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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
A ORGANIZAÇÃO DA SEQUÊNCIA NARRATIVA EM RÉCITS DE VIE
ISABEL ROQUE VIANA
Fortaleza – CE
2012
ISABEL ROQUE VIANA
A ORGANIZAÇÃO DA SEQUÊNCIA NARRATIVA EM RÉCITS DE VIE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal do Ceará, sob orientação da
Profª. Drª. Sandra Maia-Vasconcelos, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Linguística.
Fortaleza – CE
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
V667o Viana, Isabel Roque.
A organização da sequência narrativa em récits de vie / Isabel Roque Viana. – 2012.
103 f. : il., enc. ; 30 cm.
Dissertação(mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza, 2012.
Área de Concentração: Linguística, letras e artes.
Orientação: Profa. Dra. Sandra Maia Farias Vasconcelos.
1.Biografia como forma literária. 2.Prosa escolar brasileira. 3.Análise do discurso narrativo.
4.Língua portuguesa – Composição e exercícios – Estudo e ensino. 5.Educação de adultos.
6.Jovens – Educação.. I.Título.
CDD 469.800712
AGRADECIMENTOS
A Deus, por sua infinita misericórdia e sua insondável providência.
Aos meus pais, Israel e Artemisa, por me ensinarem a trilhar o caminho da retidão por s
sempre se tornarem fiéis às minhas crenças, fazendo todo o possível.
À minha avó, Meire, que, com sua escolarização básica, sabe muito mais que todos nós e mais
ainda do que eu suponho saber e por isso me ensinou muito.
Aos meus irmãos, Bárbara e Rafael, porque aprendemos sempre juntos, desde sempre; às
minhas sobrinhas Isadora e Ísis, pelos sorrisos fáceis que me causam.
A Robson, pela compreensão e companheirismo devotados; pela ajuda irrestrita; pela
convivência partilhada; pelo amor vivenciado; por, absolutamente, tudo.
À amiga Sandra, que me acompanha desde a graduação, e por isso é companheira; que me
ensina sempre, e por isso é professora; que me orienta, e por isso - e pelas tradições do meio
acadêmico - é minha orientadora, profa. Dra. Sandra Maia-Vasconcelos.
Ao GELDA – Grupo de Estudos em Linguística e Discurso Autobiográfico, na figura de
todos os seus integrantes, que contribuíram com discussões em altos brados e grandes
gargalhadas, o que nos torna um grupo único.
Ao PPGL – Programa de Pós-Graduação em Linguística, em todo seu corpo docente e
discente, pois são os que compartilham e que mais bem entendem todos os reveses e
conquistas desse caminho, e também na figura de seus funcionários, Eduardo e Antônia,
sempre solícitos a atender nossos pleitos.
Ao PosLa / UECE – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade
Estadual do Ceará, por oportunizar a participação em disciplinas essenciais para o
desenvolvimento desse estudo e o intercâmbio de saberes acadêmicos.
À profa. Dra. Mônica Cavalcante, que acompanhou todo o processo de desenvolvimento
desse estudo e de quem partiram contribuições significativas em todos os momentos em que
pude compartilhar de seu conhecimento.
Às profas. Dras. Ercília Maria Braga de Olinda e Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari
Passeggi, que se dispuseram gentilmente a ler e dar suas colaborações, tornando possível a
concretização dessa pesquisa.
Aos alunos da EJA que cooperaram com esse estudo, aceitando escrever sobre suas
experiências particulares, cedendo sem reservas seus récits de vie, concretizando, desse modo,
o que era apenas suposição.
À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que subsidiou a
pesquisa ora apresentada.
RESUMO O trabalho ora apresentado tem como tema a sequência narrativa em récits de vie, delimitando-se na organização da sequência narrativa em récits de vie em redações escolares produzidas por alunos de EJA – Ensino Médio durante 04 encontros realizados num período de tempo de 02 (dois) meses. Os estudos autobiográficos adquiriram facetas variadas através do tempo e nos mais diversos campos de estudo, sendo praticados em várias áreas das Ciências Humanas, e variando de modalidade epistemológica, maneira de abordagem dos dados etc. A autobiografia é uma vertente advinda da biografia, podendo ser conhecida por diferentes nomenclaturas: narrativa de vida, história de vida, relato, depoimento, memorial etc. Josso (2007) classifica–a como uma oportunidade de refletir sobre diferentes registros de expressão e representações de si. Diversos estudos em outros campos das Ciências Humanas discorrem sobre a construção subjetiva dessas narrativas em sua composição objetiva da vida social. Nesse contexto, Bourdieu [2001(1994)] sinaliza para a construção de um sentido coerente na formulação da autobiografia, em que o autor-ator, na tentativa de racionalizar diversos eventos ocorridos no percurso de sua história contada, canaliza eventos e interdita outros, formulando uma própria representação de um ideal do seu eu. O autor considera que a narrativa, biográfica ou autobiográfica, busca organizar os eventos em sequências ordenadas e inteligíveis. Na educação, a escolha desse objeto de estudo visa a dar voz ao profissional professor, como meio de refletir sobre sua formação e atuação (ECKERT-HOFF, 2008) e a demais sujeitos (ARAÚJO & OLINDA, 2010). No âmbito da Linguística, os récits de vie como corpus possuem certo ineditismo. Consequentemente, o aparato teórico-metodológico necessário para a análise dos dados precisou ser construído aos poucos e de forma interdisciplinar: utilizamos fontes da Educação, da História e das Ciências Sociais, sem preterir as contribuições dos estudos linguísticos – pois, como afirmou Barthes (1971) e considerando nossos problemas de pesquisa, “parece razoável dar como modelo fundador à análise estrutural da narrativa a própria linguística” - para que fosse possível elencar critérios de análise passíveis de aplicação. Esta pesquisa objetiva, então, analisar a organização narrativa nos récits de vie produzidos por alunos da EJA - Educação de Jovens e Adultos. Nosso objetivo geral foi analisar por comparação a organização dessa sequência narrativa em récits de vie produzidos por alunos da EJA com a organização de uma sequência narrativa prototípica. Para tanto, utilizamos classes propostas por Barthes (1971), na sua busca por uma classificação empregável às narrativas de forma geral, a saber: funções e índices. A narrativa eleita como prototípica para a realização desse estudo foi Conto de escola, de Machado de Assis. Os resultados demonstram que uma primeira característica dos récits de vie é a presença das funções cardinais, ainda que estas não estabeleçam relação direta, como propõe Barthes. Quanto à classificação segundo essas categorias, admitimos os récits de vie como narrativas fortemente indiciais, em detrimento de sua funcionalidade. Outro resultado deveras importante é a possibilidade de identificar nesses textos as classes propostas por Barthes que - consideradas pelo autor e aqui admitidas como tais - são essenciais para a elaboração de uma análise da estrutura narrativa e caracterizam o texto como tal. Palavras-chave: récits de vie. Narrativa. EJA.
