A questão do desenvolvimento na regulação do investimento ... · A introdução de institutos...
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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015
A questão do desenvolvimento na regulação do investimento estrangeiro na
América do Sul: novos institutos normativos no setor energético de Brasil e
Bolívia
Olegário Franco dos Santos Neto 1
Edna Aparecida da Silva 2
Resumo:
A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de energia
no contexto da integração regional na América do Sul, destacando seu papel legitimador para a
política doméstica e seu impacto no debate político. A introdução de institutos normativos nos
contratos de concessão, como as condições de entrada e requisitos de desempenho e conteúdo local,
determinantes das estratégias de captura de benefícios para os países hospedeiros, são indicativos de
uma perspectiva desenvolvimentista dissonante com a natureza dos acordos bilaterais e das
reformas liberais empreendidas outrora. A introdução, nas recém-aprovadas legislações setoriais de
Bolívia e Brasil, de institutos normativos resgata um importante papel para o Estado na gestão do
investimento direto estrangeiro com vistas ao desenvolvimento econômico.
Palavras-chave: regulação de investimento, políticas de desenvolvimento, integração regional
INTRODUÇÃO
A comunicação analisa as estratégias de regulação do investimento estrangeiro no setor de
energia no contexto da integração regional na América do Sul, contrapondo as diretrizes subjacentes
às políticas de energia adotadas na década de 90 ao esforço de concertação energética, de traço
nacionalista, em curso nos anos mais recentes. Procuramos entender como a recente introdução de
institutos normativos nos contratos de concessão, como as condições de entrada e exigências de
desempenho e conteúdo local, indicaria a retomada do controle político sobre os recursos
energéticos e sua instrumentalização em prol da captura de benefícios econômicos para os países.
Adicionalmente, procuramos destacar que tais iniciativas apoiam-se no deslocamento verificável
nas proposições de integração regional no mesmo período.
1 Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo IE/UNICAMP. A comunicação é parte do trabalho de pesquisa
desenvolvido sobre o tema da integração energética regional e a regulação do investimento no setor de energia, como
bolsista da Capes, no programa de Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP.
[email protected] 2 Mestre em História pela UNESP. A comunicação resulta de trabalho de pesquisa concluída sobre multilateralismo e
relação entre questões regulatória, soberania, investimento estrangeiro, como bolsista do CNPq, no programa de
Doutorado em Ciência Política do IFCH/UNICAMP. [email protected]
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Na América do Sul, uma das dimensões do processo de integração foi aquela das
interconexões de infraestrutura, inspiradas na ideia de eixos de desenvolvimento. Nesse
entendimento, o desenvolvimento seria alcançado como desdobramento dos investimentos
promovidos na infraestrutura local, pelos quais os países se beneficiariam dos ganhos de sua maior
inserção nos fluxos do comércio internacional. No setor de energia, a busca pela
complementaridade entre oferta e demanda nos mercados nacionais, num movimento de integração
energética, foi tributário do processo de reformas setoriais nos países da região. Nos anos 1990, tais
processos abriram a possibilidade de participação de companhias estrangeiras em mercados outrora
fechados.
No quadro da reformulação da política de segurança americana pós-11 de setembro e da
crise que se seguiu ao colapso do modelo de desenvolvimento liberal, os países sul-americanos
dispuseram de um grau maior de liberdade para os países sul-americanos empreenderem suas
políticas, dentre as quais a de integração regional. Tal movimento, como o “nacionalismo de
recursos” (FUSER: 2008), expressa a defesa do controle soberano do Estado sobre os recursos
energéticos com a apropriação pelo Estado de uma fatia maior dos ganhos da exploração de seus
recursos naturais, como no caso emblemático da Bolívia. Antes associadas subordinadamente ao
capital estrangeiro na exploração de petróleo e gás, as estatais têm assumido uma função mais ativa
na indução do desenvolvimento, visível em sua política de promoção de uma cadeia de
fornecedores domésticos.
Em que pese a importância dessa inflexão nas políticas setoriais domésticas, o espaço para o
exercício da soberania, nos marcos de uma ordem internacional francamente assimétrica, foi
restringido, e sendo atributo do sistema (VELASCO E CRUZ, 2004, p. 205), a soberania só poderia
ser “resgatada” neste plano. Por esse prisma, os entendimentos encetados na I Cúpula Energética
Sul-americana3 pareciam traduzir um esforço dos Estados nacionais em busca de graus maiores de
autonomia no exercício de sua soberania. Mais do que enfatizar o vínculo indiscutível entre a
construção de um espaço econômico regional e seu provimento estável de energia, nada inédito, a
declaração produzida no encontro, no contexto em que foi efetivada, pôs em destaque o papel da
3 Estiveram presentes na reunião, ocorrida nos dias 16 e 17 de abril de 2007 na Ilha de Margarita, Venezuela, os
seguintes chefes de Estado: da Argentina, Néstor Kirchner; da Bolívia, Evo Morales; do Brasil, Luiz Inácio Lula da
Silva; do Chile, Michelle Bachelet; da Colômbia, Álvaro Uribe; do Equador, Rafael Correa; do Paraguai, Nicanor
Duarte e da Venezuela, Hugo Chávez. Também participaram o vice-presidente do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa,
representando o presidente Tabaré Vázquez, os primeiros ministros da Guiana, Sam Hinds, e de Suriname, Gregory
Rusland, bem como os ministros peruanos de Relações Exteriores, José Antonio García Belaúnde, e de Energia e
Minas, Juan Valdivia, representando o presidente Alan García.
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segurança energética na conformação daquilo que chegou a ser denominado bloco de poder sul-
americano (VADELL E ZAHREDDINE, 2006).
