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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 ARUANAS E A POÉTICA TELEVISUAL NA ERA DO STREAMING 1 ARUANAS AND TELEVISUAL POETICS IN THE AGE OF STREAMING Simone Maria Rocha 2 Resumo : Este artigo apresenta uma proposta metodológica baseada na análise da televisualidade e na hermenêutica da narrativa para analisar o meio e a poética televisual de obras ficcionais produzidas na era do streaming. Tal proposta foi desenhada para investigar mudanças e continuidades nesse novo cenário em um conjunto de produções audiovisuais de países latino-americanos com vistas a identificar as marcas de um “Selo América Latina de exportação da ficção televisual”. Para evidenciar o objetivo proposto, desenvolvo um exercício analítico sobre as estratégias de distribuição, da construção visual e narrativa da série original Globoplay Aruanas (2019). Palavras-Chave: Mercado audiovisual latino-americano, poética televisual, Aruanas. Abstract : This paper presents a methodological proposal based on the analysis of televisuality and narrative hermeneutics to analyze the medium and televisual poetics of fictional works produced in the era of streaming. This proposal was designed to investigate changes and continuities in this new scenario in a set of audiovisual productions from Latin American countries in order to identify the marks of a “Latin American Seal of Television Fiction Export”. To evince the proposed objective, I develop an analytical exercise on the distribution strategies, visual construction and narrative of the original series Globoplay Aruanas (2019). Keywords: Latin American audiovisual market, televisual poetics, Aruanas. 1. Introdução A Internet e a introdução de dispositivos móveis têm impactado a distribuição, a produção e o consumo audiovisuais (MCDONALD & SMITH-ROWSEY, 2016). No modelo de negócio conhecido como long tail (OSTERWALDER Y PIGNEUR, 2011) a Netflix, ao 3 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão do XXVIII Encontro Anual da Compós. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020. 2 Professora do PPGCOM-UFMG. Líder do COMCULT. [email protected] 3 Reconheço que esse é um cenário de mudanças vertiginosas e que, conquanto Netflix não seja o único ator, é a líder no mercado de vídeo sob demanda. Ver https://medium.com/design-and-tech-co/the-netflix-problem-2d66df99a0b2, acesso em 01/11/2019. 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020

ARUANAS E A POÉTICA TELEVISUAL NA ERA DO STREAMING 1

ARUANAS AND TELEVISUAL POETICS IN THE AGE OF

STREAMING

Simone Maria Rocha 2

Resumo: Este artigo apresenta uma proposta metodológica baseada na análise da

televisualidade e na hermenêutica da narrativa para analisar o meio e a poética televisual de obras ficcionais produzidas na era do streaming. Tal proposta foi desenhada para investigar mudanças e continuidades nesse novo cenário em um conjunto de produções audiovisuais de países latino-americanos com vistas a identificar as marcas de um “Selo América Latina de exportação da ficção televisual”. Para evidenciar o objetivo proposto, desenvolvo um exercício analítico sobre as estratégias de distribuição, da construção visual e narrativa da série original Globoplay Aruanas (2019).

Palavras-Chave: Mercado audiovisual latino-americano, poética televisual, Aruanas. Abstract: This paper presents a methodological proposal based on the analysis of televisuality

and narrative hermeneutics to analyze the medium and televisual poetics of fictional works produced in the era of streaming. This proposal was designed to investigate changes and continuities in this new scenario in a set of audiovisual productions from Latin American countries in order to identify the marks of a “Latin American Seal of Television Fiction Export”. To evince the proposed objective, I develop an analytical exercise on the distribution strategies, visual construction and narrative of the original series Globoplay Aruanas (2019).

Keywords: Latin American audiovisual market, televisual poetics, Aruanas. 1. Introdução

A Internet e a introdução de dispositivos móveis têm impactado a distribuição, a

produção e o consumo audiovisuais (MCDONALD & SMITH-ROWSEY, 2016). No modelo

de negócio conhecido como long tail (OSTERWALDER Y PIGNEUR, 2011) a Netflix, ao 3

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Televisão do XXVIII Encontro Anual da Compós. Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020. 2 Professora do PPGCOM-UFMG. Líder do COMCULT. [email protected] 3 Reconheço que esse é um cenário de mudanças vertiginosas e que, conquanto Netflix não seja o único ator, é a líder no mercado de vídeo sob demanda. Ver https://medium.com/design-and-tech-co/the-netflix-problem-2d66df99a0b2, acesso em 01/11/2019.

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diversificar e dinamizar as práticas de distribuição e de produção, ampliar seu catálogo de

conteúdos e satisfazer tanto sua audiência global quanto os nichos mais específicos

(LOBATO, 2019), capitaneou mudanças importantes num mercado atualmente competitivo 4

e ocupa posição destacada no setor.

Diante deste cenário, este artigo tem por objetivo apresentar uma proposta

metodológica para a análise integral do meio e da poética televisual de obras ficcionais 5

produzidas na era do streaming que toma por base a análise da televisualidade (ROCHA,

2019) e a hermenêutica da narrativa (MARTÍN-BARBERO, 2008). Este desenho foi

proposto para investigar mudanças e continuidades em um conjunto de produções

audiovisuais de países latino-americanos com vistas a identificar as marcas de um “Selo

América Latina de exportação da ficção televisual” . Quais são as estratégias de mercado e 6

de comunicabilidade empreendidas pela produção de ficção de países latino-americanos na

era do streaming? Para dar concretude ao objetivo proposto apresento um exercício analítico

a partir da série original Globoplay Aruanas (2019).

2 Estratégia de comunicabilidade e experiência

Para Jesús Martín-Barbero (JMB) estratégia de comunicabilidade traduz as formas

segundo as quais um texto se apresenta enquanto uma proposta de interação cuja dinâmica

evidencia as mediações em jogo. Segundo o autor, “um profundo desencontro entre método e

situação" (2008, p. 262) é o que justifica um giro epistemológico apto a abordar a

complexidade de trocas comunicativas imersas em realidades específicas e capaz de colocar

no centro das reflexões os lugares de mediações.

4 Netflix finalizou 2019 com 158 milhões de assinaturas (NETFLIX MEDIA CENTER, 2020). 5 Acompanho as reflexões de Jeremy Butler que, após investir na história da cinepoética traçada por David Bordwell, apresenta o projeto global de Television Style (2010) como passo inicial do processo de construção de uma poética da televisão, uma telepoética. 6 Projeto desenvolvido em parceria com universidades do Brasil, Chile, Colômbia e México cujo objetivo é conhecer as novas dinâmicas e examinar estratégias de distribuição, de produção e de comunicabilidade de ficções atuais realizadas em nível regional para alcançar sua entrada e permanência no cenário globalizado e marcado por forte competitividade, sobretudo a partir do que ficou conhecido como efeito Netflix .