ABSTRACT
The already presented work has the récits de vie narrative sequence as theme, delimitating the organization of récits de vie narrative sequence in compositions produced by EJA students – High School Level, accomplished during 04 meetings in a 02 (two) months period of time. The autobiographical studies acquired miscellaneous through time and in many study fields, being practiced in many Human Sciences areas and changing its epistemological modality, targeting data, etc. Resulting from biography, the autobiography is a slope which can be known in several nomenclatures: life narrative, life story, report, statement, memoire etc. Josso (2007) classifies it as a opportunity to think over many expression records and self-representations. Manifold studies in other Human Sciences fields discourse about these narrative subjective constructions in its objective composing in social life. In this sense, Bourdieu [2001 (1994)] notes a autobiography coherent sense in the autobiography formulation construction, where the author-actor, attempting to rationalize diverse events that happened in his story journey, canalizes some of them and forbids the others, formulating his own ideal representation of his “me”. The author considers that the narrative, biographical or autobiographical, tempts to organize the events in ordered and intelligible sequences. In the educational field, this study object choice aims to give the chance to the professional teacher, as a way to meditate his training and proceeding (ECKERT-HOFF, 2008), to other subjects as well (ARAÚJO & OLINDA, 2010). In Liguistics within, the récits de vie as corpus are a certain novelty. Consequently, the necessary theorical-methodological apparatus for data analysis needed to be gradually built and in interdisciplinary form: using Educational, Historical and Social Sciences sources, without neglecting the linguistics studies contribution – as Barthes (1971) declared and considering our research’s problems, “it seems to be right-minded to provide as a founding model to the narrative structural analysis its own linguistic” – making possible to list the liable analysis application criteria. Thus, this research objectives to analyze the narrative organization in récits de vie composed by EJA [Educação de Jovens e Adultos (Youth and Adults Education)] students. Our general aim was analyzing by comparison of theses récits de vie narrative sequence organization composed by EJA students with the prototypical narrative sequence. Thereby, we used the castes proposed by Barthes (1971), questing a proper classification for narratives in general, to understand: function and indexes. Machado de Assis’ Conto de escola, was the elected prototypical narrative to this research achievement. The results show that a first characteristic of récits de vie is the presence of the cardinal functions, even if they don’t establish a direct relationship, as proposed by Barthes. Regarding the classification according to these categories, we admit récits de vie as narratives strongly indexical, rather than its functionality. Another very important result is the possibility of identifying the classes in these texts by Barthes proposed that - and here the author deemed admitted as such - are essential to prepare an analysis of narrative structure and characterize the text as such. Keywords: récits de vie. Narrative. EJA.
Lista de gráficos e quadros
Lista de gráficos
1. Gráfico da distribuição de pessoas com 15 anos ou mais de idade que frequentavam curso
de educação de jovens e adultos, por modalidade de curso – Brasil – 2007. 13
2. Diagrama de Cardoso (2009, In: MAIA-VASCONCELOS; CARDOSO, 2009) 30
3. Diagrama das classes propostas por Barthes (1971, 2008). 46
4. Gráfico da ondulação narrativa (MAIA-VASCONCELOS, 2010, p. 111) 60
Lista de quadros
Quadro 01: Exemplo de funções cardinais no conto de Machado de Assis. 62
Quadro 02: Exemplo de catálise no conto de Machado de Assis. 63
Quadro 03: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 01. 64
Quadro 04: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 04. 64
Quadro 05: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 07. 64
Quadro 06: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 12. 65
Quadro 07: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 14. 65
Quadro 08: Exemplo de informante no récit de vie de S. F. 02. 67
Quadro 09: Exemplo de índice no récit de vie de S. F. 04. 67
Quadro 10: Quadro comparativo elaborado a partir da ocorrência das categorias analíticas no
material empírico. 68
SUMÁRIO
1 Introdução 10
2 Falar de si...
2.1 A EJA: um breve histórico 15
2.2 A pesquisa autobiográfica e suas nuances 21
2.3 Escritas de si 26
2.4 As produções dos alunos da EJA 33
2.5 A escolha do termo récit de vie 34
3 Catando conchinhas nas narrativas...
3.1 O estudo da narrativa 38
3.2 Funções e Índices: as categorias propostas por Barthes 44
3.3 Algumas resenhas necessárias 47
4 Em busca de um método
4.1 Caracterização da pesquisa 51
4.2 Sujeitos da pesquisa 51
4.3 Material 52
4.4 Procedimentos de geração de dados 52
4.5 Análise dos dados 53
5 Juntando os rastros
5.1 Categorias de análise 54
5.2 Análise do corpus 54
6 Conclusão: uma leitura provisória 69
Referências
Anexos
10
1 Introdução
Entre as inúmeras discrepâncias que compõem o Brasil, mais especificamente o povo
brasileiro, podemos incluir duas faces de uma mesma moeda: os escolarizados e os não
escolarizados. Escolhemos esses termos a despeito de “alfabetizados / analfabetos” ou
“letrados / iletrados” para não enveredarmos pelas discussões que os termos “alfabetização” e
“letramento” ainda suscitam. São pautas de extrema importância, mas que não são objetivo de
nosso trabalho. Se falamos de escolarização, é porque buscamos enfatizar a questão do aluno
brasileiro nos bancos escolares, mais especificamente, o acesso à escola em idade apropriada.
É conhecida a crescente ampliação da escolaridade básica e gratuita, assegurada pelo
governo e obrigatória para crianças de idade entre 07 e 14 anos (LDB 9394/96, art. 4º). Os
percalços sofridos por alunos e professores nesses oitos anos de permanência na escola
também não são ignorados: reprovação, repetência, estrutura física precária, desmotivação dos
aprendizes, desvalorização dos professores e indicadores de qualidade preocupantemente
baixos são problemas que podem ser desmembrados em inúmeros outros. Acrescentaremos a
esses problemas outra questão essencial: o abandono da escola, seja por desinteresse causado
por múltiplos fatores, seja pela falta de condições para o acesso ao processo de escolarização.
Para diminuir o problema e tentar reduzir o número de pessoas que não possuem a
escolaridade obrigatória completa, opções como ciclos de formação e classes de aceleração
são oferecidas pelos sistemas de ensino. Por decisões pessoais ou exigências do mercado de
trabalho, alguns desses antigos alunos que um dia abandonaram os estudos retornam à escola
para dar continuidade à formação interrompida. A modalidade Educação de Jovens e Adultos
– EJA é, então, mais uma saída.
A oferta desse tipo de ensino é obrigação do município ou do estado, a depender do
nível: o ensino fundamental deve ser ofertado gratuitamente pelas escolas do município,
inclusive à noite, e recebe alunos que tenham, no mínimo, 15 anos de idade. Para cursar o
ensino médio, o aluno deve ter, no mínimo, 18 anos de idade, e esse nível escolar é oferecido
pelo estado, obrigatoriamente. Uma das muitas dificuldades sentidas por aqueles profissionais
que trabalham com a EJA é a falta de adequação dos PCN, dos projetos pedagógicos e demais
documentos que servem para a orientação da elaboração de aulas a esse alunado. O público da
EJA deve essa diferença, entre outras coisas, às especificidades dos alunos e também às
limitações de tempo que caracterizam essa modalidade de curso. O tempo de aula da EJA é
menor que o do ensino regular: as aulas dessa modalidade são ministradas, em sua grande
maioria, à noite, para trabalhadores que já gastaram boa parte de sua energia em um dia árduo
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de trabalho. Consequentemente, o tempo de dedicação aos estudos por esses alunos também é
menor que o de um aluno em ciclo regular. Desse modo, uma aula expositiva, que é
comumente ministrada no ensino básico, corre o risco de não alcançar os objetivos educativos
propostos nessa situação específica.
A pessoa que hoje recorre à EJA para concluir seus estudos abandonou a escola
anteriormente por várias razões: ou porque teve de começar a trabalhar cedo, ou porque a
escola mais perto de sua casa fechou ou porque a escola, à época, não foi capaz de manter
aquele aluno em seu domínio. Se anteriormente, com a idade adequada, a escola não
despertou o interesse desse sujeito a ponto de ele fazer um esforço maior e dar continuidade à
sua formação, quando retorna aos bancos escolares com uma bagagem de vivências e
experiências bastante diversificadas, o desafio torna-se ainda maior. Nesse momento, esse
sujeito vai precisar reaprender a ser aluno. É necessário, então, apresentar alternativas
didáticas, tanto ao material utilizado como também à ministração das aulas.
O ensino da EJA não pode deixar a desejar: seus alunos constituem um público que
voltou à escola porque tem consciência da necessidade dos estudos para uma melhor
colocação profissional e uma inserção maior na sociedade em que vive, e não por uma
simples imposição dos pais ou do governo. São pessoas de senso crítico mais apurado, mais
experientes, que precisam encontrar a aplicação daquilo que é visto em sala de aula no seu
cotidiano. Não estamos lidando com jovens que ainda vão ser inseridos no mercado de
trabalho, mas, sim, com um público que já trabalha, e precisa de uma qualificação escolar
melhor para galgar degraus mais altos.
