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articolo sul trattamento degli indigeni durante la dittatura militare brasiliana

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  • 1 Submetido em 25 de abril de 2002. Aceito em 17 de maro 2003.2 Museu Nacional/UFRJ, Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (PPGAS). Quinta da Boa Vista, So Cristvo, 20940-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

    Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v.61, n.2, p.129-146, abr./jun.2003 ISSN 0365-4508

    A PROTEO QUE FALTAVA: O REFORMATRIO AGRCOLA INDGENA KRENAKE A ADMINISTRAO ESTATAL DOS NDIOS 1

    (Com 2 figuras)

    JOS GABRIEL SILVEIRA CORRA 2

    RESUMO: O presente texto procura recuperar a histria de uma instituio criada para corrigir indgenasconsiderados criminosos e que funcionou nos primeiros anos da criao da FUNAI, o Reformatrio AgrcolaIndgena Krenak. A reconstituio desta estria parece significativa diante da maneira pontual com que oreformatrio tem aparecido tanto na literatura dedicada s populaes indgenas, como naquela dedicada apoltica indigenista desenvolvida pelo Estado brasileiro. Esta situao fica evidenciada nos relatos sobre o grupoindgena Krenak, identificados na rea do presdio, cujo cotidiano foi modificado por essa instituio. O caso doreformatrio abre tambm a possibilidade de se desnaturalizar as aes e projetos dos rgos estatais encarregadosda proteo e/ou assistncia aos ndios. A experincia do reformatrio quando comparada s prticas exercidaspelos funcionrios do rgo encarregado da tutela e exigidas dos ndios provavelmente at hoje possibilitareavaliar as bases cotidianas que fundamentam a proteo aos ndios e as relaes de dominao estabelecidasentre os grupos indgenas e funcionrios, tanto no perodo do SPI como da FUNAI.Palavras-chave: poltica indigenista, tutela, Reformatrio Agrcola Indgena Krenak, Krenak.

    ABSTRACT: The protection last needed: the Krenak Indigenous Agricultural Reformatory and the StateAdministration of IndiansThis text search for the recuperation of the history of an institution created to correct indians called criminous,who functioned in the early years of FUNAI, the Krenak Indigenous Agricultural Reformatory. The reconstitution ofthis story is important in contrast with the easy way that the Reformatory appears in the literature dedicated toindigenous populations and in the literature dedicated to the indigenist politics developed by the Brazilian State.The situation became evident in the stories about the Krenak indian group, identified in the prison area, whosedaily life was modified by the institution. The case of the reformatory opens too to the possibility of desnaturalizethe actions and projects formulated by the state institutions responsible for the protection and/or assistance ofIndians. The reformatory experience when compared with the practices of the functionarys of the tutelage institutionand demanded to the Indians probably until today make possible to revaluate the actions that based theprotection of Indians and the dominations relations established among Indians groups and tutors, in the period ofSPI and FUNAI.Key words: indigenist politics, tutelage, Krenak Indigenous Agricultural Reformatory, Krenak.

    INTRODUO

    Durante um perodo relativamente curto, entreos anos de 1969 e 1972, funcionou na rea deum antigo posto indgena no Estado de MinasGerais (Fig.1), uma instituio destinada areceber e recuperar ndios consideradoscriminosos, administrada pela Polcia Militar deMinas Gerais (PMMG) atravs de um convniorealizado entre esta instituio e o rgo estatalencarregado de tutelar s populaes indgenas,a Fundao Nacional do ndio (FUNAI). Adescrio do que foi e como funcionou oReformatrio Agrcola Indgena Krenak oobjetivo deste texto.

    O Reformatrio Agrcola Indgena Krenak foiinstalado dentro da rea de 3983 hectares doPosto Indgena Guido Marlire (PIGM), criado noincio do sculo s margens do rio Doce, paraatrair e pacificar ndios, e as relaes na regiono incio do sculo. A rea do PIGM, hojedenominada de Terra Indgena Krenak, situa-seno municpio de Resplendor no estado de MinasGerais, entre esta cidade e a vizinha ConselheiroPena, e nas proximidades da divisa com o Estadodo Esprito Santo. Durante o perodo em quefuncionou, e at hoje, a instituio (quandomencionada) foi denunciada pelos indgenas quel estavam e tambm nos relatos dos funcionriosda FUNAI e ativistas de grupos de ao indigenista

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    A (RE)CONSTRUO DO REFORMATRIOFalar do reformatrio consiste em recuperar aslacunas e erros nas informaes sobre a instituio.Tambm consiste em trazer o carter confidencialcom que a proteo aos ndios foi tratada no Estadode Minas Gerais, e em particular na rea do PostoIndgena Guido Marlire. A existncia e o perodoem que o Reformatrio Agrcola Indgena Krenakoperou, foram por muito tempo e ainda hoje o so,de alguma maneira alvos de discusses e debatesem torno das prticas l desenvolvidas, e da prprialegitimidade do rgo tutelar em atuar daquele modopara tratar dos ndios criminosos.O fechamento do PIGM e a transferncia dos ndios(Krenak e confinados) para o Posto IndgenaKrenak/Fazenda Guarani6 no ano de 1972 teriamsignificado o fim do reformatrio (DIAS FILHO,1990; MARCATO, 1979; MATOS, 1996; PARASO,1991, 1992; QUEIROZ, 1999). Esta afirmao

    na regio3, como um exemplo de arbitrariedade eviolncia da administrao tutelar, tendo funcionadocomo um verdadeiro presdio para ndios4.Construdo para receber os ndios a seremconfinados um dos termos utilizados para trataros ndios enviados ao reformatrio, alm de outrasdenominaes como: ndios detidos, ndiosenviados para um perodo de recuperao oundios em estgio de reeducao e nomes menosneutros ou lisonjeiros, como ndios delinqentes,ndios degenerados ou ndios criminosos , oreformatrio funcionou dentro do PIGM duranteos anos de 1969 e 1972. Nesses quase quatro anosde funcionamento do reformatrio e do postoindgena, as duas instituies que deveriamcuidar, respectivamente, da reeducao dos ndiosdelinqentes e da assistncia dos ndios Krenak,estiveram sob uma nica orientao eadministrao5.

    3 As duas instituies que atuaram na regio criticando a ao da Fundao Nacional do ndio (FUNAI) principalmente entre o final da dcada de 70 e inciodos anos 80 foram o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI) e o Grupo de Estudos da Questo Indgena (GREQUI).

    4 Utiliza-se aqui os itlicos para destacarem categorias expressas nas falas e documentos analisados, ou seja, categorias nativas. As aspas so utilizadas de duasmaneiras: quando referidas a uma nica palavra consistem em expresses de carter ambguo que se quer destacar ao leitor, inclusive por ser o ato de criaoe/ou atribuio de termos classificatrios, uma das aes fundamentais para correo dos indgenas, entretanto, quando as aspas destacam mais de umapalavra, referem-se somente a citaes.

    5 Isto est claro nos documentos internos do posto, onde as duas instncias administrativas tm uma nica denominao de Posto Indgena Guido Marlire/Krenak, que tambm aparece em jornais, s que com o nome de Centro de Treinamento e Recuperao Krenak (CTRK), Jornal O Globo de 30 de maro de1970 (microfilme 400, planilha 082, fotograma 413, Museu do ndio).

    6 A Fazenda Guarani ocupa uma rea de 3270 hectares entre os municpios de Carmsia, Dores de Guanhes e Senhora do Porto no Estado de Minas Gerais. Area, pertencente Polcia Militar de Minas Gerais, foi recebida como doao pela FUNAI no ano de 1972.

    Fig.1- Localizao dos postos indgenas no Estado de Minas Gerais.

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    apesar de freqente, parece pouco provvel no spelo nome que o PI Fazenda Guarani tratado nosdocumentos internos Centro de Reeducao paraindgenas e depois de 1974, Colnia AgrcolaIndgena Guarani , mas tambm porque os Krenakforam acompanhados de todos os ndios que aindaestavam confinados no reformatrio, recebendotambm o posto novos ndios para recuperao. Portrs desta (suposta) confuso de datas e dados,escondia-se, num primeiro momento, o prpriocarter sigiloso com que seu funcionamento eratratado pelos funcionrios, exemplificado na poucadivulgao de suas atividades tanto interna comoexternamente Fundao Nacional do ndio.A FUNAI surge como a instituio que substituiriao Servio de Proteo aos ndios (SPI), o antigo rgofederal responsvel pela assistncia e proteo aosndios. A criao do rgo visava recuperar aimagem do Estado brasileiro diante de diversosescndalos envolvendo a invaso das terrasindgenas, desvios de recursos por funcionrios edenncias de violncias sofridas pelos ndios(SOUZA-LIMA, 2002). Assim, a criao de umainstituio destinada a corrigir ndios e mesmo asprticas utilizadas para recuperar esses ndios como controle, vigilncia e trabalho (forado) , noservia como material de divulgao do tipo detratamento que o rgo tutelar e mesmo o governofederal estariam dando aos ndios no Brasil.Mesmo depois deste perodo inicial os dados sobrea instituio recuperadora aparecem de maneiradifusa, com as informaes que eram divulgadasna imprensa pela FUNAI, de que as prticas depunio e aprisionamento teriam cessado, juntocom o fechamento do PIGM e a transferncia daadministrao da Ajudncia Minas-Bahia da PolciaMilitar para os funcionrios da FUNAI em 1972. Nosanos seguintes, o tema do reformatrio reapareceriacom alguma freqncia em reportagens de jornais,denunciando ou relembrando o reformatrio e adireo do rgo tutelar negando as informaes e aexistncia da instituio (cf. CORRA, 2000), sendoesses expedientes freqentes nas relaes entre orgo indigenista estatal e outros grupos e