O texto divide-se em quatro seções, além desta introdução e de suas notas finais. Na
primeira, apresenta-se alguns aspectos da institucionalidade do mercado regional de energia
efetivado no Cone Sul na década final do século XX. Na segunda seção, delimita-se o papel que,
historicamente, as políticas do setor de energia cumpriram na consecução do desenvolvimento. A
terceira seção põe em relevo a reversão das políticas liberais, particularmente na Bolívia e no que se
refere ao alcance da intervenção do Estado no domínio econômico. Finalmente, a quarta seção
considera os desenvolvimentos políticos em escala regional, dimensão essencial na legitimação das
políticas domésticas.
I.
O movimento de integração energética da América do Sul, levado a cabo nos idos de 1990,
articulou-se proximamente com o processo de constituição de uma institucionalidade regional
inspirada nos princípios do livre comércio. Veremos como os empreendimentos estiveram
fortemente atrelados aos instrumentos de cooperação econômica bilateral, firmados pelos países
envolvidos, em sua interação com instâncias reguladoras domésticas. De nosso ponto, a consecução
da integração energética é tributária do processo de reformas setoriais empreendidas nos países da
região no mesmo período, que concorreram para o desenho de instituições sem as quais a realização
dos projetos de integração não teria tido lugar.
A relação que se pode estabelecer entre as reformas econômicas e os processos de
integração não é unívoca. No que tange ao objeto de nossa análise, o mesmo pode ser afirmado. Se
é verdade que foram vãs as expectativas de que as reformas aprofundariam necessariamente os
processos de integração, que exigiriam graus maiores de convergência regulatória, nunca
alcançados por aqui (GHIRARD, 2008), também é verdade que a expansão das oportunidades de
negócios, permitidas pelas reformas setoriais, garantiram graus maiores de interconexão dos
mercados nacionais de energia.
O desenvolvimento da indústria de gás natural foi historicamente dependente da
comprovação da existência de aproveitamentos gasíferos próximos aos centros de consumo, e
mesmo nestes casos, a constituição de redes de transporte envolvia elevados custos. A
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possibilidade de se explorar mercados nacionais em expansão, vislumbrado por brasileiros e
chilenos, garantiu condições para a exploração das reservas de gás nos países limítrofes, sobretudo
na Bolívia e Argentina.
Em agosto de 1992, depois uma primeira Carta de Intenções firmada ainda em 1991, foram
assinados dois importantes instrumentos para a consecução do gasoduto Bolívia-Brasil. O primeiro,
de caráter intergovernamental, foi o Acordo de Alcance Parcial sobre a Promoção de Comércio, no
âmbito da ALADI, e o segundo, novo instrumento firmado entre as empresas Petrobrás e YPFB, o
Contrato Preliminar de Compra e Venda de Gás. As Notas Reversais, de 17 de agosto, formalizaram
os acordos, alçando-os à condição de compromissos entre governos. De acordo com a Mensagem
com a Mensagem Oficial Conjunta emitida pelos ministros da área econômica do governo
brasileiro, em 11 de novembro do mesmo ano, o Acordo, para além da diversificação das fontes de
energia e da redução da dependência do petróleo importado de regiões de conflito. No espírito do
processo de reformas setoriais que então se avizinhavam, o Acordo permitiria: 1) elevar os níveis de
eficiência energética na geração termelétrica; 2) reduzir os riscos de falha na oferta de eletricidade,
pela complementação da base hidrelétrica com a geração a gás; e 3) estimular os projetos de auto-
produção de energia elétrica e co-geração pelo setor privado.
Em fevereiro de 1993, as negociações empresariais prosseguiram com a assinatura do novo
acordo entre a Petrobrás e a YPFB, o conhecido GSA4. Formalizado em Nota Reversal de 10 de
março de 1993, o acordo estabelecia questões triviais em tratativas do gênero, como seu período de
vigência, o volume de gás a ser transacionado e o traçado do duto, bem como compromissos para
garantir a exequibilidade do projeto, como medidas de desoneração fiscal, constituição de empresas
de transporte e negociações junto à comunidade financeira internacional. Dentre estas destacamos o
comprometimento dos países com as questões que se tornariam traços definidores dos setores de
energia liberalizados. Na antessala do processo de abertura do setor, o governo boliviano permitia
pelas Notas Reversais de março de 1993, mas em conformidade com a legislação vigente, que a
Petrobrás viesse a atuar nas atividades de exploração, produção, comercialização e transporte de
hidrocarbonetos no país e também na distribuição de petróleo e gás natural no mercado interno
boliviano.
4O Gas Supply Agreement estabelecia, dentre outras disposições, o compromisso do Brasil em comprar 8 milhões de
metros cúbicos de gás diários por oito anos, com previsão de dobrar este volume pelos 12 anos seguintes e que a
validade do acordo e o andamento do projeto dependeriam de sua viabilização financeira.
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Em 1996, as reformas promovidas sob o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada abriram
caminho para a consecução do projeto. A nova Lei de Hidrocarbonetos (Lei nº1689) então
promulgada estabelecia em seu Art. 1º que a estatal boliviana YPFB deveria “necessariamente”
estabelecer contratos com empresas nacionais ou estrangeiras para a exploração do gás. Ademais,
em seu Art. 24, a Lei estipulava que, aos contratantes, era concedido o direito de realizar a
prospecção, exploração, extração, transporte e comercialização interna da produção obtida. Neste
sentido, a provisão constitucional5 que assegurava a propriedade do Estado sobre os
hidrocarbonetos tornava-se letra morta6.