Há muito foi superada a ideia de que o indivíduo chega à escola como uma folha em
branco. Portanto, se uma criança em fase escolar inicial possui um conhecimento externo que
deve ser considerado para que seu aprendizado seja satisfatório, o aluno de EJA tem uma
experiência muito mais vasta. A EJA não deve apenas ter vagas suficientes para atender a
procura. Os professores que ministram as aulas devem estar comprometidos com o trabalho,
não devem estar ali porque “o nível da EJA é menor” ou porque “é mais fácil dar aula para
esse tipo de aluno”. Talvez o fato de a EJA ser formada, em sua maioria, por jovens e adultos
(apesar de haver casos de alunos em faixa etária adequada para cursar o ensino regular e de
alunos que optam pela EJA pelo menor tempo de aula e pela cobrança mais branda), leve a
um tipo de aula sem maiores interrupções, visto que se espera mais maturidade do aluno que
se dispõe a sair de oito horas de trabalho para um banco escolar.
A flexibilidade no planejamento das atividades desenvolvidas para a EJA é prevista
por lei. O público alvo é caracterizado por suas profundas diferenças: os alunos que cursam a
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EJA no nível de ensino médio devem ter a partir de 18 anos. São pessoas das mais diversas
classes sociais, que exercem ofícios diferentes e têm motivos muito particulares para voltar à
sala de aula.
A pesquisa com os alunos de EJA surgiu como um acaso. Era uma turma de escola
como as demais que participariam da pesquisa, mas o seu interesse em ir mais a fundo, em
tentar a todo custo aproximar a aprendizagem escolar das situações do dia-a-dia, fazendo com
que aquele aprendizado ganhasse um significado particular, nos chamou a atenção. Durante os
trabalhos escritos, eram esses os alunos que nos traziam mais páginas e que se justificavam:
tinham mais a dizer, mas que o tempo e o papel não foram suficientes.
Todas as “angústias”, por assim dizer, em relação às questões que a narrativa/narração
suscita e que estão aqui colocadas nasceram no âmbito das discussões realizadas no GELDA
– Grupo de Estudos em Linguística e Discurso Autobiográfico, registrado no diretório de
grupos do CNPq e coordenado pela nossa orientadora, Profa. Dra. Sandra Maia-Vasconcelos.
À frente de variados projetos – com alunos de graduação e pós-graduação, entremeando
ensino, pesquisa e extensão -, sendo que todos os estudos envolvem alguma situação de
trauma, todos os pesquisadores engajados buscam compreender as nuances dos récits1. Orais
ou escritos, espontâneos ou colhidos em situação controlada de pesquisa, a meta do GELDA é
compreender como esses relatos são construídos, se é possível identificar um único autor, se
aquele que narra é senhor de sua história, se essa história tem um caráter verídico, além de
vários outros questionamentos que esse objeto de pesquisa nos coloca. Além dos
questionamentos comuns à pesquisa acadêmica, temos ainda um desafio maior: situar os
récits de vie no âmbito da linguística, buscando atribuir a essas produções e a esse tipo de
pesquisa a importância que lhes é devida.
No trabalho ora apresentado, que teve como tema a sequência narrativa em récits de
vie, delimitando-se na organização da sequência2 narrativa em récits de vie em redações
escolares produzidas por alunos de EJA – Ensino Médio durante 04 encontros realizados num
período de tempo de 02 (dois) meses, nosso objetivo geral foi analisar pondo em comparação
a organização da sequência narrativa em récits de vie produzidos por alunos da EJA e a
organização de uma sequência narrativa prototípica. Temos como objetivos específicos
elaborar um quadro comparativo entre o conto de Machado de Assis intitulado Conto de
1 Optamos por não traduzir o termo para o Português porque sua simples tradução limitaria a abrangência desse
tipo de corpus. A escolha desse termo será explicada mais adiante. 2 O conceito de “sequência” aqui citado não diz respeito ao conceito que, oposto ao termo “gênero”, é objeto de
estudo da linguística de texto. Sobre esse conceito, ler o tópico 4.
13
escola e as redações de EJA, com vista a identificar as coocorrências e as divergências
flagrantes; identificar características da narrativa prototípica, descritas por Barthes (1971), no
récit de vie com vistas a elaborar uma metodologia de análise de récits a partir de uma teoria
já consolidada nos estudos linguísticos; definir os elementos estruturais das narrativas
produzidas pelos alunos de EJA que caracterizem o récit de vie; e, por fim, apontar a
importância do trabalho com os récits de vie nas turmas de EJA, enquanto recurso pedagógico
para o trabalho de leitura e produção textual.
Desse modo, considerando-se a natureza e o objetivo da pesquisa, nosso trabalho
desenvolver-se-á em três capítulos: no primeiro capítulo, apresentamos um breve histórico
sobre a educação voltada para jovens e adultos que não foram alfabetizados na idade regular e
o trajeto que foi percorrido por essa modalidade até a atualidade, quando recebeu a
nomenclatura de EJA. Esse momento levará em conta os avanços, as causas e os resultados
obtidos segundo pesquisas nacionais em Educação.
Para uma ilustração inicial da questão, vejamos a seguir um gráfico elaborado pelo
IBGE, que trata da distribuição dos alunos com mais de 15 anos que estão nas salas de aulas
da EJA, no que concerne à modalidade em que o curso é oferecido:
Podemos notar que, mesmo com uma gama variada de modalidades, ainda prepondera
a EJA em sala de aula, em formato presencial. Isso demonstra que as demais modalidades de
se obter um diploma do ensino básico – o supletivo, o ensino a distância, a submissão à prova
do ENEM - ainda são preteridas em detrimento da possibilidade de estar nos bancos escolares
da forma tradicional.
No segundo capítulo, retomamos parte do caminho trilhado pela narrativa até os dias
atuais, em que a narrativa clássica surge permeada por outras modalidades de escrita. Nesse
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mesmo capítulo, realizamos as discussões teóricas entre autores que nos pareceram
representativos dos estudos narrativos, com ênfase em Barthes [2008(1976)] e seus escritos
sobre a busca por uma estrutura da narrativa.
No terceiro capítulo, deter-nos-emos na descrição da metodologia aplicada para coleta
e análise do corpus, a saber: o texto Conto de escola, de Machado de Assis, e os récits de vie
dos alunos de EJA. Daremos ciência dos procedimentos adotados para coleta, das categorias
escolhidas para realização da análise do material colhido, da situação de pesquisa, dos sujeitos
pesquisados e do referencial teórico que embasou nossos estudos.
No último capítulo, partimos do estudo piloto com o texto Conto de escola, de
Machado de Assis, acerca das estruturas narrativas previstas e defendidas por Barthes para a
análise do material produzido pelos alunos da EJA. Nesse momento, será estabelecido um
panorama acerca das produções, afunilando-se em microanálises a partir de subtemas e
trechos das produções dos alunos. Como concatenação dos estudos ora apresentados, nesse
capítulo, também serão apresentadas considerações a respeito da pertinência da utilização dos
récits de vie enquanto recurso pedagógico das aulas de Língua Portuguesa nas turmas da EJA.
15
2 Falar de si...
2.1 A EJA: um breve histórico
Elaborar um estudo sobre a Educação de jovens e adultos não é uma novidade, muito
menos nos domínios das Ciências Humanas. Não nos restringiremos, portanto, a esse escopo,
uma vez que nossos objetivos fogem aos objetivos propriamente ditos dessa modalidade de
ensino e de aprendizagem. Interessa-nos, entretanto, apontar aqui a importância dessa
modalidade de ensino como propulsora do processo de leitura e de escrita dos alunos
engajados, uma vez que a procura pela educação tardia muitas vezes, como veremos mais
adiante nos relatos dos sujeitos participantes, é nascida do desejo de saber unido à
possibilidade ofertada pela Educação Nacional dentro da política de educação para todos.