    profissionais ligados aos grupos indgenas.A existncia do reformatrio aps 1972, no deveser vista apenas como uma comprovao de que aFUNAI baseava sua atuao em uma srie deatividades repressivas, executadas de maneiraclandestina. Essa idia perpassa as muitasdenncias contra o rgo tutelar, que tratam ainstituio recuperadora como o lado negro daadministrao tutelar, ou transformam, pelaexistncia de um reformatrio, a FUNAI no lado negroda proteo aos ndios. No se quer aqui retirar aimportncia do ambiente pouco democrtico vividono pas e tambm os equvocos com que muitas daspopulaes indgenas protegidas pelo Estadobrasileiro foram tratadas na poca (DAVIS, 1978).Alm dos documentos da prpria FUNAIcomprovarem a existncia de ndios que tinhamcometido crimes, e estavam cumprindo pena na reado Posto Indgena Fazenda Guarani7 , as refernciasaos ndios de diversas etnias l vivendo, tambmaparecem nos trabalhos de pesquisa realizados entreos Krenak. pouco plausvel acreditar que essesndios tenham se deslocado para o posto por decisesprprias ou decises de suas comunidades, as quaisa FUNAI estaria apenas respeitando8. Pretende-seaqui reiterar o argumento desenvolvidoanteriormente (CORRA, 2000), de quanto as aese projetos desenvolvidos pelos funcionrios dentroda rea onde estavam localizados os Krenak e osoutros ndios para l enviados, no s no perodoem que esta se chamou reformatrio, guardamsemelhanas com outras atividades h muitodesenvolvidas em outros postos indgenas, e tidascomo parte de uma ao tutelar correta. Tanto a visoda administrao da Ajudncia Minas-Bahia9 (AJMB)e seus postos pela Polcia Militar de Minas Geraiscomo um exerccio de brutalidade por parte do rgopolicial, como sua caracterizao como um modo deatuao oculto e ilegtimo, corroboram paracristalizar uma concepo estrita de como deve-sever e analisar a existncia do reformatrio, sendoantes de tudo mais importante comprovar averacidade de suas atividades repressivas, do queinvestigar seu funcionamento.

    7 Documentos como o relatrio do administrador da Fazenda Guarani, Augusto de Souza Leo, de 22 de dezembro de 1979. No sem razo esse documento foiencontrado na pasta da Assessoria de Segurana e Informao (ASI) da FUNAI, uma seo criada no incio da dcada de 70 para controlar o funcionamento ea circulao de informaes do rgo, tanto em suas relaes internas (relaes do rgo com os grupos indgenas), como externas (relaes com outrosgrupos e instituies).

    8 Como aparece no trecho a seguir: ... a reeducao de ndios aculturados que transgridem princpios norteadores da conduta tribal, e cujos prprios chefes,quando no conseguem resguardar a ordem da tribo, socorrem-se da FUNAI visando restaurao da hierarquia nas suas comunidades (Boletim Informativoano 1, n.4, 1972:21) [grifos do autor].

    9 Essa era a denominao da instncia regional da FUNAI encarregada de administrar os postos indgenas Guido Marlire e Mariano de Oliveira, no Estado deMinas Gerais, e Caramuru e Paraguau, no Estado da Bahia.

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    Os atritos entre a FUNAI e o CIMI (ConselhoIndigenista Missionrio) no final dos anos 70 e inciodos anos 8010, em torno da ao tutelar estatal,giraram na maioria das vezes, na busca de provasde qual das duas verses conteria a histria correta,e qual seria a verso conseqentemente falsa oumentirosa. A necessidade de comprovar osabsurdos que tinham sido cometidos sob a gideda administrao tutelar, estivesse esta a cargo daPolcia Militar ou da FUNAI, se espraiam pelasanlises e explicaes produzidas sobre oreformatrio. As crticas ao reformatrio centram-se, principalmente na atuao da Polcia Militar deMinas Gerais e do chefe da Ajudncia Minas-Bahia,o capito Manuel dos Santos Pinheiro. Essascompartilham uma viso idealizada do que deveriaser a ao da FUNAI sobre as populaes indgenas,que transborda pelo prprio no reconhecimentoda ambigidade presente na ao tutelar de protegere punir no se pensando aqui s a sua facetaestatal e permeando o olhar sobre as prticas etambm a prpria histria desta ao, recontada erepassada de maneira ideal11.Algumas idias utilizadas para explicar a experinciado reformatrio e sua insero (ou no) dentro dasprticas indigenistas da FUNAI acabam poucofundamentadas, centrando em noes que procuramprivilegiar ora a continuidade, ora a descontinuidadedo reformatrio em relao histria das relaesdos povos indgenas com a sociedade abrangente,em especfico com o rgo tutelar. Idias como a deque o reformatrio serviu como uma experinciaextraordinria dentro das relaes com os povosindgenas no Brasil, com a utilizao de aes decontrole e punio, e mesmo instituies(reformatrios, presdios) da sociedade ocidental para aplicar em culturas no-ocidentais, apesar defazer transparecer a semelhana do reformatrio comestas instituies, mostra um desconhecimentogritante de como funcionavam os postos indgenas eatuavam os administradores dessas instituies.Explicar tambm o surgimento do reformatriocomo uma sucesso de aes coloniais de conquistae submisso dos grupos indgenas de Minas Geraisque perduraria at os dias de hoje, se permite ligaras aes mais atuais como similares s guerras deconquista praticadas no perodo colonial, acabasimplificando por demais as nuances e os diferentes

    perodos e agentes de colonizao que operaram comos grupos indgenas.A percepo da atuao desenvolvida dentro doespectro da AJMB como decorrncia, quase queexclusiva, da prpria situao em que se encontravao pas e a FUNAI no final dos anos 60 governadose submetido aos desgnios dos militares , e que aadministrao regional do rgo tutelar, ao encargoda Polcia Militar de Minas Gerais s faz reforar,tambm um pressuposto de pesquisa, que tratado como tese espera dos exemplos ilustrativosde sua realidade. Essa denncia de militarizao erepresso decorrente do governo militar instauradocom o golpe de 1964 tem sido inclusive a baseexplicativa das reportagens de jornal, onde dadoshistricos reaparecem como o de que a FazendaGuarani, antes de ser doada a FUNAI, teria sidoum importante centro para formao de quadrosmilitares para combate da guerrilha do Capara.Se a atuao policial responde a desgnios devigilncia e controle dos indivduos, asincumbncias dos funcionrios do rgo tutelar nagesto dos postos e populaes indgenas guardamsemelhanas que deveriam ser melhor analisadas.A questo em torno de que tipo de atividade eradesenvolvida pela AJMB, se policial ou assistencial,deve ser vista de maneira menos simplificadora.Apesar de no s as decises, mas a prpriaexecuo das aes tutelares estarem a cargo depoliciais militares e as tarefas passarem poratividades de controle e vigilncia, no se podereduzir esta atuao como uma administraopolicial de ndios. Tanto a execuo das atividadestutelares dentro da AJMB como descrita nosdocumentos da poca, do conta de que a polciamilitar sempre buscou centrar e fundamentar suaao em diretrizes e exemplos existentes na aotutelar estatal como por exemplo a formao dochefe do PIGM e do reformatrio, o ento sargentoda PM Antonio Vicente Segundo, no curso de tcnicoem indigenismo pela FUNAI em 1971 comotambm a atividade tutelar implica em tarefassemelhantes s realizadas pela polcia. Assim,parece necessrio, para compreender o reformatriodebruar-se tanto sobre o perodo em que a PolciaMilitar de Minas Gerais ficou encarregada de prestara assistncia aos ndios, como tambm sobre operodo posterior em que a AJMB ficou a cargo de

    10 A ao do CIMI, como tambm do GREQUI foi constantemente vigiada e combatida pelo rgo indigenista estatal, sendo que nos relatrios da j referidaAssessoria de Segurana e Informao (ASI), seus integrantes so mencionados como insufladores dos ndios na regio e so pedidos inquritos na PolciaFederal contra seus integrantes como medida para conter a atuao destes grupos.

    11 Crticas a esta maneira de perceber e interpretar a ao tutelar foram feitas por diversos autores, ver em especial OLIVEIRA FILHO & SOUZA-LIMA (1983).

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    funcionrios da FUNAI. So destes dadosfundamentalmente que se reconstitui, a seguir,como surgiu e funcionou o reformatrio.

    A SITUAO DOS INDGENAS NA REGIO DA AJUDNCIA MINAS-BAHIA

    A (re)criao da Ajudncia Minas-Bahia em 1963,com sede em Tefilo Otoni, visava melhor administraros postos que j h muito preocupavam o SPI. Sualocalizao nessa cidade, na regio centro-nordestedo Estado de Minas Gerais, deveria permitir que oPosto Indgena Mariano de Oliveira (PIMO) prximo sede da AJMB e os postos mais distantes, no Estadoda Bahia (Paraguau e Caramuru), fossem melhoradministrados, solucionando os problemas daatuao do rgo tutelar na regio, principalmentenas questes relativas ocupao das reasindgenas e ao desenvolvimento econmico dospostos. Esta tentativa, contudo, no parece tersurtido efeito prtico sobre postos e populaesindgenas destes estados, j que as notcias sobre oPIMO (o nico posto mantido aberto em Minas Geraispelo SPI at 1966) e os ndios Maxakali em jornaisna dcada de 60 do conta do aumento de atritosentre indgenas, ocupantes das reas pleiteadas pelosindgenas e funcionrios governamentais (estaduaisou federais), e do estado de penria e abandonovivido pelos ndios12.Porm, a situao de iminente conflito entre ndiose no-ndios parece ter sido o motivo para o inciode negociaes entre os governos estadual e rgofederal para transferir a administrao dos ndios,e dos conflitos, para o governo estadual13. O queteria levado a administrao do SPI a repassar aassistncia dos ndios para o governo estadual, bemcomo o interesse do governo estadual em assumirtal encargo e repass-lo a uma seo da polciamilitar nunca foi totalmente esclarecido14.Segundo os trabalhos de QUEIROZ (1999) e DIASFILHO (1990), a entrada e o interesse do governo

    estadual pelos ndios se deviam s relaes deparentesco do capito Manoel dos Santos Pinheirocom o ento governador de Minas Gerais, IsraelPinheiro, seu tio. Entretanto nem nesses trabalhos,nem em outros, ficam claras as relaes do prpriocapito com os arrendatrios e/ou invasores dasterras do Posto Indgena Guido Marlire, j que almde estar envolvido com a transferncia em 1958(SOARES, 1992:131), foi atravs de sua atuao queos Krenak seriam retirados novamente da rea doPIGM e levados para a Fazenda Guarani em 1972.Do material pesquisado s foi encontrada refernciaaos motivos da nomeao de Pinheiro em uma nicareportagem de jornal, em que o referido capitomenciona que foi enviado para conter uma revoltados ndios Maxakali h seis anos (1966 ou 67)15.Tambm em termos mais gerais, assumir aadministrao dos ndios no Estado de Minas Geraisestava longe de ser uma atividade rentvel,incluindo no s gastos com funcionrios, mastambm com a reforma dos postos indgenas explicitados nos documentos da AJMB de 1969sobre o PI Mariano de Oliveira e o PI Guido Marlire.A transferncia do PIGM para administraoestadual evidenciava a importncia desse assunto,muito provavelmente pela ameaa de conflitos, parao governo estadual, ressaltando como os conflitosfundirios e a situao dos indgenas seriamtratados neste perodo como um caso de polcia.