De outra parte, a proposição de que os países deveriam envidar esforços para que o preço do
gás refletisse seu valor econômico de livre competitividade, garantindo eficiência econômica nas
diferentes fases da cadeia, dá igualmente o tom das reformas que, mais adiante, seriam
empreendidas. Pelo disposto no Art. 5º da Lei, os hidrocarbonetos foram declarados livres para
comercialização interna e internacional.
Resta claro, então, que as disposições dos artigos 5º e 24º da Lei nº 1689 asseguraram às
contratantes estrangeiras, sob a forma de contratos de serviço, amplo direito à comercialização
interna e externa dos hidrocarbonetos por elas produzidos, sem restrições de volume. Em novo
marco legal instituído em 4 de agosto de 1996, por Decreto Supremo, reconhecia-se aos
contratantes a propriedade dos hidrocarbonetos na boca do poço. Tratou-se, aqui, de um
aprofundamento da reforma ou o desnudamento de sua natureza: se antes parcela do gás extraído
era revertida à contratante na forma de pagamento por seus serviços, agora admitia-se claramente
ser sua propriedade.
A proposição, inscrita nos instrumentos de cooperação bilateral para o comércio de gás, de
que os países deveriam envidar esforços para que o preço do insumo refletisse seu valor econômico
de livre competitividade nos diferentes mercados também se refletiu nas reformas empreendidas em
solo brasileiro.
5O Art. 139° da C.P.E. estabelece que as reservas de hidrocarbonetos, qualquer que seja seu estado ou a forma em que
se apresentem, “son del domínio directo, inalienable e imprescriptible del Estado”. 6Neste sentido, antes mesmo da ascensão de Evo Morales ao poder, foram interpostas demandas de nulidade dos
contratos firmados pela YPFB e as empresas petrolíferas sob a alegação de inconstitucionalidade. Cf. “La demanda de
nulidad de las en Bolivia”, apresentada por Juan Carlos Lazcano Henry, Roberto Fernández Orosco, Miguel Álvarez
Delgado, Gildo Angulo Cabrera e Jorge TéllezSasamoto.
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No Brasil, o marco inicial7 do processo de desregulamentação do setor de petróleo e gás foi
a aprovação da Emenda Constitucional nº9, de novembro de 1995, que pôs fim ao monopólio da
Petrobrás nas atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e seus derivados,
permitindo, assim, a atuação de empresas privadas em todos os elos desta cadeia produtiva. A
despeito da perda do monopólio, como a cadeia produtiva estava, na prática, em suas mãos, a
introdução do regime de “concorrência” no setor só se faria por intermédio da Petrobrás.
Também por isso, e diferentemente do que ocorria em parte dos países latino-americanos, a
reforma no setor de petróleo e gás natural, no Brasil, não contemplou a privatização de sua principal
estatal. A Lei nº 9478, a chamada Lei do Petróleo, de 1997, que definiu o novo marco regulatório
do setor e criou a ANP (Agência Nacional do Petróleo) e o Conselho Nacional de Política
Energética (CNPE), estabeleceu que a Petrobrás permanecesse sob o controle acionário da União,
mas liberando-a para agir ainda mais autonomamente. À Petrobrás foi permitido criar subsidiárias
ou se associar com outras empresas, nacionais e estrangeiras, majoritária ou minoritariamente, bem
como constituir subsidiária para construir e operar dutos, terminais marítimos e embarcações para
transporte de petróleo, seus derivados e gás natural.
Permanecendo estatal, a Petrobrás passaria, contudo, a atuar sob a lógica das firmas
privadas, num processo denominado marketization, o que estaria demonstrado pelo movimento de
internacionalização de suas operações. De fato suas aquisições e permutas de ativos, principalmente
na Argentina e Bolívia, respondiam à mesma lógica – a da convergência gás / eletricidade – que
guiava a indústria naquele momento: a ênfase do processo permanece nos ativos à jusante na cadeia,
ou seja, no elos mais próximos ao consumidor, em especial no segmento de geração de energia
elétrica.
A ampliação do número de empresas atuantes no mercado, em especial pela incorporação de
grandes grupos internacionais, foi igualmente verificável no subsetor de gás natural. O processo de
privatização das distribuidoras locais de gás do Rio de Janeiro e de São Paulo promoveu o aumento
do número de agentes no mercado e a incorporação de grandes empresas com experiência
internacional na indústria8. A despeito disto, a participação da Petrobrás neste subsegmento não foi
7 Em verdade, as primeiras medidas deste processo visaram a eliminação gradual do tabelamento, “desequalização”
regional dos preçose e dos subsídios, e a flexibilização dos requisitos de entrada na distribuição e revenda. 8 Segundo Menardi (2004:248) “no Rio de Janeiro, a Companhia Estadual de Gás (GCEG) foi adquirida por R$464
milhões pelo consórcio liderado pela espanhola Gas Natural e norte americana Enron em 1997, enquanto um outro
consórcio com participação majoritária das duas empresas citadas, acompanhadas pela Petrobras, arrematou a
concessão da CEG-Rio (Rio-gás) por R$ 167 milhões. Em abril de 1999, o controle acionário da distribuidora
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menor, tendo em vista sua condição de acionaista em de 18 das 24 distribuidoras presentes no país.
Assim, coube à Petrobrás a tarefa de desenvolver o mercado de gás natural no Brasil,
comercializando todo o produto de origem nacional e 85% das importações da Argentina e da
Bolívia.
