A pesquisa com crianças e mídia na escola_ questões éticas e teórico-metodológicas

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A pesquisa com crianças e mídia na escola: questões éticas e teórico-metodológicas1

Monica Fantin2

Pensar a relação entre criança e cultura significa entender a experiência cultural

das crianças com as mídias. No cenário internacional, muitas pesquisas têm sido feitas a

esse respeito, e no Brasil é crescente o número de estudos sobre as crianças e a cultura

das mídias enfatizando a recepção, a mediação e a produção. Há muitas possibilidades

de entender a relação das crianças com as mídias e com as produções culturais, e muitos

olhares têm sido lançados para saber o que acontece com as crianças em suas interações

com as mídias, desde as clássicas como o cinema e a televisão até as mais recentes

como computador, Internet, celular, i-pod, etc. O recorte deste texto busca entender

alguns aspectos de tal interação e discutir questões éticas e teórico-metodológicas a

partir de uma pesquisa com crianças e cinema, realizada em diferentes contextos

socioculturais.

A ética na pesquisa com crianças

Investigar as relações das crianças com as mídias implica discutir certas questões

sobre a ética na pesquisa com crianças. Considerando a polissemia da palavra ética, aqui

seu sentido é entendido como “investigação a respeito de noções de bem e mal, justo e

injusto, do conjunto de valores que os homens admitem por tradição, por hábito ou pela

adesão a um conjunto de crenças.” (NASCIMENTO, 1985, p. 259). Diante do campo

vastíssimo que envolve este objeto de estudo da filosofia, não é nosso objetivo fazer um

inventário sobre uma série de discursos em torno das noções de bem e mal, de justo e

injusto na pesquisa, mas sim discutir possíveis implicações éticas na pesquisa com

crianças.

Se ainda precisa ser melhor discutido e construído um código de ética para

pesquisa com pessoas no campo das ciências humanas e sociais, precisamos nos pautar 1 Este texto foi originalmente publicado em : GIRARDELLO, G; FANTIN, M. (orgs) Práticas culturais e consumo de mídias entre crianças. Florianópolis: UFSC/CED/NUP, 2009. 2 Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC, linha de pesquisa Educação e Comunicação. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância, Comunicação e Arte, NICA, UFSC/CNPq, entre diversas artigos publicados é autora dos livros No mundo da brincadeira: jogo, brinquedo e cultura na educação infantil e Mídia-educação: olhares e experiências no Brasil e na Itália.

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no que há, procurando alternativas às limitações existentes nas resoluções dos conselhos

e/ou das comissões de ética de cada instituição. Afinal, se diversas especialidades

acadêmicas e profissões possuem um código deontológico que estabelece princípios,

fundamentos, sistema da moral e tratado dos deveres da ética profissional, no campo da

educação tal código ainda precisa ser construído.

Refletindo sobre pesquisa qualitativa em educação, Bogdan (1994, p. 75) situa

duas questões que têm dominado o panorama no âmbito da ética relacionada à pesquisa

com seres humanos: o consentimento informado e a proteção dos sujeitos contra

qualquer espécie de dano. Tais questões se revelam normas básicas que dizem respeito à

adesão voluntária dos sujeitos ao projeto de investigação consciente da natureza do

estudo, dos riscos e obrigações envolvidos, e à não exposição dos sujeitos a riscos

maiores do que os possíveis ganhos.

Alguns princípios éticos que têm orientado a pesquisa qualitativa em educação

podem ser assim resumidos em Bogdan (1994, p. 77):

• as identidades dos sujeitos devem ser preservadas a fim de não

causar qualquer tipo de transtorno ou risco, e o anonimato deve

contemplar não apenas o material escrito e os relatos verbais, como

também as imagens recolhidas durante a investigação;

• os sujeitos devem ser tratados com respeito a fim de obter sua

cooperação na investigação, e, ainda que haja o uso de pesquisa

dissimulada, existe um consenso quanto à explicitação dos

procedimentos de pesquisa e das informações sobre as formas de

registro das conversas ou imagens para obtenção do consentimento;

• a autorização para desenvolver a pesquisa deve ser clara e

explícita, e os termos do acordo quanto aos resultados da pesquisa

devem ser respeitados;

• a autenticidade no registro dos resultados implica a fidelidade

aos dados obtidos, mesmo que, por razões diversas, as conclusões

possam não agradar a alguém.

A pesquisa qualitativa envolve planos elaborados pelo pesquisador que não são

fixos e imutáveis como em certas pesquisas estatísticas e experimentais, muitas idéias

mudam e algumas perspectivas se modificam no processo. Questões inesperadas se

entrelaçam com hipóteses previstas, sugerindo novas configurações, sendo importante

que

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o pesquisador não se prenda rigidamente ao plano estabelecido, mas

que seja livre para modificar suas idéias, para deixar de lado alguns

aspectos e examinar outros que se revelem mais importantes na

situação real ou que são mais importantes para quem opera no sistema.

(RABITTI, 1999, p. 31).

Em algumas formas de investigação aplicada ou diante de determinados

problemas de pesquisa, certos princípios podem ser irrelevantes e levar a uma

inadequação que dificulta sua aplicação, destaca Bogdan. Considerando que toda regra

tem sua exceção, isso pode ocorrer em situações em que é quase impossível proteger a

identidade dos sujeitos, e a posição do pesquisador oscila entre suas obrigações de

pesquisador e as de cidadão, dilemas que não se resolvem facilmente.