    A POLCIA MILITAR DE MINAS GERAIS NA ADMINISTRAO DAAJMB

    A primeira mudana decorrente da entrada dogoverno estadual na administrao dos ndios foi atransferncia da sede da Ajudncia Minas-Bahia dacidade de Tefilo Otoni para o Instituto Agronmico/Horto Florestal sediado em Belo Horizonte, capitaldo Estado de Minas Gerais. Em sua nova sede aAJMB, chefiada pelo capito Pinheiro, aadministrao regional ficou encarregada de lidar

    12 As informaes dos Postos Caramuru e Paraguau no diferiam muito, j que num relatrio endereado ao diretor do Departamento Geral de Operaes(DGO) da FUNAI, de dez anos depois (15 de abril de 1973), o substituto do capito Pinheiro na chefia da AJMB, Afrnio Pereira Caixeta, menciona que dos36.000 hectares do Posto Caramuru s 15 permaneciam no arrendados a no-ndios (Relatrio n.2, 1973: folha 8).

    13 Este acordo no pode ser considerado uma aberrao dentro da ao indigenista estatal j que, como descreve SIMONIAN (1981), a administrao dos ndiosno Estado do Rio Grande do Sul no incio do sculo, esteve a cargo do governo do estado, autorizado pelo prprio SPI.

    14 As negociaes que se realizaram entre os anos de 1965 e 1967, foram, muito provavelmente, responsveis pela retomada do interesse pelos ndios doEstado de Minas Gerais, e tambm pela deciso do SPI de reabrir o Posto Indgena Guido Marlire. Os ndios Krenak, apesar de terem deixado o PI Marianode Oliveira e estarem na rea do antigo PIGM desde 1960, no tinham preocupado o rgo tutelar at 1966, e foi justamente com o retorno da proteo eassistncia pelo SPI que a situao dentro do posto voltou a piorar, intensificando-se novamente os atritos entre arrendatrios e ndios, j que os primeirosestavam novamente ameaados de retirada da rea e em disputa com o rgo tutelar pela posse da terra do PIGM.

    15 O capito Pinheiro assim mencionava: Tratei logo de prender os ndios que lideravam o movimento (...) e fui pouco a pouco restabelecendo a paz no local. Meutrabalho foi considerado e assim fui convidado pela presidncia da FUNAI para trabalhar com os ndios de Minas Gerais (Jornal do Brasil, 27/08/72, microfilme400, planilha 082, fotograma 329, Museu do ndio).

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    com os postos e indgenas no Estado de Minas Gerais.A rea de atuao da ajudncia inclua os estadosda Bahia e Esprito Santo, todavia excluindo-sealgumas viagens e gestes nos postos indgenasCaramuru e Paraguau, a ao tutelar s seriaretomada aps 1973, com o retorno da FUNAI.A atuao da AJMB buscou logo seu principalobjetivo: por fim aos atritos entre ndios e no-ndiosnas reas indgenas e seu entorno, que haviam sedisseminado pela dcada de 60 com invases eataques. Para realizar essa espcie de (re)pacificaoda regio, a chefia da AJMB passou a ater-se a doiseixos de ao: o controle das reas e populaessob sua administrao, e o desenvolvimento deatividades (econmicas), visando educar (manter)os ndios no trabalho.O controle era feito basicamente atravs dopoliciamento das reas pelos funcionriospertencentes a AJMB, e inclua no s a vigilnciados indgenas e suas atividades contando inclusivecom a manuteno de um posto policial como nocaso do Posto Mariano de Oliveira mas tambm afiscalizao e retirada da rea indgena dosinvasores. Apesar de at hoje as reais intenesda polcia militar serem questionadas, a retiradados no-ndios da rea do PIGM foi uma dasalternativas pensadas para solucionar os problemasna regio, como atestam alguns ofcios trocadosentre a chefia da AJMB e a chefia do reformatrio.Alm de buscar limpar a rea dos invasores, ocontrole dos postos indgenas foi entremeado comas atividades de desenvolvimento econmico dosprprios postos. Essa necessidade de se desenvolveratividades no s tinha como intuito garantir aeducao/recuperao dos ndios para o trabalhoou a auto-suficincia dos postos indgenas, atravsda transformao dos tutelados em produtoresagrcolas e dos postos indgenas em unidadeseconomicamente produtivas, mas tambm combateraqueles elementos considerados como os maioresresponsveis pelas desordens nos postos: os ndiosociosos e sua atividade mais comum, o consumo de

    bebidas alcolicas. Assim, fica clara a semelhanade projetos e prticas entre a gesto da AJMB pelapolcia militar e a atuao do SPI (cf. CORRA,2000). No que os postos indgenas de Minas Geraisestivessem retornando ao passado: esse modelo decontrole e trabalho continuou operando tambm naatuao da FUNAI nesta poca, e mesmo depois.O desenvolvimento destas aes administrativas daAJMB pela polcia militar foi tomada como de grandexito pela prpria FUNAI no perodo, por manterema ordem nos postos, estimular o trabalho indgenae combater conseqentemente a ociosidade dosndios, e tambm por refletir concepes/objetivosh muito tempo pensadas como ideais para a aotutelar. Assim, os ndios Maxakali passavam nagesto do capito Pinheiro de ... bbados e ladresa criaturas dceis e trabalhadoras que passaram aser acatadas e queridas por todos16. Este sucessodo funcionamento da AJMB no pode ser creditadounicamente existncia de policiais ou aodesenvolvimento de atividades econmicas com aparticipao dos ndios. A possibilidade da aplicaocotidiana destas prticas transformadoras,principalmente no caso do Posto Indgena GuidoMarlire, deveu-se existncia de duas instituies,criadas quase que simultaneamente pela AjudnciaMinas-Bahia no perodo17: a Guarda Rural Indgena(GRIN), criada para proteger e policiar as reas epopulaes indgenas e sua instituio correlata, oReformatrio Agrcola Indgena Krenak18, instituiopensada para fazer com que o ndio visto e tratadocomo problema para o rgo tutelar, viesse a ...reeducar-se e ser um ndio bom (entrevista dePinheiro, Jornal do Brasil, 27/08/69).Neste artigo inclusive pelo prprio formato etamanho de um artigo no se trata em especficode descrever a Guarda Rural Indgena (GRIN). importante ressaltar que a criao de uma milciavisando proteger terras e populaes indgenas foiuma importante medida para assegurar ofuncionamento dos postos indgenas segundo ospadres desejados pela AJMB e seu chefe, o capito

    16 Relatrio da viagem sede da Ajudncia Minas-Bahia, PI Machacalis, Aldeia do Crenack e Fazenda Guarani, tudo no estado de Minas Gerais, folha 20, doSuperintendente Administrativo General Isnard de Albuquerque Cmara em 29/02/72. Documento encontrado na pasta da rea Indgena Krenak, nos arquivosda Diviso de Assuntos Fundirios (DAF) na sede da FUNAI em Braslia.

    17 Segundo o capito Pinheiro ... fui eu quem criei a GRIN e idealizou o Krenak (Jornal do Brasil, 27/08/72, microfilme 400, planilha 082, fotograma 329,Museu do ndio), verso essa que se aproxima do relato de Itatuitim Ruas sobre o perodo, onde o sucessor de Pinheiro conta que se ops criao da GRINe sugeriu a criao de uma guarda montada, inspirada no modelo da polcia montada do Canad (Entrevista de Ruas concedida ao autor em fevereiro de 1999).

    18 Em entrevista (O Globo, 06 de fevereiro de 1970, microfilme 400, planilha 082, fotograma 357, Museu do ndio) fornecida na festa de formatura da primeiraturma de guardas indgenas (GRINs), o ministro do interior, Costa Cavalcanti, diz que a criao da GRIN ... era uma das respostas mais eloqentes que ns(Governo, ndios e povo brasileiro) poderamos dar s calnias que vamos (sic) recebendo, h muito, sobre massacre de ndios no territrio brasileiro [grifosdo autor]. A criao do reformatrio tambm tratada pela FUNAI como uma contribuio ... para a evoluo gradual do estgio de desenvolvimento scio-econmico e cultural do ndio que j mantm contato permanente com a sociedade envolvente (Boletim Informativo FUNAI, ano 1, n.4, 1972:24).

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    Pinheiro. Pensada como uma instituio de escoponacional, destinada a evitar as invases de terrasindgenas, a GRIN foi composta inicialmente(segundo depoimento de seu criador) por trs ndiosMaxakali como uma maneira de ... colocar um freiona indisciplina dos Karajs (Jornal O Globo, 18/08/69), que estariam criando problemas para aadministrao local da FUNAI19.As tarefas que os guardas rurais indgenas (GRINs)deveriam executar das reas dos postos indgenasdeveriam, antes de tudo, assegurar que ndios, area e seus recursos, e tambm aquelas pessoas,que estivessem em interao com os ndios oudentro da rea, seguissem as orientaes do rgoindigenista. A manuteno dos GRINs nas reasda AJMB no s visava manter a tranquilidadedas reas e dos ndios, impedindo desordens einvases dentro da rea indgena, ou a execuo deprojetos e medidas propostos/impostos pelaadministrao regional, e ressaltado algumasmodificaes e acrscimos, repetia as preocupaescom a ordem interna e externa dos postos j hmuito presente na administrao tutelar.