Neste sentido, o governo FHC fez passar, por intermédio da ANP (Agência Nacional do
Petróleo) a devida regulamentação para a importação de gás natural e para a construção de novos
gasodutos9. A liberação das importações e a flexibilização na formação dos preços dos derivados
de petróleo e gás natural resultantes das disposições normativas reguladas pela ANP conformaram
paulatinamente, um mercado aberto para o insumo recém-alçado à condição de protagonista na
matriz energética brasileira.
Não obstante as disposições sobre a abertura do mercado nacional de gás, a Petrobrás, como
vimos, continuou a exercer amplo controle sobre o mercado doméstico, também porque o sustentou,
já que sem Petrobras o processo tal como se verificou não teria ocorrido. Em 1994 e 1995 foram
assinados os Termos Aditivos nº 1 e nº 2, alterando a quantidade de gás transacionada e o prazo de
vigência do acordo, para que, em 17 de agosto de 1996, o contrato definitivo fosse firmado entre as
empresas Petrobrás e YPFB. No decurso desses anos, foi crescente a importância da Petrobrás nas
tratativas para a integração energética, constituindo-se, desde a assinatura do GSA, o executor
principal do empreendimento10
.
Essas disposições, em seu teor e implicações, são reveladoras da natureza da “integração
energética” que se promoveu e introduzem importante questão, a saber, a conflituosa relação entre o
Companhia de Gás de São Paulo Comgás foi arrematado por R$ 1,6 bilhão pelo consórcio liderado pela British Gas,
contando com a presença da Shell e da CPFL. Em novembro de 1999, o grupo italiano ENI, através de suas
controladas AGIP, Italgas e Snam, adquiriu por R$ 275 milhões a concessão para atuar na região noroeste de São
Paulo, criando a Gas Brasiliano. O direito de exploração de uma terceira área de gás canalizado, a região sul de São
Paulo, foi concedida por R$534 milhões ao grupo Gas Natural durante leilão realizado em abril de 2000”. 9 A ANP aprovou, em 1998, a Portaria nº147 que definiu as normas para a importação de petróleo, permitindo que
qualquer agente, mediante autorização da Agência, viesse a ser um importador de óleo e gás natural. Também neste
ano, por intermédio da portaria nº 44, regulou as atividades de construção e operação de instalações de transporte de gás
natural. Essa portaria foi ampliada pela portaria nº 170, que estendeu sua abrangência para construção, ampliação e
operação de instalações de transporte ou de transferência de petróleo e gás natural. Nesta mesma data, através da
portaria nº 169, a ANP aprovou as regras de acesso para que terceiros utilizassem os dutos e as instalações de
transporte, definindo também os princípios gerais pelos quais seriam determinadas as tarifas de transporte do gás
(MENARDI, 2004, p. 247) 10
Uma questão que se nos impõe é aquela da transição das tratativas do nível interestatal para o âmbito das empresas.
O que a teria determinado? A resposta passa, de um lado, pela compreensão do papel que assumiu a Petrobrás nas
políticas de energia e externa do governo brasileiro. Tratava-se, em suma, de um braço do aparelho de Estado. De outro
lado, desenvolvia-se, dentro do governo brasileiro, uma disputa entre diferentes posições quanto à natureza e a
profundidade das reformas em marcha. Esta problemática, a enfrentamos em outro lugar.
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bem público localmente disponibilizado e a commodity energética resultante dos processos de
reforma e interconexão, isto é, do gás como um tradable. Na sequência, nos dedicaremos a
descrever brevemente a trajetória da crise do modelo liberal na Bolívia, em que se revelou a
rationale dos negócios em energia levados a cabo naquele período.
Diante do tom indignado assumido pelo mainstream do noticiário brasileiro em sua
cobertura da nacionalização do gás e petróleo bolivianos pelo governo de Evo Morales11
, a posição
do governo brasileiro pareceu contrastante: o presidente Lula reconheceu a decisão da Bolívia como
um ato soberano, afastando, de saída, o risco de uma divisão mais profunda entre os dois países,
num discurso que reiterava as diretrizes da alta prioridade dada à America do Sul na política externa
brasileira de seu governo (MENEZES, 2015). A questão em pauta não é outra senão a da soberania,
e a decisão boliviana de nacionalizar seu gás nos remete particularmente àquela concepção
subjacente à NOEI (Nova Ordem Econômica Internacional), completamente démodé na quadra em
que os projetos de interconexão foram empreendidos.
II.
A construção de um mercado regional de energia esteve, como se viu, conectada ao processo
de reformas liberais e, como tal, não poderia deixar de expressar a perspectiva liberal acerca das
prerrogativas para a obtenção do desenvolvimento. Embora muito já tenha sido dito acerca do
alcance da intervenção do Estado e da participação do setor privado, o que destacamos como
particularmente importante, contudo, é a configuração das relações que se estabelecem entre os
atores privados e o Estado. Ou seja, entender a sujeição dos atores privados aos projetos políticos
concebidos pelo Estado. A questão para a qual nos voltamos, portanto, é a das implicações, em
termos de desenvolvimento, da alteração na lógica de operação do setor de energia como
consequência das reformas.
A fórmula de Nehru, pela qual o desenvolvimento econômico seria produto de “engenharia,
máquinas e equipamentos, institutos de pesquisa e energia elétrica” dá a dimensão não apenas da
crença no investimento em energia como condição necessária para o desenvolvimento, mas sugere
11
Medida em quase nada inédita, como vimos, haja vista a nacionalização do petróleo mexicano, iniciada com a
estatização do subsolo em 1917 e completada com a expropriação das empresas estrangeiras em 1938; a nacionalização
do petróleo brasileiro em 1953, quatro anos depois do ocorrido na Argentina; a nacionalização dos mesmos recursos na
Venezuela em 1975, além dos episódios nacionalizantes ocorridos na Bolívia sob regimes autoritários.