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Ao argumentar que a compreensão dos processos comunicativos ocorridos nas

realidades latino-americanas passa fundamentalmente pela relação estabelecida com as

culturas populares, o giro proposto pelo autor parte de um entendimento dos textos que

escapa às possibilidades de uma análise textualista e argumenta pela vital relação entre

produtores, textos e leitores. Analisar as obras significa, também, buscar as marcas das

discursividades que as atravessam e do mundo referencial que as sustenta.

Ao trabalhar com a noção de estratégia de comunicabilidade JMB atribui o termo a

uma equipe de investigadores italianos que a consideram como "modos em que se fazem

reconhecíveis e organizam a competência comunicativa, os emissores e os destinatários”

(WOLF, 1984, p. 191). A definição está centrada nas lógicas do sistema produtivo e dos usos

que medeiam os gêneros e JMB (2008, p. 303-304) a adota como sinônimo de estratégias de

interação, o que potencializa o uso do conceito por dotá-lo de certa amplitude capaz de

compreender as mediações em jogo.

Agrego a tal noção duas outras que contribuem na adoção do termo enquanto

sinônimo de estratégia de interação. A primeira trata-se da noção de acontecimento visual

(MIRZOEFF, 2003) que se configura por momentos de intenso poder visual cuja experiência,

que funda esse ato de ver, exige o compartilhamento de repertórios de sentido capazes de

sustentar ideias compartilhadas como paz, justiça, igualdade, violência, etc.

A segunda noção refere-se ao acontecimento narrativo (RICOUER, 2004) a partir da

proposição de que uma narrativa transforma-se em acontecimento na medida em que

configura algo que inicialmente não era mais do que simples ocorrência. A narrativa promove

os acontecimentos e os torna possível por meio da tessitura de uma intriga.

O entendimento dessa poética comunicacional de JMB parte do modo como duas

noções figuram, a meu ver, como centrais em seu percurso intelectual: estética e interação.

Em Dos meios às mediações (2008) JMB evidencia a proposta de um método baseado

na investigação e na análise do social a partir da estética, ou seja, uma sociologia que, como

nos espaços da poética ou da narrativa, desmonte e desarticule a lógica pura da totalidade. E

em que lugar se situa JMB para elaborar esse método que reencontra a estética com o

sensorial, com uma experiência vinculada a “modos de viver, de cantar, de brincar, de

entreter-se, de amar-se, de representar o mundo e narrá-lo? (1995, p. 17). Na fissura que se

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abre entre meios e mediações, a que instaura o espaço da experiência urbana e da recusa à

totalidade simbólica; a que mestiça saberes e sentires, seduções e resistências. É a

possibilidade do fragmento, da ruína, da estética que se rebela contra a Aesthtetica, da

resistência diante do poder sedutor da totalidade: é a estética que propôs Walter Benjamin. O

pensar a experiência ao modo de Benjamin constitui o eixo central de toda a proposta

metodológica da obra de JMB. O foco deste projeto estético no poder da imagem sensorial e

do corpo joga luz na região humana da percepção: da recepção múltipla e dispersa da

experiência (COLÓN, 1998).

Sendo assim, com tais aportes, redefino o conceito de estratégia de

comunicabilidade/estratégia de interação como formas segundo as quais um texto se

apresenta enquanto uma proposta de experiência e interação, cuja dinâmica evidencia as

mediações em jogo, a partir de um duplo acontecimento: visual e narrativo.

3 Metodologia

Dois conceitos-chave foram mobilizados para contemplar questões relacionadas ao

meio e à poética das obras: visualidade e narrativa.

A noção de visualidade refere-se a atenção dispensada àquilo que numa experiência

visual remete à uma relação dialética com os imaginários circulantes (MITCHELL, 2009). Já

narrativa é o modo de configuração de uma história, um acontecimento ou uma trajetória de

vida que exerce mediação entre um mundo pré-figurado e a experiência prática do leitor

(RICOEUR, 2004).

Visualidade e narrativa são construtos que se apresentam enquanto uma abertura à

experiência do observador/espectador promovendo acontecimentos visuais e narrativos

fundados numa relação dialética com o texto e que ativam sua estrutura gerativa. Tais

experiências contém um pano de fundo ético e histórico que sustenta possíveis regimes de

visualidade e dizibilidade e modulam nossos processos de interação com os textos.

A análise proposta combina duas estratégias metodológicas: a análise da

televisualidade e hermenêutica da narrativa e prevê quatro momentos. São eles:

3.1 Análise do meio (da distribuição e da produção)

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Na quarta tese que sustenta o trabalho dos estudos de cultura visual Mitchell afirma

que “não existem meios puramente visuais” (2005, p. 34) mas, sim, diferentes mesclas entre

proporções sensórias e semióticas: “aunque todos los medios sean medios mixtos, no todos

están mesclados desde el mismo modo, con las mismas proporciones de elementos” (2005, p.

20). É concepção de meio oferecida por Raymond Williams que sustenta sua argumentação:

(...) un medio es una “prática social material”, no una esencia discernible dictada por alguna materialidad elemental (pintura, piedra, metal) o por la técnica o por la tecnología. Los materiales y la tecnología intervienen en el medio, pero también lo hacen las habilidades, los hábitos, los espacios sociales, las instituiciones y los mercados. Por tanto, la noción de “especificidad de lo medio” nunca se obtiene de una esencia singular y elemental (...). En pocas palabras, uno puede afirmar que no existen medios visuales, que todos los medios son medios mixtos, sin tener que abandonar la ideia de la “especificidad del medio (MITCHELL, 2005, p. 20).

Investir numa poética comunicacional demanda que o streaming seja tratado como

meio, o que proponho fazer a partir do chamado Netflix effect , da guerra dos conteúdos e dos 7

nichos de mercado.

A Netflix tem sido abordada em função das transformações que vem causando no

atual cenário de produção audiovisual (JENNER, 2018; LOBATO, 2019; MCDONALD &

SMITH-ROWSEY, 2016). Reed Hastings, co-fundador e CEO da empresa, foi o primeiro a

reunir vários importantes princípios: amplo catálogo de conteúdo, inovação contínua,

distribuição online (a partir de 2007) e assinaturas mensais (modelo long tail em constante

expansão). A partir de 2012, frente a um mercado competitivo, a empresa passou a se

concentrar na produção de conteúdo original. Tais fatores levaram ao chamado Netflix effect

considerado como aquele que propulsionou o mercado do streaming de forma a orientar

novas estratégias e novos hábitos de consumo (MCDONALD & SMITH-ROWSEY, 2016;

TBI 2014; WARD, 2016).

