05 – Confrontos religiosos entre intelectuais cristãos

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128 Edilson Soares de Souza, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 128 - 147 | Via Teológica CONFRONTOS RELIGIOSOS ENTRE INTELECTUAIS CRISTÃOS Religious Confrontations Among Christian Intellectuals Edilson Soares de Souza. 1 Resumo A formação religiosa da sociedade brasileira foi construída de diversas formas e ao longo de séculos. Durante um determinado período, o Brasil teve no catolicismo romano a sua religião oficial. Quando da Proclamação da República, assegurou-se a igualdade entre as religiões e os credos, como também a liberdade de expressão. Embora existisse tal garantia de liberdade religiosa, observou-se que intelectuais do cristianismo travaram confrontos discursivos, defendendo o pensamento das instituições que representavam. Entre os vários confrontos religiosos que ocorreram na primeira metade do século XX, um se destacou no Estado do Paraná, ganhando as páginas da mídia impressa não confessional. O presente artigo analisa uma das cartas que remete ao confronto entre intelectuais do cristianismo, publicada em 1930 no jornal A República. Palavras-chave: Catolicismo; Protestantismo; Confrontos religiosos. 1 Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em teologia e psicologia. Professor na Faculdade Teológica Batista do Paraná. Pesquisador do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER). E-mail: [email protected].

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CONFRONTOS RELIGIOSOS ENTRE

INTELECTUAIS CRISTÃOS

Religious Confrontations Among Christian Intellectuals

Edilson Soares de Souza.1

Resumo

A formação religiosa da sociedade brasileira foi construída

de diversas formas e ao longo de séculos. Durante um determinado

período, o Brasil teve no catolicismo romano a sua religião oficial.

Quando da Proclamação da República, assegurou-se a igualdade

entre as religiões e os credos, como também a liberdade de

expressão. Embora existisse tal garantia de liberdade religiosa,

observou-se que intelectuais do cristianismo travaram confrontos

discursivos, defendendo o pensamento das instituições que

representavam. Entre os vários confrontos religiosos que

ocorreram na primeira metade do século XX, um se destacou no

Estado do Paraná, ganhando as páginas da mídia impressa não

confessional. O presente artigo analisa uma das cartas que remete

ao confronto entre intelectuais do cristianismo, publicada em

1930 no jornal A República.

Palavras-chave: Catolicismo; Protestantismo; Confrontos

religiosos.

1 Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em teologia e psicologia. Professor na Faculdade Teológica Batista do Paraná. Pesquisador do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER). E-mail: [email protected].

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Abstract

The religious formation of Brazilian society has been built

in different ways and for centuries. During a certain period,

Brazil had in Roman Catholicism the official religion. When the

Proclamation of the Republic occured, it was ensured equality

among religions and creeds, as well as freedom of expression.

Although there is such a guarantee of religious freedom, it was

observed that intellectuals of Christianity fought clashes discursive

thought defending the institutions they represented. Among the

various religious confrontations that occurred in the first half

of the twentieth century, one stood out in the State of Paraná,

winning the pages of the print media no- confessional. This

article analyzes one of the letters referring to the confrontation

between intellectuals of Christianity, published in 1930 in The

Republic newspaper.

Keywords: Catholicism; Protestantism; Religious Confrontations.

Introdução

O presente artigo dialoga com parte da tese de doutorado

defendida na Universidade Federal do Paraná, cujo título é:

Cristãos em confronto: discórdias entre intelectuais religiosos num

Estado não confessional (Brasil, 1890-1960). A pesquisa que resultou

na tese analisou o comportamento e a produção discursiva de

alguns intelectuais do catolicismo romano, de líderes religiosos

vinculados à denominação batista e de escritores que se

colocaram em defesa do presbiterianismo no Brasil. O tema

Cristãos em confronto, desta forma, aponta para os intelectuais das

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três denominações cristãs, que se colocaram em defesa de suas

crenças e em defesa do conjunto doutrinário das denominações

que representavam. Embora algumas divergências entre batistas

e presbiterianos, sobretudo, na esfera eclesiástica ou doutrinária,

os intelectuais das duas denominações se uniram para confrontar

os escritores do catolicismo romano, constituindo-se num embate

entre protestantes e católicos.