Ainda que possam existir linhas de orientação para a tomada de

decisão de caráter ético, as decisões éticas complexas são da

responsabilidade do investigador, baseiam-se nos valores deste e na

sua opinião relativa ao que pensa serem comportamentos adequados.

(BOGDAN, 1994, p. 78).

Assim, as questões éticas não se restringem aos procedimentos e atitudes durante

a pesquisa de campo ou investigação, pois dizem respeito à consciência de valores e

crenças de toda uma postura de vida.

Sobre a relativização dos princípios em relação ao anonimato, há situações em

que os sujeitos envolvidos aceitam divulgar sua identidade, e nesses casos, quando não

há riscos envolvidos, o anonimato pode ser quebrado. Parece que a aplicação dos

princípios éticos está vinculada ao objeto de estudo e se refere aos objetivos de cada

pesquisa, visto que certas questões assumem contornos diferenciados conforme a

pesquisa e os diferentes momentos da investigação.

Diante disso, a especificidade da participação das crianças na pesquisa assume

outros contornos na dimensão da autoria. Se a maior parte da legislação que se refere à

participação das crianças na pesquisa relaciona-se às pesquisas no campo da medicina,

visando a normatizar a prática de utilização de crianças em investigações científicas

com objetivos diagnósticos, terapêuticos e de imunização, a participação de crianças nas

pesquisas no campo das ciências sociais e humanas foi evoluindo para outras questões,

além da autorização de pais e/ou responsáveis legais.

Sabemos que as conquistas em relação aos direitos das crianças e dos

adolescentes foram resultado de muita luta, e que tais direitos sempre envolvem os “3

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p”: proteção, provisão e participação. E isso também é válido para pensarmos as

pesquisas com crianças: o âmbito da proteção envolve a preservação da identidade, seja

do nome ou da imagem; o âmbito da provisão diz respeito a vários princípios educativos

dos procedimentos de pesquisa que fazem parte do processo formativo; e o âmbito da

participação está relacionado à dimensão de autoria e co-autoria revelada em falas,

ações, produções e reflexões no contexto da pesquisa.

Discutindo a participação das crianças na pesquisa através de relatos,

depoimentos, textos, produções delas mesmas e sobre o uso de suas imagens, Kramer

(2002) pergunta em que medida a criança é sujeito de pesquisa, e faz um estudo sobre a

questão da autoria, da autorização e das formas de devolução na pesquisa com crianças.

Tal reflexão tem inspirado muitos investigadores no campo da pesquisa com crianças, e

certos dilemas apontados pela autora ainda estão em pauta de discussão (FANTIN,

2008).

A busca do diálogo com crianças, que há muito tempo tem orientado nossas

pesquisas, mais do que um princípio metodológico, pode consistir-se em um princípio

educativo, assegurando que as vozes e as faces desses sujeitos apareçam na pesquisa. E

isso nos leva a problematizar algumas questões na pesquisa com crianças e mídias que

têm sido desenvolvidas no nosso grupo1, como por exemplo: a concepção de criança e

infância; o papel da criança na pesquisa; a preservação ou não da identidade; o uso de

imagens; a transcrição das falas; a devolução dos resultados às crianças e aos demais

envolvidos e muitas outras questões.

Tais questões podem ser assim resumidas:

- A concepção de infância e de criança que norteia a pesquisa: deve estar articulada

com as escolhas teórico-metodológicas, e esta coerência deve ser assegurada em todos

os procedimentos adotados. Tal relação não é natural e necessita ser construída em uma

reflexão constante, pois embora tenhamos uma idéia de como as crianças se constroem

como leitores críticos de mídias, ainda não dispomos de modelos de seu

desenvolvimento como escritores ou produtores, como diz Buckingham (2002, p. 258).

- O papel da criança na pesquisa: tem sido foco de reflexões de diversos

pesquisadores há muito tempo. Desde o início da década de oitenta, a pesquisadora

italiana Egle Becchi (1994, p. 83) enfatizava a importância de “dar palavra à infância”.

Edmir Perrotti (1990) também na década de oitenta, resgatava a contribuição de

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Florestan Fernandes para discutir a criança e a produção cultural. Mais recentemente,

autores como Pinto e Sarmento (1997), Demartini (2002), Kramer (2002), e Silva

(2005) têm enfatizado diferentes aspectos da relação que envolve a pesquisa e criança.

Da problematização do entendimento da criança como objeto de pesquisa ou informante

principal, surge uma perspectiva que busca entender a criança como sujeito e amplificar

suas vozes, seus olhares e sua participação na pesquisa. Sem entrar no mérito da

discussão sobre uma possível condição de co-autoria da criança na pesquisa

(HONORATO, 2006), é importante enfatizar as diversas possibilidades de entender

mediação da pesquisa como possibilidade de construir outras formas de participação da

criança na cultura (FANTIN, 2006).

