A Outra Margem Do Ocidente Resenha Renato Stzutman

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CRÍTICA UM HORIZONTE REAVISTADO A outra margem do Ocidente — vários autores (org. Adauto Novaes). São Paulo: Minc-Funarte/Compa- nhia das Letras, 1999, 526 pp. Renato Sztutman Debates interdisciplinares sobre o ser e o devir das sociedades ameríndias são sempre bem-vindos, principalmente num momento como este, em que o Brasil prepara-se para uma festa em ocasião dos 500 anos de encontros e desencontros com elas. Tal é o caso desta coletânea dirigida ao público mais am- plo, organizada por Adauto Novaes, que reúne artigos de antropólogos, filósofos, historiadores, indigenistas e ativistas nativos — intelectuais no sentido largo da palavra, que vêm construindo com seriedade um conhecimento fundado na diferença, na idéia de que é possível compreender culturas distanciadas espacial e temporalmente. A outra margem do Ocidente teve origem no ciclo de confe- rências homônimo realizado no segundo semestre de 1998 e é também o segundo volume da série "Brasil 500 anos: experiência e destino", que já contou com A descoberta do homem e do mundo, lançado em agosto de 1998. A coletânea nos reenvia a uma dúvida — quem são e o que pensam afinal essas populações? — e também a uma dívida — nosso sistema de MARÇO DE 2000 197

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CRÍTICA

UM HORIZONTE REAVISTADO

A outra margem do Ocidente — vários autores (org.Adauto Novaes). São Paulo: Minc-Funarte/Compa-nhia das Letras, 1999, 526 pp.

Renato Sztutman

Debates interdisciplinares sobre o ser e o devirdas sociedades ameríndias são sempre bem-vindos,principalmente num momento como este, em que oBrasil prepara-se para uma festa em ocasião dos 500anos de encontros e desencontros com elas. Tal é ocaso desta coletânea dirigida ao público mais am-plo, organizada por Adauto Novaes, que reúne

artigos de antropólogos, filósofos, historiadores,indigenistas e ativistas nativos — intelectuais nosentido largo da palavra, que vêm construindo comseriedade um conhecimento fundado na diferença,na idéia de que é possível compreender culturasdistanciadas espacial e temporalmente. A outramargem do Ocidente teve origem no ciclo de confe-rências homônimo realizado no segundo semestrede 1998 e é também o segundo volume da série"Brasil 500 anos: experiência e destino", que jácontou com A descoberta do homem e do mundo,lançado em agosto de 1998.

A coletânea nos reenvia a uma dúvida —quem são e o que pensam afinal essas populações?— e também a uma dívida — nosso sistema de

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pensamento e nossa civilização devem muitoàquela experiência de encontro desencadeada nosidos 1500 e que continua a se atualizar. O Ociden-te (a coletânea rompe com as fronteiras brasileiras)alterou, subjugou e muitas vezes suprimiu as ex-pressões sociais das populações encontradas, masisso não quer dizer que sua filosofia, suas certezase seus modos de vida não tenham sido radical-mente abalados nos confrontos e estranhamentosem relação a essa "gente toda nova", para usaruma expressão do filósofo seiscentista Etienne dela Boétie.

Como ler esse encontro, passado e presente,fatídico e fascinante, entre índios e ocidentais? Talquestão costura o debate que se faz notar peloconjunto bastante heterogêneo de 28 artigos, deba-te sobretudo entre as diferentes disciplinas e auto-res apegados às suas lentes específicas. Interessan-te oportunidade para que a antropologia — quemuitas vezes reivindicou para si o título de "ciênciadas sociedades primitivas" e se constituiu comolugar privilegiado para falar dessas sociedades —coloque-se em uma arena interdisciplinar e absor-va para sua reflexão dados que escapam de suacompetência. A filosofia, representada entre outrospor Marilena Chaui e Sérgio Cardoso, oferece nes-se sentido um mapeamento do impacto da idéia de"índio" para os sistemas de pensamento particula-res ao Ocidente. A presença de historiadores,como Ronaldo Vainfas e Serge Gruzinski, e críticosliterários, como Leyla Perrone-Moisés e Alcir Péco-ra, é uma grande contribuição, por meio da análisede documentos, para a compreensão dos mean-dros e desfechos dos contatos e negociações entreíndios e europeus. Desse embate de lentes analíti-cas devemos concluir que o consenso sobre asituação das populações indígenas e o sentido dosencontros permanece por fazer. E se a dúvidapersiste, é preciso extrair daí debates relevantespara o quadro atual das chamadas ciências dohomem. Examinemos brevemente alguns deles.