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igualmente a relevância dos encadeamentos que o liga ao setor de bens de capital e o papel do
Estado na tarefa de promovê-los (YERGIN, 1994). Contrariamente, as sucessivas crises no setor de
energia enfrentadas pelos países da região puseram em relevo as limitações da concorrência como
princípio ordenador da indústria, evidenciando, principalmente, as contradições de comportamentos
empresariais pautados pela gestão de ativos financeiros, pela administração de riscos, num setor que
tradicionalmente se caracterizou por relações cooperativas intraindústria, em particular nos países
em desenvolvimento, onde este comportamento esteve vinculado a políticas de corte
desenvolvimentista.
O desafio de estabelecer uma esfera político-institucional no setor de energia esteve
vinculado a duas questões nada triviais. A primeira refere-se à complexidade de se definir um
conjunto de regras acerca da exploração de recursos naturais, tornando-os bens econômicos cujo
valor torna-se, portanto, passível de apropriação privada. Mas o fato de implicar, muitas vezes, o
esgotamento de um recurso não-renovável, a cuja utilização não raramente se associou a
possibilidade de desenvolvimento econômico, determinou as condições para que tais recursos
fossem admitidos como propriedade coletiva e nacionalizada e não como um bem privado e
individual de uma empresa. A segunda característica, que distingue a intervenção do Estado no
setor de energia daquela efetivada sobre a maioria das demais atividades econômicas, está vinculada
ao entendimento do produto destas atividades em energia como um bem público. Como qualquer
interrupção no abastecimento de combustíveis ou de eletricidade deve apresentar um custo muito
alto pela paralisia total ou parcial que pode provocar na atividade econômica ou na condução das
rotineiras atividades da vida urbana, o Estado impõe, dentre outros requerimentos, sua garantia de
abastecimento.
Não foi por acaso, portanto, que a maioria dos Estados que perseguiu a construção de seus
projetos nacionais a partir de uma posição de atraso, no que o setor de energia era essencial, o fez
por empresas estatais. Reconhecidas como a modalidade de intervenção predominante no pós-
guerra, as estatais se destacaram porque, diferentemente dos investimentos públicos, geralmente
limitados pelas transferências do orçamento, gozavam de certa liberdade na consecução de seus
investimentos.
Nos países importadores de petróleo, como o Brasil, a nacionalização e a criação de
empresas estatais estiveram fortemente conectadas à necessidade de intervenção do Estado num
setor estratégico para o desenvolvimento. Nesses casos, submetidas a um projeto estratégico
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próprio, às estatais cabiam administrar as restrições a que estava submetido o setor petrolífero em
condições de subdesenvolvimento, garantindo continuidade ao projeto estatal no quadro das
transformações na indústria mundial de petróleo. Paralelamente, a ação das estatais no segmento de
petróleo e gás descortinou importantes oportunidades de valorização do capital ao setor privado,
constituindo, deste ângulo, um relevante instrumento na promoção do desenvolvimento. Como
mecanismo indutor de investimentos privados em setores distantes dos complexos exportadores
tradicionais, a presença das estatais firmou-se como um instrumento de negociação e barganha com
as empresas transnacionais do setor de bens de capital sobre a difusão tecnológica (EVANS, 1995).
Para um outro conjunto de países, como a Bolívia, detentores de importantes reservas de
hidrocarbonetos, a concessão para exploração em moldes tradicionais, pela renda petrolífera que
gerava, não se mostrou suficiente para assegurar o desenvolvimento de suas economias. Neste
sentido, para esses países, era fundamental estabelecer o exercício pleno de direitos de propriedade
sobre o patrimônio natural do subsolo, suposto alcançável pela atuação das empresas estatais.
Assim que a opção pela intervenção do Estado no segmento relacionou-se historicamente a
fatores estruturais e conjunturais presente nos países e setores econômicos particulares, como o
descompasso entre o ritmo de acumulação e o crescimento das demandas sociais, a influência e
aversão ao risco dos capitais privados, a tradição institucional da esfera pública e privada e a
importância atribuída à garantia de propriedade nacional sobre os recursos nacionais e atividades
estratégicas (FREIRE, 2001). A lenta construção da institucionalidade setorial refletiu, então, os
descompassos de um processo de industrialização tardio e a disputa, sempre renovada, em torno da
soberania sobre os recursos “nacionais”. Por fim, não se pode ignorar que a maior, ou menor,
participação do Estado na economia resulta da aceitação mais geral de um projeto de
desenvolvimento nacional, o qual, por sua vez, tem lugar dentro de um certo arranjo social somente
passível de ser compreendido no quadro maior do sistema internacional.
III.
Num setor caracterizado por fortes encadeamentos, como é o de energia, a recente revisão
das políticas liberais esteve condicionada, portanto, à redefinição do papel das estatais. Antes
associadas subordinadamente ao capital estrangeiro na exploração de petróleo e gás, as estatais
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passaram a assumir função mais ativa na indução do desenvolvimento, visível em sua política de
promoção de uma cadeia de fornecedores domésticos.