Outro aspecto que cabe destacar é o uso, na tese, da

expressão Estado não confessional, atribuído ao Brasil. Ela parte

da compreensão de que o Estado, quando da Proclamação da

República (1889), posicionou-se como um Estado não confessional,

assegurando por meios legais e constitucionais a igualdade religiosa

a todas as confissões de fé inseridas no Brasil, ou que viessem

a se inserir, não havendo mais uma religião oficial vinculada ao

Estado brasileiro. Conquanto o Estado tenha se declarado não

confessional – algo diferente do que se convencionou chamar

de Estado laico – a sociedade brasileira revelava, como ainda

manifesta, a sua inclinação para as práticas religiosas, por vezes

vinculadas às diversas instituições confessionais, ou percebidas

nas práticas de uma religiosidade popular, avançando além das

fronteiras de uma expressão religiosa clerical ou formal.

Ao tratar dos Cristãos em confronto, a análise histórica

fundamentou-se em diversas fontes documentais. Vale aqui

mencionar algumas dessas fontes, pois ajudaram a compreender

como alguns intelectuais do cristianismo se colocaram em defesa

de suas convicções e crenças, deixando exposto o pensamento de

suas denominações religiosas, sobretudo, quando consideraram o

desenvolvimento da sociedade brasileira no contexto republicano,

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exaltando as práticas do catolicismo e do protestantismo.

Assim, as fontes utilizadas revelaram que parte da trajetória da

religião cristã no Brasil republicano foi marcada por disputas

em nível discursivo, constituindo-se em confrontos conscientes,

estabelecendo mais intensamente certo distanciamento entre as

denominações cristãs. As fontes ainda revelaram momentos de

constrangimento moral ou ressentimentos que foram renovados

pelos debates acirrados entre tais intelectuais do protestantismo

e do catolicismo. Acusações francas e mágoas expostas podem ser

analisadas nas linhas que constituem parte das fontes que tratam

dos confrontos entre escritores cristãos, nas primeiras décadas da

República no Brasil.

As fontes para a pesquisa sobre confrontos religiosos

Sobre as fontes de pesquisas da tese, como também aquelas

que ajudam a compor o presente artigo, pode-se dizer que elas se

constituíram a partir de conjuntos textuais.

O primeiro conjunto foi formado pelos discursos publicados

nas Cartas Pastorais, em determinadas Encíclicas, como também

nos livros sobre discussões, disputas, confrontos e perseguições

religiosas. Nesse conjunto, destaca-se o livro do pastor batista

Pedro Tarsier, intitulado História das perseguições religiosas no Brasil,

sendo uma obra que merece estudos mais profundos.

O segundo conjunto de fontes de pesquisa formou-se a

partir de discursos apresentados na forma de cartas, artigos e

textos, tanto de apologia quanto de polêmica religiosa, publicados

em revistas, jornais confessionais e jornais não confessionais, tidos

como seculares. Um exemplo de texto que remete às discussões

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entre católicos e protestantes, num Estado não confessional, é

encontrado no artigo de Guaracy Silveira, publicado na revista

Sacra Lux (1936), focando A Constituição Brasileira e a questão

religiosa. No texto, o reverendo protestante trata, entre outros

assuntos, do casamento religioso com efeito civil e do ensino

religioso facultativo.

O terceiro conjunto de fontes foi formado por artigos

inseridos nos jornais e revistas de católicos e protestantes,

como também em outras mídias impressas. É exatamente nesse

conjunto de fontes que se encontra uma série de Cartas Abertas,

publicadas no jornal A República, dirigidas ao reverendo Agenor

Mafra. Quem assinou as sete cartas foi Antenor Manso Cordeiro.