Uma leitura recorrente com que nos deparamosé aquela que lê o encontro dos índios com asociedade ocidental na chave do "mau encontro", ouseja, como algo que coloca em xeque o que há demais primordial na vida pré-colombiana: a liberdadede viver sem subordinar-se a um poder único centra-

lizado. Na esteira do Pierre Clastres de A sociedadecontra o Estado, esse ponto de convergência entreantropologia e filosofia, autores como Marilena Chaui("Mau encontro"), Jean-Michel Rey ("O princípio datirania") e Michel Abensour ("Hannah Arendt, ototalitarismo e a servidão voluntária") recuperam opensamento de La Boétie para refletir sobre a liberda-de originária dos povos indígenas, essa "gente todanova" ainda não corrompida pelo Estado. Esse filóso-fo explica a subordinação dos homens ao Estadopela sua condição de "servidão voluntária", peloprocesso de doação contínua do poder em favor dotirano, cessão que é ao mesmo tempo um gesto deabandono, ato de esquecimento. Os habitantes doNovo Mundo encarnam para La Boétie a figura doshomens livres por excelência, que se relacionam soba forma da amizade (forma superior de viver, segun-do Aristóteles) e resistem à emergência do poder quetranscende a sociedade. Para La Boétie a liberdade sedefine pela pluralidade humana, o "todos-uns", irre-mediavelmente frágil e que portanto está sujeito atransformar-se em seu contrário, o "todos-Um". "Lon-ge de declarar os homens subjugados por natureza,La Boétie, a exemplo dos trágicos gregos, chama aatenção para a fragilidade do bem — no caso, aliberdade", afirma Abensour (p. 498). Nesse sentido,a liberdade originária que conhecem os selvagensseria igualmente frágil e, uma vez subjugada, poderiase converter em seu reverso, a servidão. O fantasmaque o Ocidente representa para os índios consistiriajustamente nessa possibilidade de reversão e desna-turação.

Para Marilena Chaui, o mau encontro reside nomomento em que a submissão dada pela contingên-cia é feita necessidade pela Fortuna. A servidãovoluntária torna-se assim expressão da necessidadenatural, da justiça cósmica, da vontade de Deus e dacondição legítima de conquistados. Segundo a auto-ra, essa "gente toda nova" revela-se incapaz de sesubjugar à servidão voluntária — não pode viversenão sob a forma da liberdade. Sua supressão peloEstado etnocidário representa o desaparecimentoda humanidade racional e livre e aponta tambémpara a "humanidade enquanto tal" em sua universa-lidade originária. Essas gentes, escreve Chaui, "nãosão o Outro, são o humano nos homens. Não são oMesmo, são o humano tornado Outro para si mes-mo" (p. 471).

De La Boétie passamos a Jean-Jacques Rous-seau com o artigo de Sérgio Cardoso ("Variações em

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torno da felicidade dos selvagens"), no qual encon-tramos novamente a preocupação em pensar ohomem antes de seu corrompimento: o mal aquiprovém da própria sociedade e não da emergênciado Estado. No segundo discurso de Rousseau, maisconhecido como "Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade entre os homens", osselvagens são apresentados de maneira idílica —"livres, sadios, bons e felizes". Como em La Boétie,a questão para Rousseau consiste em pensar ooriginário para diferenciá-lo do artificial e estabele-cer os parâmetros que permitam aos homens avaliarseu distanciamento das normas da natureza e "aespessura da corrupção de [seu] artifício" (p. 362). Oselvagem viveria em si mesmo e no presente segun-do necessidades naturais; o civilizado, por sua vez,viveria fora de si e para o futuro de forma absoluta-mente dependente em relação aos outros. A questãoda alteridade em Rousseau é apreendida comoanterioridade: o Outro é tomado como espelho doEu em sua forma primeira. Os ocidentais estariamassim marcados por um enorme esquecimento deque foram algum dia semelhantes àqueles selvagense de um estado em que conheciam a plena liberda-de. Estamos pois diante de uma tradição filosóficacara ao Ocidente, que busca apreender o Outrodentro de um universo cuja medida é dada emanalogia ao próprio Eu.