Podemos encontrar nos documentos do IBGE que
embora no país como um todo a taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais de idade tenha se reduzido de 13,63% em 2000 para 9,6% em 2010, ainda chega a 28% nos municípios com até 50 mil habitantes na região Nordeste. Além disso, o percentual de analfabetos entre pretos (14,4%) e pardos (13,0%) era, em 2010, quase o triplo dos brancos (5,9%). No caso do analfabetismo de jovens, a situação da região Nordeste era também preocupante, na medida em que mais de ½ milhão de pessoas de 15 a 24 anos de idade (502.124) declararam que não sabiam ler e escrever. Na região do Semiárido a taxa de analfabetismo também foi bem mais elevada do que a média obtida para o país, mas teve uma redução de 32,6%, em 2000, para 24,3%, em 2010. Entre os analfabetos residentes nessa região, 65% eram pessoas maiores de 60 anos de idade.
Mais do que o simples acesso às ferramentas de leitura e escrita, o acesso ao ensino
básico garante ao indivíduo uma inserção efetiva no mundo de hoje e no mercado de trabalho;
é uma maneira de diminuir as desigualdades gritantes existentes em nosso país. O acesso à
educação é também um acesso à cidadania plena. Cada vez mais, são exigidas competências
das mais diversas. O ensino básico é apenas o ponto de partida para que o indivíduo possa
atualizar-se e, assim, inserir-se efetivamente no mercado de trabalho atual. É o que corrobora
o parágrafo 1º da LDB – Lei de diretrizes e bases3
Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
3 (LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional : lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. – 5. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação
Edições Câmara, 2010).
16
A educação brasileira, de modo geral, é deficitária desde o início de sua história e é
marcada e marcadora de grandes diferenças sociais. Ainda na era do Brasil Colônia, não era
interesse dos colonizadores ofertar leitura e escrita aos colonizados, função que foi delegada
às ordens religiosas. Os movimentos populistas levantaram a bandeira de que a educação é
libertadora. A temática da educação, entretanto, tomou rumos diferentes, sobretudo com a
obra de Paulo Freire, e adotou exigências novas. O homem que tem consciência de suas
amarras, em algum momento, desejará libertar-se dos grilhões. A EJA não surgiu com o
formato que conhecemos hoje: um ensino que se voltava a camadas populares que não foram
alfabetizadas adequadamente era uma das respostas ao modelo intelectualista que vigorava no
início do século XX. À época, apenas os filhos da elite tinha acesso à educação. Esse tipo de
restrição era considerado um atraso, visto que a intenção era adotar o modelo de produção
capitalista no Brasil. Além disso, do ponto de vista político, assegurar o direito à educação era
uma forma de dominar as massas (ACOSTA; REGO, 2006). Nesse período, para demonstrar
seu interesse verdadeiro pelas necessidades básicas dos cidadãos, Getúlio Vargas criou os
Ministérios da Educação e da Saúde. Ainda assim, o acesso à escola ainda tinha algumas
restrições.
Com a constituição de 1937, o ensino destinado às camadas populares resumiu-se ao
ensino profissionalizante, o que demonstra claramente o interesse do governo em preparar
mão-de-obra para as futuras indústrias que seriam instaladas no país. Não havia interesse de
fazer com que o trabalhador chegasse ao ensino superior: os objetivos econômicos vinham
sendo atingidos de modo satisfatório, mesmo com operários que não sabiam ler ou escrever.
Todas as tentativas de mudança na realidade da educação brasileira nesse período se
restringiam a reproduzir as relações vigentes entre classe dominante e classe dominada. A
década de 1950 foi marcada por campanhas oficiais voltadas para a educação de adultos. A
tentativa era desenvolver um tipo de educação profissional que formasse indivíduos que
pudessem contribuir com o desenvolvimento nacional vigente.
Dessa época até hoje, a modalidade de ensino EJA passou por diversas modificações,
adquirindo um caráter mais formalizado. Em lei, a primeira referência feita à EJA veio com a
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases – LDB, Lei nº 9394/96. O artigo 208 da Constituição
Federal diz que:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009)
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Durante muitos anos, a Educação de Jovens e Adultos não se chamou assim. Chamou-
se Madureza (nomeava o curso e o exame final de aprovação. As disciplinas eram ministradas
nos antigos ginásio e colegial, com idade mínima de 16 e 19 anos, respectivamente, para
início do curso. Foi implantada a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de
1961. Exigia um prazo entre dois e três anos para que cada ciclo do curso fosse concluído. Era
direcionado às pessoas que já possuíam certo conhecimento e desejavam formalizar a
escolaridade já adquirida. A eles, apenas o diploma interessava); Suplência (é a própria
finalidade da EJA, considerada até hoje como uma forma de compensar a escolarização
irregular. Nomeou projetos de educação de jovens e adultos por todo o país, durante os anos
90); Supletivo (formalizada pela Lei de Diretrizes e Bases de 1971 - Lei 5692, de 11 de
agosto de 1971 - que já foi completamente reformulada -, é modalidade em voga até hoje.
Oferecido a distância, tem o intuito de suprir a escolarização regular de jovens e adultos que
não o fizeram em idade própria e também caracteriza o próprio exame, ao qual o aluno pode
submeter-se para fins de obtenção do certificado, sem necessidade de passar por cursos
preparatórios); Alfabetização, entre outros nomes. Um dos programas que obteve maior
abrangência foi o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), criado em 1967 (Lei n°
5.379, de 15 de dezembro de 1967), durante o regime militar. Todos esses programas não
lograram êxito, pois não conseguiram diminuir de forma significativa as taxas de
analfabetismo no país. Somente com a promulgação da nova LDB nº 9394/96, que vigora até
hoje, a EJA adquiriu um caráter mais significativo.
Antes de tornar-se um direito garantido por lei, essa modalidade de ensino foi
ofertada por voluntários, docentes sem formação específica que se utilizavam da mesma
metodologia para crianças e adolescentes. A aplicação de uma legislação a essa modalidade
de ensino garantiu não só o direito dos alunos a um diploma válido em todo o território
nacional, mas também a profissionais licenciados, o que confere a credibilidade merecida
àquilo que é ensinado. Hoje, a EJA representa uma reparação àqueles que não tiveram acesso
à escola na faixa etária correta e que serviram como mão-de-obra para a construção do país.
Há um século, era caso comum o do adulto que não sabia ler nem escrever. A educação era
acessível apenas aos filhos da elite e, naquela época, os que nasciam pobres morriam pobres,
dificilmente saindo dessa condição. Com o advento do capitalismo, a elevação do nível
educacional passou a ser uma necessidade social. Porém, ao mesmo tempo também era
necessária uma mão-de-obra para construir fábricas; desse modo, a mesma mão-de-obra que
erguia os muros da fábrica precisava aprender a operar o funcionamento das máquinas nas
18
indústrias. O tempo para dedicar-se a uma formação escolar, quando existia, era exíguo, até
porque as leis trabalhistas não são muito antigas; no Brasil datam dos anos 1930, com o
governo de Getúlio Vargas. Os descendentes dessa camada da população sofrem as
consequências dessa realidade histórica até hoje. É uma demonstração de respeito a esses
brasileiros ofertar uma educação adequada às suas condições, demandas e exigências.
Esse público necessita abrir uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho
bastante particular. São alunos que se caracterizam por serem adultos, em sua maioria, pobres
e com um histórico escolar bastante fragmentado. São estudantes que precisam trabalhar e, no
sentido reverso, por força das exigências mercadológicas, trabalhadores que precisam estudar.
Cada vez mais, percebemos que a obtenção de um cargo, a promoção na empresa ou a
negociação de um salário melhor, por exemplo, dependem diretamente da qualificação
profissional que o empregado pleiteador possui.
Para este fim, a EJA tem também uma função democrática, por ser equalizadora. Essa
modalidade de ensino objetiva oferecer oportunidades para que o seu aluno possa dar
prosseguimento aos estudos outrora interrompidos e, assim, competir com condições de
igualdade e gozar dos direitos que seu nível de qualificação oportuniza. Facilitar o acesso
desses desprivilegiados à educação é também uma tentativa de nivelar o acesso ao
conhecimento. É uma forma de o estado intervir diretamente no campo das desigualdades,
dando ao indivíduo a chance de crescer e especializar-se.