Uma das principais características desse novo ecossistema digital é a disputa pelo

conteúdo traduzida no fornecimento de um catálogo que atenda a uma audiência fragmentada,

plural e dispersa. A migração do público para plataformas de transmissão online produziu

7 O streaming inclui os investimentos na produção de longametragens originais cuja análise demandaria a abordagem de dinâmicas distintas das produções televisuais. O projeto Selo foca na produção de ficção seriada. Creio que considerar serviços de streaming como televisões globais como o faz Parrot Analytcs (Informe 2018…) seja uma boa medida da hibridez deste meio em questão.

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uma mudança vertiginosa causando a chamada “demanda como um novo paradigma” que

consiste na captura da “expressões de demanda das mais variadas fontes para combiná-las a

partir do poder da inteligência artificial avançada, em uma única medida de demanda

ponderada chamada de expressões de demanda” (Informe Demanda de Televisión Global

2018: Edición Latinoamérica y US Hispana, 2019, p. 2).

Essa disputa por conteúdo vincula-se a uma das principais estratégias de distribuição

da Netflix que se baseia no lançamento dos episódios de suas séries de uma só vez, o que

acarretou a necessidade de uma geração de conteúdos volumosa e diversificada, bem como

um fluxo de lançamentos que garanta a fidelidade do telespectador.

Sobre os nichos de mercado, apesar da presença massiva da produção do Norte Global

em seu catálogo, parece claro que Netflix reconhece que a difusão de conteúdo

estadounidense, inglês e indiferenciado é insuficiente e necessita atrair produções locais.

Desde a perspectiva operacional global, o conteúdo "local" é parte da estratégia para capturar

"nichos de mercado" (BALADRON & RIVERO, 2019).

O Netflix effect colabora para definir algumas das especificidades do streaming como

meio, além de causar transformações nos modelos da indústria tradicional televisiva que

busca, atualmente, renovar sua própria capacidade tecnológica e firmar-se nesse cenário

emergente. Essa nova forma de produção de conteúdo mostra-se como uma força que desafia

o conhecimento existente da indústria televisiva e faz emergir novos princípios

organizacionais (BURROUGHS, 2018).

Esse parece ser o caso do Grupo Globo, o maior conglomerado de mídia da América

Latina, a medida em que altera seu modelo de produção e distribuição. Se antes o foco estava

na distribuição de conteúdo, agora amplia-se a estratégia de modo a incluir a relação direta

com as audiências. O seu canal de streaming - Globoplay - é atualmente uma de suas

prioridades. Em 2018, a empresa registrou uma redução de 38% na geração de caixa

operacional para reforçar os investimentos ostensivos na plataforma, a fim de competir de

forma mais equilibrada com outras empresas e garantir seu espaço no setor . A Globoplay 8

8 Nelson de Sá, “Em luta contra a Netflix e outros serviços, Globo tenta ser gigante tecnológica”, Folha de S. Paulo, Maio 29, 2019, https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/em-luta-contra-netflix-e-outros-servicos-globo-tenta-ser-gigante-tecnologica.shtml.

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desenvolve estratégias próprias que diferem das gigantes internacionais. Enquanto a produção

estrangeira se pulveriza em diversas plataformas, obrigando o usuário a arcar com diversas

assinaturas, o serviço de streaming da Globo comporta conteúdo importado mas, sobretudo,

reúne conteúdo nacional em um cardápio variado, além de prever o fornecimento de parte do

acervo da Emissora na tentativa de levar para o streaming sua importante audiência do canal

aberto. Uma outra estratégia exclusiva é a de transformar a própria Globo em vitrine da

Globoplay ao disponibilizar-se na TV aberta parte (geralmente o primeiro capítulo) do

conteúdo que está na íntegra no streaming numa espécie de “a história continua… no

Globoplay”. A partir de 2018 o serviço de streaming iniciou a produção de conteúdo original,

investiu em formas diversificadas de distribuição e vem demonstrando fôlego, capacidade

produtiva e operacional.

3.2 Análise da televisualidade

A especificidade das produções ficcionais seriadas televisuais será abordada por meio

da análise da televisualidade que consiste na articulação entre o conceito de visualidade e a

análise do estilo televisivo (BUTLER, 2010), mostrando-se parte estrutural do modelo.

Televisualidade refere-se ao modo como certas operações próprias do estilo televisual

evidenciam as visualidades em jogo. Todavia, por questão de espaço e por já ter sido

apresentada em outros trabalhos (ROCHA, 2019, 2017), optei por não desenvolvê-la

detalhadamente neste texto.

3.3 Hermenêutica da narrativa

Ao partir de uma perspectiva que escapa ao hermeneuta convencional, sigo os passos

de JMB que parte de uma topografia de leituras que considera a narrativa como uma

mediação entre os sujeitos e sua experiência com o tempo e com o mundo referencial. JMB,

ao abordar a potência dos relatos populares como expressão do estar no mundo das maiorias

latino-americanas, coloca-os como síntese de nossas experiências com as múltiplas

temporalidades na América Latina.

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Duas referências parecem centrais ao modo como este autor compreende a narrativa

enquanto mediação: Walter Benjamin e Paul Ricoeur.

A reflexão de Benjamin (1994) considera a narrativa como um fenômeno social no

qual reputa posições centrais à arte de narrar e ao valor do narrador - alguém capaz de dar

conselhos em um momento em que as experiências não são mais comunicáveis. Todavia,

para ele, "o conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria", esse

"lado épico da verdade", que está em extinção (1994, p. 203). Em seu lugar, tem-se o

constante recebimento de notícias de todo o mundo e o consequente empobrecimento da

experiência pois "quase nada que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a

serviço da informação" (1994, p. 203). Para entender essa mudança Benjamin dedica-se a

perceber as transformações no sensorium moderno e a entender a massa como uma matriz

geradora de novos modos de sentir no contexto da modernidade no qual, de fato, o narrador

ao qual se refere encontra-se em extinção. Todavia prossegue viva a arte de narrar e com ela a

necessidade de comunicar experiências a partir de novas mediações.

