A POSSIBILIDADE DE UMA APRENDIZAGEM MAIS SIGNIFICATIVA … · Palavras-chave: Internacionalização...
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ISSN 2176-1396
A POSSIBILIDADE DE UMA APRENDIZAGEM MAIS
SIGNIFICATIVA POR MEIO DA INTERNACIONALIZACÃO DO
CURRÍCULO NA PERSPECTIVA INTERCULTURAL
Fernanda Souza1 - UNIDAVI
Alessandra de Fátima Giacomet Mello2 - UNIVALI
Isaura Maria Longo3 - UNIVALI
Eixo – Cultura, Currículo e Saberes
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Questões sobre a internacionalização dos currículos dos cursos de graduação de Instituições
de Ensino Superior (IES) brasileiras emergem há tempo nos processos de atualização de
projetos pedagógicos de curso. Neste sentido, compreende-se a importância da inserção de
componentes curriculares em língua estrangeira nas matrizes dos cursos, bem como o envio
de alunos e professores para a mobilidade internacional. Entretanto, considera-se que a
internacionalização do currículo poderia alcançar um nível mais profundo no processo de
ensino e de aprendizagem de alunos e professores com o uso de uma perspectiva intercultural.
Neste contexto, em 2016, desenvolveu-se uma atividade de integração entre educação
multicultural e ensino com o objetivo de vivenciar a integração da perspectiva intercultural na
primeira versão do processo de internacionalização de uma disciplina de um curso de
graduação. Para tanto, selecionou-se a disciplina Recursos Tecnológicos na Educação,
presente no currículo do curso de Licenciatura em Educação Física de um centro universitário
localizado na região do Alto Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina. Como apoio
metodológico utilizou-se os cinco estágios para o processo de internacionalização do
currículo sugeridos por Betty Leask: revisar e refletir; imaginar; revisar e planejar; agir; e
avaliar. Devido restrição de laudas optou-se por não apresentar a fase de avaliação. Como
aporte teórico utilizou-se: Ausubel (1980), Candau (2012), Leask (2009, 2015), Luna (2016) e
Santos (2002). O novo desenho da disciplina – reelaborada na perspectiva intercultural –,
viabilizou a ancoragem de conceitos importantes da mesma nos conhecimentos e nas
vivências prévias dos alunos, o que concedeu à disciplina um nível de discussão mais
profundo e significativo. Nesse processo, situações multiculturais emergiram no desenrolar da
1 Mestre em Educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Professora do Centro Universitário
para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí (UNIDAVI). Doutoranda no programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: [email protected]. 2
Mestre em Educação pelo UNICS – Palmas-PR. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação
(UNIVALI). E-mail: [email protected]. 3
Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade do
Vale do Itajaí (UNIVALI). Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação (UNIVALI). Professora
nos cursos de comunicação da UNIVALI. Participa do Grupo de Pesquisa na linha de pesquisa Políticas Públicas
em Educação Básica e Superior. E-mail: [email protected].
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disciplina o que foi essencial para viabilizar a perspectiva intercultural, pois se compreendeu
que é por meio da possibilidade de infusão das questões multiculturais que nasce a prática da
mediação intercultural docente.
Palavras-chave: Internacionalização do Currículo. Perspectiva Intercultural. Ancoragem.
Conhecimentos Prévios. Aprendizagem Significativa.
Introdução
No ano de 2005, uma Instituição de Ensino Superior (IES), localizada na região do
Alto Vale do Itajaí, Santa Catarina (SC), constituiu um setor responsável pelas relações
internacionais da entidade. Desde então, a IES vem desenvolvendo atividades diversas
(Figura 1) visando apoiar o processo de internacionalização do currículo dos seus cursos de
graduação.