    O REFORMATRIO AGRCOLA INDGENA KRENAK

    A outra instituio criada no perodo em que apolcia militar de Minas Gerais esteve comandandoa AJMB foi o j mencionado Reformatrio AgrcolaIndgena Krenak. O funcionamento dessas duasinstituies GRIN e Reformatrio permitiu quese pusesse em prtica os programas derecuperao de ndios e reas indgenas da AJMBe que a administrao estatal apresentasse umaimagem de eficcia de sua atuao principalmentepara a imprensa no perodo.Entretanto, diferente da guarda rural indgena, oreformatrio no teve sua criao publicada emjornais ou veiculada em uma portaria, nem o inciode seu funcionamento foi transformado num eventopblico como foi a primeira formatura dos guardasrurais, com direito a cerimnia e publicidade sobreos esforos que o novo rgo tutelar realizava emprol dos ndios. O funcionamento do reformatrio ea prpria recuperao l executada, passavam pela

    manuteno do sigilo de suas atividades. O carterconfidencial aparece em vrias recomendaes dochefe da AJMB para que os funcionrios do PostoIndgena Guido Marlire mantivessem os ndiosconfinados e os Krenak sem contato com o restanteda populao local20.Apesar disso, no se deve tomar a ausncia dedivulgao como uma medida interna e restritada AJMB ou da FUNAI. Numa circular (ofcio 252)de 12 maro de 1969, o subdiretor tcnico devigilncia rural (Major PM Vicente Rodrigues doSantos), pede ao delegado da vigilncia rural deKrenak que:

    Conforme determinao do Sr. Coronel PM,Diretor de Segurana Especializada, doravantefica expressamente proibido o fornecimento dedados referentes especialidade de VigilnciaRural para a imprensa escrita, falada etelevisada, pelas Delegacias.Os dados devero ser comunicados a essaSubdiretoria, com riqueza de detalhes, com adevida urgncia, para distribuio aos rgosde divulgao interessados.NOTE BEM, doravante, somente esta diretoriapoder dar divulgao os dados em referncia.O no cumprimento desta determinaoacarretar em punio ao transgressor

    A existncia do reformatrio s passa a serdivulgada, inclusive internamente j que nadocumentao da FUNAI (portarias, ordens deservio, memorandos, boletins administrativos)entre os anos de 1969 e 1970, quase no existereferncia a AJMB, quanto mais ao reformatrio.Apesar de que no incio de suas atividadesrecuperadoras, o reformatrio tenha sido poucodivulgado, isto no implica em que seufuncionamento fosse tratado como uma atividademenor pela FUNAI. No perodo em que estevecomandando a AJMB, a polcia militar na figurado referido capito desenvolveu um sistema decontrole extremamente eficaz sobre os ndios e asatividades realizadas dentro do reformatrio. Aeficcia no s medida aqui pela proeminncia

    19 O projeto de criao de uma polcia indgena no pode ser considerado como original. O SPI criou e manteve polcias indgenas, em seus postos, buscandomanter a ordem entre os ndios e em suas unidades administrativas. Mesmo a finalidade de vigiar s terras dos indgenas, j havia sido pensada,e era uma dasidias que sempre esteve presente. Para uma descrio mais atenta ver (cf. CORRA, 2000).

    20 O isolamento pretendido e buscado pelos administradores do reformatrio, aparece explicitamente em um documento do chefe do PIGM ao chefe da AJMB, ondeeste relata a visita de um reprter ao posto, buscando informaes, j que: ... os posseiros ocupantes da rea (...) esto intranqilos e temerosos de que a cadeiaaqui construda seja para o confinamento dos mesmos e que tal comentrio corre de boca em boca na cidade de Resplendor, gerando um clima de verdadeiropnico entre as pessoas direta ou indiretamente ligadas ao problema do terreno litigioso (Ofcio de Antonio Vicente Segundo ao capito Manuel dos SantosPinheiro, microfilme 306, planilha 006, fotograma 232, Museu do ndio).

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    dos dados contidos nos documentos sobre ainstituio, mas pela prpria quantidade dedocumentos emitidos no perodo e o escrutnio dassituaes levadas a cabo nos relatrios,principalmente entre o posto indgena GuidoMarlire e a chefia da ajudncia.Os documentos trocados entre o reformatrio e asede da Ajudncia revelam que o PIGM tinha umfuncionamento ideal, segundo os padresdesejados pela direo da polcia militar em termosde controle da rea e da populao, atividades eobedincia a normas de conduta de seusfuncionrios. Apesar de existirem pequenasdistines circunstanciais quanto ao tipo de aoaplicada aos ndios Krenak e queles que foramenviados para se recuperarem no reformatrio, assuperposies administrativas indicam que estadistino dificilmente era posta em prtica. Tantoa documentao sobre os ndios confinados eraquase toda referida como sendo do PIGM excetuando-se a as fichas individuais dos ndiosem recuperao, identificadas como Centro deRecuperao/Reformatrio Crenack mas tambm

    a chefia do reformatrio e do posto estiveram semprea cargo do mesmo funcionrio da AJMB, sendo queas atividades visando a recuperao eramadministradas, muitas vezes, tambm aos Krenak.Alm dos ndios localizados na rea do PIGM, ocontrole se estendia, em menor escala, aos posseirosda rea, para evitar que as disputas pela posse daterra se tornassem novamente conflituosas. Estano era uma ameaa retrica, j que os invasoresdo posto estavam recorrendo judicialmente paraassegurar as terras ocupadas, e tambm buscavamo apoio de outros membros do governo federal parasuas reivindicaes21. A troca de correspondncia,e informaes, era no mnimo semanal, sendo queem determinadas situaes essa se desenvolviaquase que diariamente, entre o PIGM e a sede daAJMB. Vale lembrar que o controle dos postosera um dos maiores problemas para a direo doSPI, que seguidamente pedia aos encarregadosque enviassem informaes avisos e boletinsmensais dos postos indgenas, e que foi umproblema exacerbado no caso do Posto IndgenaGuido Marlire22.

    21 Vrios telegramas foram enviados; neles os ocupantes da rea do PIGM procuravam sensibilizar as autoridades: Imploramos honrado Presidente providnciasurgentes contra ameaa injusta FUNAI despejar nossas famlias terras ocupamos muitos anos. Aguardamos justia (telegrama de Geraldo Esteves ao Presidenteda Repblica em 17 de abril de 1970) ou Estamos ameaados perder tudo que temos. FUNAI comete injustia contra nossas famlias. Confiamos autoridadesrevolucionrias (telegrama de Jos Vaz Sobrinho ao Presidente da Repblica em 17 de abril de 1970).

    22 A documentao dos outros postos indgenas da AJMB indica que a situao nestes no diferia muito do reformatrio. No caso especfico do posto encarregadode assistir aos ndios Maxakali, existia no s um destacamento da polcia militar que desde o final da dcada de 60 administrava a rea e os ndios, como tambmo posto passou a receber ndios vindo do reformatrio para trabalhar na rea e cumprir uma espcie de estgio final na sua recuperao/reeducao total.

    Fig.2- Planta do Reformatrio Agrcola Indgena Krenak: (1) almoxarifado, (2) ambulatrio, (3) gabinete mdico, (4) celaindividual, (5) varanda, (6) refeitrio, (7) enfermaria, (8) cbiculos para deteno.

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    23 Relatrio das atividades desenvolvidas no ano de 1971 do Posto Indgena Guido Marlire, 10 de dezembro de 1971.

    24 Relatrio do chefe do PIGM em 29 de junho de 1970 sobre soldado que levou a amante para a rea do posto e tambm pela vila de Crenaque, no zelando pela ... moral e bomandamento do servio neste reformatrio indgena (microfilme 306, planilha 007, fotograma 439, Museu do ndio), sendo pedido sua transferncia por no ter mais ... moralperante os ndios (microfilme 306, planilha 007, fotograma 440). Estas expectativas so idnticas s depositadas nos encarregados do SPI (SOUZA-LIMA, 1995:184-185).

    25 Vale destacar sobre o termo instituio, que apesar da leitura e referncia a GOFFMAN (1974) e FOUCAULT (1977) terem sido fundamentais para aconstruo e encaminhamento desta anlise, no se reala aqui o Reformatrio como unidade em si mesma. Optou-se por explicitar as conexes existentesentre aquela unidade administrativa e as outras os Postos Indgenas bem como as ligaes com as polticas formuladas para as populaes indgenas peloEstado brasileiro como um todo.

    O FUNCIONAMENTO

    No s a gesto, mas tambm o funcionamento doReformatrio Agrcola Indgena Krenak durante osanos da administrao pela Polcia Militar podeser classificado como exemplar. A rotina e asnormas definidas pela chefia da AJMB eramseguidas estritamente pelos funcionrios, eimpostas aos ndios, estando eles em estgio derecuperao ou sendo habitantes da rea, comoos Krenak.As instalaes do PIGM, construdas ainda nadcada de 20 para ocupao do SPI e dos Krenak,encontravam-se em estado precrio quando a AJMBfoi assumida pela Polcia Militar de Minas Gerais,devido no s aos ataques da dcada de 50, mastambm ao abandono decorrente do perodo em queo SPI considerou o posto Guido Marlire extinto (cf.CORRA, 2000). A construo de novas instalaestinha como objetivo adequar o posto indgena aoexerccio das novas funes s quais estava sendodestinado, isto , receber os ndios enviados pararecuperao no reformatrio. Segundo os relatriosdo PIGM, as reformas se realizaram entre os mesesde julho e setembro de 1969, sendo que os ndioscomearam a chegar rea do posto j nosprimeiros meses de 1969.As novas instalaes do PIGM deveriam propiciaraos funcionrios do posto condies para exercersuas atividades recuperadoras, dispondo de reaspara realizar o controle dos ndios no s duranteo perodo em que estivessem realizando aatividade pensada como central para suarecuperao o trabalho ordenado e disciplinado mas tambm durante as refeies e o repouso.Como mostra a figura 2, o reformatrio tambmera dotado de celas individuais e cubculos,destinados a manter presos os ndios quetivessem cometido faltas graves dentro doreformatrio, o que vai contra as tentativasexplcitas do chefe da AJMB de desvincular oreformatrio da idia de priso eaprisionamentos: ... no se trata de uma prisopropriamente. uma espcie de reformatrio paraa reeducao (Jornal do Brasil, 27/08/72).