- A preservação ou não da identidade: a escolha entre revelar ou não os nomes das

crianças envolvidas na pesquisa deve estar ancorada na discussão sobre autoria e

anonimato. Quando se decide identificar o sujeito e revelar sua autoria, é importante que

isso não ofereça riscos às crianças e que seja explicado previamente aos responsáveis,

além de esclarecer as formas de participação da criança na pesquisa, as possíveis

devoluções e os resultados parciais, obtendo previamente a autorização das crianças e

de seus responsáveis. Quando a escolha de revelar o nome dos sujeitos envolvidos

implicar um risco, há outras formas de encaminhamentos possíveis, como explicita

Kramer (2002): identificação por números, letras em combinações diversas (aluno,

idade, turma, escola); identificação com nome real (revela o primeiro nome e omite a

escola e/ou turma); identificação com nomes fictícios ou pseudônimos escolhidos ou

não pelas crianças (heróis, artistas, jogadores e pessoas do mundo da mídia). A questão

da identidade e da autoria de crianças nas pesquisas na Rede, Internet e ambientes

virtuais ainda precisa ser melhor pesquisada, pois envolve a ética não só relacionada à

pesquisa, mas também à publicização envolvida nos meios telemáticos.

- O uso de imagens: em relação ao uso de imagens de crianças, é bom lembrar que

junto ao anonimato do nome da criança, há que se ter também o cuidado de não expor a

sua imagem, observando que há diversas pesquisas em que se protege o nome, mas

aparecem as imagens das crianças. É necessário discutir em que medida o uso da

imagem, da fotografia ou da filmagem é necessário à pesquisa, pois em certas pesquisas

se observa um uso gratuito, um exagero e uma banalização de imagens. Para Bauer e

Gaskell (2002), o uso de imagem e material sonoro na investigação possui critérios para

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uma boa prática de pesquisa, e, por envolver uma complexidade relacionada ao papel

que as mídias e tecnologias ocupam em nossa vida, isso também é objeto de estudo da

pesquisa com crianças e mídias.

- A transcrição das falas das crianças: quando se transcreve a fala das crianças é

necessário pensar nos critérios éticos e estéticos envolvidos no processo. Visto que a

oralidade possui uma estrutura própria, para não acontecer de a fala da criança ficar

cheia de erros, numa reprodução tosca e pretensamente ipsis litteris de sua fala, há que

diferenciar entre quando a fala é um registro do oral e quando é a produção escrita do

outro. Para isso, é necessária uma mediação criteriosa a fim de não deformar a fala das

crianças sem artificializar a fala e o contexto de sua produção.

- O retorno e as formas de devolução dos resultados na pesquisa: o retorno da

pesquisa aos envolvidos pode acontecer em diferentes momentos: como combinado de

contrapartida inicial, como resultados parciais durante o processo de investigação

(produções das crianças, por exemplo), como socialização de resultados obtidos no final

da pesquisa, e como divulgação em momentos e situações especialmente pensados para

tal. Em relação à pesquisa na escola, um procedimento interessante para a troca de

conhecimentos entre universidade e escola é a oferta de uma espécie de contrapartida do

pesquisador em relação à formação cultural dos professores. Quando se apresenta a

pesquisa aos responsáveis pela escola visando a obter sua autorização e colaboração, o

pesquisador pode oferecer uma formação continuada a respeito da temática investigada.

Assim, o vínculo passa a ser com a instituição e não apenas com o professor, o que é

muito importante para o retorno final, pois, devido à costumeira rotatividade de pessoal,

pode ocorrer de no final da pesquisa aquele professor não estar mais na escola; quando

o contato se restringe a ele, condiciona-se o retorno ao grupo, comprometendo a

devolução final.

Enfim, as diferentes formas de devolução buscam concretizar o compromisso que

envolve os diferentes sujeitos da pesquisa: crianças, professores, escolas, pesquisadores,

universidade, população. Sabemos que, por vezes, tal processo desencadeia alguns

riscos a partir de diferentes usos e possíveis implicações político-pedagógicas. Por outro

lado, sabemos também que nem sempre o pesquisador tem o controle de toda a situação

nem dos usos que podem ser feitos de sua pesquisa. É evidente que nem sempre a

resolução de certos problemas está ao alcance do pesquisador, mas, se ele possuir um

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sólido referencial teórico-metodológico, uma boa qualificação acadêmica e científica e

aliar tal formação ao respeito, à ética e à sensibilidade, já estará dando a sua

contribuição.

Diante desse quadro, veremos a seguir como algumas destas questões teórico-

metodológicas foram trabalhadas no contexto de uma pesquisa sobre crianças e cinema.

O método como desvio para captar olhares e vozes das crianças

Podemos entender a relação entre cinema e mídias a partir do que dizem as

diferentes teorias da comunicação, da psicanálise, da semiótica e encontrar na história,

na ideologia, bem como nos desejos e na posição simbólica dos sujeitos, diversas

explicações sobre o significado das interações das crianças com as produções culturais.

Mas, se nos aproximarmos do olhar das próprias crianças, poderemos entender outra

dimensão do que acontece nesse espaço-tempo próprio das interações reais e simbólicas

que as crianças estabelecem com as produções culturais.

Considerando que as interações com as mídias atuam na construção de relações

que ampliam o conhecimento de si, do outro e do mundo, é importante compreender as

possibilidades de tal apropriação em diferentes contextos socioculturais e o papel que a

mediação escolar desempenha nesta experiência (FANTIN, 2006). Para tal, é preciso

que nos aproximemos das crianças, procurando saber o que elas pensam, sentem e

dizem sobre sua experiência com as mídias – e neste caso com o cinema -, captando

seus olhares sobre os filmes a que assistem, seus contextos e os significados desta

experiência cultural.

