, ressaltará o itinerário de formação, a articulação política e social destes sujeitos, bem como analisará seus discursos presentes nos periódicos da época. Buscando atender as exigências da honestidade acadêmica e também, curvar-se às evidências que determinam o processo de construção de produção do conhecimento, é importante registrar, nas palavras de Michel de Certeau (2010), o meu lugar social ou de enunciação, pois toda: Universidade Católica de Santos, discente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação em nível de doutorado. Bolsista Capes.

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A REDE DE INTELECTUAIS SANTISTAS E O DISCURSO DO PROGRESSO PARA

MODERNIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NA CIDADE (1889-1930)

LUIZ HENRIQUE PORTELA FARIA

Resumo

Esta pesquisa tem por objetivo analisar a possível presença de uma rede de intelectuais que

atuou na cidade de Santos durante a Primeira República, a qual reforçou ideologicamente,

tanto na sociedade civil quanto na sociedade política, o discurso da modernidade educacional.

Para isto, ressaltar a formação, a articulação política e social destes sujeitos, bem como

analisar os discursos presentes nos periódicos da época, sobretudo, jornais. Busca-se

fundamentação teórica em Gramsci, Sartre e Bobbio, autores que nos possibilitam pensar

acerca da identidade, função e atuação dos intelectuais. A partir do diálogo com as evidências

– fontes históricas, conforme Thompson – e da análise dos discursos presentes nos jornais, os

quais são considerados em sua historicidade, considerando-o como artefato cultural que

promove uma perspectiva acerca das práticas sociais, perceber o projeto civilizatório, bem

como os valores e ideais concernentes à educação.

Palavras-chave: Intelectuais. Educação. Modernidade Capitalista. Santos.

O presente estudo investigativo busca compreender, em perspectiva histórica, a

presença e atuação de uma possível rede de intelectuais no processo de modernização da

educação em Santos, entre 1889 e 1930. Para isto, ressaltará o itinerário de formação, a

articulação política e social destes sujeitos, bem como analisará seus discursos presentes nos

periódicos da época.

Buscando atender as exigências da honestidade acadêmica e também, curvar-se às

evidências que determinam o processo de construção de produção do conhecimento, é

importante registrar, nas palavras de Michel de Certeau (2010), o meu lugar social ou de

enunciação, pois toda:

Universidade Católica de Santos, discente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação em nível

de doutorado. Bolsista Capes.

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[...] pesquisa histórica se articula com um lugar de produção sócio-

econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que

circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de

observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois

submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma

particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que

se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões,

que lhe são propostas, se organizam (p. 66-67).

A opção por este tema de pesquisa refere-se, sobretudo, à minha trajetória acadêmica

desempenhada durante a graduação em História. Existia, naquele momento, uma forte

influência dos professores do curso para que seus orientandos se dedicassem a temáticas

regionais. Havia palestras, simpósios, ou outros eventos destinados ao compartilhamento de

resultados de pesquisas recentes da História Regional, onde éramos inseridos num ambiente

bastante produtivo academicamente. Recordo-me de uma palestra chamada ‘Como pela

música se ensina história’, oferecida pela profa. Dra. Heloísa de Araújo Duarte Valente. Ela

pesquisava sobre o Fado na cidade de Santos. Após sua palestra, ofereceu aos alunos a

possibilidade de conhecer seu grupo de pesquisa – Musimid1 – e seus recentes trabalhos sobre

Imigração Portuguesa e a formação de um reduto de cultura portuguesa na cidade de Santos.

Desejoso de conhecer o tema, ingressei no Musimid e iniciei minhas pesquisas a partir

do acervo pessoal do Sr. Manoel Ramos, radialista português, notadamente conhecido em

Santos pela ligação com o Fado e a cultura portuguesa. A partir das entrevistas feitas com o

Sr. Ramos, notamos, a profa. Heloísa e eu, que se encontravam no bairro da Vila Mathias as

principais referências aos lugares de cultura portuguesa na cidade. A questão que se impunha

era: por quê? Percebemos que Mathias Costa, fundador da Vila Mathias, imigrante português

que veio investir capital no Brasil, a partir de envolvimentos políticos bastante contraditórios

na cidade, trabalhou para a expansão urbana de Santos e a recepção de imigrantes portugueses

mais afortunados na Vila Mathias.