É nesse sentido que Sérgio Paulo Rouanet ("Omito do bom selvagem") afirma que "os selvagensencarnam filosofias européias" (p. 433), na medidaem que servem como alegoria de uma humanidadeprimordial perdida. A filosofia dos séculos XVII eXVIII teria assim fundado o mito do "bom selvagem"privado de sua liberdade natural e desnaturado pelasociedade ocidental, uma figura que deveria serbuscada mesmo que unicamente por meio de deva-neios. Rouanet segue afirmando que a própriafundação da antropologia não pode ser dissociadadesse mito; segundo ele, o próprio relativismocultural, postura política e teórica sustentada poridéias de pluralismo e tolerância, seria de certomodo uma teoria antropológica do bom-selvagem,uma vez que impõe uma lógica em que "não hápadrões transculturais de julgamento moral" (p.431). Disso não escapariam nem as obras de ClaudeLévi-Strauss e de Pierre Clastres, que, ao lado das deRousseau e La Boétie, teriam inculcado à nossasociedade a culpa de ter se afastado do estadoselvagem, da humanidade em sua plenitude1.

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Leyla Perrone-Moisés ("Essomeriq, o venturosocarijó"), na contramão das discussões precedentes,se propõe a narrar um "bom encontro", aquele quese deu entre um capitão francês, Gonneville, e umíndio carijó, Essomeriq. Esse último fora levado aParis por Gonneville e em seguida por ele adotado.A partir desse exemplo a autora vislumbra a alegoriade um encontro amigável e igualitário entre doismundos e a possibilidade de comunicação apesar eem virtude da diferença. O carijó adotado pelocapitão francês que deixa sua terra natal e constituifamília na França deve ser pensado como infeliz? Épossível valorar a experiência sem estar ciente dasexpectativas dos nativos eles-mesmos? A provoca-ção da autora é bastante pertinente, embora seja ocaso de Essomeriq por demais incomum. Ela situasua leitura do fenômeno do encontro, história alegó-rica, simbólica e instigadora de reflexão, comoapoiada em uma sensibilidade cara ao fim desteséculo — faz referência sobretudo ao tal relativismocultural e à noção de "respeito à alteridade" quepassam a freqüentar a pauta dos projetos de cunhopúblico e nacional. Na sua perspectiva, o relativis-mo aponta menos a figura problemática do "bomselvagem" que a possibilidade de pensar os índioscomo sujeitos responsáveis e donos de seu própriodestino e as suas culturas como compatíveis com omovimento incessante de modernização.

Voltemos brevemente ao crepúsculo do séculoXX, para o qual Carlos Alberto Ricardo ("A demarca-ção das terras e o futuro dos índios no Brasil")vislumbra um horizonte otimista, ao menos quandose refere ao futuro das populações indígenas noBrasil. Para ele, não é possível negligenciar seusganhos com a Constituição de 1988, expressos pelorompimento com a tradição assimilacionista, pelaconquista de um novo estatuto dos direitos originá-rios sobre a terra e por um capítulo especial para osdireitos indígenas (cuja maior virtude é a garantia dademarcação de terras), ainda que a Carta tenha

(1) As afirmações de Rouanet me parecem um pouco exagera-das principalmente com respeito à obra de Lévi-Strauss. Osrelatos apaixonados sobre o modo de vida nambiquara emTristes trópicos, aos quais se refere o autor, estão muito maispróximos do olhar do Lévi-Strauss romancista que do Lévi-Strauss propriamente teórico. Afirmar que os nambiquarasperecerão diante do contato com os brancos seria, teoricamen-te falando, uma proposição etnocêntrica que esse autor nãopoderia abraçar.