Os olhares das crianças estão atravessados pelas mediações do mundo adulto em

suas diversas expressões através da cultura. E nas falas das crianças é possível perceber

obviedades, estranhamentos e sofisticadas impressões que desafiam nossa capacidade de

interpretar os possíveis significados que se movimentam nos sinuosos caminhos da

mediação.

Para captar a especificidade das reações das crianças, seus olhares, falas,

silêncios e gestos, que muito nos dizem sobre a experiência da significação a partir das

mídias, não basta nos aproximarmos das crianças para saber o que elas dizem. É preciso

estarmos alicerçados em instrumentos teórico-metodológicos que ajudem a investigar

tais sentidos, e foi na compreensão de Benjamin (1985) sobre o “método como desvio”

que buscamos inspiração para entender a relação das crianças com as mídias.

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A exemplo do que Pereira (2002, p. 82) sinaliza, entendemos que a relação das

crianças com as mídias pode se apresentar como um desvio metodológico importante

para a “elaboração de uma crítica da cultura contemporânea.” No caso da relação entre

crianças e cinema, lidamos com a arte e com o campo fértil da transgressão, e essa

compreensão de método enxerga sentido nas frestas e fissuras por onde se consegue

escapar da lógica habitual.

Método é desvio. A apresentação como desvio – eis o caráter

metodológico do tratado. Renunciar ao curso ininterrupto da intenção

é sua primeira característica. Incansavelmente, o pensamento começa

sempre de novo, volta minuciosamente à própria coisa. Esse

incessante tomar fôlego é a mais autêntica forma de existência da

contemplação. (BENJAMIN, 1985, p. 50).

Entender o método como desvio significa a renúncia à discursividade linear da

intenção particular em proveito de um pensamento minucioso e hesitante, que sempre

volta ao seu objeto por diversos caminhos e desvios.

A estudiosa da obra benjaminiana Gagnebin (1994) retoma o pensamento de

Benjamin para explicitá-lo e ir além, ousando reconhecer as interrogações deixadas em

suspenso, compreender essa suspensão e aprofundar-se em algumas irresoluções. Ela

destaca que na estrutura temporal do método o pensamento pára, volta atrás, vem de

novo, espera, hesita, toma fôlego, e essas hesitações também caracterizam uma

concepção de verdade que Benjamin chama de “contemplação” e que é diferente de

intuição. Aproximando o conceito de contemplação de uma espécie de atenção ao

mesmo tempo leve e intensa, essa atenção indica um sujeito que saiba deter-se,

admirado, respeitoso, hesitante e talvez perdido, onde as coisas para ver se dão

lentamente. “Método, por certo, perigoso, pois nunca se pode ter certeza de que ele leva

realmente a algum lugar, mas, pela mesma razão, extremamente precioso, pois só a

renúncia da segurança do previsível permite ao pensamento atingir a liberdade.”

(GAGNEBIN, 1994, p. 100).

Assumir os desvios e os descaminhos da pesquisa implica correr o risco de

perder-se, mas, como “só pode se achar quem está perdido”, é possível ver a

positividade neste desvio, embora no início do percurso não se saiba muito bem o que

ele significa.

Na mitologia grega, um arquétipo do perder-se está relacionado ao labirinto do

Minotauro. Podemos nos apropriar da imagem do labirinto para aludir à falta de

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caminhos e ao perder-se, considerando o poder desta metáfora principalmente a partir

do significado que Benjamin lhe dá. A imagem do labirinto pode ser entendida como

metáfora ao mesmo tempo das relações temporais entre presente, passado e futuro e das

relações que o sujeito tem consigo mesmo.

Um motivo central da Infância Berlinense de Benjamin, que ilustra a

transformação de si na travessia dos diversos tempos da sua história, é o motivo do

labirinto. Benjamin nos diz que aprender a se perder requer instrução, e na Crônica

Berlinense 2 ele evoca a imagem de sua vida como a de um labirinto, cujo “centro

enigmático” é a morada do “eu” ou do “destino”, pois o destino só é o itinerário do eu à

busca de si mesmo pelos caminhos da alteridade.

O labirinto não é apenas uma estrutura onírica vertiginosa, mas constitui o

avesso escondido mais significativo das obras culturais, das cidades, dos livros e dos

filmes. A criança penetraria nos livros e nos filmes como o adulto na cidade

desconhecida, para se perder num “labirinto de histórias” e seguir seus corredores

subterrâneos que levam a viagens surpreendentes.

Para ilustrar a concepção de método como desvio, Benjamin descreve essa

dimensão subterrânea e misteriosa no texto A Caixa de Costura, onde celebra o poder

da mãe e também conta a revolta da criança contra ele. O poder sedutor e ameaçador da

mãe não é negado, mas através do bordado ele é reapropriado pelo menino e transposto

na atividade cultural da aprendizagem simbólica e gráfica, em que a criança não borda

somente para ver as flores no lado certo, mas que também se encanta pelo avesso

labiríntico inseparável da ordem do desenho (BENJAMIN, 1995).