Para Agenor Mafra, destinatário identificado nas cartas abertas,

Antenor Manso Cordeiro era o pseudônimo de Fernando Taddei,

o então bispo da diocese de Jacarezinho (década de 1930), um

opositor declarado do escritor protestante.2

É importante lembrar que o jornal A República, como

outras mídias impressas não confessionais analisadas na pesquisa,

não respondia pelo pensamento de seus colaboradores, nem se

alinhava, necessariamente, às defesas e aos ataques publicados

pelos autores religiosos. O presente artigo, portanto, destaca uma

das cartas – a primeira de uma série de sete – publicadas nessa

mídia impressa não confessional, indicando que os confrontos

entre cristãos alcançaram espaços além dos templos religiosos e

2 Agenor Mafra trata da possibilidade do bispo Dom Fernando Taddei ter utilizado um pseudônimo – Antenor Manso Cordeiro – quando da publicação das cartas no jornal A República. Tal afirmação pode ser encontrada no livro de Mafra, intitulado O Papismo perante a Biblia. Uma discussão mais detida pode ser encontrada no capítulo 4 da tese já mencionada.

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das mídias confessionais. Cabe ainda uma informação importante

quando se pensa na mídia impressa. O que se tem em mente neste

artigo é indicar, brevemente, como se deu o processo de coleta

de dados, tomando como fonte uma publicação da década de

1930, visando à compreensão dos confrontos entre os escritores

ou intelectuais do catolicismo e do protestantismo.

Com relação à coleta das informações contidas nas cartas

publicadas no jornal A República, utilizou-se como equipamento

digital uma máquina de fotografia. Tal equipamento objetivou

capturar trechos de cada uma das sete cartas assinadas por

Manso Cordeiro, partindo dos textos originais. Os mesmos estão

depositados na Biblioteca Pública do Estado do Paraná, na cidade

de Curitiba, que favoreceu a pesquisa sobre as disputas religiosas

publicadas no jornal.

Tendo localizado uma das sete cartas assinadas por

Cordeiro, conservadas para consulta preliminar na forma de

microfilme, notou-se que era fundamental ter acesso ao texto

original, o que foi autorizado. A partir desse momento, visando

à preservação dos documentos originais, passou-se a utilizar a

fotografia digital para reunir os fragmentos do texto, permitindo

uma análise posterior. As imagens foram feitas parágrafo a

parágrafo, objetivando recompor cada uma das cartas inseridas

nos exemplares do jornal. Posteriormente, de posse das fotografias

digitais, iniciou-se a transcrição do texto na forma ortográfica da

época, reconstituindo a cronologia das cartas de Antenor Manso

Cordeiro. A utilização de tal técnica permitiu agrupar, a partir

das fotografias dos fragmentos textuais, o conjunto das cartas

publicado em 1930.

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No Estado não confessional, os confrontos religiosos

Contrariando uma possível ideia de aproximação, ou

mesmo de tolerância e sentimento de igualdade na relação

entre católicos e protestantes, percebeu-se que os confrontos

iniciados e tornados públicos após a Proclamação da República

continuaram nas primeiras décadas do século XX, sendo que as

polêmicas religiosas podem ser consideradas uma das expressões

dos embates entre grupos cristãos no contexto da sociedade

brasileira daquele período.

Como exemplo dos confrontos entre intelectuais religiosos

nas primeiras décadas do século XX, destacam-se as produções

sobre polêmicas religiosas de dois clérigos: um deles, representante

do catolicismo romano, elaborou um trabalho orientando os

fiéis sobre os erros que entendia existirem no protestantismo;

enquanto o outro, representando o presbiterianismo, procurou

confrontar os argumentos do bispo, defendendo o pensamento

de parte do protestantismo. Os dois clérigos cristãos atuaram

no Sul do Brasil, sendo que Dom Fernando Taddei foi bispo

de Jacarezinho, cidade localizada no Estado do Paraná. Por

outro lado, o reverendo Agenor Mafra foi um dos pastores da

Igreja Presbiteriana, estando vinculado ao Presbitério do Sul,

desenvolvendo parte do seu ministério em Santa Catarina. A

importância dos dois clérigos para a compreensão dos confrontos

entre intelectuais católicos e protestantes pode ser observada

na produção de textos e documentos que ambos elaboraram e

tornaram públicos entre 1929 e 1930.