1 O Centro de Estudos em Música e Mídia (Musimid) teve sua origem no XIII Encontro Nacional da Anppom

(Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música). Atualmente, promove palestras, oficinas,

discussão de projetos de pesquisa e os Encontros anuais de Música e Mídia. A coordenadora do Musimid é a

profa. Dra. Heloísa de Araújo Duarte Valente.

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Todo o processo de pesquisa, que me permitiu o contato com fontes primárias, a busca

por material de difícil acesso, a persistência diante das dificuldades encontradas nos centros

de documentação etc., serviu de incentivo para o meu desenvolvimento pessoal pelo gosto de

realizar a pesquisa histórica.

Após 05 anos de conclusão do curso de História, ingressei no mestrado em Ensino,

Filosofia e História das Ciências e Matemática, pela Universidade Federal do ABC. Naquele

momento histórico, eu estava completamente envolvido com a prática docente em sala de aula

e com o ensino não formal. Por esta razão, decidi analisar, em minha dissertação, as

estratégias metodológicas do Projeto ‘Batuclagem’, um programa de extensão da UFABC que

se propunha a realizar oficinas de educação ambiental a crianças de 07 a 11 anos por meio de

uma metodologia interativa: contação de história, jogos, brincadeiras e músicas. Minha linha

de pesquisa, obviamente, foi ensino de ciências.

Por mais que desenvolver a pesquisa no mestrado tenha sido uma experiência bastante

gratificante, senti muito a ausência de trabalhar com a metodologia historiográfica:

levantamento de fontes, pesquisa em acervos, análise documental etc., decidindo-me, então, a

retornar para a História. Uma intersecção possível para um historiador que havia trabalhado

com ensino de ciências é a História da Educação.

Retomando as pesquisas sobre Santos, no final do século XIX e início do XX, percebi

que muitos sujeitos envolvidos com as questões políticas e econômicas da cidade, que

pertenciam às instituições culturais e sociais, também estavam relacionados com a educação.

Dentro deste contexto, este estudo investigativo se orienta pelo entendimento que, conforme

Reis Filho (1981), Nagle (2001) e Carvalho (2003) apontaram em suas pesquisas, para os

intelectuais atuantes na Primeira República brasileira, a educação constituiria o campo

primordial para a construção de uma sociedade democrática, a consolidação do Estado

Republicano. Também, neste sentido, o discurso presente no Jornal santista A Tribuna

corrobora tal perspectiva:

A instrução é a base de todo progresso e engrandecimento, faz necessária uma ação

energética não só por parte das autoridades municipais, como mesmo de todos os

que ocupam posições de destaque nesta cidade, para que tenham um fim este

vergonhoso estado das coisas.

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Porque a Câmara Municipal e o alto comércio não reúnem os seus esforços para

alcançar o fim colimado! Porque não se organiza, com esses elementos e outros que

dela queiram fazer parte, uma grande comissão para se entender diretamente com o

governo do Estado e com os congressistas estaduais.

Essa comissão, ao mesmo tempo que se procuraria obter do governo a criação da

escola, trataria também de angariar os meios necessários para que fossem

oferecidos aos poderes estaduais. Vemos nossa população aumentar de modo

assombroso, não pode continuar com o mesmo número de escolas de há 10 ou 15

anos atrás.

É necessário agir e agir com entusiasmo, pois a vontade e a energia são as duas

grandes armas que se obtém a vitória.

Por nossa parte, estamos dispostos a combater em prol da instrução pública de

Santos e, conquanto modestos, os nossos esforços se unirão aos daqueles que

tomarem a si essa nobre campanha de aparelhar a nossa cidade para o futuro

brilhante que o destino e a evolução natural dos acontecimentos fatalmente lhe

reservam (A TRIBUNA, 10/04/1913).

Esta notícia é referente à proposta da criação de um imposto municipal específico para

angariar fundos para a educação. A educação representou um papel preponderante para o

desenvolvimento do projeto civilizador no Brasil em fins do XIX e início do XX, tanto para

os intelectuais – que foram os propagadores desta ideia – quanto para as instituições a quem

eles pertenciam ou representaram.