Essa potência viva da arte de narrar pode ser retomada nos escritos de Ricoeur (2010,

p. 46),

Talvez, de fato, nós sejamos testemunhas - e os artesãos - de uma certa morte, a morte da arte de contar, da qual procede a arte de narrar em todas as suas formas [...]. Nada exclui, pois, que a metamorfose da intriga encontre em algum lugar um limite além do qual não se poderá mais reconhecer o princípio formal da configuração temporal que torna a história narrada uma história completa. E no entanto ... Talvez seja necessário, apesar de tudo, confiar na demanda de concordância que ainda hoje estrutura as expectativas dos leitores e acreditar que novas formas narrativas, que ainda não sabemos nomear e que já estão nascendo, provarão que a função narrativa pode se transformar, mas não morrer. Porque não temos a menor ideia de como seria uma cultura na qual você não se saiba mais o que significa narrar.

O autor propõe à narrativa a condição de termo englobante de toda a arte de compor

intriga. Ele o faz ao estabelecer uma quase identificação entre mimese (imitação criativa ou

representação da ação) e muthos (tessitura da intriga ou disposição dos fatos em um sistema)

e, seguindo os postulados aristotélicos, privilegia o que [atividade produtora de intrigas] em

detrimento do pelo que [meio] e do como [modo], e de qualquer outra explicação, quer seja

de ordem historiográfica, sociológica ou estrutural. Embora seja verdade que a Poética de

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Aristóteles se limita ao desenvolvimento de aspectos da intriga trágica, Ricouer pretende

ampliar tal definição a toda e qualquer composição que se propõe como narrativa.

Entendo que a filosofia de Ricouer toma esse caminho próprio porque ele enxerga a

narrativa como possibilidade de decifrar uma das preocupações mais fundamentais do

pensamento humano: o que é o tempo. Ricouer vê na operação realizada pela narrativa a

chave da questão colocada por Santo Agostinho, Quid est enim tempus? Não podemos

medi-lo, mas experimentá-lo. Questionar a temporalidade como um objeto institucionalizado

torna-se algo infértil, aporético. E a narração é a única maneira de alcançá-lo, uma vez que “o

tempo se torna humano assim que é articulado de maneira narrativa; por sua vez, a narrativa é

significativa na medida em que descreve as características da experiência temporal”

(RICOEUR, 2004, p. 39). Se somos capazes de contar, então permanecemos, somos tempo

narrado.

Em toda composição narrativa, dois tipos de tempo se cruzam: aquele em que os

momentos sucedem um após o outro e aquele em que a história se passa. Compor

temporalmente significa compreender, modelar eventos, ordenar sucessão, apreender a

temporalidade e resolver sua aporética. É por essa razão que interessa a Ricouer propor a

narrativa como termo englobante.

Obviamente que a narrativa tem suas próprias regras temporais. Novamente fundado

na Poética, Ricoeur encontra essa lógica interna como uma disposição de fatos em sistema ou

tessitura da intriga. É ela o que conduz a essa experiência com o tempo, a um modo de

compreensão de nossa experiência prática, de nosso estar no mundo . Ao narrar não somos 9

mais apenas instantes, somos seres no tempo.

Foi inspirado na filosofia de Ricoeur e em sua abertura ao enraizamento cultural e

praxiológico da narrativa que JMB apostou na potência do gesto narrativo de obras ficcionais

televisivas.

A narrativa como mediação surge na versão do mapa proposto por JMB nomeado de

Mapa das Mutaciones Culturales y Comunicativas Contemporáneas (Un nuevo mapa para

investigar la mutación cultural, 2019). Todavia, seu entendimento como um modo específico

9 A reflexão de Ricouer aborda a a narrativa em uma tríplice mimesis: a prefiguração (uma espécie de pré-condição para o narrar), a configuração e a refiguração (momento que marca a presença ativa do leitor).

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de organização da linguagem e importante portadora – e disseminadora – da experiência do

tempo é uma constante na reflexão do autor (MARTÍN-BARBERO E MUÑOZ, 1992,

MARTÍN-BARBERO, 1987).

Ao investigar os “outros modos de narrar” presentes na cultura popular

latino-americana, JMB se beneficia tanto da discussão sobre o gesto de narrar proposto por

Benjamin quanto da concepção filosófica de Ricoeur. Com Benjamin ele retoma a ideia de

narrador como "[...] aquel que retira de las experiencias lo que él cuenta: su propia

experiencia o relatada por los demás. Y incorpora las cosas narradas a las experiencias de sus

oyentes " (BENJAMIN, 1994, p. 201). E com Ricouer ele aprofunda a proposta de narrativa

como mediação fundamental na experiência que as maiorias latino-americanas terão com as

múltiplas temporalidades que constituem nossa modernidade.

A relação entre a mediação narrativa e a experiência da modernidade latino-americana

é fundamental na obra de JMB. Em De los medios a las mediaciones (1987) o autor explora,

passando pelos territórios de uma estética que reinscreve o poder sensorial, o poder das

políticas que rompem com versões tradicionais de totalidade e nos oferece chaves para

estudar essa experiência de modernidade. É nesse contexto que ele identifica o papel central

exercido pela televisão no cotidiano de nossas maiorias: “na América Latina, é nas imagens

da televisão que a representação da modernidade se faz cotidianamente acessível às grandes

maiorias” (MARTIN-BARBERO, REY, 2001, p. 41). Seu esforço em destacar a centralidade

da narrativa para compreender a dinâmica das indústrias narrativas e sua capacidade de

mediar interesses comerciais, por um lado, e o universo cotidiano do consumo, de outro,

acarretou num esboço de modelo que o permitiu investigar sobre as formas narrativas

populares no contexto da cultura massiva.

Posteriormente, em 1992, JMB e Muñoz concretizaram as potencialidades das

narrativas por meio do estudo das telenovelas como uma experiência estético-ficcional da

modernidade heterogênea pois nossa apropriação ou chegada à modernidade se dá entre

distintas sensorialidades e temporalidades, ou seja,

[...] a existência de assincronismos na modernidade, que não são puro anacronismo, mas resíduos não integrados de uma outra economia e uma outra cultura, as quais, ao transtornar a ordem sequencial do progresso, libera nossa relação com o passado, com nossos diferentes passados, permitindo-nos recombinar memórias e nos reapropriar criativamente de uma des-centrada modernidade (MARTIN-BARBERO E REY, 2001, p. 30).