Agenor Mafra comentou a publicação de uma carta pastoral

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de autoria de Dom Fernando Taddei tecendo comentários nas

notas informativas que introduzem o seu texto, afirmando que o

bispo de Jacarezinho escreveu um documento eclesiástico tendo

como objetivo principal combater a influência do protestantismo

entre os brasileiros.

Por outro lado, segundo Antenor Manso Cordeiro, fazendo

menção a Mafra, houve a publicação de um folheto intitulado

Falsidade e falsificação, rebatendo a pastoral do bispo católico

e reafirmando o pensamento do protestantismo no Brasil.

Como forma de responder às questões levantadas pelo opositor

protestante, Sete Cartas Abertas foram publicadas no jornal A

República, assinadas por Manso Cordeiro. É essa produção que o

reverendo Mafra atribui ao então bispo na diocese de Jacarezinho.

Procurando responder os argumentos que fazem parte das sete

cartas, Mafra voltou a escrever, elaborando e publicando um livro

intitulado O papismo perante a Biblia, a historia e os factos: ligeiras

respostas ao bispo de Jacarézinho, sr. Dom Fernando Tadei.

Tem-se, portanto, um conjunto de textos que pode ser

classificado como de polêmica religiosa, enfatizando, sobretudo,

os confrontos entre dois clérigos do cristianismo brasileiro.

De forma objetiva, esta é a ordem de publicação dos textos de

confronto entre Taddei e Mafra: a) a pastoral de Dom Fernando

Taddei, intitulada A propaganda protestante e os deveres dos católicos

(1929); b) o opúsculo do reverendo Agenor Mafra, nomeado

Falsidade e falsificação; c) as Sete Cartas Abertas assinadas por

Antenor Manso Cordeiro, identificadas pelo título O primado de

S. Pedro e dos papas, seus successores (1930), e d) o livro de Mafra, O

papismo perante a Biblia, a historia e os factos: ligeiras respostas ao bispo

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de Jacarézinho, sr. Dom Fernando Tadei, que encerra essa parte dos

confrontos entre os dois intelectuais.

Foi a partir desse conjunto documental, entre outros textos

de igual relevância, que se buscou responder a uma questão: por

que intelectuais do catolicismo romano e do protestantismo

elaboraram e publicaram seus discursos, que se constituíram em

instrumentos de confronto religioso, considerando que o Estado

não confessional assegurava igualdade de expressão religiosa a

todos os credos? Pode-se pensar que as disputas não eram somente

de caráter religioso, já que católicos e protestantes objetivaram

influenciar a sociedade brasileira, indicando os melhores projetos

para o desenvolvimento de tal sociedade, fosse pelo viés romanista

ou protestante.

Para o sociólogo Agemir Dias, que analisou tanto o

catolicismo romano quanto o protestantismo, “no começo do

século XX, havia uma clara distinção entre o pensamento católico

e o pensamento protestante quanto ao projeto de civilização no

Brasil. Na visão católica, a Igreja era a mola propulsora da reforma

da sociedade. Já para os protestantes, era a obra do cristão na

sua consciência vocacional que realizava essa reforma”.3 Para

ele, o projeto de civilização pensado por alguns idealizadores

da República revelava traços positivistas, indicando, em parte,

um posicionamento antirreligioso ou até mesmo anticlerical,

questionando a influência do catolicismo sobre a sociedade.

Por outro lado, a República foi recebida com algum entusiasmo

pelas denominações protestantes já implantadas no Brasil, já que

3 DIAS, Agemir de Carvalho. O movimento ecumênico no Brasil a serviço da Igreja e dos movimentos populares (1954-1994). Curitiba: Instituto Memória, 2009, p. 99.