De acordo com a produção historiográfica consultada (SILVA SOBRINHO, 1953;

RODRIGUES, 1975, 1976, 1979, 1981; PORTO VIEIRA, 2012; PEREIRA, 2016), diversos

sujeitos estiveram engajados com o discurso do progresso na cidade de Santos, dentre eles, os

irmãos Arthur, Henrique e Adolpho Porchat, Manoel Maria Tourinho, Raymundo Sóter de

Araújo, Vicente de Carvalho, Victor de Lamare, dentre outros. Os resultados recentes da

pesquisa de Porto Vieira (2012) mencionam uma rede de solidariedade de intelectuais

republicanos que, no final do século XIX e início do XX, atuavam em diversas esferas da vida

pública da cidade, tanto nas instituições sociais quanto no poder público, empenhando-se

consolidar o discurso da modernidade capitalista. Tais sujeitos articularam-se, dentre tantos

locais, nas escolas e instituições de ensino da cidade, conforme aponta a autora:

Quadro 1: Presença do grupo de intelectuais nas escolas de Santos

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Adolfo Porchat

de Assis

Raymundo

Sóter de

Araújo

Arthur

Porchat de

Assis

Victor de

Lamare

Diva de

Lamare

Porchat de

Assis

Liceu

Feminino

Santista

Professor Professor Professor Professor Conselheira

(Diretoria)

Academia de

Comércio

Diretor e

Professor Professor Professor

Instituto D.

Escolástica

Rosa

Médico e

Professor Médico Diretor -

Asilo de

Órfãos Médico Médico Presidente

Escola Docas Médico -

Fundador da

Escola

Fonte: PORTO VIEIRA, (2012, p. 93)

Observou-se que poucas pesquisas são concernentes à atuação dos intelectuais na

cidade de Santos e, as que existem, apenas os identificam, procurando, em geral, focar a

análise das suas obras2 ou de seus acervos3.

Na década de 1950, José da Costa e Silva Sobrinho, advogado e professor, membro do

Instituto Histórico e Geográfico de Santos, em comemoração ao quarto centenário da

Fundação da cidade de São Paulo, escreveu a obra Santos noutros tempos. Nela, o autor

oferece uma coletânea de artigos publicados no Jornal A Tribuna que versa sobre temas

variados da História de Santos4. Herdeiro da época em que foi escrito, este livro apresenta

2 É o caso dos trabalhos de CARMO; VIEIRA (2014) e VIEIRA (2015) que analisam as representações de

Arthur Porchat de Assis, acerca da educação intelectual, em sua obra Eduquemos, publicado em 1915; Pereira

(2016) publicou uma comunicação no XI Congresso Luso Brasileiro de História da Educação (2016) sobre o

inspetor literário Delphino Stockler de Lima, a partir de seus textos publicados no Jornal A Tribuna durante os

anos de 1920 e 1921. Nestes textos, aparecem temas variados, como a condição do professor, relação entre

escola e família, situação do ensino público, legislação escolar etc. 3 ALVES (2015) analisa o acervo fotográfico de Luiz Damasco Pena. 4 Costa e Silva Sobrinho escreveu acerca de diversos pontos históricos da cidade de Santos, tais como o Gonzaga

em 1889; A Associação Comercial de Santos; O Clube XV; A Capela de Santo Amaro na Fortaleza da Barra; o

Teatro Guarani etc. Além disso, faz menção de eventos notórios na cidade, como a vista de Rui Barbosa em

1890, a inauguração dos Bondes da Vila Mathias, dentre outros.

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positivamente a história de lugares, eventos e algumas biografias que, ao serem devidamente

analisadas, servem como um importante registro de aspectos da histórica da cidade e de

específicos momentos da atuação de seus intelectuais.

Olao Rodrigues, jornalista e secretário do Jornal A Tribuna, também membro do

Instituto Histórico e Geográfico de Santos, posteriormente, escreveu algumas obras

concernentes à História de Santos, dentre elas, o Veja Santos (1975), que apresenta,

brevemente, um histórico acerca dos nomes de ruas, praças ou demais logradouros da cidade

de Santos – tornando-se um primeiro passo para a pesquisa histórica acerca da biografia dos

ditos intelectuais; Nos tempos de nossos avós (1976), que compila, da mesma forma que

Costa e Silva Sobrinho, uma série de artigos publicados no Jornal A Tribuna e que compõe

um índice bastante organizado de eventos e lugares da presença dos intelectuais santistas;

Cartilha da História de Santos (1981), que, de maneira sucinta, traz uma sinopse dos aspectos

físicos da cidade, um breve panorama histórico e artigos acerca de eventos do final do século

XIX e início do XX – citando os ilustrados santistas em suas ações – servindo, portanto, de

fonte para o tema deste projeto.