Figura 1 – Marcos Históricos do Processo de IoC da IES
Fonte: Elaborado a partir de informações da coordenação de Relações Internacionais da IES
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Ainda, no ano de 2016, a IES estreitou laços com o professor e pesquisador José
Marcelo Freitas de Luna4 e inseriu, em suas discussões, a possibilidade de internacionalização
do currículo (IoC) na perspectiva intercultural, pois o pesquisador discorreu sobre a
importância da “aproximação entre duas grandes e crescentes áreas de investigação e de
formação, a internacionalização do currículo e a educação intercultural.” (LUNA, 2016, p.
37).
Compreendeu-se, com fundamento em Leask (2009, p. 209, tradução nossa), a
internacionalização do currículo, em um primeiro momento, como “a incorporação de uma
dimensão internacional e intercultural no conteúdo do currículo, bem como nos processos de
ensino e aprendizagem e serviços de apoio de um curso. Entretanto, posteriormente, no ano de
2015, adotou-se o conceito – refinado pela autora – de que a internacionalização do currículo
é a incorporação de “dimensões internacionais, interculturais e/ou globais no conteúdo do
currículo, bem como nos objetivos de aprendizagem, nas atividades de avaliação, métodos de
ensino, e serviços de apoio de um curso” (LEASK, 2015, p. 9, tradução nossa).
Diante desse contexto, realizou-se, no ano de 2016, uma atividade de integração entre
educação multicultural e ensino ora apresentada, com o objetivo geral de vivenciar a
integração da perspectiva intercultural na primeira versão do processo de internacionalização
de uma disciplina de um curso de graduação. Para tanto, selecionou-se a disciplina Recursos
Tecnológicos na Educação, presente no currículo do curso de Licenciatura em Educação
Física de um centro universitário localizado na região do Alto Vale do Itajaí, no estado de
Santa Catarina (SC).
Vislumbrando uma possibilidade
Durante o desenrolar da disciplina Internacionalização do Currículo na Perspectiva
Intercultural, cursada no segundo semestre de 2016, no Doutorado em Educação, da
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), se fez tentativas de tecer discussões com o Pró-
reitor de Ensino (PROEN) do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do
4 Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo (1999), com estágio sanduíche na Universidade de
Cambridge (Inglaterra); professor e pesquisador vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), com publicações na área de Internacionalização do Currículo na
Perspectiva Intercultural; investigador do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais da
Universidade Aberta de Portugal.
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Itajaí (UNIDAVI)5 sobre a possibilidade de a instituição qualificar o processo de
internacionalização curricular para além da inserção de disciplinas em língua estrangeira nos
cursos de graduação, ou seja, na perspectiva intercultural. O pró-reitor, munido de
objetividade, questionou: “como esse novo tipo de internacionalização se faz na prática?”.
Na tentativa de responder a tal questionamento, procurou-se defender a ideia da
necessidade da elaboração de um projeto de formação pedagógica que atingisse, em um
primeiro momento, todos os gestores envolvidos com a área de ensino da IES, ou seja, reitor,
vice-reitor, pró-reitor de ensino, coordenador de relações internacionais, assessores
pedagógicos da pró-reitoria de ensino e coordenadores de curso de graduação, que fariam o
exercício de vislumbrar a possibilidade de internacionalizar suas próprias disciplinas, a partir
da avaliação e discussão de seus próprios planos de ensino, acompanhados pelo professor
Luna como formador.
Entretanto, o questionamento do pró-reitor de ensino persistiu no sentido de, primeiro,
compreender como isso poderia ser viabilizado na prática antes de dispender recursos
financeiros para um projeto de formação. Assim, na tentativa de contribuir com tal
compreensão, se fez o “autodesafio” de iniciar o processo de internacionalização na
perspectiva intercultural de uma das disciplinas que se ministrava e que seria executada da
metade do segundo semestre de 2016 até o final do mesmo ano: Recursos Tecnológicos na
Educação.
Para viabilizar a reelaboração da disciplina Recursos Tecnológicos na Educação, se
fez uso dos cinco estágios para o processo de internacionalização do currículo (Figura 2)
sugerido por Leask (2015).