    O COTIDIANO DO REFORMATRIO

    As atividades dentro do Posto Indgena GuidoMarlire visavam garantir a ordem e a tranqilidade,recuperando o ndio que tivesse se comportado demaneira incorreta (detidos ou no) e reeduc-lo para... ser um ndio bom(Jornal do Brasil, 27/08/72):Desde o princpio do ano os ndios esto sendoorientados, como devem proceder uns com osoutros, como orientarem suas famlias, ensinando-os e encaminhando-os dentro das normas de boaconduta e como viverem. Todos gozam de boasamizades, e esto sempre unidos paradesempenharem suas funes, dentro da medidado possvel, apesar de pobres e humildes23.A reeducao se dava preferencialmente pelainterferncia educativa dos policiais militares narelao com os ndios (detidos ou no), sendo porisso que se exigia dos funcionrios umcomportamento exemplar 24. Os funcionrios daAJMB chegaram inclusive a desempenhar, algumasvezes, a funo de professores do posto, comodestaca o relatrio de atividades do PIGM em 1971:... no temos professores, aquilo que de bom gradonossos mestres nos ensinaram, tambm de boavontade transmitimos a todos os ndios, orientando,educando e mostrando como devem proceder, nodesempenho de suas funes.A interveno do policial tambm implicava queos ndios desenvolvessem atividades queproporcionassem a sua recuperao. A estada noreformatrio visava recuperar os ndios de seusmaus hbitos, reeducar a sua maneira viciada(roubos, vadiagem, embriaguez, etc.) de lidar como mundo, adequando-os a uma nova rotina comhorrios e atividades bem definidas segundo seusfuncionrios ou a instituio ressaltando queduvida-se que o caso especfico do reformatriolocalizado no PIGM fosse uma instituio pordemais autnoma que existisse acima e reveliade seus prprios funcionrios, a denominaoinstituio refere-se aqui s regras definidas apriori como proibio de sada da rea semautorizao ou a ingesto de bebidas alcolicas25.Estas deveriam ser cumpridas, com pena de

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    sofrerem sanes por parte dos funcionrios, taiscomo aprisionamento.A rotina diria imposta aos ndios consistia em: cafda manh no refeitrio; trabalho em atividades noposto, alm de construes, limpeza e conservaoda rea do reformatrio; almoo; retorno aotrabalho; banho; jantar; e repouso. As atividadesdo PIGM consistiam em: horticultura; pomar; roasde milho, feijo, arroz, mandioca e batata doce (10hectares dos ndios em confinamento e 20 hectaresdos Krenak); pecuria e avicultura. No mesmodocumento que continha estas informaes o chefedo PIGM esclarece que a instalao da horta visa... educar o ndio no uso alimentar das hortalias,e que ... estamos terminando a construo de umcampo de pouso de 800 metros com a mo-de-obrados ndios confinados. As refeies e a cozinhaestiveram a cargo de ndias Krenak durante boaparte em que funcionou o reformatrio no PIGM,sendo remuneradas por este trabalho. Sobre oscuidados com a higiene dos ndios, um ofcio docapito Pinheiro esclarece (ordenando) que ...deveis suspender o banho dos ndios confinados,no Rio Doce. A poluio das guas do Rio Doce vemafetando os ndios confinados.A execuo dessas atividades era acompanhadapelos policiais militares, que no s vigiavam ocumprimento das rotinas e atividades dos ndios,mas tambm monitoravam as atitudes ecomportamentos e as traduziam, para o controleda chefia da AJMB, em fichas individuais e relatriosmensais dos ndios confinados no reformatrio. Oscritrios usuais para avaliao do desempenho dosndios eram: a obedincia s normas e aofuncionamento do reformatrio; o desempenho edisposio para o trabalho, e seu comportamento erelacionamento com os outros ndios26.

    OS MOTIVOS DE ENVIO E INTERNAMENTO

    Entre o primeiro envio de ndios para o reformatrio,no dia 24 de janeiro de 1969, at a data detransferncia dos ndios ali instalados (confinados

    de diversos grupos e Krenak) para o novo postoindgena, a Fazenda Guarani, no dia 15 de dezembrode 1972, o Reformatrio Agrcola Indgena Krenakrecebeu um total de 94 (noventa e quatro) ndios,sendo que mais da metade chegou rea do PIGMnos dois primeiros anos de funcionamento27. Essesdeveriam ficar localizados, para cumprir um perodode recuperao, naquela instituio. O perodo depermanncia como no caso dos envios de ndios aoPI Icatu e transferncias para outros postos noperodo do SPI (cf. CORRA, 2000) no eradeterminado a priori pelo rgo tutelar, sendo definidono prprio cumprimento da pena como esclarece ocapito Pinheiro (Jornal do Brasil, 28/02/72):

    No aplicamos pena em Crenaque. O ndio,pelo seu comportamento, quem vaideterminar o seu tempo de permanncia nacolnia. Ali ele receber toda a assistnciapossvel e trabalhar. Se for arredio, violento,ser posto sob vigilncia contnua etrancafiado ao anoitecer. Se no, terliberdade suficiente para locomover-se nacolnia.

    A riqueza de informaes existentes sobre oreformatrio instalado concomitante rea do postoindgena Guido Marlire principalmente secomparado com o material pesquisado e encontradosobre os postos do SPI e da FUNAI e sobre ofuncionamento do reformatrio, no a mesmaquando o objetivo resgatar os dados sobre os ndiosenviados para o reformatrio. As informaes sobreos internamentos so em sua maioria incompletas.Nas fichas individuais dos ndios confinados faltamdados simples como idade, motivo de confinamentoou data de chegada ao reformatrio. Nos processosreferentes aos crimes cometidos pelos ndios, eque teriam motivado o envio ao reformatrio,tambm no se tm maiores detalhes, sendoutilizadas denominaes genricas para justificaro internamento no reformatrio, como homicdio,roubo, embriaguez ou vadiagem. A ausncia dos

    26 Nos relatrios e fichas aparecem listadas as qualidades dos ndios, como: boa conduta e vida, boa amizade, civilizado, trabalhador e esforado, obediente,educado, leal, amigo e/ou respeitador. Junto com o comportamento virtuoso, tambm aparecem os defeitos como: vadio, malandro, viciado, embriaga-do, no obediente, indisciplinado, revoltado, corrompido, ladro, pederasta ativo e passivo, preguioso, atrevido, instigador de ataque ao rebanho daFUNAI, ignorante, lerdo e/ou introvertido. Esses adjetivos compunham o perfil do ndio detido. Os relatrios e fichas, apesar de apresentarem variaesquanto aos adjetivos empregados, e estarem ligados no s a uma avaliao da trajetria do ndio em recuperao, mas tambm referindo-se ao cotidiano nainstituio, obedeciam a um critrio de preenchimento de fichas que pouco se modificava, sendo composto de frases descritivas repetidas em diferentesdocumentos, tais como: No praticou no corrente ms nenhuma indisciplina ou ato que possa desabonar sua conduta ou Trata-se de ndio recuperado. Aaprovao e/ou reprovao dos comportamentos pelos funcionrios do reformatrio e da AJMB, se ligavam diretamente ao perfil do novo ndio que sepretendia fabricar dentro dessa instituio e das virtudes das quais deveriam ser dotados.

    27 Mais precisamente 21 ndios em 1969, 34 ndios em 1970, 19 ndios em 1971 e 13 ndios em 1972.

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    dados completos nos documentos do reformatrio,entretanto, no era indcio de descuido no controledas informaes por parte da administrao doreformatrio.Essa ausncia de dados precisos caracteriza sim,a importncia relativa que esses motivos e oscomportamentos anteriores tinham para asituao do ndio confinado quando de suaentrada no reformatrio. Os dados do quadro 1do conta de que, principalmente, nasinformaes denominadas de sem motivo para oenvio como no caso dos doze guardas ruraisenviados ao reformatrio , a omisso deinformaes no atrapalhava nem a execuo dasatividades recuperadoras, nem a atuao dosfuncionrios do reformatrio.