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deixado muitas lacunas (ver a esse propósito oartigo "Da tirania à tolerância", de Carlos FredericoMarés, curiosamente o atual presidente da Funai,que problematiza criticamente as categorias jurídi-cas empregadas aos índios). Segundo Ricardo, olugar do Estado para assegurar esses direitos origi-nários tornou-se fundamental e deve ser reivindica-do: "É imprescindível contar com uma clara políticacompensatória por parte do Estado, que faça valerna prática os direitos constitucionais, garantindonão somente as demarcações de terra, mas tambémos serviços diferenciados, ainda que básicos, desaúde e educação, e que valorize estrategicamente asociodiversidade nativa e sua correlação com abiodiversidade" (p. 357). O que se tem em vista é afundação de um novo indigenismo firmado em umregime de parcerias com os próprios índios e outrasorganizações da sociedade civil, como as não-governamentais, dentre as quais o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), presidido pelo autor (um ativistaque há mais de vinte anos acompanha os percursosda causa indigenista). O quadro apontado por Ricar-do abre uma nova perspectiva de leitura do encon-tro: a possibilidade de interlocução por meio daconstrução de canais de diálogo e esquemas deparceria entre índios e brancos.

Um horizonte de diálogo entre o Estado e associedades indígenas — estandarte de um certoindigenismo que se propõe confiantemente comomediador — nos coloca diante da revisão de deter-minadas convicções: nem o Múltiplo sucumbiu aoUm, nem o Um deixou de sê-lo pelo Múltiplo. Osdados apresentados por Ricardo nos permitem per-ceber, no mais, que a lógica da sociedade civil e a daindígena não são definitivamente excludentes; pelocontrário, podem justapor-se em certos planos semque isso signifique a aniquilação de uma das partes,tampouco a supressão de toda a desigualdade entreelas. Para além dos bons ou maus resultados, éinteressante perceber as ambivalências e jogos deinteresse a que estão submetidos todos esses pro-cessos de interação entre agentes estranhos uns aosoutros.

Um tema bastante recorrente é o movimento deconversão dos índios pelos missionários europeus.Patrick Menget ("A política do espírito") propõe quese pense a afinidade entre categorias cristãs e

indígenas em vez de partir do princípio de que elassão absolutamente excludentes — foi por reconhe-cer semelhanças entre a cosmologia indígena e aeuropéia que os missionários puderam criar homo-logias entre categorias, por exemplo, entre anã(espíritos da floresta) e o diabo. Veja-se a propósitodessa discussão o artigo de Frank Lestrignant ("Àespera do outro") sobre os relatos de André Thevet,que forçavam homologias entre os heróis civilizado-res bíblicos e aqueles da mitologia tupinambá. ParaMenget, o êxito da conversão deve não obstante serposto à prova, uma vez que não pode ser medidoapenas por evidências empíricas e discursivas. Ape-sar de reconhecida a afinidade que une a religiãonativa à cristã — principalmente no que se refere àidéia de corporeidade da alma (anterior no cristia-nismo à separação entre corpo e alma proposta porDescartes) —, a primeira revela-se irredutível aoprincípio de subordinação do corpo à alma. Oprojeto de catequese não teria atingido plenamenteseu objetivo dada a "incapacidade da alma indígenapara sobreviver à domesticação de seus corpos,mostrando assim que, afinal, eles concebiam demaneira diferente dos ocidentais a hierarquia alma-corpo, ou, mais simplesmente, que não aceitavamtornar-se os corpos movidos pela alma de seussenhores" (p. 179).

A temática da conversão assim apresentadanos leva para muito além da perspectiva do bomou do mau encontro; não há razões nem históricasnem estruturais para acreditar em um desfechoinevitável. Em um determinado momento o queera tido como sintonia, a criação de um sistema deequivalências de categorias, pode se converter emgrandes mal-entendidos culturais, pois estamos defato nos referindo a um campo fundado por umembate entre cosmologias — teorias do mundo —bastante diversas. É nesse sentido que Juan CarlosEstensoro ("O símio de Deus") se refere a umduplo movimento inerente ao movimento de cristi-anização: fusão/assimilação e rejeição/separação.A afinidade vislumbrada em um certo momentoentre índios e cristãos pode se transpor, sem mui-tas dificuldades, a um estado crítico de hostilidade.No encontro, amizade e inimizade não são desti-nos certos, mas posições passíveis de serem inter-cambiadas.