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assegurava a igualdade e a liberdade de expressão religiosa. Na

percepção de Dias, “foi no processo de reconstrução do catolicismo

que surgiram, entre católicos e protestantes, as controvérsias a

respeito de um projeto de Brasil”.4

Parece que parte do pano de fundo dessa polêmica no Estado

do Paraná pode ser localizada em outras polêmicas religiosas

que se desenvolveram antes de 1930. Assim, cabe lembrar que

antes dos confrontos entre Dom Fernando Taddei e o reverendo

Agenor Mafra, outros textos polêmicos produziram discórdias

entre intelectuais do cristianismo, que se desdobraram na

produção de obras de confronto religioso. Uma dessas produções

que fazem parte do contexto de embates religiosos é o livro do

reverendo Eduardo Carlos Pereira, intitulado O problema religioso

da America Latina: estudo dogmatico-historico, cujo pensamento

tornou-se público em 1920. Para Pereira, o principal problema

da América Latina era o catolicismo romano, que, em sua visão,

impedia o avanço e o desenvolvimento dos povos que foram,

durante séculos, influenciados pelos dogmas e rituais da Igreja

Católica Apostólica Romana.

Ao analisar os confrontos religiosos no contexto do

cristianismo brasileiro, Antonio Gouvêa Mendonça fez algumas

considerações sobre Eduardo Pereira, dizendo que a influência,

o pensamento e a produção textual do líder presbiteriano podem

ser percebidos em dois momentos distintos. O primeiro momento

deu-se antes do Congresso do Panamá, sendo que a principal

obra que retrata aquele momento ficou conhecida como O

4 DIAS, Agemir de Carvalho. O movimento ecumênico no Brasil a serviço da Igreja e dos movimentos populares (1954-1994). Curitiba: Instituto Memória, 2009, p. 99.

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Protestantismo é uma nulidade (1896). O segundo momento pode

ser fixado após a participação de Pereira no Congresso, quando o

autor procurou deixar clara a sua interpretação sobre O problema

religioso da América Latina (1920), indicando nas páginas de sua

obra, inclusive, a solução para tal “problema”.

Como se pode observar brevemente, autores contemporâneos

se dedicam a estudar os confrontos entre cristãos no contexto

brasileiro, tanto antes quanto após a Proclamação da República.

Dessa forma, as disputas entre intelectuais como Dom Fernando

Taddei e o reverendo Agenor Mafra constituem-se num capítulo a

ser analisado, contribuindo para a compreensão dos esforços dos

escritores religiosos do cristianismo, em defesa de suas convicções

e crenças, como também dos ideais de suas denominações de fé.

“O primado de S. Pedro e dos Papas, seus sucessores”

É com o título acima que o autor das sete cartas inicia

cada uma de suas considerações, endereçadas originalmente ao

reverendo Mafra. E aqui cabe uma ressalva: embora o presente

artigo destaque uma das sete cartas assinadas por Antenor Manso

Cordeiro, o documento em análise remete a um confronto religioso

anterior, indicando as disputas discursivas empreendidas pelos

clérigos Fernando Taddei e Agenor Mafra, já que o reverendo

presbiteriano havia questionado a publicação da Pastoral de

Dom Fernando. Um dos valores históricos das cartas assinadas

por Manso Cordeiro está no fato de documentar, a partir da

mídia impressa não confessional, uma disputa entre intelectuais,

ocorrida no contexto do cristianismo brasileiro.

Após enfatizar tal expressão – “O primado de S. Pedro e dos

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Papas, seus sucessores” –, que remete à intenção do missivista em

defesa de Pedro e do papado, o autor inicia a construção de seus

argumentos e de suas refutações ao pensamento de Mafra, visto

como um dos representantes do protestantismo daquele período

e região. Três considerações são pertinentes: a) o presente artigo

trata do conjunto formado pelas sete cartas de Antenor Manso

Cordeiro, empreendendo-se a análise somente da primeira

dessas sete cartas; b) a primeira missiva foi selecionada para tal

análise em função de apresentar as razões para o confronto entre

o bispo de Jacarezinho, Dom Fernando e o reverendo Mafra,

indicando os motivos de tais embates no Sul do Brasil, e c)

optou-se aqui pela reprodução integral da carta na forma como

foi publicada, conservando a construção gramatical e discursiva

da década de 1930.