Ainda hoje, a escola tem dificuldades para acolher o aluno em condições especiais e
lidar adequadamente com as suas necessidades. A escola tem um padrão, e é o discente que
deve adequar-se a ela, quando, na verdade, deveria ocorrer o contrário. Uma sala de aula de
EJA é caracterizada especialmente pela diversidade de seus alunos. Podemos encontrar jovens
não tão afastados da escola, que desejam concluir o ensino médio e prestar vestibular; adultos
que voltaram aos bancos escolares por exigência do emprego, o que requer, no mínimo, o
ensino básico completo; idosos que nunca estiveram em sala de aula e decidiram realizar o
antigo sonho de aprender a ler e escrever. É dever dessa modalidade de ensino garantir uma
qualificação permanente, que atenda a todos esses perfis e dê oportunidade a esses indivíduos
de acesso a novos domínios do trabalho e da cultura. É a função qualificadora que a EJA deve
exercer.
A educação que visa a atender às demandas que surgem a todo instante no mundo
moderno não deve estar filiada a um período estrito e imutável da vida: deve ser de tal modo
diversa que possibilite a aprendizagem em qualquer idade, independente do campo de
atuação. A própria LDB pontua o reconhecimento da educação nas mais diversas esferas em
19
que o ser humano atua: na família, na escola, na igreja, no trabalho, nos movimentos sociais e
nas manifestações culturais. A escola, por ser o ambiente destinado por excelência à
educação, deve sempre buscar um modo de formalizar e aproveitar esses conhecimentos
externos.
O que vem caracterizando comumente essa modalidade de ensino é a faixa etária:
associamos as classes de Ensino de Jovens e Adultos a grupos de pessoas que por diversos
motivos tiveram que abandonar o ensino regular e, por outras razões, retomaram sua
escolaridade numa faixa etária, digamos, mais avançada. O quesito idade, o tempo de
afastamento da escola e a classe social geralmente baixa são exemplos de fatores que
contribuem para uma caracterização da EJA de forma negativa. As aulas duram menos tempo
e é cobrado menos desses alunos. Indo contra aquilo que é apregoado pelo imaginário
popular, Fonseca (2005) aponta as características socioculturais desse público como o fator
que deveria ser determinante para a elaboração de políticas educacionais que atendessem à
EJA. Estudar determinada matéria escolar deve fazer sentido desde o início para qualquer
aluno, independente do nível em que ele está. Não se pode ensinar um conteúdo com a
promessa de que ele servirá a algum propósito futuramente. O aluno precisa perceber que seu
cotidiano é afetado por aquela nova aprendizagem, que algo foi modificado.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos
(CNE nº 1/2000), a EJA tem três funções específicas a cumprir com o seu público. A primeira
seria a função reparadora: oferecer, àqueles que não puderam formar-se em tempo hábil, uma
alternativa de completar os estudos é uma maneira de o Estado reparar o dano de não ter dado
a possibilidade de esses indivíduos concluírem os ensinos obrigatórios no período correto, por
assim dizer. A segunda função, equalizadora, consiste em garantir, por meio do ensino, que o
aluno da EJA tenha igualdade de acesso ao mercado de trabalho. Por fim, a função
qualificadora do ensino pressupõe que o ser humano esteja em constante formação: a EJA é
mais uma maneira de contribuir para o aperfeiçoamento do indivíduo.
Até o ano de 2007, as salas de aula de Educação de Jovens e Adultos eram
frequentadas por cerca de 10,9 milhões de pessoas, o que correspondia a 7,7% da população
com 15 anos ou mais de idade. A EJA é uma modalidade que visa à continuidade da AJA -
Alfabetização de Jovens e Adultos, que tem como perfil de aluno a nordestina com mais de
cinquenta anos com renda de até um salário mínimo.
Das cerca de 8 milhões de pessoas que passaram pela EJA antes de 2007, 42,7%,
quase metade desse contingente não concluiu o curso. As principais causas apontadas foram a
incompatibilidade do horário das aulas com o de trabalho ou de procurar trabalho (27,9%),
20
seguido pela falta de interesse em fazer o curso (15,6%). Um outro motivo apontado foi a
inexistência do curso próximo à residência (5,5%) ou ao local de trabalho (1,1%). Cabe
salientar que é dever do estado ou município, a depender do nível de ensino, ofertar a
modalidade apenas nas regiões em que a necessidade for detectada, ou seja, nem todas as
escolas dispõem dessa modalidade. Além disso, não há muita escolha de horário: a
preponderância de oferta da educação de jovens e adultos é no período da noite.
Os dados colhidos pelo IBGE corroboram as principais justificativas, que veremos
colocadas nos récits de vie, como motivo para frequentar a EJA: a vontade de retomar os
estudos (43,7%), seguida da vontade de conseguir melhores oportunidades de trabalho
(19,4%).
É preciso, então, entender como esse indivíduo associa suas vivências com o
conhecimento que a escola pode oferecer; mais ainda, é premente planejarem-se as práticas
pedagógicas destinadas a esse público tendo em vista aquilo que o aluno já sabe.
Independente do nível - fundamental ou médio -, assim como se espera que o aluno do ensino
regular possua determinadas competências e habilidades ao final de um ciclo, o aluno que
conclui seus estudos através da EJA também deve ter atingido os objetivos propostos pelos
documentos que regem essa modalidade. E da mesma forma que as competências alcançadas
por um aluno que conclui o ensino fundamental devem estar de acordo com sua faixa etária,
aquelas que se esperam de um aluno da EJA precisam fazer jus também a outra característica:
a situação socioeconômico-cultural do aluno. O docente precisa ser conhecedor da realidade
em que o seu aluno está inserido, para que possa fundamentar seu trabalho em fatos concretos.
O ensino voltado para a EJA não deve ter como objetivo apenas a alfabetização de
pessoas em situação de desescolarização, mas promover-lhes o acesso às mesmas
possibilidades de desenvolvimento e descobertas dadas ao aluno do ensino regular. Porém, ao
contrário do que acontece com o aluno do ensino básico, que é uma criança desvendando o
mundo por intermédio das informações trazidas pelo professor em sala de aula, o aluno da
EJA já detém conhecimentos ricos do mundo e de suas próprias experiências. O trabalho do
professor junto aos jovens e adultos é fazer com que essas experiências adquiram um
significado que se reflita no aprendizado sistematizado escolar.
21
2.2 A pesquisa autobiográfica e suas nuances
Neste capítulo, realizamos um apanhado geral sobre as facetas variadas que os
estudos autobiográficos adquiriram através do tempo e nos mais diversos setores de pesquisa.
Gusdorf (1980) relaciona o prefixo “auto” à identidade, ao eu consciente de si
próprio, ao sujeito complexo, elaborado em uma existência singular e autônoma; e o prefixo
“bio” ao percurso vital, à continuidade desta identidade singular, ao desenvolvimento prático
de uma existência, entre o eu e sua inserção no cotidiano e na realidade.
Mauss (1974), em seus estudos iniciais, já chamava a atenção para a necessidade do
estabelecimento de uma relação entre o indivíduo e o meio para, posteriormente, entender a
relação desse indivíduo com o seu grupo. O autor defendia que seria através da educação
corporal que a sociedade modelava os indivíduos. O sociólogo acreditava, e à sua época esse
era um pensar revolucionário, nas reproduções individuais de um ideário social. Sensações
como a dor e o prazer existiam e eram descritas segundo critérios coletivos, e não por
particularidades individuais. Apesar disso, trilhando um caminho correspondente, porém
inverso, toda instituição somente adquire valor e sentido quando é possível identificar sua
incidência na personalidade e na consciência de seus membros. A grafia do “auto” e do “bio”
marca, então, uma separação entre o eu-escritor e o eu-escrito. Desse modo, a biografia é uma
reconstrução, uma reconquista de si; representa um renascimento, pelo lugar distinto que o
sujeito-escritor ocupa frente a sua vida, de modo crítico e reflexivo.
Esse formato de estudo surgiu num momento de crise nos instrumentos de observação
do sujeito. Cientistas sociais sentiram a necessidade de utilizar ferramentas que
possibilitassem analisar o indivíduo em sua totalidade. Quando o indivíduo é capaz de
compreender e apreender o seu meio social, isso se reflete na sua capacidade de compreender
e apreender seus processos de construção individual. É nesse momento que a individualidade
adquire relevância.