Essa oscilação pode ser verificada no discursoproduzido pelos jesuítas seiscentistas em suas cartasaltamente retoricadas à Coroa portuguesa, tal como

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sugere o artigo de Alcir Pécora ("Cartas à segundaescolástica"). O índio descrito por Pe. Manuel daNóbrega, de quem se ocupa o autor, encarna afigura do ambíguo: as suas práticas são decidida-mente más mas não o são as suas índoles. A tarefada conversão consiste portanto na remoção dosmaus costumes entranhados na alma, que dificultama visão de sua "brancura" original naturalmentedisposta aos caracteres cristãos. A tópica da igualda-de defendida pelos jesuítas estaria sustentada namissão de inscrever nas almas selvagens uma marcade devoção capaz de estreitar a relação entre índiose brancos. A proposta da conversão sob esse prismanão seria senão a do retorno do índio à sua próprianatureza original, "adiada pelo longo hábito de seuspecados" (p. 395).

Mas justamente pelo aspecto "inconstante" dosselvagens, que imprevisivelmente organizavam rea-ções e revoltas contra os missionários — ver arespeito os artigos de John Monteiro ("Armas earmadilhas") e de Ronaldo Vainfas ("Nossa Senhora,o fumo e a dança") —, a política de conversão nãopoderia limitar-se à via amorosa, devendo lançarmão da via da experiência por medo, ou seja, fazeruso da força física para sujeitar o indígena. Da tópicada igualdade passava-se à "tópica da servilidade dagente do Brasil". Segundo Pécora, seria possívelaproximar o mesmo Nóbrega que pregava a boaíndole dos selvagens ao Sepúlveda do Tratado sobreas justas causas da guerra contra os índios. ComNóbrega, a continuidade da missão implicava asolicitação de providências à autoridade competen-te e estas não raramente redundavam em açõesviolentas. Um esforço de aproximação via catequeseculminava na alternativa radical do extermínio físi-co; em outras palavras, a política cristã revelava-setão inconstante quanto aquela que ela mesmo atri-buiu aos nativos.

Retornemos ao argumento de Patrick Mengetacerca dos pontos de convergência entre a ontolo-gia cristã e a dos selvagens e da recuperação doponto de vista dos alvos da conquista. Tudo sepassa como se os nativos estivessem "abertos" àexperiência do cristianismo, como se elementos dacultura ocidental encontrassem um lugar em suascosmologias e fossem por elas redimensionados.Muitos estudos recentes em etnologia indígena(dentre os quais os de Menget) têm se debruçadosobre o tema da "abertura ao outro", ou seja, decomo o novo, o estranho, entra no mundo de

maneira menos desordenadora que edificante2.Muitas vezes tomamos — de modo por certo etno-cêntrico — as sociedades indígenas em seu aspec-to monádico, reproduzindo a fórmula clássica dasociedade primitiva fechada, sagrada e tradicional.Sob esse prisma, tudo que vem de fora lhes seriaprejudicial, uma ameaça por vezes fatal à sua har-monia interna. Essa visão, impregnada pela idéiade mau encontro, pode ser contrariada por etno-grafias que, se não tratam diretamente do contatocom os brancos, se dispõem a demonstrar queessas sociedades não são jamais fechadas em simesmas, antes revelam uma dinâmica interna par-ticular e uma vasta trama de relações intra e inter-grupais.

Menget conclui que a figura do estranho, dodistante, é uma peça fundamental para a produçãoda memória dos grupos indígenas. Em "Entre me-mória e história", outro artigo publicado nessamesma coletânea, ele propõe a revisão do rótulo de"sociedades frias" para as sociedades ameríndias eafirma ser possível pensar uma forma de historicida-de desvelada pela memória das relações entre dife-rentes grupos indígenas. Muito antes do "contato"com o mundo dos brancos, os diversos gruposindígenas travavam contatos entre si, transforman-do-se mutuamente. Em outras palavras, não queeles desconhecessem o sentido da história; ao con-trário, construíam-no de acordo com sua experiên-cia da alteridade. Menget toma o exemplo dosIkpeng do Alto Xingu, para quem a produção damemória está sempre atrelada às relações com omundo exterior: "Os Ikpeng recorriam ao Outro [...]para construir sua identidade coletiva, combinandoaquisições materiais, seres vivos, elementos concei-tuais (os nomes) e objetos simbolicamente elabora-dos, tudo isso proveniente de fora" (p. 160). O cerneda existência para os Ikpeng, acrescenta Menget,consiste na guerra, movimento centrífugo, busca noexterior de um nexo para a vida social. São oscativos de guerra que fornecem aos Ikpeng seusnomes próprios, únicos bens transmissíveis (todosos demais são destituídos com a morte de umhomem). Ou seja, o que é reconstituído comomemória desse grupo é na verdade um dado colhi-do na relação com a exterioridade — a memória é

(2) Esse é o tema, por exemplo, de História de lince, livro emque Lévi-Strauss reconcilia suas Mitológicas com o problemada história entre as sociedades ameríndias.