Embora possamos nos perguntar se isso seria uma inversão do olhar ou apenas

outro ponto de vista sem o qual o desenho-bordado não existiria, pode revelar o

estranhamento do olhar de crianças, artistas e poetas e suas atenções pelos detalhes do

processo, dos bastidores, dos restos e dos rastros. Neste sentido, o labirinto revela a

estrutura misteriosa do desejo humano, que não acaba com a conquista de sua meta, mas

que tem prazer em inventar e reinventar desvios, imagens, gestos, palavras, sendo o

“outro lado” da cultura. Benjamin (1996, p. 37) descreve este avesso, mas não esquece o

lado direito da página: o avesso e o direito são inseparáveis como o “lembrar” que

forma “a trama” “e o esquecimento que forma a urdidura” no tecido do mesmo texto.

Esse perder-se e achar-se nos caminhos e desvios é particularmente importante

no trabalho com crianças, pois esse é seu movimento, seu brincar, seu ficar paradas,

escondidas, atrasadas para ir à escola, enfim, sua hesitação. Esses lugares da infância,

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plenos dos “mortos do passado” e de um futuro desconhecido mas pressentido, são

“cantos proféticos”, como diz Benjamin (1995, p. 94), e entendê-los na sua

complexidade pode ser útil para quem pesquisa com crianças.

Assim, olhar o passado através da infância e entender a relação entre criança-

cultura mediada pelo cinema nos ajuda a pensar nos desafios da cultura contemporânea,

pois a narração das crianças e suas experiências com os filmes revelam o caráter

autobiográfico de suas experiências com o cinema, mostrando a singularidade da

construção de sentidos. E para entender a narrativa tecida com os fios das falas das

crianças sobre sua relação com o cinema e os filmes, é importante pensar nas relações

entre crianças e pesquisador no contexto da pesquisa.

Os instrumentos de pesquisa e as interações entre crianças e cinema

Considerando que o tema da pesquisa que possibilitou esta reflexão era a

compreensão da relação da criança com o cinema, a pesquisa precisava garantir o acesso

direto de crianças de diferentes contextos socioculturais aos filmes. Acreditando que

essa relação se estabelece de diversas formas - desde uma fruição espontânea e lúdico-

evasiva até uma fruição com mediação intencional e educativa que pretenda promover

análise, interpretação ou possível produção -, era importante pensar nas diversas

possibilidades de o pesquisador observar as crianças em suas interações com o cinema.

Na referida pesquisa, realizada em diversos contextos socioculturais com

crianças de escolas públicas e privadas de Florianópolis, no Brasil, e de uma escola

pública de Treviglio, na Itália, a interação entre crianças e cinema envolveu diversos

momentos: uma pesquisa empírica, incluindo a exibição de um filme no cinema, o uso

de questionários para crianças de 7 a 10 anos responderem, a realização de entrevistas

de aprofundamento com diversos grupos de crianças e o acompanhamento de um

projeto didático sobre cinema em uma escola pública.

O trabalho com o questionário aconteceu após a exibição do filme e pretendia

fazer um levantamento geral da relação das crianças com o cinema e com o filme, com

perguntas mais amplas e de fácil tabulação, abordando questões sobre conteúdos,

linguagens e possíveis significados do filme, noções éticas e estéticas, impressões das

crianças e a experiência delas com o cinema. No entanto, para verificar as possíveis

interpretações e construções de sentido, seria quase impossível trabalhar com respostas

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de fácil tabulação, do tipo múltipla escolha, pois as perguntas teriam que ser as mais

abertas possíveis, o que deixou o questionário enorme, com 30 questões. Além disso,

havia uma folha em branco para quem quisesse desenhar. As crianças responderam ao

questionário na escola, sob orientação da professora de sala, e as respostas orientaram as

questões a serem aprofundadas nas entrevistas com os grupos de discussão, o que

correspondeu a uma amostra de cerca de 30 % do total de crianças que responderam ao

questionário.

A entrevista representou mais do que um instrumento de pesquisa,

configurando-se como um princípio educativo construído nas especificidades das

mediações entre crianças, filme e pesquisador. A entrevista teve um sentido especial,

considerando os diferentes momentos do trabalho na pesquisa que construíram a relação

entre pesquisador e crianças: observação das crianças assistindo ao filme, aplicação do

questionário, realização das entrevistas, acompanhamento e orientação de um percurso

educativo sobre cinema na escola com elaboração de mídias pelas crianças. Foi durante

a entrevista que houve maior aproximação com o grupo de crianças, e isso se deve a

certa intimidade que a situação oportuniza.

Sendo a entrevista um evento social, é importante que o pesquisador procure agir

com neutralidade para não interferir nas respostas das crianças, mas sabemos que se

trata de uma situação intencionalmente construída, e que, portanto, toda espontaneidade

desencadeada é, de certa forma, relativa. Assim, não podemos absolutizar o que as

crianças falam, porque de certa forma trata-se de uma fala editada que precisa ser

entendida para além do momento da entrevista.

A relação entre pesquisador e crianças

As crianças fazem especulações sobre os objetivos do pesquisador e suas

conseqüentes reações a eles, e é importante lidar com isso, como dizem Girardello e

Orofino (2002). As autoras destacam que quando se faz pesquisa no espaço escolar, a

posição do pesquisador envolve uma relação de poder, visto que o processo foi

autorizado pela escola e que o pesquisador foi apresentado pelo professor da turma, o

que pode fazer as crianças agirem de uma forma como talvez não agissem em outro

contexto.