A biografia ainda é pouco estudada no Brasil, apesar de ser muito difundida e
amplamente presente nas prateleiras de pequenas e grandes livrarias. Alguns literatos
refletiram sobre a biografia como gênero em romances autobiográficos. Historiadores
estudaram–na como um meio para o historicismo, uma amostra para reflexões
historiográficas. Denzin (1989) oferece concepções sucintas para biografia e suas mais
variadas conceituações, conceituações essas que podem ser tanto coincidentes quanto
conflitantes entre si, conforme o emprego que lhes é atribuído. O autor afirma que há diversos
métodos biográficos, e essa variedade contribui para o surgimento de problemas textuais
22
diferentes e fornece aos leitores diferentes mensagens e entendimentos. Nas Ciências Sociais,
as narrativas de vida são utilizadas para a compreensão de relações sociais em seu
desenvolvimento histórico. A partir dessas leituras, algumas considerações feitas apontam
para os questionamentos que levantamos em nosso estudo:
● De que modo os indivíduos do nosso tempo, inseridos numa sociedade marcada pelo consumo, pela coletividade, pela quantidade singularizam os eventos ocorridos durante suas vidas?
● De que modo esses eventos modificam e/ou interferem em sua maneira de agir sobre o mundo? Josso (2008, apud PASSEGGI, 2008) apresenta uma alternativa de resposta a esses
questionamentos quando justifica, com a metodologia autobiográfica de pesquisa que
É por isso que essas identidades incessantemente em devir, manifestações de nossas existencialidades em movimento, são, em certos períodos históricos, mais fortemente perturbadas pelos efeitos desestruturantes de mudanças sociais, econômicas e/ou políticas. Nós vivemos, na Europa e em outras regiões do mundo, esse tempo de recomposição de nossas identidades, porque nossas existências são fragilizadas e afetadas no cotidiano pelos efeitos de mundialização do mercado (...), novas formas de pobreza, novos problemas sanitários, modificações climáticas relacionadas a poluentes tradicionais em crescimento exponencial. (p. 26)
O estudo que buscamos desenvolver ao longo dessa pesquisa é um exemplo disso. Na
Educação, as escritas de si adquirem um caráter reflexivo: são uma forma de fazer com que o
professor recupere suas experiências, num processo autoavaliativo. Esse trabalho feito com o
docente surge como uma abordagem na qual o sujeito participante da pesquisa é, ao mesmo
tempo, objeto e sujeito de formação. A utilização das HIVI – Histórias de Vida levam esse
sujeito-professor a perceber o caráter processual de sua formação e a refletir sobre ela. Esse
processo de reflexão sobre sua formação e sobre sua prática recupera as visões praxiológicas
da Educação e valorizam a experiência pessoal do professor em formação. Em nosso viés, o
entorno que nos interessa é a valorização da experiência pessoal do outro indivíduo envolvido
no processo de ensino-aprendizagem: o aluno.
A autobiografia é uma vertente advinda da biografia em seu sentido amplo, podendo
ser conhecida também por narrativa ou história de vida. Josso (2007) classifica–a como uma
oportunidade de refletir sobre diferentes registros de expressão e representações de si. Por
intermédio da autobiografia, o indivíduo produz a narrativa de sua própria construção na
condição de autor–ator que opera escolhas e define interesses, valores, aspirações, segundo
sua visão de mundo. Nos relatos de vida, quando o sujeito elabora sua narrativa, ele cede
lugar a vários outros sujeitos construídos socialmente, num exercício notadamente polifônico,
uma vez que se reconhece como integrante de uma comunidade, influenciado por
23
circunstâncias múltiplas que alicerçaram suas ideias, suas opiniões e sua maneira de ver o
mundo e a sua própria vida.
Becker (1997), ao falar de história de vida, salienta a dificuldade de delimitar esse
gênero, que
tampouco é ela [a história de vida] uma autobiografia convencional, ainda que compartilhe com a autobiografia sua forma narrativa, seu ponto de vista na primeira pessoa e sua postura abertamente subjetiva. Certamente, não é ficção, embora os documentos de história de vida mais interessantes tenham uma sensibilidade, um ritmo e uma urgência dramática que qualquer romancista adoraria conseguir. (p. 101 e 102)
Cabe salientar que aquilo que o autor chama autobiografia não será considerado como
um gênero diferente em nosso trabalho. Autobiografia, histórias de vida, relatos, escritas de si
são usadas, em diversos estudos, como gêneros sinônimos. Miranda (1992) realiza uma breve
delimitação desses gêneros, antes de iniciar os estudos das obras de Graciliano Ramos e
Silviano Santiago.
O autor considera o advento da autobiografia como parte da formação plena do
indivíduo moderno, suscitada no período das Luzes e com a Declaração dos Direitos dos
Homens e Cidadãos. Esse gênero seria o espaço propício para a manifestação do
individualismo e da nova concepção de pessoa então forjada.
Apesar de apresentarem suas singularidades, daremos prosseguimento à tradição que
reúne essas nomenclaturas em uma só. Por questões didáticas, em nosso projeto, nos
referiremos às expressões do gênero autobiográfico como récit de vie. Esses récits de vie aqui
analisados são recortes realizados na narrativa da trajetória pessoal de cada indivíduo que se
propôs a escrever; mais especificamente, os escritos utilizados para compor o corpus deste
estudo tratam de uma situação particular, que pode ou não ter sido internalizada como uma
situação de trauma, uma ruptura ou um conflito claramente definido.
A pesquisa autobiográfica é praticada em várias áreas das Ciências Humanas, e varia
de modalidade epistemológica, maneira de abordagem dos dados etc. Ainda assim, a maior
parte dos registros de pesquisa converge para a escrita. Mesmo que esses estudos tratem
também de relatos orais (BERTAUX, 2008, ARAÚJO, ARAÚJO E OLINDA, 2010) e relatos
visoespaciais (GOMES, 2009), a coleta de textos escritos em pesquisas que abrangem
histórias de vida vem adquirindo seu espaço. A escrita é a modalidade de registro
autobiográfico por excelência. A formulação mesma dos resultados de pesquisa demanda a
transcrição integral dos relatos orais para fins de análise. O ato de escrever, tomar da pena e
registrar experiências próprias ou de outrem, revela já a priori muito do que a escrita
24
representa para o sujeito, de forma individual ou coletiva. Formenti (2008, apud PASSEGGI,
2008), em seus estudos que abordam a pesquisa autobiográfica e o zelo, corrobora essa
afirmação quando diz que “a escrita pode ser uma ocasião de reconexão. As experiências
sensórias deixam sinais na escrita.” (FORMENTI, 2008 apud PASSEGGI, 2008; p. 63). E
continua, atribuindo à escrita a possibilidade de tradução das experiências de vida: “A
experiência de si mesmo não se pode nomear, narrar; para poder transformá-la em símbolo,
em alguma coisa de visível também aos outros, para tornar visível o invisível, serve uma
linguagem adequada.” (p.63)
O desenvolvimento teórico-metodológico de pesquisas de cunho autobiográfico pode
ser considerado ainda incipiente, se avaliarmos a vastidão de abordagens, corpus, métodos de
análise desse corpus e suas contribuições, em especial para pesquisas que buscam ser
interventivas. Craveiro (2008 apud OLINDA & JÚNIOR, 2008) chama a atenção para o fato
de que, mesmo na Educação, que é uma das áreas na qual a pesquisa autobiográfica possui
maior espaço, esse modelo de estudo avança com dificuldade: “Tradicionalmente, por atender
aos rigores dos métodos, a investigação educacional qualitativa confere pouca ou nenhuma
importância a aspectos pessoais presentes nas falas dos sujeitos participantes da pesquisa (p.
30).”
A própria pesquisa qualitativa ainda sofre quando, por vezes, é forçada a encaixar-se
nos moldes da pesquisa quantitativa. O resultado são problemas de pesquisa não solucionados
e hipóteses mal formuladas, o que compromete a qualidade do estudo.