Conforme Figura 2, Leask (2015, p.42) apresenta como os cinco estágios necessários
para a internacionalização do currículo: revisar e refletir; imaginar; revisar e planejar; agir; e
avaliar. Para execução desses estágios, a mesma autora apresenta ainda um instrumento
chamado Questionário de Internacionalização do Currículo (QIC).
5 UNIVALI e UNIDAVI, por serem coirmãs na Associação Catarinense das Fundações Educacionais (ACAFE),
mantém parceria na concessão de bolsas e descontos em mensalidades de seus programas de mestrado e
doutorado, o que acaba por aproximar ainda mais as IES em torno da possibilidade de viabilizar projetos comuns
e troca de experiências.
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A disciplina Recursos Tecnológicos na Educação no contexto do curso de Educação
Física da UNIDAVI e o processo inicial de internacionalização do currículo
O curso de Educação Física foi criado na UNIDAVI por meio do Parecer CONSUNI
Nº 02, de 22 de abril de 2005, para ingressantes a partir do segundo semestre de 2005, com 50
vagas semestrais autorizadas. O primeiro Projeto Pedagógico de Curso (PPC) foi criado no
ano de 2006, e desde então, foi alterado/atualizado quatro vezes (2008, 2010, 2012, 2017).
Quanto à disciplina Recursos Tecnológicos na Educação, encontra-se nas matrizes
curriculares de todas as licenciaturas da UNIDAVI, geralmente constituída por 36 horas/aula
(o que corresponde a 30 horas/relógio).
Após o primeiro plano de ensino, a disciplina mudou de nome duas vezes: Recursos
Tecnológicos e de Comunicação e, posteriormente, Recursos Tecnológicos na Educação,
mantendo a organização geral descrita no primeiro plano de ensino.
Por questão de restrição de laudas, nesse relato não será apresenta a fase de avaliação,
desta maneira apresenta-se a seguir quatro das cinco fases tomadas como procedimento
metodológico.
Fase de revisão e reflexão
A primeira fase do processo – Revisão e Reflexão – diz respeito a uma espécie de
diagnóstico do grau de internacionalização do currículo. Nessa fase, a reflexão pode ser
Figura 2 – O processo de Internacionalização do Currículo
Fonte: Leask (2015, p. 42).
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desenvolvida por meio da pergunta: “No curso/unidade em que você é responsável, até que
ponto a forma de organizar o processo de ensino e aprendizagem ajuda a todos os alunos a
desenvolver conhecimentos e habilidade internacionais e interculturais? (LEASK, 2015, p. 44,
tradução nossa).
Convém frisar que Leask (2015) recomenda a participação do corpo docente e do
coordenador de curso nessa fase. Porém, como a atividade abrange, de maneira experimental,
a IoC apenas em uma das disciplinas do currículo do curso, optou-se por perpassar por todas
as cinco fases propostas pela autora – como exercício de compreender o processo como um
todo –, antes de compartilhar a experiência com os demais docentes e coordenação.
A partir da compreensão de que o processo de internacionalização do currículo de uma
disciplina/componente curricular ou de um curso de graduação perpassa pelos objetivos de
aprendizagem, estratégias de ensino, recursos instrucionais e avaliações, procurou-se iniciar
pela análise do projeto de criação do curso de Educação Física, de todos os PPCs
elaborados/reelaborados e de todos os planos de ensino, da disciplina selecionada, ao longo
dos anos entre 2006 e 2017.
Constatou-se, por meio da análise dos referidos documentos, que nenhum deles fazia
menção a questões que envolvessem a internacionalização do currículo, a perspectiva
intercultural e a possibilidades de convergência entre esses dois elementos. Tal constatação
levou a Santos (2002), na tentativa de encontrar aporte teórico para refletir sobre os efeitos da
homogeneização e dos paradigmas dominantes sobre a diversidade de saberes, a partir da
ideia de sociologia das ausências e sociologia das emergências. Imersa nessa perspectiva de
Santos (2002), retomou-se Leask (2015) pelo fato de a autora discorrer sobre a necessidade de
serem provocadas possibilidades de pensar e fazer de maneira diferente, questionando os
paradigmas dominantes. Essa retomada conduziu aos dois próximos estágios: “imaginação” e
“revisão e planejamento”.