Dependendo do contexto em que as entrevistas são realizadas, outros fatores

podem interferir no processo. Na experiência da pesquisa em questão, a entrevista foi

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realizada na escola, e talvez o fato de as crianças estarem discutindo cinema, seus filmes

preferidos, brincadeiras inspiradas pelos filmes, tenha subvertido um pouco o cenário

escolar, pois de certa forma o tema trouxe para o contexto público e disciplinador da

escola alguns elementos do mundo privado, do tempo livre e do lazer das crianças.

Assim, o tema da entrevista envolveu esses dois contextos - o público e o privado -, já

que as crianças falaram sobre o filme a que assistiram mediadas pelo espaço público da

escola. Ao mesmo tempo, outras questões da entrevista também diziam respeito a filmes

assistidos fora do contexto escolar, mais especificamente o contexto privado, doméstico

e familiar.

Outra questão interessante sobre a relação pesquisador-criança é que, conforme

o jeito de fazer a pergunta, as crianças podem ter a percepção de que estão falando algo

que conhecem mais que os adultos. Isso pode propiciar uma espontaneidade maior do

que em outros contextos em que o entrevistado sente que sabe menos que o

entrevistador. Além disso, o fato de ser um assunto interessante para as crianças faz com

que elas também possam se identificar mais com a pesquisa.

Girardello e Orofino (2002, p. 5) observam - como também pude constatar - que,

nesses casos, as crianças revelam uma alegria especial ao explicar para o pesquisador o

enredo de um programa, ou os motivos de determinado personagem de um filme,

sentindo-se importantes, sabedoras e mostrando-se altamente solícitas. Afinal, o

pesquisador está “manifestando uma curiosidade real por algo que para as crianças tem

um valor simbólico, num quadro que tende a facilitar o diálogo entre pesquisador e

informante.” Aliás, isso foi explicitado durante uma entrevista, quando em resposta à

pergunta sobre o que tinha achado de participar da entrevista, uma menina disse:

“Primeiro eu gostei de ter participado, depois eu achei uma coisa muito inteligente,

porque pedir as coisas para as crianças e querer saber o que elas pensam é uma

experiência bem diferente de perguntar para os adultos. Você poderia ter perguntado

para os adultos sobre o que eles pensam que as crianças acham, mas ao contrário,

preferiu perguntar para nós sobre o que nós pensamos”. (Chiara, 9).

No entanto, se as crianças podem se desinibir frente a um adulto interessado por

seu conhecimento, isso não significa que elas deixarão de desempenhar os papéis

inerentes ao jogo da interação social. Elas percebem quando determinada resposta é

apropriada ou não, quando um discurso “crítico” ou “educativo” se faz necessário, ou

ainda quando querem impressionar pesquisador e colegas. Mas ao mesmo tempo em

que essas armadilhas ocorrem, existem formas de contorná-las, fazendo a pergunta de

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diferentes maneiras, desconstruindo um pouco do discurso feito para impressionar o

pesquisador, ou mesmo polemizando determinadas respostas.

A esse respeito, Tobin (2000) afirma que a relação de poder do pesquisador pode

ser estremecida quando se observam “manobras de resistência” utilizadas pelas crianças

para se protegerem do adulto, evitando que ele fique sabendo algo que consideram

censurável. Nesses casos, a relação de poder se inverte e quem fica “nas mãos das

crianças” somos nós, pesquisadores. Assim, essa relação de poder na pesquisa acontece

em mão dupla: do pesquisador sobre o grupo e do grupo sobre o pesquisador.

É por isso que alguns pesquisadores da relação mídia-criança evitam análises da

produção midiática baseadas apenas nos textos, considerando fundamental ouvir as

crianças com atenção. Não apenas pela importância de elas serem ouvidas e suas vozes

ampliadas, mas porque saber como as crianças se relacionam com a mensagem das

mídias “é uma questão muito complexa, contingente e contextual, que só pode ser

respondida se fizermos leituras cuidadosas e matizadas das interações de crianças

específicas com textos culturais específicos”, como diz Tobin (apud GIRARDELLO;

OROFINO, 2002, p. 5).

Diante disso, a relação criança-pesquisador é permeada por diversos interesses,

que ora seguem na mesma direção e ora seguem cada um para um lado. Esses diferentes

interesses se revelam na valorização por parte das crianças do interesse demonstrado

pelo pesquisador em querer saber o que elas pensam, sentem e falam, na importância de

que tal atitude se reveste para as crianças, e no uso que elas também podem fazer dessa

participação quando querem dar uma “escapada” das atividades rotineiras em sala de

aula. Fazendo as entrevistas com as crianças nos diferentes contextos e procurando

ouvir-lhes a voz, foi possível perceber a importância de as crianças serem ouvidas; mais

que a vontade de falar, é evidente a necessidade que muitas crianças têm de

compartilhar seus sentimentos e idéias.

Uma das situações em que isso se evidenciou foram os comentários sobre o

motivo de terem achado legal participar da entrevista:

“Ah, por que ninguém nunca pergunta o que a gente acha dos filmes e é bom falar

sobre isso” (João Gustavo, 9), “Ah, foi bom porque a gente falou de paixão, de

coragem [...]” (Fabrício, 9).