A abordagem qualitativa passou por várias mudanças no âmbito das disciplinas
humanas. Tem sua origem na sociologia e na antropologia, numa tentativa de entender o
outro4. A busca por novos processos de composição etnográfica culminou na virada narrativa:
a forma de escrever e de se posicionar dentro do texto mudou bastante desde então.
Apesar da complexidade do percurso histórico que a pesquisa qualitativa percorreu, é
fundamental estabelecer uma definição mínima. Para o trabalho ora apresentado, adotamos o
conceito de Denzim (2006), segundo o qual:
A pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no mundo (....) envolve uma abordagem naturalista, interpretativa, para o mundo, o que significa que seus pesquisadores estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem (...) envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade de materiais empíricos – estudo de caso; experiência pessoal; introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e produções culturais; textos observacionais, históricos, interativos e visuais – que descrevem momentos e significados rotineiros
4 DENZIM & LINCOLN (2006) enfatizam que esse outro era um “outro exótico, uma pessoa primitiva, não
branca, proveniente de uma cultura estrangeira considerada menos civilizada do que a cultura do pesquisador.”.
25
e problemáticos na vida dos indivíduos. Portanto, os pesquisadores dessa área utilizam uma ampla variedade de práticas interpretativas interligadas, na esperança de sempre conseguirem compreender melhor o assunto que está ao seu alcance. (p. 17)
O pesquisador qualitativo, por sua vez, deve estar disposto a buscar por - e, quando for
o caso, criar – técnicas que se adequem às suas perguntas de pesquisa. Os récits de vie como
corpus possuem certo ineditismo na área da pesquisa linguística. Consequentemente, o
aparato teórico-metodológico necessário para a análise dos dados precisou ser construído aos
poucos e de forma interdisciplinar: utilizamos fontes da Educação, da História e das Ciências
Sociais, sem preterir as contribuições dos estudos linguísticos – pois, como afirmou Barthes
(1971) e considerando nossos problemas de pesquisa, “parece razoável dar como modelo
fundador à análise estrutural da narrativa a própria linguística” - para que fosse possível
elaborar uma metodologia pretensamente sólida, passível de aplicação e que servisse para
pesquisas vindouras.
A pesquisa ora apresentada justifica-se pela necessidade premente de situar os récits
de vie e suas variantes no âmbito da linguística. Demais áreas do conhecimento (História,
Ciências Sociais, Educação) já estudam a autobiografia há um certo tempo. Para o
desenvolvimento deste trabalho, um dos empecilhos surgidos (e que tentamos superar) foi
exatamente a falta de uma metodologia advinda da linguística que fosse passível de utilização
no corpus selecionado e que respondesse satisfatoriamente aos questionamentos colocados.
Eis por que nos foi estimulada a missão de adaptar metodologias que pudessem amparar
nosso estudo.
No âmbito da Linguística, revisitamos obras como as de Adam (2008) e Charadeau
(2008), no intuito de verificar teorias que tratassem da narrativa. Essas duas nos pareceram
bastante representativas das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas a respeito de dois
grandes conceitos que permeiam as práticas discursivas: o texto e o discurso, também
apresentados como texto/discurso. A primeira obra apresenta um arcabouço teórico-
metodológico que busca orientar teorias de produção de textos e a segunda descreve os modos
de organização do discurso, com foco na tipologia textual que conhecemos hoje.
Adam (2008) opera em duas frentes linguísticas, hoje consideradas complementares: a
linguística textual e a análise textual dos discursos, sendo que esta última recobriria os
objetivos da primeira. O autor propõe uma teoria para a análise de textos concretos,
caracterizando-se pela elaboração de um quadro teórico que é imediatamente testado,
utilizando-o em análises empíricas. Adam busca por uma articulação entre os estudos da
26
linguística textual e da análise do discurso, uma tendência da atualidade. A linguística textual
é sugerida por esse autor como um subdomínio englobado pela análise das práticas
discursivas. Seus estudos apontam para uma dificuldade também percebida por nós, ao
iniciarmos a escolha das categorias que seriam utilizadas para a análise dos récits de vie. Para
Adam, “O texto é, certamente, um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia
justificar o recurso a diferentes teorias (p. 25)”. Desse modo, entendemos que essa
complexidade é decorrente das esferas do discurso, uma vez que Adam acredita que essa
resposta seria encontrada quando da relação entre esse objeto e o domínio mais amplo do
discurso em geral.
A proposta de estudo de Charadeau (2008) enfatiza notadamente a análise do discurso.
O estudo desse discurso é a última parte de uma gramática que trabalhou o sentido e a
expressão e vem a ser, segundo o autor, o verdadeiro fundamento da linguagem. O texto e o
discurso vêm sendo discutidos a partir de uma grande variedade de teorias, o que dificulta a
percepção de conclusões. O estudioso indica, então, princípios que regeriam o modo de
organização de quatro tipos de discurso, a saber: o descritivo, o narrativo, o argumentativo e o
enunciativo, sendo este último um discurso que abrangeria os outros três. Charadeau também
propõe uma correspondência entre esses modos do discurso e alguns gêneros textuais.
Esses estudos, para nosso trabalho, foram bastante relevantes, do ponto de vista do
levantamento do estado da arte. Os dois trabalhos baseiam-se nos estudos do texto/discurso.
Nesse ponto da pesquisa, não figuraram como aplicáveis ao nosso corpus porque o trabalho
com escritos autobiográficos ainda necessita de uma delimitação inicial no campo da
Linguística. A partir de tal delimitação, será possível aprofundar esses estudos por um dos
muitos caminhos que encontramos, mas que deixamos em suspenso para um possível estudo
doutoral futuro. Assim, em busca de um aparato teórico-metodológico no âmbito da
Linguística, selecionamos, como descrito nos próximos capítulos, Barthes e seus conceitos
para a análise estrutural da narrativa.
2.3 Escritas de si
A comunicação é uma característica dos seres vivos em geral. Em se tratando do
homem, temos a língua como forma de comunicação particular. É sabido e comprovado que o
homem é o único animal que fala. O ser humano necessita falar, precisa sentir-se ouvido. A
comunicação figura, então, como pedra angular desse movimento de transformação. É
27
comunicando, compartilhando saberes e experiências, que podemos operar uma modificação
no mundo em que vivemos, por meio do diálogo.
Nesse processo comunicativo, o indivíduo está em constante reflexão sobre suas
experiências. E é essa reflexão que faz com que essas experiências adquiram relevância para a
sua trajetória pessoal. Comunicação e transformação estão, portanto, intrinsecamente ligadas.
Essa comunicação é o meio através do qual o indivíduo reflete sobre suas experiências e as
socializa. Função primeira da linguagem, a comunicação é o caminho para a mudança do
indivíduo, para si e para a sociedade.
É por meio da socialização de nossas experiências que nos fazemos autores de nossas
vidas. Somos modificados a cada nova experiência, e a pessoa-eu que passará pela
experiência subsequente já será outra. Em contrapartida, a vivência por si mesma não
promove nenhuma transformação no ser. A reflexão é uma necessidade precípua para que
essa modificação ocorra. É nisso que deve se apoiar um processo educativo que visa a ser
consistente: nas experiências, nos conhecimentos e nos interesses de cada um. Por meio dessa
reflexão crítica, é possível reconhecer os problemas existentes e encontrar os meios para
solucioná-los.
Longe de ter aqui um objetivo terapêutico ou psicanalítico, compreendemos que a
comunicação figura, então, como pedra angular desse movimento de autotransformação. É
comunicando, compartilhando saberes e experiências, que podemos operar uma modificação
no mundo que em vivemos, uma construção interacional por meio do diálogo.
A narrativa das experiências é uma forma de melhor compreendê-las. Mesmo a
narrativa de experiências traumáticas (MAIA-VASCONCELOS, 2005) é uma forma de
provar que se sobreviveu a elas e, a partir disso, perceber os ensinamentos, positivos ou
negativos, que essas vivências deixaram. Em seus estudos sobre vivências e histórias de
doença e morte, Maia-Vasconcelos (2010, p. 139) percebeu que a enfermidade e a
hospitalização
podem constituir uma situação estressante e traumática para o paciente, que deve enfrentar o ambiente hospitalar, estranho e ameaçador, a separação temporária da família, a ruptura de sua rotina, o distanciamento dos amigos e da escola.