Fase de “imaginação” e de “revisão e planejamento”
A segunda fase do processo – Imaginação – refere-se a uma espécie de pano de
fundo para as fases de “ação” e “avaliação”. De acordo com Leask (2015, p. 47, tradução
nossa), essa fase pode ser desenvolvida por meio da pergunta: “Que outras formas de pensar
e fazer são possíveis?”
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A mesma autora ainda explicita que, durante o exercício de pensar em outras formas
de fazer, é essencial tirar o foco da mera inserção de disciplinas e/ou conteúdos e direcionar
os esforços para a integração das dimensões internacionais e interculturais que permeiam o
conteúdo, os objetivos de aprendizagem, as estratégias de ensino e o processo de avaliação,
por meio do currículo formal, informal e oculto (LEASK, 2015). Para esse esforço, teve-se
como apoio as atividades de refletir6 sobre os fundamentos culturais dos paradigmas
dominantes na disciplina; analisar as origens e a natureza do paradigma dentro do qual o
currículo encontra-se desenvolvido; identificar os paradigmas emergentes na disciplina e
refletir sobre as possibilidades que eles oferecem; imaginar o mundo no futuro, incluindo o
que e como os alunos precisarão aprender para viver e trabalhar de maneira efetiva e ética
neste mundo do futuro (LEASK, 2015).
Para o planejamento das aulas da disciplina, a partir do que se imaginou na segunda
fase, surgiu a terceira fase do processo: Revisão e Planejamento. Essa fase refere-se a uma
espécie de decisão no sentido de definir: a) o que se quer; b) o que é possível (formação e
atuação docente/profissional, tempo disponível para elaboração e execução, carga horária e
organização da matriz e unidades curriculares); e c) o que é permitido (normativas do curso e
da IES).
A pergunta que auxilia esta fase é: “Dadas as possibilidades de internacionalização do
currículo, quais são as mudanças que nós queremos fazer ao programa?” (LEASK, 2015, p.
48, tradução nossa).
Reorganizou-se a dinâmica da disciplina em cinco momentos principais, sendo que,
em cada um dos cinco momentos, se procedeu à redefinição de novas referências
bibliográficas e estratégias de ensino com base nas atividades já descritas na fase de
imaginação e na seguinte fundamentação:
o quadro conceitual da IoC consegue absorver e revelar a complexidade do processo
de internacionalização por suas camadas de contextos: o global, o nacional e
regional, o local, o institucional. Sobre essa base, os professores podem contemplar,
6 Como a discussão com os demais docentes do curso ainda não ocorreu, nesta etapa, por enquanto, fez-se
apenas o exercício de refletir sobre os referidos fundamentos. Entretanto, convém trazer já à baila Luna (2016, p.
48), pois o autor frisa que a etapa da imaginação deveria dar-se “por uma negociação e um diálogo idealmente
coletivos e contínuos. Reunidos, professores questionam o quê (sic) e como apenderam, o quê (sic) e como estão
a ensinar e como podem fazê-lo de forma diferente. Esse questionamento pode levar o grupo, direta e
animadamente, a uma ação docente valorizadora da diversidade cultural, tanto aquelas que marcam a eles
próprios e a seus estudantes, como as referências bibliográficas para a concepção e a execução dos seus planos
de ensino”.
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nos seus currículos e planos de ensino, os paradigmas marginalizados, devendo, para
isso, adotar perspectivas de escolas, autores, culturas e línguas as mais diversas [...]
Pontualmente, trata-se de (se) perguntar e responder sobre o lugar de determinada
escola de pensamento e de determinado autor no currículo do curso; trata-se de (se)
perguntar e responder qual a relação entre essas escolhas por escolas e autores e o(s)
país(es) ou a(s) cultura(s) que representam. Outros docentes, por sua vez,
demonstram satisfação em ver discutida institucionalmente a possibilidade de exibir
ou (a)creditar em alternativas a escolas e autores canônicos. (LUNA, 2016, p. 43-
47).