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Tal entendimento foi fundamental na caracterização da experiência de modernidade

latino-americana de modo a não reduzi-la a uma diferença compreendida através do atraso

como chave interpretativa. É por isso que o entendimento que Ricouer propõe para a narrativa

mostra-se tão relevante na reflexão de JMB pois, por sua mediação - como guardiã do tempo

-, somos capazes de perceber e registrar a história cultural latina pela lógica das mestiçagens,

“continuidades na descontinuidade, conciliações entre ritmos que se excluem”

(MARTIN-BARBERO, 2008, p. 262).

Todavia, JMB não compartilha da hierarquização das partes da representação que

Ricouer retém de Aristóteles: o primado do que (intriga, personagens, pensamento) em

relação ao pelo que (meio) e ao como (modo) para assegurar a fórmula “é a intriga que é a

representação da ação”(50 a 1) (p. 59)” (RICOEUR, 2004, p. 59). Para pensar na centralidade

da narrativa como mediação de nossa experiência com o tempo e com o mundo pré-figurado,

JMB contempla em sua análise não apenas a intriga, mas o modo e o meio pelo qual ela

dispõe os fatos narrados.

Assim, embora seja evidente afinidade que JMB tem com o que Ricoeur concebia

como uma “filosofia da imaginação”, ele o fez de um modo desontologizado pois, sendo a

“narração” uma ferramenta hermenêutica transversal, não podia ficar centrada no discursivo,

mas estender-se àquelas zonas cotidianas nas quais o discursivo (o que toma por base uma

narração) se desarticula e rearticula no encontro com outras narrações distintas (não

interpretáveis como textos nem como intertextualidades, mas como interações anacrônicas

que deslocam o olhar cada vez mais na direção das dinâmicas da comunicação).

É por meio dessa hermenêutica não convencional que JMB (2000) pensa o texto como

um lugar de interação, captada através dos modos como a narrativa investe em seu

reconhecimento social e potencializa “la experiencia que la gente tiene y al sentido que en

ella cobran los procesos de comunicación” (MARTÍN-BRBERO, 1987, P. 85).

E foi isso que fez JMB identificar o melodrama como o gênero por excelência das

narrativas televisivas e recuperar a estrutura e a operação simbólica que ele aciona (1987).  

Retomo que é preciso tomar estética e interação como noções centrais. E é isso que permite

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ver na reflexão de JMB sobre narrativa um duplo reconhecimento: de personagens (problema

narrativo) e com personagens (problema de comunicação).  

O primeiro diz respeito ao que Ricouer chama de “prazer do reconhecimento” e

vincula-se ao descobrimento do texto, ao horizonte de expectativas que ele oferece e à

familiaridade construída com certo tipo de tessitura da intriga. Na intriga melodramática a

disposição dos fatos é marcada por anacronias temporais que potencializam a experiência

multitemporal de nossa modernidade heterogênea. Daí o sucesso da telenovela e sua

capacidade de guardar verossimilhança no modo como dispõe os fatos narrados: entre o

tempo da história (tempo da nação e do mundo) e o tempo da vida (aquele que vai do

nascimento à morte da cada indivíduo) é o tempo familiar o que faz a mediação e que torna

possível sua comunicação. 

O segundo aspecto do reconhecimento remete ao modo como JMB identificou a

presença duradoura, estruturadora e simbólica do melodrama nos modos de narrar, cantar e

representar das formas artísticas produzidas na América Latina. Nela.  

O melodrama resultou em algo mais do que um gênero dramático, ou seja, resultou em uma matriz cultural que alimenta o reconhecimento popular na cultura de massas, território-chave para estudar a não-simultaneidade do contemporâneo como chave das mestiçagens de que somos feitos (MARTÍN-BARBERO E REY, 2001, pp. 151-2).

Peter Brooks (1985) ressalta no melodrama o chamado de "drama do reconhecimento"

configurado na busca por uma identidade negada, escondida, oprimida, recuperada no

decorrer da narrativa.

Na América Latina tal drama adquiriu uma dimensão primordial.. Questionando sobre

a presença mutante do melodramático - no tango, na imprensa sensacionalista, no rádio, no

cinema mexicano, nas telenovelas - JMB (1992, p. 28) toma por base tal drama para

problematizar o reconhecimento daquela "outra sociabilidade" que nunca deixa de emergir de

um “des-conhecimento do contrato social”. Se “reconocer significa interpelar o ser

interpelado, una cuéstion acerca de los sujetos, de su modo específico de constituirse”

(2002b, p. 68), essa busca por saber quem somos ou quem fomos converteu-se em um ponto

chave da identificação do melodrama como uma unidade latino-americana. A esse respeito

questiona JMB: “¿No estará allí la conexión secreta del melodrama con la historia del

subcontinente americano?” (1992, p. 27).

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Essa é a dupla face do reconhecimento: a configuração da narrativa melodramática

permite uma tal disposição dos fatos que se mostra como uma mediação potente da

experiência com nossas múltiplas temporalidades. Por outro lado, essa mesma narrativa, ao

ter como característica central a busca por reconhecimento (o filho em busca do

reconhecimento do pai, a mãe em busca do reconhecimento do filho), possibilita ao

espectador uma identificação com parte de nossa história cultural que nos foi sistemática e

violentamente negada desde os princípios da colonização. A meu ver, aquilo que é chamado

de unidade melodramática latino-americana só pode ser alcançada por meio da articulação

desse duplo reconhecimento. E ele só é possível através de um deslocamento em direção às

narrativas e aos usos anacrônicos que o massivo revela e das relações entre o popular e o

massivo que tem como nexo um conceito reformulado de narração - discursiva e não

discursiva, isto é, cotidiana.

Herman Herlinghaus, na esteira da revisão da obra de Brooks e do diálogo com

autores dos estudos de comunicação latino-americanos, (MARTÍN-BARBERO, 1992;

MONSIVÁIS, 2002) define o melodrama como “una matriz de la imaginación teatral y

narrativa que ayuda a producir sentido en medio de las experiencias cotidianas de

individuos y grupos sociales diversos” (2002, p. 23 - grifos no original).

Justifico esse percurso traçado até aqui não só pela necessária apresentação da

abordagem da hermenêutica da narrativa adotada no projeto Selo como porque o principal

aporte da produção audiovisual latino-americana ao cenário da cultura internacional

fundou-se largamente nessa configuração poética. Assumo-o com um ponto de partida na

incursão sobre as narrativas que compõe o corpus do projeto tanto para criar pontes de

reconhecimento bem como de estranhamento em relação às obras produzidas na era do

streaming.