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sempre orientada para fora, implica menos umvoltar-se a si próprio que um projetar-se.

O tema da centralidade da guerra entre osameríndios é retomado no artigo de Carlos Fausto("Da inimizade: forma e simbolismo da guerra indí-gena"), revelando um esforço em propor generali-zações. O caminho de Fausto vai ao encontro do deMenget, na medida em que busca um modelonativo de produção da sociedade orientado para oexterior. Para Fausto, trata-se de pensar uma econo-mia generalizada de produção de pessoas por meioda destruição de pessoas, ou seja, é por meio damorte — sacrifício — do inimigo que a sociedadeindígena acredita construir sua identidade. A guerraameríndia seria, nesse sentido, um ato de "life-giving": ela transforma a predação projetada parafora em uma produção de parentes que sedimentaas relações internas. À diferença da guerra deconquista praticada pelos europeus, que se apro-pria dos corpos como força de trabalho abstrato ede riquezas cujo valor preexiste à sua apropriação,"na guerra ameríndia os corpos de inimigos sãoantes suportes para um trabalho de produção socialde pessoas (e não meios para produção de bens), eos objetos adquirem valor no próprio processo desua absorção" (p. 274).

Ambos, Fausto e Menget, partem de etnografi-as particulares em busca de uma generalização,uma certa metafísica ameríndia fundada na guerra.Menget se ocupa em investigar aquilo que poderí-amos chamar de historicidade indígena, um modode apreender a história distinto daquele empreendi-do por um historiador preocupado em acompanhara sucessão de acontecimentos ou de um filósofoque busca nessas sucessões a expressão de umespírito universal. O motor dessa historicidade resi-diria justamente na produção de uma memória dasguerras que se constrói por meio de elementosexógenos e que indica um movimento incessantevoltado a essa mesma exterioridade. Disso decorre,no argumento de Fausto, o fato de a inimizaderevelar-se uma categoria fundamental para a cons-tituição dessa metafísica.

Essa etnologia preocupada em desvelar siste-mas metafísicos nativos traz de volta o tema dagrande diferença entre o pensamento indígena e oocidental. Se toda sociedade está em alguma medi-da "aberta ao outro", e isso já ensinavam as Estrutu-ras elementares do parentesco, nem todas fazemdessa abertura o sentido de seu ser social. Dito de

outra forma: se o Ocidente insistiu em políticas dehomogeneização cultural, tendo tomado a diferençacomo ameaça de constituição da identidade e apos-tado em uma interioridade coesa dotada de frontei-ras definidas (asseguradas sobretudo pela ideologiado Estado nacional moderno), as populações ame-ríndias parecem privilegiar "filosofias de alteridade"que enfatizam a necessidade de outrem na constitui-ção de seu espaço social, menos caracterizado peloestado de diferenciação interna que pela dispersãoe fragmentação e pela projeção de sua estruturasocial na exterioridade3.

O debate em torno dessas filosofias de alterida-de ganha novos ares com a discussão desenvolvidapor Philippe Descola ("A selvageria culta") a respei-to das relações entre homem e natureza na regiãoamazônica. Deparamos então uma nova desconti-nuidade entre os ameríndios e nós, sobretudo,porque eles formulam o problema de suas relaçõescom a natureza em termos sociais, enquanto nósopomos o domínio da natureza, reino da puraobjetividade, ao domínio da cultura, lugar do exer-cício da subjetividade. Descola parte de sua experi-ência com os índios Achuar, subgrupo Jivaro (Ama-zônia peruana), para quem animais e plantas pos-suem uma alma semelhante à dos humanos, ouseja, possuem, por trás de seus disfarces corpóreos,uma certa consciência reflexiva e são dotados deintencionalidade. A relação entre não-humanos ehumanos, natureza e cultura, pensada habitualmen-te em sua descontinuidade, se apresentaria entreessas populações de um modo contínuo: "O quechamamos de natureza não é aqui um objeto asocializar, mas o sujeito de uma relação social;prolongando o mundo familiar, ela é verdadeira-mente doméstica até em seus redutos mais inaces-síveis" (p. 118).