Essa mudança evidencia-se, no âmbito da regulação, na presença de institutos normativos
que tinham sido construídos no longo processo de afirmação e reconhecimento do direito dos
Estados de controlar a entrada de investimento estrangeiro. Esse esforço dos países em
desenvolvimento, que ganha densidade e legitimidade a partir dos anos setenta com a Nova Ordem
Econômica Internacional, constitui um approach normativo específicamente orientados para captura
de benefícios do investimento externo direto para as economias hospedeiras. Estes elementos, como
as exigências de conteúdo local, exigências de exportações, transferência de tecnologias entre
outras, supõem que a contribuição que o investimento externo pode aportar para o desenvolvimento
depende da natureza das políticas e de regulações do Estado, não decorrem da mera presença do
investidor. Essa regulação que normatiza as condições de entrada do investimento, diversa do foco
sobre proteção do investidor que marca o modelo regulatório proposto pelos países desenvolvidos e
organizações como a OCDE e Banco Mundial, enfatiza sua natureza política na esfera do exercício
do poder soberano. (SORNARAJAH, 1994)
É neste quadro que se insere a nova legislação regulatória para a exploração das reservas da
camada pré-sal, pela qual se determina a substituição do regime de concessão pelo regime de
partilha, em que o Estado brasileiro, além de receber mais pelos recursos naturais explorados,
interpõe “novos” institutos normativos, como requisitos de conteúdo local aos consórcios
vencedores das licitações promovidas pela ANP (SILVA, 2014). Na Bolívia, a empresa estatal do
setor, que havia sido esvaziada de suas funções no processo de reformas institucionais, é refundada.
Destacamos-se, in verbis, do marco legal que precede a nacionalização dos hidrocarbonetos, Lei
3.058/2005, o artigo que explicita a recuperação da participação do Estado boliviano na cadeia
produtiva da energia:
Artículo 6º (refundación de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos – YPFB). Se
refunda Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), recuperando la propiedad
estatal de las acciones de los bolivianos en las empresas petroleras capitalizadas, de manera
que esta Empresa Estatal pueda participar en toda la cadena productiva de los hidrocarburos,
reestructurando los Fondos de Capitalización colectiva y garantizando el financiamiento del
Bonosol.
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O processo de revisão das reformas na Bolívia, representado pela nacionalização dos
hidrocarbonetos, é, contudo, o ponto culminante de uma trajetória em que se manifestam claramente
as contradições intrínsecas do projeto neoliberal. Entre 2000 e 2005, diante da dissonância entre o
discurso liberal e seus resultados, movimentos sociais, em cuja vanguarda estavam grupos étnicos e
de culturas tradicionais, protagonizaram conflitos políticos de grandes dimensões, produzindo
eventos marcantes denominados “Guerra da Água” e “Guerra do Gás”. Em suma, posicionavam-se
criticamente ao uso e à posse da água e do gás natural como mercadorias e o saldo de sua
mobilização constitui importante vitória dos movimentos sociais, haja vista seu sucesso em se
contrapor à perspectiva de comercialização dos bens públicos (ROCHA, 2007).
Nesse sentido a reversão das políticas neoliberais cumpriu um script algo inédito neste país.
Tendo uma história marcada pela sucessão de golpes militares ao longo do período republicano, a
Bolívia foi palco, agora, de intensa sublevação social. Após a derrubada dos presidentes Gonzalo
Sánchez de Lozada e Carlos Mesa em 2003 e 2005, os movimentos sociais alçaram à presidência,
em eleições realizadas neste último ano, o líder cocaleiro aimará Evo Morales. Cumprindo
promessas eleitorais, em 1º de maio de 2006, o presidente Morales baixou o Decreto Supremo de
Nacionalização dos Hidrocarbonetos (DS 28.701) em que, pelo Art. 6º, dispôs a transferência de
propriedade para a YPFB, a título gratuito, das ações dos cidadãos bolivianos que formavam parte
do Fundo de Capitalização Coletiva (FCC) nas empresas capitalizadas Chaco S.A., Andina S.A. e
Transredes S.A., acionistas do trecho boliviano do gasoduto Gasbol, assegurando, dessa forma, a
maioria acionária para o Estado de algumas empresas que haviam sido “capitalizadas”
(privatizadas) na gestão de Sánchez de Lozada. Pelo mesmo decreto, igualmente, estabeleceu o
controle estatal sobre refinarias além de alterar as condições de exploração e produção de
hidrocarbonetos e a tributação incidente12
. Ancorado no art. 139 da Constituição Política do Estado
Boliviano13
, o decreto de nacionalização, chamado de “Heróis do Chaco”, estipulava que os
contratos de concessão só poderiam conter cláusulas que facultassem de forma limitada a operação
de risco compartilhado nas atividades de exploração, comercialização e transporte dos
12
Campos cuja produção ascendesse a mais de 100 milhões de pés cúbicos diários de gás passariam a contribuir com
um somatório de impostos e outros direitos da ordem de 82%. 13
“As jazidas de hidrocarbonetos, qualquer que seja o estado em que se encontrem ou a forma que apresentem, são de
domínio direto, inalienável e imprescritível do Estado. Nenhuma concessão ou contrato poderá conferir a propriedade
das jazidas de hidrocarbonetos. A exploração, explotação, comercialização e transporte dos hidrocarbonetos e de seus
derivados, cabem ao Estado. Este direito será exercido mediante entidades autárquicas ou através de concessões ou
contratos por tempo limitado, a sociedades mistas de operação conjunta ou a pessoas de direito privado, conforme a
lei.”
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hidrocarbonetos e de seus derivados, com a entrega dos resultados da operação à YPFB, vedando,
portanto, o exercício privado de disposição dos hidrocarbonetos e de seus derivados.
Tendo em vista a magnitude dos investimentos efetivados pela Petrobrás no decorrer da
década anterior, seu caráter de vetor da política de aproximação com os países vizinhos e o impacto,
sobre o mercado consumidor brasileiro, das medidas do decreto de nacionalização boliviano, o
conflito que então se originou ganharia, necessariamente, contornos de crise diplomática.
