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ClAudia Clemente A PRETO e BRANCO

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A PRETO e BRANCO

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O LEITOR

Parou uma vez mais diante da montra do alfarrabista. Passara por ali o ano inteiro a caminho da faculdade, mas nunca se atrevera a entrar. Estava um calor insuportável na rua e dessa feita ela decidiu empurrar a velha porta descascada. O som arrastado de uma campainha cortou o calor da tarde. O interior da loja era escuro e cheirava levemente a mofo. Deu uns passos ao acaso e sobressaltou-se quando um enorme gato cor-de-laranja se atravessou no seu caminho. Disse alto «boa tarde», mas não obteve resposta. O único som que se ouvia além da sua respiração era o de um relógio que marcava o passar do tempo na escuridão. Passeou devagar pela sala deserta, deixando que os seus olhos se habituassem pouco a pouco à ausência de luz. Olhou fascinada para as estantes cobertas de pó que forravam as paredes de cima a baixo. Estavam repletas de livros de diversos tamanhos, cores e formatos. Tirou os seus óculos redondos da pequena caixa onde os costumava guardar, pousou-os na ponta do nariz e aproximou-se, curiosa. Passou os dedos pelas lombadas gastas, lendo os títulos em voz alta. Alguns eram-lhe familiares, outros meros desconhecidos. Na sua lenta descoberta da loja acabou por chegar a uma pequena porta de vidro fosco. Não resistiu a empurrá-la. Para sua surpresa, ela abriu-se e deixou a descoberto um longo corredor, também

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ele revestido a livros de ambos os lados. Avançou devagar até chegar diante de uma outra porta entreaberta. Espreitou pela abertura. Um homem de meia idade, sentado numa velha poltrona, lia diante de um espelho de moldura dourada, à luz ténue de um candeeiro de pé. Tinha uns olhos muito azuis e olheiras profundas. Ela sorriu, deu as boas tardes e viu-o empalidecer. Ele disse então que quase se tinha cansado de esperar. Que já há vários anos se sentava ali todas as tardes a ler e a aguardar que chegasse. Sabia que acabaria por aparecer. Confusa e algo assustada, ela olhou para trás de si. O corredor desaparecera. A escuridão era agora total. Acordou. De novo aquele sonho que já lhe era tão familiar. Esfregou os olhos, espreguiçando-se. À sua frente um enorme espelho de moldura dourada devolvia-lhe a imagem de um homem grisalho de meia-idade, olhos azuis e olheiras escuras. Sorriu ao seu re"exo na penumbra da tarde. Acomodou-se na velha poltrona onde adormecera, acendeu o candeeiro de pé e preparou-se para continuar a leitura interrompida. Nesse preciso momento a porta entreabriu-se e a cara de uma jovem mulher de óculos redondos apareceu a espreitar. Pedindo licença, ela entrou com um sorriso.