O autor incorpora em suas reflexões a noção de"perspectivismo ameríndio" desenvolvida por Eduar-do Viveiros de Castro'': um sistema de pensamento

(3) Faço referência aqui à etnologia indígena tal como ela vemsendo pensada por autores americanistas como Eduardo Vivei-ros de Castro, Joanna Overing e Philippe Descola.

(4) Viveiros de Castro se debruçou sobre o "perspectivismoameríndio" em "O mundo como afeto e perspectiva", conferên-cia que integrava o ciclo que deu origem a essa coletânea.Infelizmente, não foi publicada. No entanto, grande parte dosargumentos contidos naquela exposição encontra-se publica-da em "Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo amerín-dio". Mana. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2(2), 1996.

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que toma não-humanos e humanos em um mesmocontínuo animado por um regime idêntico de soci-abilidade. Não-humanos e humanos não são apenasreconhecidos como portadores em si de uma mes-ma alma, o que lhes permite a comunicação, mascomo capazes de ter seus corpos metamorfoseadosuns nos outros e, por conseguinte, de trocar deperspectiva. A forma visível dos corpos dos animaisnão é senão um disfarce que escamoteia sua consti-tuição humana, então condição universal de todosos seres viventes. O cosmos seria animado por ummesmo regime cultural — um único espírito —porém coabitado por naturezas heterogêneas, dife-rentes maneiras de uns apreenderem os outros. "Oreferente comum das entidades que habitam omundo não é, portanto, o homem como espécie,mas a humanidade como condição" (p. 123).

Para aquém do horizonte filosófico que essadiscussão possa conduzir, Descola pretende se apro-ximar de uma teoria propriamente ameríndia doambiente para se contrapor aos jargões ecológicosem voga nos debates contemporâneos sobre a éticaplanetária. O "índio naturalista", reconhecido comoparte do mundo natural, tese muitas vezes sustenta-da pelos adeptos da ecologia cultural e os ambien-talistas emergentes, seria tomado como precursordo "índio ecologista", aquele que por naturezaassume a tarefa de conservar a natureza. Tal propo-sição é conseqüência de uma cosmologia naturalistacara ao Ocidente, uma visão de mundo calcada nodualismo natureza-cultura, ordens tomadas comodefinitivamente exteriores uma à outra. O índio sópode ser considerado "naturalista" se se posicionamais ao lado da natureza que da cultura, quandoportanto não consegue se constituir como sujeito,ou "ecologista" se consegue tratar a natureza demaneira absolutamente desimplicada, ou seja, comose pudesse viver na natureza sem transformá-la,como se pudesse existir novamente como um não-sujeito. Pelo contrário, por serem "multiculturalis-tas"5, os índios podem (e talvez prefiram) acreditarque a natureza é uma das formas do sujeito e quecom ela é possível travar relações sociais. O desejode estabelecer um campo de sociabilidade fora doslimites da própria sociedade é pois transposto aomundo natural. A selva é também culta e é narelação com ela que a vida social deve estar funda-da, não meramente porque ela representa fonte de

(5) Ibidem.

recursos naturais indispensáveis para a subsistênciabiológica, mas sobretudo porque se configura emum campo de alteridade.

O discurso ecológico a que se refere Descolase revela, no mais, um mal-entendido, um encon-tro entre diferentes concepções do qual se podetirar diferentes proveitos. A fala do líder Davi Ko-penawa Yanomami ("Descobrindo os brancos"),transcrita e adaptada por Bruce Albert, é um exem-plo de que esse discurso, quando apropriado pormembros de sociedades indígenas, pode revestir-se de um conteúdo cosmológico que lhes é pró-prio e ao mesmo tempo constituir-se como armapolítica. Para Davi, a ecologia é antes de tudo umaarena política (na apreensão ianomami do termo)que abriga o embate de poderes predatórios deque ele, como xamã, deve se ocupar para contro-lar e restabelecer o equilíbrio. Em um caso comoesse, discursos absolutamente diferentes — o cos-mológico indígena e o ecológico conservacionista— podem se encontrar em determinados pontos eelaborar conjuntamente soluções para os índios epara a sociedade brasileira.