Diferentemente do que apontava a opinião pública brasileira, não houve dissonância entre a
posição da Petrobras e a do governo brasileiro. Dentro do processo de negociação, mas no plano das
relações bilaterais, o governo brasileiro trabalhou para manter fluidas as relações entre os dois
países. No plano das negociações empresariais, a Petrobras buscou defender suas posições com
mais firmeza diante do Ministério de Hidrocarbonetos e da YPFB. Tendo se estendido até o último
dia do prazo de 180 dias, as negociações chegaram a bom termo, sendo firmados contratos de
produção compartilhada que, em princípio, atendiam a ambas as partes, afinal permitiam maior
participação do governo boliviano nas receitas dos campos produtores ao passo que preservavam as
condições para remuneração de novos investimentos que viessem a ser realizados pela estatal
brasileira.
Para os nossos propósitos neste texto, recobre-se de especial importância a natureza da
atuação diplomática brasileira durante as negociações, a refletir o esforço de construção de um
projeto de integração regional constituído sobre novas bases. Durante todo o pedregoso caminho, o
Brasil manifestou apoio irrestrito às decisões soberanas da Bolívia e ao processo democrático que as
inspiravam14
.
IV.
Como vimos, no decurso da crise do modelo liberal, os países da região passaram a dispor
de graus maiores de liberdade para empreender suas políticas. Num contexto de desafio à
14
Em setembro de 2008, em reunião da UNASUL, no Chile, convocada para discutir o agravamento dos distúrbios
sociais bolivianos, o governo brasileiro novamente reiterou seu apoio ao processo democrático na Bolívia. O Presidente
Lula, em sua fala, buscou reforçar dois conceitos: o respeito às urnas bolivianas, que elegeram Evo Morales e o
mantiveram no cargo em referendo, e o aprofundamento de uma negociação franca entre Evo e seus opositores. A
Declaração de La Moneda, documento resultante da reunião, reafirmou, igualmente, o respeito à soberania, à não
ingerência em assuntos internos, à democracia e suas instituições e aos direitos humanos, psosições consoante com a
prioridade dada a América do Sul na agenda externa do país no Governo Lula e, em perspectiva histórica, com a
trajetória da política externa brasileira (VIGEVANI, 2014; MENEZES, 2013).
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hegemonia dos EUA, redobrou-se a capacidade de ação dos Estados nacionais, redefinindo-se seus
espaços e os graus de autoridade no exercício de seu poder regulador. Assim colocada, a noção de
regulação comporta dois entendimentos distintos, de um lado, assumida como intervenção do
Estado no domínio econômico, o relançamento de estratégias de viés desenvolvimentista nas áreas
de comércio e investimento e de outro lado, entendida como expressão do exercício legítimo da
soberania na última década, a ampliação da margem de regulação dos Estados. A maior liberdade
para administrar suas regras nacionais passava, necessariamente, pelo bloqueio, ainda que parcial,
da influência emanada dos centros de poder do sistema internacional. (STRANGE, 1997, p. 184, p.
189). Desta forma, o resgate da autonomia na execução de políticas nacionais, como as que tiveram
lugar no setor de energia, não pode ser compreendido senão como parte de um movimento maior de
reconstituição, ainda em curso, da ordem normativa internacional pós-liberal15
.
Neste sentido, o desenrolar da crise energética apontava claramente para a constituição de
uma nova convenção acerca dos instrumentos legítimos de promoção do desenvolvimento. Diante
da importância do setor de energia, redefinia-se o papel que caberia ao Estado em sua tarefa de
coordená-lo. As mudanças normativas promovidas na Bolívia buscaram resgatar um importante
papel para o Estado na gestão do investimento direto estrangeiro, com vistas à redistribuição dos
frutos da exploração de seus recursos naturais. De outra parte, a sustentação no plano regional das
aspirações bolivianas reflete a rejeição da visão de integração setorial inspirado nos princípios do
livre comércio e limitado à promoção dos fluxos de intercâmbio de energia, posto que instituía
como linhas mestras a preocupação com a segurança energética regional, mas sujeitando as
prerrogativas do direito de propriedade àquelas da defesa do interesse público.
Por esse prisma, os entendimentos alcançados na I Cúpula Energética Sul-americana,
ocorrida em abril de 2007 na ilha venezuelana de Margarita, afiguravam-se uma resposta aos
conflitos energéticos que, nos anos anteriores, opunham os países da região, traduzindo-se num
esforço conjunto dos Estados em busca de graus maiores de autoridade no exercício de sua
soberania. Ratificando os princípios orientadores da integração energética regional indicados na
Declaração da I Reunião de Ministros de Energia da Comunidade Sul-Americana de Nações16
e na
15
Neste sentido, conforme Silva (2006, 104), o fracasso, em 2003, da Conferência de Cancún da Organização Mundial
de Comércio, em que os impasses da discussão sobre regulação multilateral de investimento gravitaram em torno da
noção de “espaço político”, prenunciava a trincheira em que se consolidaria a defesa, pelos países em desenvolvimento,
de suas prerrogativas na determinação de objetivos de desenvolvimento. 16
De 26 de setembro de 2005, em Caracas, Venezuela.
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Declaração Presidencial sobre Integração Energética Sul-Americana17
, o encontro na ilha
venezuelana produziu mais do declarações genéricas bem intencionadas, como as de que a
integração energética “deve ser usada como um instrumento importante para promover o
desenvolvimento econômico e social e erradicação da pobreza”, e deve também “envolver
principalmente o Estado, a sociedade e as empresas relacionadas com o setor da energia”.