Isso demonstra o sentimento e a constatação do quão pouco as crianças estão sendo

ouvidas sobre o que elas pensam das coisas, sobre o que acham daquilo que assistem e

sobre como relacionam isso com situações da vida delas. É verdade que algumas têm

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mais dificuldades que outras, e é claro que há aquelas que nem falam, que dizem que

não lembram. Mas quando uma começa a falar, a outra lembra de uma coisa, conta, e a

conversa vai fluindo.

Como todo grupo é constituído de pessoas singulares que vão assumindo

determinados papéis conforme suas personalidades e identificações, há sempre pessoas

que falam mais, que participam mais, que sobressaem mais que as outras, e nas relações

com as crianças nesta pesquisa não foi diferente. Foi assegurado um tempo e um espaço

a cada criança para exercitar sua fala, sua opinião, seu silêncio, defender seu ponto de

vista e assim descobrir seus pensamentos comuns e suas diferenças, ora reafirmando sua

opinião ora introjetando-se na opinião do outro. Foi muito interessante perceber essas

diferentes formas de participação e as diversas possibilidades de apropriação dos

valores e dos significados do filme que tinham visto e da própria entrevista na vida

delas.

Vejamos algumas falas que revelam a alegria de participar da entrevista:

P: O que vocês acharam de participar da entrevista?

Íon, 8a: Eu achei ótimo, não sei por que, mas foi legal.

Gabriel, 9a: Eu achei legal porque nós aprendemos mais sobre o que é o cinema.

Augusto, 9a: Eu gostei dessas perguntas porque agora eu sei o que eles [os colegas]

sentiram no filme e também isso incentiva a gente[...]

João Gustavo, 9a: Porque ninguém tinha me perguntado o que eu achava dos filmes e

aqui a gente falou sobre tudo isso.

Gabriel, 9a: Eu gostei também porque mata um pouquinho da aula.

Domenico, 10a: Pra mim serviu para conhecer melhor meus companheiros.

Essa necessidade de as crianças falarem o que pensam e compartilharem o que

sentem nos leva a pensar nas outras dimensões da relação entre crianças e pesquisadores

que passa pela relação crianças-crianças durante a entrevista em grupos.

A relação entre crianças e crianças

Por mais que saibamos que em uma situação de pesquisa temos apenas

representações do que é a criança, e não certezas, às vezes podemos tender a uma certa

onipotência enquanto pesquisadores, como se bastasse só olhar os grupos e estaria tudo

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“ali”. Assim, a relação entre crianças-crianças numa situação de entrevista coletiva é

muito instigante e desafiadora.

Como decifrar esses grupos? Afinal, os mais variados tipos de comportamentos

se manifestam, ora provocados pela forma e pelo conteúdo das perguntas do

pesquisador, ora pelas respostas dadas pelos colegas, ora pela postura do grupo, ora pela

gozação de um com o outro, ora pelo estímulo de um ao outro e ora por coisas

aparentemente sem sentido.

O prazer e a alegria das crianças em participar da entrevista eram visíveis em

todos os contextos pesquisados, e tudo se transformava em motivo de troca. O que para

alguns poderia significar uma oportunidade de socialização, de “aparecer”, para outros

poderia significar o constrangimento e a vergonha de se exporem, ao mesmo tempo em

que essas situações também podem favorecer a superação de vergonha, pela

“espontaneidade” com que certos temas circulam. Uma coisa que foi possível perceber

nas entrevistas e que chamou a atenção é que, independente dos jeitos de cada criança, a

disposição e o entusiasmo com que falavam dava um toque especial às diferentes

formas de participação.

A emoção das crianças que tinham ido ao cinema pela primeira vez – cerca de

40% das crianças de escolas públicas que participaram da pesquisa no contexto

brasileiro -, o brilho no olhar quando contavam cenas do filme, os gestos que faziam ao

representar algumas cenas, as lembranças que tinham, as análises - simples ou

sofisticadas - tudo isso fez perceber que a experiência de assistir ao filme ainda estava

muito presente na memória e no coração das crianças.

Em relação aos envolvimentos das crianças entre si, foi possível perceber em

quase todos os grupos uma “contaminação” de uns pela resposta(s) do(s) outro(s). Por

exemplo: quando alguma criança começava a contar algum fato, logo em seguida outra

criança lembrava de uma situação parecida, dentro do mesmo assunto. Esse processo

acontece com a maior naturalidade na tessitura das conversas, em que um fio vai

puxando outro, que por sua vez lembra de outro. Mas tal dinâmica, ao mesmo tempo em

que propicia lembranças significativas, também pode “dar carona” a outros assuntos que

pedem passagem e que talvez não aparecessem de outra forma. Também foi possível

notar um sentimento de solidariedade e ajuda mútua, em que um fica querendo ajudar o

outro, dizendo “Lembra aquela vez que você[...]”, “Ah, conta aquela do[...]” .

Em alguns grupos só de meninas houve uma desenvoltura maior para falar sobre

certos assuntos ligados aos sentimentos provocados por filmes de amor, de ação e de

Page 16: A pesquisa com crianças e mídia na escola_ questões éticas e teórico-metodológicas

comédias, fazendo-as comentar assuntos sobre suas paixõezinhas, quem gosta de quem,

quem já beijou quem. Em grupos mistos, alguns meninos mostraram-se um pouco mais

reservados a respeito desse assunto, talvez constrangidos pela presença das meninas.