    ndios delinqentes a outros postos indgenaspara trabalhar de tratamento desses problemasem outros postos e regies atestam estacentralizao da atividade recuperadora peloreformatrio e seus funcionrios. A instituioespecfica para corrigir ndios criminosos acolnia correcional que o regulamento do SPI pedia, tema de diversos documentos e discusses entreos funcionrios daquele rgo tutelar funcionavano interior de um posto indgena e contava com aparticipao dos ndios que l estavam antes datransformao em reformatrio.O envio ao reformatrio tinha um procedimento bsicoque se iniciava com a denncia do(s) ndio(s) ou do(s)incidente(s) pela administrao local (chefe do posto)ou regional (chefe da delegacia regional), e o pedidode soluo para o problema direo da FUNAI.Dentro desse procedimento no estavam includos osndios assistidos pela Ajudncia Minas-Bahia e osguardas rurais indgenas, que nesses casos nopassavam por deciso da direo da FUNAI para seremenviados, sendo remetidos por ordem direta do chefeda AJMB. Aps a definio de sua transferncia parao reformatrio, os ndios eram enviados para a sededa AJMB, e de l escoltados para o reformatrio, paracumprimento de seu estgio recuperador. No se podeesquecer que a recuperao do ndio j era tentadanas reas, com a ameaa do envio ao Krenak e tambmcom medidas como aprisionamento de ndios nospostos e o trabalho forado dos mesmos, desde operodo do SPI (cf. CORRA, 2000).Nos quatro primeiros anos, alm dos nove ndiosKrenak que foram postos em crcere do reformatrio,passaram pela instituio entre ndios detidos eGRINs: 21 ndios Karaj (Gois - GO); 12 Terena (MatoGrosso do Sul - MS); 10 Maxakali (Minas Gerais); 8Kadiwu (MS); 5 Kaiow (MS) e Xerente (GO); 3 Bororo(Mato Grosso - MT), Krah (GO) e Patax (Bahia -BA); 2 Pankararu (Pernambuco - PE), Guajajara(Maranho - MA), Canela (MA) e Fulni- (PE); e 1Kaingang (Rio Grande do Sul - RS), Urubu (MA),Campa (Acre - AC) e Xavante (MT). A diversidade dosmotivos para aprisionar e das origens dos ndiosremetidos para o reformatrio tambm comprovam aamplitude com que era pensada a ao doreformatrio, e servem para revelar algumascontinuidades nos problemas mascaradas sob abandeira da renovao administrativa que era aFUNAI no perodo que j estavam presentes napoca em que atuava o SPI. Motivos semelhantes deenvio de ndios como roubo de gado, homicdios emesmo alcoolismo muito frequentes em postoscomo os do Estado do Mato Grosso do Sul, onde as

    A operao do reformatrio durante os primeirosanos da FUNAI indica que o rgo tutelar haviaconstrudo uma instituio especfica para cuidarda recuperao de ndios. A diversidade equantidade de ndios enviados para instituio eausncia de dados que comprovassem a aplicaode formas mais tradicionais como o envio dos

    (IC) ndio confinado, (K) Krenak, (GC) Guarda Rural Indgenaconfinado, (T) total.

    MOTIVO IC GC K T

    Agresso mulher 1 1 2

    Atritos com chefe do PI 4 1 5

    Embriaguez 18 3 9 30

    Embriaguez e Homicdio 1 1

    Homicdio 15 15

    Problema Mental 1 1

    Prostituio 1 1

    Relaes Sexuais 2 2 4

    Roubo 12 12

    Roubo e Embriaguez 1 1

    Roubo e Pederastia 1 1

    Sada sem autorizao 3 3

    Sem motivo para o envio 9 13 1 23

    Vadiagem 5 5

    Vadiagem e Embriaguez 1 1

    Vadiagem e Uso de drogas 1 1

    TOTAL 71 18 17 106

    Quadro 1Lista de motivos para envio ao reformatrio entre os anosde 1969 e 1972 (CORRA, 2000)

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    disputas e os atritos com fazendeiros da regionormalmente produziam tais resultados28 tambmreaparecem na documentao do reformatrio.Outro antigo problema para a administrao tutelarenvolvia os ndios dos estados do Maranho e deGois, tidos como costumeiros andarilhos ebebedores, e presentes por vrias vezes nos ofciosemitidos pela Seo de Orientao e Assistncia(SOA) do SPI na dcada de 50. Esses ndios, eprincipalmente seus vcios fundamentados nascategorias usuais de vadiagem e embriaguez ,continuavam a preocupar o novo rgo tutelar nofinal da dcada de 60, sendo tratados, ento, comenvio para recuperao no reformatrio.Alm desses antigos problemas da administraotutelar, o reformatrio deveria cumprir asnecessidades da prpria administrao regional,como no caso dos atritos locais, pela posse daterra, entre os ndios Patax e Maxakali, e osocupantes no-ndios que, apesar de no seremrecentes s passam a ter maior impacto na dcadade 60, gerando transferncias para a rea doPIGM. A recepo dos ndios criminososencontrados e detidos pelos GRINs em suas reasde ao, tambm consistia em um dos objetivosda criao do reformatrio, visualizadas pelonmero considervel de ndios Xerente e Karajpara l enviados29.Apesar da ausncia de informaes precisas degrande parte dos ndios nos documentos doreformatrio, algumas histrias pregressas dosndios enviados para reeducao puderam serrecuperadas. Caso dos ndios Patax, enviadospara o reformatrio por atritos com a chefia doPosto Indgena Caramuru/Paraguau30, enfim porproblemas de desobedincia a administraotutelar. Na pesquisa aos documentos do posto,pde-se esclarecer que os atritos dos ndiosSamado Bispo dos Santos e Digenes Ferreira dosSantos no se restringiram aos funcionrios locaisda administrao tutelar, existindo apenasreferncia a problemas com um dos rendeiros darea indgena, Jener Pereira Rocha. Este,inclusive, aps vrias reclamaes financiou osgastos para retirada dos ndios e seu transporteat a sede da AJMB. Quanto a outro ndio Patax,Ded Baena, que at 1958 havia sido auxiliado

    pelo posto sendo na poca considerado comoalgum ... que leva[va] uma vida turbulenta, demaus hbitos o pedido do encarregado do postoem 1969 para retir-lo da rea era motivado pelasdiversas desordens promovidas pelo ndio-problema (como o encarregado do posto oqualificava) e pelos riscos que estaria correndode ser assassinado na rea, o que segundo DIASFILHO (1990:90) ocorreu no reformatrio, quandoo ndio se afogou no rio Doce apesar de serconsiderado exmio nadador.Os homicdios ou ameaas de vingana porhomicdios eram solucionados, tal qual no perododo SPI, com a remoo dos envolvidos para umaoutra rea de ao do rgo tutelar. Ao cometereste tipo de crime, o ndio tinha sua transfernciapara o reformatrio indgena assegurada. Aembriaguez era outro tipo de situao que nonecessitava de maiores justificativas para retiradado ndio da rea indgena. O vcio do alcoolismo jnormalmente considerado um problema, casoestivesse associado a desordens e atritos dentrodos postos indgenas, assegurava a transfernciano s se justificava como tratamento aos viciados,mas como consta nos documentos internos, comomedida ... para servir de exemplo para os demais(...) tambm para os seus parentes beberres.Junto com os ndios retirados de aldeias e postosindgenas, o reformatrio tambm recebiaaqueles que estavam encarcerados nas cidadese em situaes no consideradas pela prpriaFUNAI como normais, como no caso do ndioFulni-, Jos Celso Ribeiro da Silva, ento com19 anos, preso por vadiagem e porte de maconha.Morador da cidade do Rio de Janeiro h 12 anose aps vrias detenes em delegacias da cidadese encontrava detido em um presdio do Estadoda Guanabara. Sua transferncia para oreformatrio foi articulada pela FUNAI, e apsdescobrirem seu grupo de origem31, ele foiencaminhado em junho de 1969 pararecuperao. Alm desse exemplo, outrastrajetrias de ndios detidos nas cidadesatestam que o Reformatrio Agrcola IndgenaKrenak desempenha um papel central naadministrao dos ndios como a instituio ondedeveriam ser localizados aqueles indivduos,

    28 Para relatos sobre a situao dos postos do Estado do Mato Grosso do Sul ver os trabalhos de BEZERRA (1994) e SOUZA-LIMA (1995).

    29 A existncia de policiamento nas reas indgena parece iniciar tambm as detenes e punies.30

    Esta a denominao que utilizada nos documentos da AJMB, indicando que os antes dois postos foram transformados em um s.31 Segundo os relatrios, o ndio se auto-denominava Xukuru do Xingu (microfilme 306, Museu do ndio).

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    identificados como indgenas pelo rgo tutelar,que estavam com problemas judiciais ou policiais32.Os ndios alm de serem mantidos sobre estritavigilncia e avaliao os Krenak inclusive dentrodo reformatrio eram monitorados pelaadministrao, verificando se a instituio eprincipalmente os ndios estavam se comportandoa contento. Impedindo, assim, que pequenos desviosde conduta se transformassem em repeties dasfaltas e crimes que geraram o recolhimento aoreformatrio. A indisposio para o trabalho eratomada no s como um indicativo da poucavontade do ndio de se recuperar, mas tambm demanter-se na vadiagem, realizando roubos ou emestado de embriaguez, crimes que levavam aoenvio para o reformatrio. O no cumprimento dasregras ou das ordens dadas pelos funcionriospoderia indicar uma falta como sair semautorizao do posto ou manter relaes sexuaiscom outro ndio ou mesmo indicar possveisagresses e crimes, motivadas pela inexistncia deum relacionamento civilizado com os outros ndios.O controle, das relaes sexuais e das sadas semautorizao dos ocupantes da rea indgena, tambmera elemento importante da ao tutelar,preocupao presente j no perodo do SPI e aindarecorrente na administrao da FUNAI. Dentro darea do PIGM, o controle no se resumia aos ndiosdetidos. A sada sem autorizao do PIGM geravaproblemas e detenes tambm para os Krenak queporventura se ausentassem do posto semconsentimento dos funcionrios, como no caso dondio Augusto Paulino que por ter sado do postosem autorizao, ficou preso na cela do reformatrio.Todavia, a sada do posto dos ndios em estgio dereeducao, era caracterizada como fuga, e paracaptura do fugitivo eram mobilizados no s osfuncionrios policiais do reformatrio, mas tambmparticipavam ndios confinados, guardas ruraisindgenas e policiais civis e militares do resto do