As palavras de Davi revelam-no como um"tradutor", no sentido empregado por Manuela Car-neiro da Cunha ("Xamanismo e tradução") em rela-ção aos xamãs da bacia do Alto Juruá (Acre). Para aautora, o xamã é uma figura que tem florescido nosmais diferentes contextos amazônicos em face doenfraquecimento e desmoronamento de instituiçõespolíticas e econômicas de tipo tradicional. Ele repre-senta a "metáfora de uma posição relativa quanto aograu generalizador do ponto de vista particular"(p. 226), ou seja, se distancia de seu local de origeme adquire prestígio justamente por possuir acesso aomundo dos outros, de onde provém grande partedas novidades materiais e imateriais, simultanea-mente fontes de perigo e poder. "Idealmente situa-do para encarnar o projeto de junção do local e doglobal", o xamã, viajante por excelência (seja essauma viagem onírica, seja um deslocamento geográ-fico propriamente dito), procura reconstruir o senti-do de uma experiência que lhe é estranha e inicial-mente carente de significação. Seu desafio é poistransformar o desconhecido em apreensível e porisso é aquele que pode se colocar em perspectiva,assumir o ponto de vista do outro, para, em sua

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CRÍTICA

viagem de volta, estabelecer alguma ressonância eharmonia entre o distante e o familiar, entre omundo das mercadorias e o mundo das relações deparentesco.

Carneiro da Cunha conclui seu artigo com adefesa da diversidade cultural: "malgrado a extraor-dinária difusão da mídia, não existe cultura global"(p. 232). Para ela, não haveria como pensar osistema mundial, caracterizado pelo movimento dehomogeneização cultural e imposição de um esque-ma econômico hegemônico, senão em termos sin-tagmáticos. Não haveria como subjugar as diferen-ças culturais em nome de um modelo "global", oqual não dá conta dos problemas de construção desentido em situações por assim dizer de fronteira,em que modelos locais não cessam de ser postos emprática. Uma vez que o sistema mundial se revelapara essas sociedades como algo que carece dedecodificação, há necessidade da figura dos traduto-res, aqueles que podem, com suas propriedadescosmológicas, restituir o sentido da experiência aprincípio inominável. Todavia, lembra a autora,como qualquer esforço de tradução, transposiçãode um código a outro — no caso, de um códigoparticular a outro mais geral —, esta jamais secompleta, permanece como esforço inconcluso.

A noção de tradução que Manuela Carneiro daCunha recupera da obra de Walter Benjamin secoloca de certa forma no conjunto desta coletâneacomo alternativa à idéia de mau encontro que

Marilena Chaui buscou em La Boétie. A integridadepostulada por La Boétie em relação aos ameríndiosnão nos permite pensá-los como nossos contempo-râneos — sob essa ótica, sua existência seria contra-ditória à nossa e, nesse sentido, eles sucumbiriamdiante do Estado etnocidário e da economia demercado, máquinas de supressão da diferença pro-priamente ditas. Enfatizar essa propriedade de tra-dução, pensar os indígenas como agentes da produ-ção de sentido (e não simplesmente como detento-res de uma natureza humana incorrompida), éconsiderar as saídas exeqüíveis — políticas e cos-mológicas — para o problema da inserção, forçadaou não, em uma situação marcada pelas desconti-nuidades culturais e pela imposição de um modeloeconômico baseado em relações de dominação.Talvez não seja essa visada mais que um começo,algo que no entanto impulsiona a prosseguir comuma investigação que aposta na possível inteligibi-lidade entre nós e eles, a despeito dos mal-entendi-dos e desencontros que possam se dar, e queportanto não abdica do desejo de conhecer umuniverso distanciado, de reavistar um horizonteofuscado. Ora, esse desejo é o mérito e a distinçãode A outra margem do Ocidente.

Renato Sztutman é mestrando em Antropologia Social pelaUSP, bolsista do Cebrap e membro do corpo editorial darevista Sexta Feira.

204 NOVOS ESTUDOS N.° 56