Escreveu, então, Manso Cordeiro:

O PRIMADO DE S. PEDRO E DOS PAPAS, SEUS SUCCESSORES. Cartas abertas ao sr. Agenor Mafra. Carta Primeira. Sr. Ministro. O fim desta carta, e das outras que vão seguir, é refutar as principaes accusações e asserções gratuitas, contidas no seu folheto contra a Pastoral do exmo. sr. bispo de Jacarezinho. Comquanto não tenha eu visto nunca as suas credenciaes, pela simples razão que taes credenciaes não existem, não deixarei, todavia, de lhe dar, na falta de outro título, o de ministro, que o sr. usurpa. Não posso, comtudo, admittir que se arvóre em ‘pregador evangelico’, porquanto São Paulo expressamente declara que ninguém póde pregar o Evangelho, sem ser enviado por Deus. Isto é, sem ter missão official, que o sr. nunca recebeu. Assentados estes preliminares, prosigamos. Em primeiro lugar, queixa-se v. s. do modo por que foi tratado na Pastoral do exmo. sr. bispo de Jacarezinho. Não têm o mais mínimo fundamento os seus queixumes. O propagandista de heresias num paiz catholico, como é o Brasil, assemelha-se a um intruso, que penetra no interior de uma casa, para semear

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discórdias entre os membros da família. Sobrevem o chefe, isto é, o pae, e, agarrando o atrevido pelas orelhas, ou pelas costas, põe-no, sem mais formalidades, no olho da rua. Ora, pergunto eu, acaso poderá o intruso e atrevido queixar-se dos maus tratos recebidos, e accusar o dono da casa de lhe ter faltado com a delicadeza? A mim parece-me, pelo contrario, que deveria dar graças a Deus por lhe ter sahido barato o negocio, pois não resta duvida que poderia ter sido muito peior. Consulte v. s. o seu bom senso, se é que o tem, e verá que as suas lamurias não passam de ingenuidades. Mas, dirá v. s., o bispo de Jacarezinho, chamou os ministros protestantes de ignorantes, soberbos, turbulentos, embusteiros, interpoladores da Bíblia, tolos, parvos, parlapatões, etc., etc. É exacto, mas a quem cabe a culpa? Se dois e dois são quatro, poderia o exmo. sr. bispo de Jacarézino affirmar, ‘por delicadeza’, que são cinco? Aliás, convenhamos: alardeiem outros delicadezas; mas quem escreve um folheto eivado de calumnias, injurias e asneiras contra os Papas, perdeu de vez o direito a qualquer reclamação. E basta, por hoje. Antenor Manso Cordeiro.5

A primeira carta, que foi publicada após a segunda carta,

invertendo a ordem cronológica das missivas, pode ser dividida

da seguinte forma: a) objetivo da carta de Antenor Manso

Cordeiro; b) refutações às qualificações eclesiásticas do oponente

protestante; c) apropriação do direito de realizar uma missão

religiosa, representando a instituição ou a igreja; d) determinadas

expressões que fazem parte do corpo da carta, como a ideia de

uma propaganda protestante pautada pela heresia, e e) defesa da

figura do Papa, como também das práticas do catolicismo num

Brasil religioso, embora o Estado fosse não confessional.

Chamam a atenção as afirmações de Antenor Cordeiro,

que se colocou em defesa da Igreja, do bispo de Jacarezinho e das

5 A República. Seção: Cartas Abertas ao sr. Agenor Mafra, sobre O primado de S. Pedro e dos papas, seus successores – Cartas abetas ao sr. Agenor Mafra. Edição do dia 18 de janeiro de 1930, p. 02.

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práticas do catolicismo no Brasil, dizendo que “o fim desta carta,

e das outras que vão seguir, é refutar as principaes accusações

e asserções gratuitas, contidas no seu folheto contra a Pastoral

do exmo. sr. bispo de Jacarezinho”.6 O autor tinha claro que

aquela não seria apenas uma resposta, mas a primeira de uma

série publicada na mídia impressa não confessional. Quando

são analisados os argumentos constantes do texto anteriormente

citado, observa-se que a motivação prioritária era defender a

Pastoral publicada pelo bispado de Jacarezinho e, por extensão,

pelo catolicismo brasileiro, refutando as acusações ou asserções

publicadas num opúsculo que se opunha ao pensamento da Igreja

e de uma das dioceses no Estado do Paraná. No período em que

a carta de Cordeiro foi publicada (1930), quatro décadas haviam

se passado desde a Proclamação da República (1889). No entanto,

nota-se que determinados segmentos religiosos no Brasil, como

os representados pelos intelectuais e escritores polêmicos, ainda

discutiam em suas produções discursivas o direito à expansão

religiosa, como também a liberdade na expressão e divulgação de

suas práticas de fé.