Sabemos narrar história de outro jeito? Se estamos falando de novas estratégias de

mercado e interação, como estamos contando nossas histórias para o mundo? Podemos

considerar que tais obras sintetizam algum tipo de experiência latino-americana num mundo

global? Estariam elas inaugurando nova tradição estilística e narrativa num contexto

fundamentalmente vinculado à configuração poética do melodrama?

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Para o projeto Selo busquei atualizar o modelo esboçado por JMB (1987) agora

composto pelas seguintes dimensões:

1) Enunciação: identificação do que (a tessitura da intriga) e do como (estratégia de

comunicabilidade/interação)

2) Dispositivos da dialética escritura/leitura:

2.1 Dispositivos de sedução: uso dos efeitos de suspense, curiosidade e surpresa no processo

de distribuição da informação.

2.2 Reconhecimento/estranhamento como um problema:

▪ narrativo: da identificação de personagens, da composição narrativa;

▪ de comunicação: identificação com personagens, reconhecimento/estranhamento do

universo referencial dos fatos narrados.

3) Algoritmização: informações sobre hábitos de consumo que instruem práticas de

recomendação, decisões de produção e divulgação dos conteúdos.

3.4 Visualidade, narrativa e a configuração dos indicadores culturais

A reunião dos procedimentos apresentados visa, também, identificar como

televisualidade e narrativa configuram o tema abordado e relevam as relações tanto com os

imaginários culturais quanto com as determinações históricas em jogo.

Levando-se em conta as características que podem definir o meio streaming como

uma televisão global, inserida em novas temporalidades e espacialidades que vão redefinindo

o estar no mundo, é possível pensar em modos específicos configurar nosso tempo e nossas

experiências?

4 Aruanas

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A série original Globoplay, co-produzida por Farinha Filmes mostra, em 10 capítulos,

o trabalho da ONG de defesa do meio ambiente Aruana, dirigida pela advogada Verônica

(Taís Araújo), a ativista Luíza (Leandra Leal) e a jornalista Natalie (Débora Falabella).

Acompanhadas pela estagiária Clara (Thainá Duarte), as dirigentes investigam as atividades

de exploração de minério na Floresta Amazônica onde fatos estranhos ocorrem. No curso das

investigações as ativistas constroem um quebra-cabeças de um grande esquema de crimes

ambientais envolvendo garimpos ilegais e uma mineradora nacional.

Os agenciamento dos fatos é feito por meio de recursos estilísticos e narrativos que

permitiram a intensificação da ação e do suspense conferindo à série a denominação de action

drama thriller, conforme anúncio na estreia.

Aruanas teve lançamento mundial em mais de 150 países, por meio de uma

plataforma de distribuição independente equipada com o Vimeo, legendada em 11 idiomas,

além da oferta em site próprio (www.aruanas.tv) com parte do valor arrecadado destinada a

ONGs ambientais. Contou com exibições e estreias especiais em países como Inglaterra,

Portugal e Estados Unidos com presença de realizadores, elenco, ativistas, governos e

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especialistas em causas sociambientais . No Brasil, além da presença na Globoplay, 10

adoutou-se a estratégia de exibição do primeiro episódio no canal aberto da Rede Globo e nos

seus canais internacionais.

A produção contou com a parceria de 28 ONGs em todo o mundo como Greenpeace e

ONU Meio Ambiente, mobilizado uma rede de ativistas de forma inédita. É possível

imaginar que todas essas ações tenham uma forte razão: a série carrega um chamado global

para “cuidar da Amazônia”.

“Quem gosta de floresta é índio e celebridade”

Prestes a ter em mãos o decreto de extinção da Reserva de Eldorado, Miguel Kiriacos

(Luis Carlos Vasconcelos), dono da Kiriacos Mineradora (KM) vai com seu sócio e com o

diretor de relações institucionais da empresa, Felipe Braga (Gustavo Falcão) até a área a ser

explorada. Ante as ponderações de Felipe sobre as medidas que ainda precisariam ser

tomadas para viabilizar a atividade, Miguel responde: “da fiscalização cuido eu”.

O automóvel para e eles descem. Uma metáfora visual registrada em plano detalhe

evidencia o que se quer visualizar: a bota do empresário que pisa sobre o chão da Floresta,

acompanhada da sonoplastia de um pé que esmaga o solo (Figura 1), expressa que a ganância

humana não medirá esforços para acumular capital e aumentar lucros.

10 “’Aruanas’ terá lançamento global em mais de 150 países com alerta sobre a Amazônia”, Gshow, Junho 18, 2019, https://gshow.globo.com/series/aruanas/noticia/aruanas-tera-lancamento-global-em-mais-de-150-paises-com-alerta-sobre-a-amazonia.ghtml

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Figura 1: Os pés de Miguel Kiriacos esmaga solo da Reserva

- Miguel ironiza: “Quem gosta de floresta é índio e celebridade, Felipe. O povo gosta é de

dinheiro e dinheiro não vai faltar.”

Figura 2: Miguel, Felipe e o sócio observam a Reserva

Para Mitchell, uma picture ao ser olhada devolve a mirada ao espectador e estabelece

uma relação na qual ela requer ser pensada como um ser vivo inserido no contexto do

espectador que “a veces literalmente, a veces figurativamente; o silenciosamente nos

devuelven una mirada” (MITCHELL 2017, 55). Esta interpelação mútua transforma a picture

numa instância dialética [uma abertura] que, ao devolver o olhar ao observador, o questiona,

aciona seu auto-conhecimento e o convoca a ocupar um lugar. Frente ao que se vê e se ouve,

como posicionar-se diante da questão que se apresenta? Ao lado desses homens que olham a

floresta de cima e a encaram como um lugar de exploração e enriquecimento (Figura 2) ou

vê-los como obstáculos que se interpõem entre observador e floresta, ameaçando a vida de

ambos?

Main-plot: “você está olhando no lugar errado”

No terceiro episódio, Natalie faz uma visita à KM a convite de Miguel. Ele tenta

convencê-la de que a empresa realiza suas atividades dentro dos parâmetros legais e que,

portanto, ela estaria “lutando contra o inimigo errado”. Já no escritório central ambos se

deparam com fotos antigas da floresta antes das instalações da mineradora:

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- Como era lindo isso aqui, lamenta Nat.

- E inabitável. As pessoas não tinham renda nem perspectiva. A KM trouxe tudo isso,

Rebate Miguel.

Ao final, a jornalista está no banheiro quando um plano detalhe de seu celular mostra

a seguinte denúnica de destinatário desconhecido: “Você está olhando no lugar errado. A

reserva de Cari vai ser extinta”.