Dividiu-se o primeiro momento em duas etapas: a) apresentação da disciplina e o
recorte das memórias da formação que se teve (no caso, como professor(a)) com foco na
integração de tecnologias no cotidiano particular, acadêmico e profissional; b) A história de
duas “Fernandas” (o uso de tecnologias digitais presentes em duas culturas diferentes). Como
referência, utilizaram-se Lemos (2008) e Postman (1994).
Quanto ao segundo momento, dividiu-se em três etapas: a) recorte do memorial de
formação com foco nos principais momentos de integração de tecnologias ao cotidiano
particular, acadêmico e profissional dos alunos. Como referências teve-se: Prensky (2001),
Veen e Vrakking (2009); b) questionário online sobre o uso específico de tecnologias digitais,
tendo como referência Schlemmer (2010); c) seguir perfil em rede social de pesquisadores
importantes da área. A sugestão recaiu sobre pesquisadores de diferentes formações que
nasceram e residem em diferentes estados, como Santa Catarina, Rio grande do Sul, Paraná,
São Paulo, Bahia e Pernambuco.
Esse momento se mostrou essencial para a ancoragem nos conhecimentos prévios dos
alunos e consequente possibilidade de aprendizagem significativa. Para Ausubel, Novak e
Hanesian (1980), a aprendizagem significativa é um fenômeno por meio do qual o aluno
relaciona, de forma “arbitrária e substancial”, os conhecimentos que já possui com uma nova
informação. Convém esclarecer que “uma relação não arbitrária e substantiva significa que as
idéias (sic) são relacionadas a algum aspecto relevante existente na estrutura cognitiva do
aluno, como, por exemplo, uma imagem, um símbolo, um conceito ou uma proposição”, ou
seja, “a essência do processo de aprendizagem significativa é que as idéias (sic) expressas
simbolicamente são relacionadas às informações previamente adquiridas pelo aluno através de
uma relação não arbitrária e substantiva (não literal)” (AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN,
1980, p. 34, grifo dos autores).
Os dois primeiros momentos descritos tiveram como inspiração a seguinte afirmação
de Luna (2016, p. 37):
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a internacionalização, pelo currículo, trata de garantir a infusão das perspectivas
multiculturais contidas e buscadas em/por todos em uma sala de aula ampliada, onde
se podem articular diferentes conhecimentos, práticas e culturas. Dito de outra
forma, a IoC desenvolve-se por atividades intelectuais que questionam a
monocultura do saber, pela curiosidade em torno dos paradigmas ausentes, bem
como pela identificação dos paradigmas emergentes e de suas possibilidades como
subsídios ao currículo.
O terceiro momento, por sua vez, constituiu-se de três etapas: a) leitura de imagem
que remete às tendências pedagógicas e à integração de tecnologias ao currículo (Figura 3); b)
análise de vídeo sobre a entrevista histórica entre Paulo Freire e Seymour Papert (FREIRE,
PAPERT, 1995), a leitura de texto de Papert (1994) e discussões sobre o pensamento
computacional. Também se utilizou um artigo de Wing (2006).
O quarto momento tratou do aprofundamento do conceito de tecnologia discutido por
Pinto (2005), lincando a questão dos “Inforricos e Infopobres” apresentada por Coll e
Monereu (2010, p. 24), a sociedade em rede, de Castells (1999) e de Foucault (2015, 2016).
Encerrou-se o processo com o quinto momento, quando se realizou um estudo de
caso que fez a conexão entre os quatro momentos já citados e a integração de tecnologias ao
currículo. Como referências, teve-se: Almeida (2004, 2009), Valente e Almeida (2011),
Sancho (2006), Tori (2010), Silva (2006) e Valente (1999, 2010). Nesse momento, também se
aprofundou a discussão sobre a informática educacional como disciplina regular versus como
estratégia de articulação entre as demais áreas do conhecimento na escola.