O historiador Euclides Marchi, que desenvolveu consistente

pesquisa sobre os fenômenos e instituições religiosas no Brasil,

analisou uma declaração do clero católico brasileiro, enfatizando

a ideia de ser o Brasil um país considerado católico romano. As

considerações de Marchi ajudam a entender as tensões religiosas

e discursivas entre as diversas denominações cristãs nas primeiras

décadas do século XX. Nesse sentido, tomando como base as

6 A República. Seção: Cartas Abertas ao sr. Agenor Mafra, sobre O primado de S. Pedro e dos papas, seus successores – Cartas abetas ao sr. Agenor Mafra. Edição do dia 18 de janeiro de 1930, p. 02.

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reflexões do prof. Euclides Marchi, cabe lembrar que os anos

de 1915 e 1916 foram de significativa produção discursiva e

documental por parte do clero ligado à Santa Sé.

Assim, Marchi propõe algumas reflexões, dizendo que “o

ano de 1915 representou um momento de definição de rumos,

especialmente com a publicação da Carta Pastoral Coletiva e das

atas e decretos do episcopado brasileiro”.7 Avançando em suas

considerações, o autor observou que “em julho de 1916, dom

Sebastião Leme, nomeado arcebispo de Olinda, antes de assumir

o novo cargo, lançava um olhar sobre a sociedade católica do

Brasil e publicava uma carta pastoral na qual analisaria as causas

dos males que afetavam o catolicismo e receitaria alguns remédios

para dissipá-los”.8 Dos males que afetavam o catolicismo no Brasil

daquele período, de acordo com o pensamento de parte do clero

católico, dois podiam ser apontados: a presença e a expansão das

denominações protestantes e o desenvolvimento do pensamento

e das práticas do espiritismo. Dessa forma, compreende-se que os

confrontos religiosos entre os intelectuais no Estado do Paraná,

como analisados neste artigo, podem ser colocados ao lado de

outras disputas que ocorreram em períodos e lugares distintos, no

contexto da sociedade brasileira.

Retomando a análise da primeira carta publicada no jornal

A República, merece destaque a analogia que Antenor Manso

Cordeiro fez da presença do protestantismo no Brasil, dizendo:

7 MARCHI, Euclides. O mito do Brasil Católico: Dom Sebastião Leme e os contrapontos de um discurso. Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n. 28, p. 55-75, 1998. Editora da UFPR, p. 56.8 MARCHI, Euclides. O mito do Brasil Católico: Dom Sebastião Leme e os contrapontos de um discurso. Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n. 28, p. 55-75, 1998. Editora da UFPR, p. 62.

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“o propagandista de heresias num paiz catholico, como é o Brasil,

assemelha-se a um intruso, que penetra no interior de uma casa,

para semear discórdias entre os membros da família. Sobrevem o

chefe, isto é, o pae, e, agarrando o atrevido pelas orelhas, ou pelas

costas, põe-no, sem mais formalidades, no olho da rua”.9 Embora

o Estado fosse não confessional, as mudanças no pensamento dos

líderes e intelectuais religiosos no Brasil não acompanhavam, no

mesmo ritmo, as promulgações jurídicas e constitucionais. Vale

lembrar que, desde o final do século XIX, as leis asseguravam

a igualdade e a liberdade de expressão religiosa para todas as

religiões e credos presentes na sociedade brasileira.

Conquanto existisse tal garantia de liberdade assegurada

pela Constituição, os confrontos indicavam uma tensão em

torno de revelar a essa mesma sociedade quais práticas e rituais

religiosos eram os mais adequados, ou os que fariam diferença no

desenvolvimento social dos brasileiros. A liberdade de expressão

assegurada pelas leis da República não se traduzia na ausência de

confrontos religiosos entre intelectuais.