Dão-se as principais linhas de ação da intriga: o trabalho de investigação das líderes

da Aruana sobre uma quadrilha de crimes ambientais na floresta amazônica. Instaurada a

tensão, a narrativa emprega os recursos de modo a dispor dos fatos enquanto uma verdadeira

luta contra o tempo: é preciso derrubar o decreto presidencial que libera a exploração de

minério na Reserva e descobrir quem está por trás dessas ações.

É o suspense que nos faz experimentar essa corrida contra o tempo e a celeridade das

diversas linhas de ação empreendidas: Verônica vai a Brasília tentar uma liminar para

suspender o decreto presidencial; Luiza e Clara partem em uma viagem arriscada até um

garimpo clandestino para descobrir quem é seu dono; e Natalie realiza uma expedição até a

Reserva para produzir material para seu programa.

“Sua ideia de progresso é obsoleta, Excelência”

Os episódios cinco e seis condensam inúmeros fatores em jogo e tanto visualidade

quanto narrativa configuram a complexidade da situação: a corrupção do poder público, o

massacre de índios, os assassinatos e a exploração sexual na área do garimpo.

Em Brasília Verônica busca um aliado no ministro do meio ambiente, a quem tentou

argumentar a favor da bioeconomia. Tendo em mente a construção de uma hidrelétrica na

Região, o ministro propõe uma barganha:

- Ministro: Eu só preciso que você abra o caminho junto às ONG’s ambientais.

- Verônica: Parece justo. A gente destrói 4.500 km de floresta tropical, expulsa 5.000

pessoas de suas casas enquanto o senhor me ajuda a preservar a Reserva de Cari.

- Ministro: Nós já tivemos essa conversa, doutora. O meu interesse é o progresso do

país.

- Verônica: A sua ideia de progresso é obsoleta, excelência.

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Na reserva, Natalie e o antropólogo Gregório se deparam com uma cena devastadora:

o massacre da tribo dos Uyrã. É o giro de 360o feito pela câmera em torno da personagem e a

trilha dramática com batidas de tambor ao fundo que expressam ao mesmo tempo o impacto

por ela sentido ao se deparar com aquele cenário e a hesitação de quem espera por mais cenas

trágicas pela frente (Figuras 3-6).

 

Figuras 3-6: Natalie chega na Reserva e se depara com um massacre de índios

Natalie registra cenas do crime e com Gregório localizam alguns índios sobreviventes

a quem ajudam a fugir. Miguel surge de helicóptero - alegando ter recebido uma mensagem

de rádio - e oferece socorro a uma índia prestes a parir.

Já era noite no posto de proteção quando Miguel e Nat conversam:

- Miguel: Deu tudo certo com a Paial.

- Natalie: É. Que bom que você apareceu.

- Miguel: Você não tem noção do que você estava fazendo ali.

- Natalie: Eu tava fazendo uma matéria. Eu não sei mais se era sobre as centenas de

garimpos, se era sobre as toneladas de mercúrio contaminando os rios ou ser era

sobre o massacre dos Uyrã.

- Miguel: Serve o meu conselho? Essa terra é muito hostil. Vá embora de Cari.

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Aruanas instaura certa polarização entre o argumento de que é preciso desenvolver,

gerar riqueza e a necessidade de preservar a floresta. Ela empresta da estrutura narrativa

melodramática o estabelecimento claro dos dois lados da questão: o que está preocupado em

preservar o planeta, denunciar e evitar crimes ambientais e o que está disposto a explorar o

ouro não se importando com os danos irreparáveis que isso possa causar. Por outro lado, a

narrativa afasta-se da intriga melodramática na medida em que retira seu foco dos dramas

cotidianos, da enunciação baseada no relato popular - o contar a - e mantém clima de disputa

entre as ativistas e o empresário funcionando como um pano de fundo tensionador sem deixar

espaços para momentos de alívio junto ao espectador . 11

Ao adotar características do suspense como a tensão constante nos diálogos, na trilha,

nos movimentos de câmera a narrativa faz sentir que a questão é urgente, perigosa e

conflitiva, como dito antes: uma corrida contra o tempo.

5 A poética televisual na era do streaming

Alcançar o desejo de uma picture, perguntar o que ela quer consiste em uma

abordagem que parta primordialmente da representação visual. É da interação entre os

elementos visuais e verbais que a resposta se torna possível porque, para Mitchell (2009), o

composto imagem/texto pode assumir formas variadas. Para expressar essa diversidade de

relações o autor adota distintos “elos” entre imagem e texto: pode ser um hífen, uma junção

ou mesmo uma barra diagonal. Todos funcionam para evidenciar a fissura [a brecha, a greta,

a ruptura] dialética, como um ponto de sutura produtor de conhecimento. Isso exige um olhar

atento à articulação dos códigos visuais e textuais que sustenta a experiência visual e a

problematiza. Para Mitchell, trata-se de perguntar quais efeitos têm diferenças ou

semelhanças entre imagens e palavras? Por que o modo como palavras e imagens são

justapostas, misturadas e separadas é importante?

Las posiciones relativas de la representación visual y verbal (o de la vista y el sonido, el espacio y el tiempo) en estos medios mixtos no constituyen nunca un problema meramente formal, ni una cuestión que se pueda resolver con una semiótica «científica». (…) La relación imagen-texto (…) no es una simple cuestión técnica, sino que funciona como la sede de un conflicto, un nexo donde los antagonismos políticos, institucionales y sociales entran en juego en la materialidad de la representación (MITCHELL, 2009, 85).

11 Por questões de foco e espaço não foi possível abordar nesse texto o desenvolvimento das personagens.

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Esse modo de ver os elementos visuais e verbais em interação nos permite entender

imagem/texto como “[…] una apertura en la representación, un lugar donde la historia podría

colarse por las grietas”. A visualidade forma-se nesse ponto de tensão dialética das

heterogêneas estruturas representativas que compõem os campos do visível e do legível. Por

isso o gesto exige atenção às lacunas da imagem/texto nas quais é possível “demostrar lo que

no puede ser dibujado o hecho legible, la fisura de la representación misma, las bandas, capas

y líneas de falla del discurso, el espacio en blanco entre el texto y la imagen” (MITCHELL

2009, 67).

Todavia, em termos de interação entre imagens visuais e verbais, entendo que em

Aruanas a fissura está entre as pictures que são apresentadas de modo intercalado. Ou seja,

nas sequências que registram a constante ameaça à floresta amazônica, a visualidade é melhor

alcançada na fricção entre as pictures.