Por outro lado, quando comentavam filmes de aventura e horror pareciam querer

impressioná-las com sua coragem. Talvez isso se deva ao sentimento ambíguo de

atração-repulsão entre os sexos, comum nessa idade, ou também devido à própria

constituição do grupo e da personalidade de cada um.

Em alguns grupos só de meninos, o desenrolar da entrevista foi gerando certa

cumplicidade e alguns, muito à vontade para contar seus segredos, “amores e paixões”,

pronunciavam-se sobre os filmes de amor e sobre esse tema. Alguns meninos fizeram

verdadeiras revelações sobre suas paixões, dizendo “eu amo a [...]” e como era comum

dois meninos estarem interessados pela mesma menina, queriam saber de mim se elas

haviam falado de quem gostavam. Ao mesmo tempo em que uns segredavam, outros

faziam questão de registrar suas confidências pedindo para mostrar a gravação às

meninas, mediando possíveis encontros entre eles.

Foi possível perceber também que nos diferentes grupos os tipos de

envolvimento e participação dependem muito do interesse despertado por cada

pergunta. Algumas vezes os meninos tomavam a iniciativa de responder e ver quem

falaria primeiro; outras, as meninas acabavam monopolizando a fala, sendo difícil

interpretar e generalizar esses comportamentos, como se acontecessem de forma

independente do grupo, do encaminhamento dado e dos assuntos criados nas conversas.

Além disso, a questão da “timidez” ou da introversão entre crianças é muito

interessante, pois ao mesmo tempo em que o silêncio é revelador, havia crianças que

não falavam muito, mas que, dependendo da pergunta ou do estímulo feito pela resposta

do amigo, eram as primeiras a falar, ainda que baixinho. Isso reforça a idéia de que o

conteúdo discutido provoca a participação e a forma que ela toma.

O desafio é saber até que ponto as crianças se sentiam tocadas ou provocadas

pelo conteúdo daquilo que era perguntado, demonstrando vontade de falar e

compartilhar; ou até que ponto aquilo não interessava e, portanto elas não respondiam

espontaneamente nem faziam muita questão de se envolver. É claro que o papel do

entrevistador é fundamental para assegurar a palavra a todos, estimulando alguns,

cortando outros, mas trata-se de um equilíbrio difícil. Além disso, a postura do

pesquisador envolve às vezes desequilibrar certas interpretações, e se deparar com a

dúvida sobre como reagir diante de certos temas que aparecem, como a morte, por

Page 17: A pesquisa com crianças e mídia na escola_ questões éticas e teórico-metodológicas

exemplo. Nesses casos, parece que a criança pede ou precisa ouvir uma palavra nossa, e

não só ter garantido seu espaço de falar.

O diálogo como princípio educativo na pesquisa

Considerando que o dialogismo é um princípio constitutivo da linguagem, ele

não se reduz à comunicação interpessoal, pressupondo relações com outros momentos,

gerações e contextos. Para Duarte, Salgado e Souza (2002, p. 60)

assumir o princípio metodológico da dialogia no processo de pesquisa

com crianças (...), significa deixar ouvir as vozes que foram ou que

estão emudecidas (...) o resgate do diálogo entre crianças e adultos,

mais do que um princípio metodológico, consiste em um princípio

educativo, de modo que o adulto possa compreender a criança,

deixando-se surpreender pela singularidade, e a criança possa ver no

adulto outras formas de perceber e lidar com a vida contemporânea.

A garantia desse princípio precisa ser discutida junto às questões éticas e

estéticas que orientam as escolhas teórico-metodológicas na pesquisa com crianças. E

essa foi a nossa intenção.

Assim, este artigo partiu da reflexão sobre questões éticas da pesquisa realizada

com crianças e mídias e destacou a possibilidade do método como desvio para alicerçar

a compreensão do envolvimento direto das crianças na pesquisa. Discutiu algumas

possibilidades dos instrumentos teórico-metodológicos, como questionário e entrevista,

enfatizando diversas dimensões da interação entre pesquisador e crianças. Considerando

que alguns princípios educativos da pesquisa asseguram outras formas de participação

das crianças na pesquisa e na cultura, a pesquisa com crianças e mídias pode se tornar

uma experiência de mídia-educação, que faz pesquisa e intervenção didática e produção

cultural.

Para finalizar, é importante destacar que as reflexões aqui desenvolvidas sobre a

pesquisa com crianças remetem a um universo mais amplo, e, por estarem relacionadas

a questões econômicas, políticas e socioculturais, dizem respeito a questões éticas e

estéticas que transcendem o próprio objeto de pesquisa. No campo da mídia-educação,

as questões, os riscos e as possibilidades que envolvem a pesquisa com crianças e os

meios multimídiáticos ainda suscitam muitas indagações. Acreditamos que na

especificidade de uma pesquisa com crianças seja possível dialogar com outras

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experiências, e neste caminho, o método como desvio pode ajudar não só a encontrar

trilhas para melhor entender a relação entre crianças, mídias e cultura, como a construir

outras possibilidades de entender a própria pesquisa com crianças.

Notas

1 Para citar algumas pesquisas: as dissertações de integrantes do NICA realizadas no

PPGE-UFSC Mello, (2007); Munarim (2007); Pereira, (2008); Silva (2008) ; Kreuch

(2008).

2 Para distinguir os textos “Crônica Berlinense” e “Infância em Berlim por volta de

1900” ou “Infância Berlinense”, ver Gagnebin (1994, p. 83).

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