Necessita-se de maior aprofundamento acerca do desempenho destes sujeitos no

processo de modernização da educação na cidade – identificá-los, apenas, é pouco promissor

frente à atuação destes intelectuais em Santos – e, por isso, justifica-se a relevância acadêmica

deste projeto que, partindo de resultados anteriores, continuará no processo histórico de

produção de conhecimento acerca desta temática.

Com relação ao processo de modernização da educação em Santos, em fins do século

XIX e início do XX, há pouca produção acadêmica e, por isso, mencionam-se apenas duas

dissertações, a saber: de Carreira (2012), defendida na Universidade Católica de Santos, que

analisa a construção do cidadão republicano em Santos durante a Primeira República. Sua

pesquisa evidenciou que, nesta transição temporal, há um abismo entre o discurso republicano

idealizado e os limites da sua implementação, o qual se mostra a partir de inúmeros

problemas, tais como a precariedade do material dos estabelecimentos escolares, o

atendimento parcial à demanda e a alta seletividade do ensino; pela Universidade de São

Paulo – USP, Caleffi (2014) defendeu a dissertação intitulada A educação na Primeira

República na cidade de Santos. Neste trabalho, a partir da análise da Constituição Municipal

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de 1894 e de outras fontes primárias, Caleffi procurou compreender o projeto educacional que

estava sendo construído pelos grupos dirigentes de Santos, demonstrando as contradições

presentes entre os discursos republicanos na cidade, suas representações com relação aos

modos de entender a liberdade e autonomia municipal, sobretudo, no campo da educação.

Considerando tudo o que foi exposto, a presente pesquisa parte das seguintes questões

iniciais: Quem foram estes intelectuais? Quais os grupos sociais a que pertenceram? O que, de

suas ideias, é conhecido? Onde foram registradas? Que tipo de projeto para a sociedade eles

defendiam? Quais papéis sociais que estes sujeitos desempenhavam? Em quais processos

contraditórios estavam envolvidos? O que se preferiu lembrar acerca deles? E o que se

preferiu esquecer acerca deles? (BURKE, 1992).

O historiador marxista E. P. Thompson, em seu livro A miséria da Teoria ou um

planetário de erros (1981), defende que a verdade histórica só pode ser levantada dentro da

sua própria teoria, isto é, por meio de procedimentos teóricos rigorosos. É no diálogo com as

fontes, interrogando-as constantemente e, por outro lado, por meio da pesquisa empírica, que

se faz o discurso histórico. Não se deve partir de ideias preconcebidas acerca dos fatos, antes,

é no interrogar das evidências que se compreendem as articulações históricas. Segundo ele:

Um historiador – e, sem dúvida, um historiador marxista – deveria ter plena

consciência disto. O texto morto e inerte de sua evidência não é de modo algum

“inaudível”; tem uma clamorosa vitalidade própria; vozes clamam do passado,

afirmando seus significados próprios, aparentemente revelando seu próprio

conhecimento de si mesmas como conhecimento (THOMPSON, 1981, p. 27).

O historiador, segundo Thompson, precisa ter, como pressuposto, o entendimento de

que o passado não é uma série de histórias paralelas e separadas, antes, é “a soma unitária do

comportamento humano” (1981, p.50), isto é, a relação dialética existente entre os sujeitos e o

contexto em que estão inseridos, correlação estas que são mediadas pelo mercado, ou por

relações de poder etc. e, portanto, neste engajamento de ações e modificações forma-se o

processo histórico.

Inserindo a problemática dos intelectuais no panorama mais amplo da história social

da cidade de Santos e de estudos da historiografia da Educação que tratam de questões

relativas ao campo, o objetivo desta pesquisa é compreender os modos de agir e de pensar dos

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intelectuais que atuaram na cidade de Santos durante a Primeira República no campo da

educação escolar.