A série lança mão de uma estilística que intensifica a tensão pois, além dos recursos já

apontados, ela alterna planos que evidenciam a riqueza da floresta e o ambiente devastado

(Figuras 7-8). Costurados pela mesma trilha sonora de suspense estes enquadramentos

parecem construir um contraponto visual da polarização entre ativistas e empresários

engajando o espectador em um clima de constante risco. São escolhas que figuram a ameaça

premente não só da integridade da floresta mas da vida dos envolvidos direta ou

indiretamente nas atividades de extração e nas denúncias das ilegalidades.

Figuras 7-8: a tensão entre os planos

Assim, a estilística que exibe cenas exuberantes da Amazônia, que procura destacar a

atuação de ativistas na sua preservação, de seus povos e espécies, na divulgação do potencial

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da bioeconomia é a mesma que mostra em planos abertos e aéreos garimpos ilegais em

funcionamento, práticas obsoletas e destrutivas e flagrantes de devastação. É ainda a mesma

que nos faz sentir por meio de planos detalhe (do solo devastado, das mãos trêmulas de quem

inalou grandes quantidades de mercúrio, etc) o risco e os prejuízos do uso excessivo do

mercúrio à saúde e ao meio ambiente.

Dessa fissura entre pictures é possível alcançar a visualidade que escapa e que oferece

uma experiência sensível sobre as contradições históricas que conformaram e conformam

nossa experiência de modernidade e de modernização enquanto uma mistura de tempos e

matrizes cuja tensão é percebida no confronto de visões de mundo e das práticas

empreendidas pelas personagens. E essa visualidade é evidenciada em arranjos de

som/imagem que proporcionam sequências nas quais predominam o uso dos recursos

imagéticos.

Poucas são as pistas da narrativa categorizada como action drama thriller. No que se

refere à intriga, parece que as ações fazem experimentar o suspense, mas também, o próprio

tempo: a morosidade da burocracia estatal e a acelerada corrupção dos agentes; a duração da

investigação das ativistas e das ações do submundo dos garimpos ilegais sem observância a

qualquer protocolo. E isso pode provocar angústia no espectador ao tensionar certo repertório

familiar de símbolos e ações, de referências do campo da experiência prática e cultural que

medeia a reconfiguração dessa narrativa.

Entendo que Aruanas promove uma dupla função do suspense: tanto em relação à

disposição dos fatos narrados quanto ao mundo pré-figurado dessas ações. Se por um lado,  

essa narrativa de investigação explora os efeitos do suspense de modo a estimular o prazer

em relação ao consumo de uma intriga não-melodramática, por outro, ela suspende o próprio

mundo referencial da ação. O agenciamento dos fatos dispôs-se de tal forma que pode levar o

espectador ao questionamento/estranhamento do mundo pré-figurado que foi tomado como

referência do mundo narrado.

Em outras palavras, ao apostar numa intriga não melodramática a série deixa em

aberto o pano de fundo ético e o repertório de símbolos que sustenta a familiaridade com o

mundo pré-figurado. Enquanto uns podem concluir “o Brasil é assim mesmo”, outros podem

se sentir perplexos diante da trama e questionar: “que mundo é esse onde isso é possível?”. O

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modo como o tema foi configurado parece ter instaurado essa abertura.

Em relação ao como é preciso considerar de que modo a categorização original

Globoplay incide nos modos como a narrativa maneja os efeitos a seu dispor e interfere na

tessitura da intriga que ela entrega. A meu ver, anunciar determinada produção como original

Globoplay cumpre distintas funções. A primeira é criar no espectador disposição e

engajamento com uma narrativa que pode ter sido construída de modo diferente daquele com

o qual a própria Rede Globo familiarizou seus telespectadores: a narrativa melodramática. A

segunda é criar uma associação com as chamadas originais Netflix e as acepções de valor

estético e cultural que envolvem essas produções. Smith-Rowsey (2016) argumenta que após

distinções técnicas, codificação de termos, funcionalidade de tags e links e com modelo de

negócios próprio a Netflix criou uma lista com 19 categorias de gêneros e, aproximadamente,

400 subcategorias que não parecem partilhar de rotulações anteriores. Ainda que action

drama thriller não seja exatamente nenhuma das 19 nem mesmo das 400 categorias

disponíveis, vejo como evidente o esforço de endereçar um novo modo de contar que

certamente conjuga aquilo que a principal empresa de streaming dispõe dentre suas centenas

de gêneros e milhares de micro-gêneros. Refiro-me à categoria Thriller e à sub-categoria

Action Thrillers.

Assim, enquanto um problema de comunicação Aruanas inova no agenciamento dos                     

dispositivos de reconhecimento/estranhamento. Se no melodrama a ética e a estética estão em     

regime de continuidade, tendo presente a expectativa de um final feliz, de uma benevolente

superação, conferindo certo tipo de função aos dispositivos de sedução, no action drama

thriller há hesitação em todas as partes que compõem a representação.

 

6 Aruanas e as contemporâneas anacronias da modernidade latino-americana

Ao eleger o conflito entre ativistas e exploradores de garimpos ilegais Aruanas

representa as contradições incrustadas no nosso modelo de desenvolvimento econômico: de

um lado, a forte presença de uma parcela anacrônica do extrativismo no Brasil e, de outro, as

tentativas de estabelecer novas rotas de desenvolvimento econômico que tomem em sério a

questão ambiental. A obra nos oferece uma experiência com os distintos tempos do capital: o

tempo residual das práticas criminosas, da negligência com o meio ambiente; e o tempo

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emergente, das alternativas trazidas pela bioeconomia baseadas na biodiversidade e na

sustentabilidade.

É este conflito que sustenta o clima de suspense (no duplo sentido apontado) durante

todos os episódios, que expõe os riscos e ameaças sofridos por ativistas e que contribui com a

percepção de nossa contemporânea modernidade anacrônica e de nossa controversa

modernização.

E Aruanas contribui para a atualidade desse debate porque visual e narrativamente

configura o tema do meio ambiente de modo a interpelar uma cultura transnacional. A série

estabelece uma tensão local-global ao endereçar para o mundo, a partir de marcas locais,

questões que envolvem engajamento coletivo, soluções políticas de amplo alcance e temas de

relações internacionais. Assim, o modo como o suspense foi adotado como recurso visual e

narrativo pareceu apropriado. Com ele Aruanas interpela o mundo: até quando vamos

permitir que isso aconteça?

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