O debate sobre o processo de regulação do setor, nos marcos da integração regional, buscou
enfrentar diretamente o problema do conflito de perspectivas entre os países em desenvolvimento,
hospedeiros do investimento externo direto (IED), que procuram assegurar a autonomia na
definição das políticas de desenvolvimento, e aquela dos países desenvolvidos, exportadores de
capital, cuja proposição visa assegurar mercados seguros a suas empresas. A Declaração de
Caracas, referência pretérita do encontro de Margarita, estipulava, a sua vez, “o direito soberano a
estabelecer os critérios que assegurem o desenvolvimento sustentado na utilização dos recursos
naturais renováveis e não-renováveis, assim como a administrar a taxa de exploração dos recursos
naturais não-renováveis” e “o respeito às formas de propriedade que cada Estado adota para o
desenvolvimento de seus recursos energéticos”. O encontro de cúpula de 2007 avançou
substantivamente ao propor a criação do Conselho Energético da América do Sul, composto pelos
Ministros da Energia dos países envolvidos. Sua atribuição abrangeria a elaboração de uma
estratégia continental, um plano de ação e uma proposta concreta para estabelecer um Tratado
Energético Sul-Americano. Nos termos deste tratado é que, eventualmente, encontraríamos a recusa
das premissas liberais que inspiraram o Tratado da Carta de Energia, modelo de integração
energética que tem sido utilizada, um tanto irrefletidamente, como padrão a ser replicado18
.
No mesmo contexto político, ocorre a saída da Bolívia do sistema representado pelo ICSID,
tribunal de arbitragem do Banco Mundial. Em maio de 2007, o Banco Mundial recebeu documento
boliviano informando a renúncia ao ICSID e a sua saída do acordo, ao qual havia aderido 1994.
Diante da publicidade do gesto político, os meios de comunicação e organizações civis se
envolveram na discussão das causas e consequências desta retirada (JIMENEZ, 2010, p. 249).
Muito embora não tivesse contra si elevado número de demandas, esse rompimento igualmente
guardou conteúdo simbólico importante. Se nos anos 90 houve crescimento no uso de BITs
17
Assinada no dia 9 de dezembro de 2006, em Cochabamba, Bolívia. 18
Típico tratado que recusa o padrão dos acordos de comércio internacional ao tornar os governos diretamente
accountables a tribunais internacionais para importantes obrigações nele especificadas, estendendo, portanto, o conceito
de responsabilidade estatal.
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(Bilateral Investment Treaties), com ênfase na segurança e procedimentos de resolução de disputas
(WAELDE, s/d), atualmente, momento chamado pós-liberal, tal gesto demarcaria uma inflexão na
regulação de investimento19
. Refletiria, enfim, o repúdio ao viés pró-business do órgão e indicando
a necessidade de um caminho alternativo no tratamento do tema do investimento estrangeiro.
NOTAS FINAIS
Procuramos neste trabalho oferecer uma análise da reintrodução, pelos países sul-
americanos em destaque, de institutos normativos clássicos na persecução de políticas de
desenvolvimento. Buscamos explicitar, por meio de uma abordagem que permitisse identificar os
fatores históricos bem como as influências da dimensão regional na compreensão das ações dos
atores domésticos, que o alcance das políticas nacionais de desenvolvimento segue condicionado
pela legitimidade que logra obter nos tabuleiros da política internacional.
Em contraposição à perspectiva desenvolvimentista que marcara as décadas anteriores, no
quarto final do século XX, tomava forma uma “nova” convenção do desenvolvimento. No setor de
energia, em particular, transitava-se do reconhecimento de seu caráter estratégico, manifesto nas
diversas formas de intervenção de traço desenvolvimentista, a uma orientação que se amparava na
promoção da participação privada e na introdução da concorrência como vetores da competitividade
e do desenvolvimento, cujo traço peculiar era a crença no poder auto-regulatório das forças de
mercado. A integração energética que se promoveu na mesma quadra histórica não poderia deixar
de refletir estes mesmos princípios.
Acordos na área energética podem contribuir decisivamente na constituição de bases para
uma integração mais profunda. Contudo, há que se considerar o princípio que os orienta. A
perspectiva da integração esteve, pois, orientada para a construção de um mercado regional nos
moldes liberais, natureza posta em evidência pela crise do gás boliviano. No rescaldo da crise, era
imperativo extirpar a rationale privada que norteara as decisões de investimento no setor, bem
como assegurar o controle sobre os ganhos decorrentes das atividades de exploração dos recursos
naturais energéticos, ela própria sujeita à mesma lógica.
19
Uma inflexão nas politicas de regulação de investimento também se verificou nos países desenvolvidos, em
particular nos Estados Unidos, com a securitização do investimento externo direto, chamado “protecionismo de
investimento”, dirigido particularmente ás fusões e aquisições nos setores classificados como “infraestrutura crítica”
monitorados pelo Committee on Foreign Direct Investment on United States (CFIUS) (SILVA, 2011)
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O desenlace do conflito envolvendo o Brasil e a Bolívia quando da nacionalização dos
hidrocarbonetos, a sua vez, demonstrou que, na contramão da perspectiva de juridicização
(KRAJEWSKI, 2012), a solução diplomática passava a prevalecer (SHIHATA, 1994). O apoio do
governo brasileiro, manifestado em mais de uma ocasião e instância, à prática da democracia na
Bolívia, em que pese seus efeitos sobre os direitos de propriedade, é apenas um dos reflexos de uma
nova orientação que conecta a necessidade de proteção aos direitos dos investidores e a necessidade
dos países em desenvolvimento por espaço político que lhes assegure o desenvolvimento.
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