Fonte: Capa do Livro de Quino (TEJÓN, 2008).
Figura 3 – Educação Bancária
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Para cada momento foram escolhidas novas referências e, mesmo concordando com
Santos (2002, p. 239), quando afirma que “a compreensão do mundo excede em muito a
compreensão ocidental do mundo”, sentiu-se receio de que ainda se havia ficado um tanto
preso aos cânones ocidentais da área. Isso porque, apesar de se conhecer alguns autores
orientais, por exemplo, não se sentiu segurança com o nível de aprofundamento que se
possuía sobre tais autores. O exercício que se faz a partir dessa reflexão é o de policiar-se na
tentativa de não reforçar a monocultura do saber denunciada por Santos (2002).
Fase de ação
A quarta fase do processo – Ação – diz respeito à execução/implementação do que
foi planejado. A pergunta para esta fase é: “Como saberemos se alcançamos os objetivos de
internacionalização do currículo?” (LEASK, 2015, p. 50, tradução nossa).
Os alunos do curso de Educação Física estavam na última fase do curso de licenciatura
- o que subentende uma caminhada de, pelo menos, dois anos e meio vivenciada diariamente
no ambiente acadêmico -, quando cursaram a disciplina Recursos Tecnológicos na Educação
reformulada na perspectiva intercultural. Entretanto, algumas questões culturais emergiram
apenas após a experiência com a disciplina internacionalizada.
Como principais exemplos da emergência de questões multiculturais, citam-se duas
que se consideram importantes situações. A primeira remete a uma aluna paranaense que
viveu mais de 10 anos no Paraguai com a família e que praticamente não teve contato algum
com tecnologias digitais, pois vivia em uma cidade do interior, muito afastada do conhecido
comércio de eletrônicos vivenciado no país. Tal situação auxiliou na quebra de um grande
paradigma instalado, pois surpreendeu muito os alunos que relataram que não conseguiam
imaginar um Paraguai sem eletrônicos. Para Candau (2012, p. 51) “a perspectiva intercultural
quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os
diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural”. Para Luna
(2016, p. 51):
ao ver descrito o ‘outro’ como o estudante estrangeiro, mas também como aquele
que tem a mesma nacionalidade da maioria da turma, podemos considerar toda
instituição escolar como multicultural, plena de diversidade linguístico-cultural. A
IoC como a educação intercultural defendem que o multiculturalismo deve ser visto
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como uma mais valia para a escola e que as estratégias de ensino e aprendizagem,
bem como a avaliação devem evidenciar a importância da interação e do
intercâmbio de saberes e de práticas entre os estudantes.
A segunda situação desencadeou-se a partir do relato de um aluno que atua como
Agente de Segurança Socioeducativo7. Além de compartilhar com o grupo questões de uso de
tecnologias digitais, esse apresentou estratégias de contenção de grandes massas em
manifestações violentas. Fez-se uso de tais estratégias para discutir tecnologias de poder em
uma abordagem disciplinar que tanto pode ser relacionada com o cotidiano escolar quanto
ampliar o conceito de tecnologia para além da ideia de mero recurso digital.
Considerações Finais
No ano de 2016, a UNIDAVI inseriu em suas discussões a possibilidade de
internacionalização do currículo na perspectiva intercultural, o que culminou com a primeira
versão da reelaboração da disciplina Recursos Tecnológicos na Educação. No desenrolar
deste processo, situações multiculturais emergiram. Compreende-se que tais situações
emergiram porque o novo desenho da disciplina – reelaborada na perspectiva intercultural –,
viabilizou a ancoragem de conceitos científicos nos conhecimentos e nas vivências prévias
dos alunos, o que concedeu à disciplina um nível de discussão mais profundo e significativo.
Essa emergência multicultural foi essencial para viabilizar a perspectiva intercultural, pois se
compreendeu que é por meio da possibilidade da infusão das questões multiculturais que
nasce a prática da mediação intercultural docente.
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