    Estado. A restrio das sadas obedecia aos desgniosdos funcionrios da AJMB, j que entre osdocumentos do reformatrio existem menes asadas autorizadas, tais como a ida de cinco ndios ordenada pelo chefe da AJMB , ... adestrados emarco e flecha, sede do Clube dos Caadores emBelo Horizonte para realizarem uma demonstraode suas habilidades. As relaes sexuais tambmeram controladas, gerando repreenses e detenesdos ndios envolvidos, principalmente quando umdos envolvidos era um ndio confinado.O cotidiano dos ndios e mesmo as poucaspossibilidades de liberdade passavam pelo bomrelacionamento, desempenho e/ou avaliao frenteaos seus gestores. Dentro da rea do PIGM existiaum forte esquema de policiamento interno (policiais,guardas indgenas e mesmo outros ndios da rea)e externo (polcia do Estado de Minas Gerais) quetornava as fugas se no impossveis, impraticveis.Todos os ndios que tentaram fugir do reformatrioforam recapturados. Mesmo os ndios (Krenak) queestavam trabalhando fora do PIGM, quandoretornavam para realizar visitas, eram proibidos desair da rea por ordens de Pinheiro.Por isso, a aquisio de qualquer tipo de ganho comorelaxamento da deteno possibilidade de sair da reado reformatrio cumprindo alguma misso para aAJMB, como aquisio de mercadorias ouacompanhando ndios detidos ou mesmo demudana de status, de detido a funcionrio doreformatrio, passava pela adequao do ndiointernado ao perfil que os funcionrios eprincipalmente a chefia da AJMB tinha como ideal33.Dentro das benesses que o bom relacionamentocom os policiais militares propiciava, apossibilidade de virar Guarda Rural Indgena, eraa mais ambicionada pelos ndios detidos34. Tornar-se um GRIN permitia ao ndio detento maiorliberdade e melhores condies dentro doreformatrio, j que os guardas rurais tinham um

    32 O ndio Canela Jos Rui foi um destes indivduos: detido pela polcia de Braslia/DF e apesar de j ter sido considerado ... j emancipado (microfilme 306, Museu dondio) pelo rgo tutelar, aps gestes da FUNAI, foi enviado ao reformatrio para se recuperar de sua vadiagem e embriaguez. Sua transferncia era vista com bons olhospelos policiais do PIGM, pois sua condio de ndio emancipado conhecendo as regras do mundo civilizado permitia sua ... fcil recuperao moral e social(microfilme 306, Museu do ndio), mesmo motivo que levou a direo do reformatrio a colocar o ndio Jos Celso Ribeiro no desempenho de funes na instituio. Ondio Campa Oscar de Melo Sara tambm teve problemas no meio urbano e foi beneficiado com o envio ao Reformatrio Krenak. Seu caso especial, j que o motivoexposto nos documentos da instituio indicam o internamento por vadiagem, no existindo nenhuma meno mais precisa de sua deteno. Segundo o sucessor do capitoPinheiro, Itatuitim Ruas, o envio de Oscar se deu aps um desentendimento do ndio com um oficial do exrcito, que solicitou por isso sua transferncia.

    33 A inadequao implicava no movimento contrrio, o que ocorreu com o, j mencionado, ndio Jos Celso Ribeiro da Silva. Ao chegar ao reformatriotransferido do Estado do Rio de Janeiro, foi colocado como funcionrio, podendo sair do posto a servio e dormir no almoxarifado da instituio. Pela funoque exercia, teve acesso sua pasta do reformatrio (contendo os relatrios e fichas de avaliao) e, quando descoberto foi destitudo de suas funes, rebelou-se contra os policiais e tentou a fuga. Por estas atitudes, tornou-se o exemplo para o chefe da AJMB do tipo de problema que tais liberdades de circulao dosndios poderiam gerar (microfilme 306, Museu do ndio).

    34 Nos relatrios mensais enviados chefia da AJMB apareciam os pedidos como ... seu desejo ser Guarda Rural Indgena ou ... ansioso para ser colocadocomo Guarda Rural (microfilme 306, Museu do ndio).

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    status diferenciado dos outros ndios e valorizadopelos policiais militares, seus professores. Exercera funo de guarda rural no reformatrio implicavaem no trabalhar nas atividades programadas basicamente trabalhos braais ficandoencarregado apenas de vigiar sua execuo pelosndios detidos; receber um salrio e dispor demelhores condies de acomodao e alimentaoque os outros ndios; sair com maior freqnciae facilidade da rea indgena, alm de no estarsujeito aos rigores e intensidade das puniesaplicadas pelos funcionrios. Mesmo os guardasindgenas enviados para um perodo dereenquadramento, apesar de terem suas atitudese comportamentos vigiados como os ndiosconfinados, ficavam isentos dos trabalhosbraais, exercendo somente a funo de guardado reformatrio.A transformao dos detentos em funcionrios emais especificamente em GRINs, no pode servista s como um movimento partindo dos ndiosna busca por alcanar melhores condies comos policiais militares. O estabelecimento derelaes de amizade e aliana com os ndios eratanto o tipo de relao considerada como ideal,para o reformatrio, como tambm uma maneirados funcionrios estenderem um controle maiorsobre os ndios, contando com sua colaboraopara execuo de suas tarefas de controle evigilncia35. O mtodo de seleo dos futurosGRINs se dava, muito provavelmente, atravsdestas relaes de amizade e confianaestabelecidas entre ndios e policiais militares,como se v nos casos dos ndios Loureno Garese Antonio Karaj36. Detidos para cumprirem oestgio de recuperao, parecem alcanar

    gradativamente a confiana dos funcionrios comseu comportamento adequado e interessado,passando a desempenhar funes e mediar asrelaes dos ndios detidos com os policiais. Adisponibilidade para a cooperao e o trabalhopossibilitaram, ao que tudo indica, que estesndios fossem designados como GRINs37.

    A SADA DA POLCIA MILITAR DA ADMINISTRAO TUTELAR

    Tanto o convnio com a Polcia Militar de MinasGerais como o Reformatrio Agrcola IndgenaKrenak teriam funcionado segundo asexpectativas da Ajudncia Minas-Bahia e daFundao Nacional do ndio at 1972, quandoaparecem os primeiros sinais de desgaste entre aadministrao praticada pela AJMB e a polticapretendida pelo rgo tutelar38. Nos relatrios doreformatrio no perodo, tambm comeam aaparecer as primeiras menes a problemas naassistncia aos ndios, com a falta de alimentos eroupas, inclusive com a suspenso das atividadesnormais do reformatrio39. Esses problemasrelacionavam-se no s com os atritos entre asadministraes central e regional do rgo tutelar,eles tambm indicavam a pouca necessidade dese manter a rea, j que se estudava atransferncia dos ndios para outro local. Desde1970, com a vitria da FUNAI em sua ao dereintegrao de posse da rea do PIGM, osposseiros da rea haviam se mobilizado paraevitar sua retirada da rea e buscar uma outrasoluo para a questo, com a transferncia dosndios. As gestes dos invasores incluram o enviode telegramas ao Presidente da Repblica e apublicao de documentos que atestavam a quaseinexistncia de ndios na rea do posto40.

    35 Esse parece ser o caso especfico da advertncia no foram presos no xadrez porque suas roas precisam ser capinadas , que o mestio Krenak Bernardino Pereirade Oliveira e o ndio Krenak Joo Batista de Oliveira receberam por se ausentar do PIGM sem autorizao no dia 19 de outubro de 1971. A advertncia ocorreu apsAntonio Karaj ter chamado a ateno dos ndios da irregularidade da ao e a denncia da sada dos dois ao chefe do posto (microfilme 306, Museu do ndio).

    36 Loureno Gares primeiro exerceu funo no remunerada dentro do PIGM, como adestrador de ces (19/06/70), em 17/3/72 includo como GRIN e passa a trabalharno policiamento da rea indgena. Antonio Karaj j no constava como ndio detido no documento de 24/10/69, depois atua como GRIN j em 05/08/72, sendo porltimo chefe de disciplina da casa do ndio confinado em estgio de reeducao em 13/06/73, j na Fazenda Guarani (microfilmes 306 e 307, Museu do ndio).

    37 A adequao e cooperao com as normas e o funcionamento do reformatrio esto ligados tambm ao outro GRIN formado na rea, Joo Batista de Oliveira(Krenak), que inicialmente era tido como elemento ... insuportvel pelas desobedincias que vem cometendo (microfilme 306, Museu do ndio) sendodetido duas vezes por embriaguez , depois parece conquistar a confiana dos funcionrios e a funo de GRIN.

    38 Segundo um relatrio de viagem do superintendente da FUNAI ao Estado de Minas Gerais, de 29 de fevereiro de 1972, um dos motivos para tal viagem erarealizar uma reprimenda ao chefe da AJMB, capito Pinheiro, a pedido do presidente do rgo tutelar, devido a sua transferncia nas negociaes entre ogoverno do Estado da Bahia e a FUNAI, sobre a transferncia dos Patax.

    39 Como informa o relatrio de 28 de janeiro de 1972 suspendendo os ndios de trabalhos braais por falta de comida (microfilme 306, planilha 009, fotograma804, Museu do ndio) e o pedido de autorizao de sada de 25 de novembro de 1971, para os ndios venderem artesanato em Belo Horizonte (microfilme 306,planilha 009, fotograma 724, Museu do ndio).

    40 Caso do memorial entregue ao Presidente da Repblica, Ministro do Interior, Comandante da 4a Regio Militar e Presidente da FUNAI Os posseiros de Crenaquee a terra que cultivam: o fato, o direito e o apelo , onde o advogado dos posseiros argumentava que das tribos de crenaques [sic] e pojichs, da regio, restamapenas dois representantes, que so irmos, j idosos (Belo Horizonte, 1970), apelando tambm ao aspecto produtivo dos posseiros e lealdade ao governo militar.