Pretende-se alcançar os seguintes objetivos específicos:

a) Identificar os intelectuais e procurar evidenciar os aspectos singulares da atuação

destes em seu contexto, a fim de compreender a abrangência da ação política e a

função social que estes sujeitos desempenharam com relação à educação;

b) Analisar os discursos destes intelectuais presentes nos jornais e outros meios de

comunicação, a fim de perceber as suas práticas sociais, comportamentos e crenças,

procurando identificar a relação entre educação e modernidade;

c) Procurar perceber, a partir das fontes históricas analisadas, as contradições presentes

nos embates existentes nesta geração de ilustrados que disputaram a hegemonia do

campo educacional da cidade de Santos;

Procurando fundamentar teoricamente esta pesquisa, parte-se de Vieira (2008) que

informa a origem do termo ‘intelectual’, oriundo da palavra russa ‘intelligentsia’, diretamente

associada à representação da elite culta da sociedade que propunha reformas sociais e

reivindicava o papel de guia do povo, uma vez que eram os porta-vozes de uma consciência

nacional. No fim do século XIX, este termo foi apropriado para o cenário francês, sendo

‘intelligentsia’ preterida em favor do termo ‘intellectuel’, ou de modo mais exato,

‘intellectuels’. Segundo o autor, comentando sobre o termo: “A palavra no plural, designando

o conjunto dos cultos, denota de forma mais precisa a existência de um protagonista político

com identidade definida” (p. 70). Nota-se, portanto, que o intelectual, segundo sua conotação

moderna, é aquele que está engajado, tanto porque assume sua posição política quanto porque

intervém em assuntos públicos.

Antonio Gramsci (1982), em seu livro ‘Os intelectuais e a organização da cultura’,

questionando acerca do conceito de intelectual, defende que estes não se fazem a partir da

atividade que desempenham, antes são as relações sociais em que estão inseridos que os

tornam intelectuais, afinal, “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas

nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (p.7). Surgem

progressivamente a partir de suas práticas e são, por isso, formados historicamente em

conexão com os demais grupos sociais, especialmente do grupo dominante, para legitimar

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suas ações. Os intelectuais lutam, sobretudo, no campo ideológico e, tornando a escola, seu

instrumento propagador para elaborar novos intelectuais de diversos níveis e a educação, o

campo para a consolidação de seus ideais.

Concordando com Gramsci, Sartre (1994) defende que os intelectuais são formados

pela função socialmente reconhecida. Esta função, entretanto, emerge no momento em que os

técnicos do saber prático utilizam de seus métodos para outra finalidade, não apenas para a

prática de suas tarefas específicas, mas sim para a construção de uma ideologia contrária a

dominante. São aqueles que tomaram consciência do processo contraditório em que estão

inseridos e, utilizando-se de símbolos, sinais e signos, lutam para dissolver o sistema de ideias

de outras classes. Assim, segundo Sartre:

(...) o intelectual é o homem que toma consciência da oposição, nele e na sociedade,

entre a pesquisa da verdade prática (com todas as normas que ela implica) e a

ideologia dominante (com seu sistema de valores tradicionais). Essa tomada de

consciência – ainda que, para ser real, deva se fazer, no intelectual, desde o início,

no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua função – nada mais é que

o desvelamento das contradições fundamentais da sociedade, quer dizer, dos

conflitos de classe e, no seio da própria classe dominante, de um conflito orgânico

entre a verdade que ela reivindica para seu empreendimento e os mitos, valores e

tradições que ela mantém e quer transmitir às outras classes para garantir sua

hegemonia (1994, p.30-31)

Norberto Bobbio (1997), problematizando esta questão, defende que os intelectuais

não constituem uma classe homogênea, muito embora vistos socialmente como aqueles que

possuem independência de pensamentos, coragem para defender suas convicções, ou ainda

como aqueles que reivindicam para si a alcunha de porta-vozes da opinião pública, são

segundo as ideias que sustentam e pelas quais se batem, progressistas ou

conservadores, radicais ou reacionários; segundo as ideologias que defendem, são

libertários ou autoritários, liberais ou socialistas; segundo a atitude diante das

próprias ideias que sustentam, são céticos ou dogmáticos, laicos ou clericais

(p.116).

Bobbio esclarece que os intelectuais podem ser representantes tanto do poder

econômico quanto do político, atuando, entretanto, com a palavra, por meio de símbolos e

signos. Pertencem a “um conjunto de sujeitos específicos, considerados criadores,

portadores, transmissores de ideias” (p. 109).

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Para averiguar, portanto, dentro de uma perspectiva histórica, a presença e a atuação

dos intelectuais na cidade de Santos, num diálogo constante com as fontes, a análise dos

jornais da época constituirá uma fonte preponderante. São nos jornais que serão localizados os

discursos, as narrativas de determinados fatos e as perspectivas históricas referentes a eles.

Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita

ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O

periódico, antes considerado suspeito e de pouca importância, já é reconhecido

como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época. A imprensa

registra, comenta e participa da história. Através dela se trava uma constante

batalha pela conquista dos corações e mentes (CAPELATO, 1988, p. 13)

Compreende-se, nesta pesquisa, a imprensa em sua historicidade, considerando-a uma

artefato cultural, procurando questioná-la não como fonte fidedigna da realidade, antes, como

fonte histórica que promove uma perspectiva acerca das práticas sociais, parcial e

comprometida com os agentes de sua produção e fortemente influenciada pela cultura

(DARNTON, 1990). Nas palavras de Cruz e Peixoto:

Trata-se de entender a Imprensa como linguagem constitutiva do social, que detém

uma historicidade e peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e

comprometida como tal, desvendando, a cada momento, as relações

imprensa/sociedade, e os movimentos de constituição e instituição do social que

esta relação propõe (2007, p. 258).

Procura-se, desta forma, evitar o equívoco de compreender a imprensa de maneira

isolada de seu contexto, na tentativa de construir uma história linear, deixando de buscar os

vínculos deste meio de comunicação com as questões sociais de seu período histórico, ou com

os processos políticos e contraditórios em que estão envolvidos, ou com os aspectos

econômicos em que estão comprometidos, ou ainda com os movimentos culturais, partidários,

ideológicos que o compõem (WILLIAMS, 2007).

Explicitando algumas fontes de pesquisa, pensadas como ponto de partida, cita-se:

1. O Jornal Diário de Santos – publicado pela primeira vez em 10 de outubro de 1872,

este jornal foi, segundo Olao Rodrigues (1979), o periódico de maior vivência na

cidade. Trata-se de uma fonte bastante preciosa para a história de Santos, uma vez que,

por ter atravessado o século XIX para o XX, registrou diversas incursões e campanhas

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a favor da abolição da Escravatura e da República. Parte significativa de seus

impressos está na Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos.

2. O Jornal A Tribuna do Povo – cujo primeiro número circulou em 1894, muito embora

o exemplar mais antigo existente na sede de sua administração seja da primeira década

do século XX. Este jornal nasceu, segundo Olao Rodrigues, sem nenhum vínculo

partidário e desejoso em se tornar uma “tribuna livre para controvérsias” (A

TRIBUNA apud RODRIGUES, 1879, p. 70).

3. As atas da Câmara Municipal de Santos – uma vez que estes documentos oficiais

registram o andamento e o discurso dos intelectuais nas reuniões da Câmara, tornam-

se fontes profícuas para a pesquisa em questão.

4. Documentos de Instituições de Santos – considerando que havia uma rede de

sociabilidade entre os intelectuais a partir de diversas instituições na cidade, como, por

exemplo, a Santa Casa de Misericórdia, a Associação Comercial, a Beneficência

Portuguesa, o Clube XV etc., realizar-se-á contato com suas respectivas diretorias para

a consulta de seus acervos particulares.

Ainda não há resultados para serem compartilhados, considerando o pouco tempo de

existência desta pesquisa. Mas os próximos passos caminham para o levantamento das fontes

e análise dos documentos.

Referências

A TRIBUNA. Editorial. Santos, 10 de abril de 1913.

ALVES, Edson Rossetti. Análise de fotografias do álbum de Luiz Damasco Pena. XXVIII

Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015.

BOBBIO, Norberto. Intelectuais e Poder. In: Os Intelectuais e o Poder: dúvidas e opções

dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

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BURKE, P. A História como Memória Social In: O mundo como teatro – estudos de

antropologia histórica. Lisboa: Difel, 1992.

CALEFFI, Anderson Manoel. A educação na Primeira República na cidade de Santos

(1898-1908). 2014. 111 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo,

2014. Acesso em 03/04/2018. Disponível em:

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-09122014-132439/pt-br.php

CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto,

1988.

CARMO, Bruno Bortoloto do; VIEIRA, Marina T. B. Porto. Representações sobre ensino

de educação física de Arthur Porchat de Assis em seu manual “Eduquemos” (1915). VII

Simpósio Nacional de História Cultural. USP, 2014, p.1-13.

CARREIRA, André Luiz Rodrigues. A marcha do progresso: a construção do cidadão

republicano e a educação escolar na cidade de Santos. 2012. 95 f. Dissertação (mestrado) -

Universidade Católica de Santos, Santos, 2012. Disponível em:

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