Considerações

A tese de doutorado em história citada na introdução do

artigo descreveu parte dos confrontos religiosos entre intelectuais

do cristianismo no Brasil, tomando como referência temporal

o período entre 1890 e 1960. Ela, então, partiu da apropriação

que as religiões e os diversos credos, já inseridos na sociedade,

fizeram do evento que foi a Proclamação da República. A tese

9 A República. Seção: Cartas Abertas ao sr. Agenor Mafra, sobre O primado de S. Pedro e dos papas, seus successores – Cartas abetas ao sr. Agenor Mafra. Edição do dia 18 de janeiro de 1930, p. 02.

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não discutiu o poder da República em si mesma, ou mesmo

o seu distanciamento diante dos confrontos, mas pesquisou

como os diversos grupos religiosos no Brasil se apropriaram do

significado de tal acontecimento político e como divulgaram o

seu pensamento para a sociedade.

Parte dos confrontos ocorreu no Brasil entre a

Proclamação da República e o início da segunda metade do

século XX, havendo uma redução significativa dessa forma

relacional entre instituições religiosas de confissão cristã e seus

representantes a partir das décadas de 1950-1960. Cabe lembrar

que a pesquisa tratou dos confrontos entre intelectuais e suas

construções discursivas, entendendo que outros estudos sobre

possíveis embates envolvendo parte dos adeptos do catolicismo

e do protestantismo podem ser realizados, como também

pesquisas sobre os movimentos de ecumenismo no cristianismo,

considerando o mesmo período indicado.

É relevante considerar, portanto, a partir das fontes

analisadas, que a disputa não se constituía somente em torno de

questões teológicas, doutrinárias e eclesiásticas. Essas questões

foram tratadas pelos debatedores em suas produções discursivas,

mas existiam outros elementos que motivaram os intelectuais

cristãos a escreverem obras de defesa e polêmica religiosa. Uma

dessas motivações foi a defesa no sentido de orientar a sociedade

brasileira sobre um determinado projeto de desenvolvimento,

fundamentado no pensamento cristão. No entanto, alguns

intelectuais católicos defenderam que o pensamento cristão

correto era aquele ligado à Igreja Católica e ao papado,

reforçando os vínculos com a Santa Sé. Por outro lado, outros

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intelectuais religiosos também defenderam o pensamento

cristão, mas de orientação protestante, reforçando a ideia de

uma liberdade religiosa, que tem nas escolhas dos indivíduos a

sua maior expressão.

O reverendo Agenor Mafra, Dom Fernando Taddei e o

autor das sete cartas, assinadas por Antenor Manso Cordeiro, nos

ajudam a compreender uma época significativa no desenvolvimento

da sociedade brasileira, quando os intelectuais religiosos foram

desafiados a revelar parte de seus pensamentos e a manifestar a

forma como concebiam determinadas questões sociopolíticas. Eles

podem ser colocados ao lado de outros intelectuais que ajudaram

a pensar nos benefícios dos mais diversos projetos apresentados

para um Brasil, sobretudo, quando se experimentava profundas

transformações nas mais variadas áreas da sociedade.

Dessa forma, os confrontos religiosos no Brasil não apenas

foram inevitáveis. Pode-se dizer, a partir das fontes analisadas,

que tais embates foram desejados e buscados, pois permitiam

a divulgação do pensamento cristão, tanto pelo catolicismo

quanto pelo protestantismo. Os confrontos entre intelectuais

também realizaram a função de definir as fronteiras doutrinárias

e eclesiásticas entre as denominações cristãs, indicando para a

sociedade aqueles que apresentavam os projetos mais adequados

ao desenvolvimento social brasileiro.

REfERêNCIAS

A República. Seção: Cartas Abertas ao sr. Agenor Mafra, sobre O primado de S. Pedro e dos papas, seus successores – Cartas abetas ao sr. Agenor Mafra. Edição do dia 18 de janeiro de 1930.

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