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    As primeiras iniciativas do chefe da AJMB, jem 1970, visavam transferir os ndios para umparque florestal situado no municpio de CoronelFabriciano, prximo capital do estado e porisso as reformas do restante da rea foramsuspensas. Aps dois anos, em que os ndiospermaneceram no Posto Indgena Guido Marlire,a rea que foi efetivamente disponibilizada parareceber os ndios transferidos do PIGM, era umapropriedade da Polcia Militar Estadual aFazenda Guarani que foi doada para a FUNAI,com objetivo que esta repassasse a antiga reano municpio de Resplendor para o governoestadual e esse aos posseiros. A FazendaGuarani, antiga fazenda produtora de caf nacidade de Carmsia e dotada de infra-estruturaconsidervel se comparada aos postos indgenasda FUNAI (65 prdios, luz eltrica, etc.), j eraocupada por 29 famlias de funcionrios daPolcia Militar (381 pessoas) quando os 36Krenak e 19 ndios confinados l chegaram.Nessa nova rea, onde seria, segundo a prpriaFUNAI aplicada e ampliada ... a experinciaadquirida no Krenak, possibilitando no srecuperar, mas educar aqueles ndios para aintegrao nacional e o trabalho41.A transferncia foi realizada em 15 de dezembrode 1972 sem que os Krenak soubessem de suavitria judicial, e segundo relatos colhidos porSOARES (1992:136), essa teria se realizado nos com o uso da fora fsica com os ndiosindo algemados mas com a justificativa de queo PIGM seria reformado para que os Krenakpudessem retornar rea do posto. O retornos se efetivou aps oito anos. Os relatrios edocumentos encontrados sobre a FazendaGuarani apontam que o posto continuou afuncionar com o suporte de policiais militares

    e de GRINs para o controle e vigilncia da rea edas pessoas que l estavam, buscando arecuperao dos ndios:

    Esses indivduos indgenas so para aliencaminhados em decorrncia de uma praxeadotada pela FUNAI, como medida de correoa infraes da ordem nacional e tribal. Soatualmente muito bem tratados, vivendo emalojamento (Hotel do ndio) de timo padro.(...) estes confinados consomem quase atotalidade da ateno do Posto e da AjudnciaMinas-Bahia, parecendo constituir o principalobjetivo do Posto42.

    O desenvolvimento, ou recuperao, econmica emoral dos ndios l instalados ainda era o grandeobjetivo da atuao da FUNAI, e as prticas decontrole de ingesto de bebidas alcolicas,relacionamentos (principalmente sexuais43) esadas do posto permaneciam como critriosimportantes no cotidiano e destacadas nosrelatrios e nos motivos para a deteno dosndios. Alm desses elementos j presentes nofuncionamento do reformatrio, somava-se paracaracterizao do desagrado dos ndios convivncia forada com outros gruposindgenas44. As transferncias desses ndios foramtratadas como tentativas de solucionarproblemas fundirios existentes em outras reasda Ajudncia Minas-Bahia45, porm geraramnovos problemas, perceptveis no s pelos ofciosdos funcionrios da FUNAI, mas tambm pelospedidos de transferncia de alguns Krenak parao Posto Indgena Vanure no Estado de So Paulo,ou mesmo a fuga para outras cidades prximasao rio Doce. O interessante dessas fugas queelas no se refletiram em perseguies oucapturas, muito provavelmente por ser o retorno

    41 Essa deveria ser transformada em: ... um centro de formao de monitores indgenas encarregados de ministrar cursos prticos de formao de mo-de-obras tribos consideradas integradas, tais como capatazia, sapateiros, tratoristas, lavradores, carpinteiros, mecnicos, tcnicos em laticnios, curtumes, motoristas,etc. (Boletim Informativo FUNAI, ano 1, n.4, 1972:23). interessante notar que a necessidade de formar (capacitar) ndios era e ainda hoje um problemasrio nas comunidades indgenas em que se pese a enorme mudana no que hoje se concebe como capacitao. Para um panorama atual desses problemas naatualidade e de seus desdobramentos, ver o relatrio do Seminrio Bases para uma nova poltica indigenista, realizado no Museu Nacional em 1999, ondeencontram-se importantes depoimentos e contribuies anliticas sobre este temtica.

    42 Relatrio do grupo de trabalho enviado pela FUNAI Fazenda Guarani logo aps a sada do capito Pinheiro da chefia da AJMB, em 10 de abril de 1973.

    43 O ndio Jos Alfredo de Oliveira (Krenak) de 27 anos, almoxarife interino do posto ao ser flagrado mantendo relaes sexuais com a ndia Maria do Carmo(Pankararu) de 15 anos, foi detido pelos funcionrios do posto em 2 de abril de 1973. No mesmo telegrama o chefe do posto informa que os ndios queremse casar (microfilme 307, Museu do ndio), sendo que no dia 19 do mesmo ms os ndios j esto devidamente casados.

    44 Os grupos transferidos para a Fazenda Guarani foram primeiro 32 ndios Guarani e 12 ndios Tupiniquim, do Estado do Esprito Santo que l chegaram em 8de agosto de 1973, e depois os Patax do Estado da Bahia, que chegaram rea em 1974 sendo que eles j haviam anteriormente sido enxotados para forada rea onde estavam localizados pela Polcia Militar do Estado da Bahia em 1956 e retirados da rea do Parque Florestal Monte Pascoal em 1971.

    45 Os problemas dos ndios Patax estavam em torno da disputa pela rea do Parque Nacional Monte Pascoal com o Instituto Brasileiro de DesenvolvimentoFlorestal (IBDF), litgio que se estende at os dias de hoje, tal como a situao dos ndios Guarani e Tupiniquim em torno das terras disputadas com a EmpresaAracruz Celulose no Estado do Esprito Santo.

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    rea do PIGM a nica ameaa s decises dorgo tutelar, que deveria ser evitada pela AJMB,e a ida para cidades como Colatina (ES) implicarque os ndios se integrassem e trabalhassem(MATOS, 1996:110).Apesar dos esforos em procurar diferenciar aFazenda Guarani do reformatrio existente narea do Posto Indgena Guido Marlire, a reacontinuou cumprindo objetivos similares, comoser ... um centro de reeducao para ndiosdesajustados. O seu funcionamento aindarespondia a preceitos e prticas semelhantes aopassado, como o envio de 11 ndios para a rea,alm daqueles ndios confinados transferidos doPIGM para a nova rea, nos dois anos seguintes(1973 e 1974). Nesses anos foram feitas 35detenes dentro da Fazenda Guarani, sendo quedez delas foram de no-ndios. Os motivos de enviodos ndios tambm se mantinham, centrados nosproblemas da embriaguez dos ndios e/ouacusaes de desordem nas suas reas de origem,no esquecendo tambm os homicdios.A necessidade de realizar mudanas motivou anomeao de um novo chefe da AJMB, ItatuitimRuas ndio Juruna e antigo funcionrio do SPI em maio de 1973 como soluo para os problemasque tinham ocorrido na administrao da PolciaMilitar. O administrador possua uma ficha picapara os conhecedores (defensores) do indigenismooficial: salvo da morte por Rondon, estudou com ame de Darcy Ribeiro e integrou o grupo defuncionrios do SPI, chefiados pelo sertanistaFrancisco Meireles, que pacificou os ndios Xavanteem 1953. Segundo relato de Itatuitim Ruas(entrevista concedida ao autor em 1999), suanomeao para AJMB fazia parte de uma estratgiapara torn-lo presidente da FUNAI. Junto com amudana de chefia, foi tambm divulgado naimprensa que os ndios que haviam sido levadospara cumprirem suas penas, estariam retornandos suas terras de origem.Os projetos que se tentou implantar ou foramimplantados posteriormente pela FUNAI nadcada de 70 para resolver os problemas dosndios da regio, como o projeto da Chcara-ambulatrio nas proximidades da sede da 11aDelegacia Regional (antiga AJMB) na cidade deGovernador Valadares, ou a transformao emCentro de Treinamento de Lderes ComunitriosTribais da Fazenda Guarani, alm de recorreremaos mesmos artifcios de colocarem os ndios paratrabalhar e assim solucionarem seus problemas

    de alcoolismo, vadiagem ou revolta, nomodificaram a situao dos ndios.

    CONCLUSO

    A situao entre os ndios tutelados pela AJMB,que em meados de 1975 se tornaria a 11a DR abrangendo os estados de Minas Gerais, Bahiae Esprito Santo , no parece ter se modificadomuito, em termos dos projetos aplicados, oueficcia da ao tutelar, no final da dcada de70. Nos relatrios sobre os Krenak ou sobre osMaxakali retratam os mesmos problemas dedesestruturao do grupo, atritos com moradorese desamparo assistencial que tinham motivadoas vrias mudanas promovidas anteriormentepelo rgo tutelar. A experincia de aprisionarou transferir ndios para a rea onde estavamlocalizados os Krenak, apesar de tida comoacabada no incio da dcada de 70 1972, 73ou 74, dependendo da verso apresentada pelaFUNAI permaneceu, confirmada pelastransferncias de ndios criminosos para aFazenda Guarani at o final da dcada de 70. Acontinuidade dessa maneira de administrar area onde estavam localizados os Krenak centrado na vigilncia e coero dos ndiosconsiderados criminosos foi aos poucos, apsfundamentalmente a sada do capito Pinheiro,passando a no ser mais a tnica principal daadministrao da FUNAI na regio. Isto se notanos relatrios encontrados sobre a situao daregio e sobre as avaliaes das medidas a seremtomadas para os ndios, que vo mudando detom com passar dos anos (cf. CORRA, 2000).Segundo os documentos encontrados at pelomenos o ano de 1981, o rgo tutelar no deixoude enviar ndios criminosos ao Posto IndgenaFazenda Guarani. Apesar da manuteno desuas funes correcionais, as origens dos ndiostransferidos do margem a que se entenda queo PI Fazenda Guarani passou a servir nosmoldes de alguns postos indgenas do perododo SPI como posto indgena para onde eramenviados os ndios localizados na regio, paracumprir as penalidades impostas pela FUNAI.O posto no funcionava mais como uma unidadeadministrativa especial para o recebimento dosndios, por mais que se considere a prpriatransferncia dos ndios para l como umamaneira de se penalizar os ndios l localizados.Segundo MATOS (1996:86) a Fazenda Guarani

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    populaes indgenas, em especf ico osfuncionrios do rgo tutelar.A excepcionalidade ou mesmo a violncia singular ou excessiva evocadas, tanto para asatividades do Reformatrio Agrcola IndgenaKrenak como para a Guarda Rural Indgenadesaparecem no exame mais detido daadministrao desenvolvida pelo SPI ou pelaprpria FUNAI. Mesmo as prticas vistas comomais autoritrias, como a deteno, os trabalhosforados e agresses (fsicas e verbais) no soprivilgio do perodo ou da administraodesenvolvida nos anos do reformatrio ou daGRIN, estando presentes freqentemente nosdocumentos e nos relatos de outros perodos daao tutelar.

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