Para a autora, essa separação traumatiza quando retira do sujeito “os elementos que
dão a ele um suporte pessoal. A ruptura pode representar uma ruptura consigo mesmo, e ao
mesmo tempo um ingresso em um universo desconhecido”. A descoberta da lembrança e da
memória será nesse instante empreendedora de imagens constitutivas da vida do sujeito. Não
há negação de marcas de dor e sofrimento, a lembrança é valorizada como ponto específico de
28
rompimento e reenlace com a vida. A narrativa é, portanto, reconhecida como a forma
primordial de organização da experiência humana, como atesta Tavares (2007):
A ideia de narrativa como algo que perpassa o tempo e se engendra em diferentes períodos da história, que ultrapassa fronteiras culturais e se faz onipresente em todas as civilizações, nos leva a pensar que talvez, ela, a narrativa, seja o melhor instrumento para tentar compreender o homem e sua jornada pelo mundo. Sob esse aspecto, podemos pensar na narrativa, e em seus discursos, como uma forma de expressão do pensamento e das relações pessoais e sociais do homem com e em sua época. (TAVARES, 2007)
A organização dessas narrativas é uma forma de atribuir sentido a cada experiência
vivida e identificar seu impacto na trajetória pessoal como um todo. É uma forma de tornar
compreensível aquilo que acontece na nossa vida. Ao colocar os fatos em uma determinada
ordem, também estamos assumindo um posicionamento diante desses acontecimentos. Narrar
um episódio é, também, construir nossa própria identidade face ao ocorrido. A narrativa
figura, portanto, como o gênero por excelência que o homem utiliza para comunicar esses
eventos ocorridos em seu percurso.
Segundo Bertaux (2010), podemos partir do estudo de um microcosmo em direção ao
entendimento do macrocosmo. Na referida obra, o autor, citando o estudo realizado com
padeiros franceses, afirma que as narrativas de vida proporcionam uma visão diacrônica do
processo biográfico (micro) e suas influências no desenvolvimento histórico (macro). Porém,
uma pesquisa que abordasse as autobiografias escritas de diversos indivíduos a fim de
perceber seu impacto no coletivo seria exaustiva e inviável (é mister acrescentar que aquilo
que o autor denomina autobiografia escrita são as obras de caráter literário escritas pelo
indivíduo, famoso ou não, que busca contar sua trajetória pessoal).
Nas ciências sociais, essas narrativas são utilizadas para a compreensão das
configurações das relações sociais em seu desenvolvimento histórico. Bertaux (2010) sugere
uma pesquisa com os récits de vie (por ele nomeados como narrativas de vida) no âmbito da
pesquisa etnossociológica. Na sua compreensão, a pesquisa (auto)biográfica visa à
compreensão de como os indivíduos e grupos sociais refletem os acontecimentos e
experiências que vão ocorrendo ao longo da vida.
A autobiografia, como vem sendo concebida nas mais diversas áreas de estudo, é um
modelo de pesquisa no qual o pesquisador busca compreender um determinado acontecimento
que está inscrito em cada relato que lhe é concedido e a recorrência desse acontecimento nas
histórias pessoais. Tratar-se-ia, portanto, de um recorte, de um ponto em comum entre elas. É
nessa singularidade que a narrativa de vida se encaixa. Sobre sua abordagem, a pesquisa ora
29
apresentada caracteriza-se como qualitativa e, nesse âmbito, como autobiográfica. Em cada
récit escrito pelo sujeito, procurou-se saber os motivos de abandono e retorno à escola.
Quando tratamos dos escritos autobiográficos, é por meio deles que o sujeito-autor se
autodescreve, escolhendo o modo como deseja narrar episódios de sua vida. Ao falar de si, o
sujeito mostra-se, não como é (até porque a memória é espaço falho), mas como gostaria de
ser, ou como gostaria de ter sido. Sobre isto, Becker (1997) diz que:
o autor [da narrativa de vida] só nos está contando uma parte da história, que selecionou seu material de modo a apresentá-lo com o retrato de si que preferia que tivéssemos e que pode ter ignorado o que poderia ser trivial ou desagradável para ele, embora de grande interesse para nós. (p.102)
No momento em que tenta relatar um episódio vivido, o indivíduo recorre à memória.
E a memória é lugar de esquecimento. Não há como ativarmos a memória para nos
lembramos de um evento tal e qual o episódio ocorreu. Quando se dá vazão a esses vários
“outros”, a tentativa do sujeito-narrador é de preencher o vazio causado pelas falhas da
memória. Borges (1985) diz que, apesar de ser fluida e lugar repleto de lacunas, a memória é
item essencial. A identidade do sujeito seria composta, portanto, de memória e esquecimento.
Há lacunas, espaços falhos, que serão preenchidos de maneira incerta; o autor pode estar
tentando aproximar a narrativa do acontecido real, num esforço de construir a narrativa da
forma mais verossímil possível, como também é possível que esteja querendo encobrir algum
fato desagradável. As narrativas de vida seriam uma tentativa de preenchimento dessas
lacunas e se baseiam nas escolhas do indivíduo que narra. Por isso, a expressão récit de vie,
selecionada para este trabalho, nos parece a mais adequada: o ato de narrar é individualizado,
varia conforme aquele que narra. Quando duas pessoas contam o mesmo fato, percebemos
duas narrativas distintas. Os fatos são os mesmos em sua essência, mas estão embotados de
duas percepções divergentes. Ao serem contados e recontados, esses fatos acabam por
cristalizar-se numa memória coletiva, forjando determinados elos de causalidade.
Cardoso e Maia-Vasconcelos (2009) elaboraram um esquema a fim de tentar construir
um arcabouço teórico capaz de diferenciar as vertentes que partem da grande nomenclatura
autobiografia. O esquema a seguir, elaborado pelas estudiosas, buscou compreender as
histórias de vida narradas por indivíduos que sofreram algum tipo de trauma. Esse foi um dos
primeiros trabalhos que buscou situar a autobiografia dentro da Linguística:
30
Diagrama de Cardoso (2009, In: MAIA-VASCONCELOS; CARDOSO, 2009)
A narrativa de vida adquire relevância linguística por ser necessário recorrer aos
estudos sobre gêneros discursivos e sobre a tipologia narrativa para fins de definição. Ela
recorre ao discurso e à memória para ganhar forma. O tipo de texto utilizado com maior
frequência seria o narrativo, tomado na tentativa de atribuir sequência a eventos recortados de
um discurso memorial maior, e a utilização de metáforas e expressões metafóricas é
recorrente. Nosso trabalho busca dar continuidade a essa tentativa de definição desses escritos
autobiográficos.
Diversos estudos em outros campos das Ciências Humanas discorrem sobre a
construção subjetiva dessas narrativas em sua composição objetiva da vida social. Nesse
contexto, Bourdieu (2001[1994]) sinaliza para a construção de um sentido coerente na
formulação da autobiografia, em que o autor-ator, na tentativa de racionalizar diversos
eventos ocorridos no percurso de sua historia contada, canaliza eventos e interdita outros,
formulando uma própria representação de um ideal do seu eu. O autor considera que a
narrativa, biográfica ou autobiográfica, busca organizar os eventos em sequências ordenadas e
inteligíveis.
Teixeira (2003) cita as recuperações que determinados autores fazem, operando uma
cisão entre o eu–narrado e o eu–narrador, por meio da análise dos fatos e das narrativas do
ideal do eu. Assim, a marca do indivíduo que conta sua história está presente no modo como
31
esse eu decide contar sua história pessoal. Não se deve buscar apreender o sujeito por seu
modo de contar sua história de vida, com riscos de reduzi–lo a uma instância isenta de
conflitos. Desde as primeiras análises, as histórias de vida são estudadas como ferramenta de
transformação para o sujeito que se narra. Falar de si seria, portanto, estabelecer um domínio
no qual seria possível entender a singularidade do enunciador. Incorporada essa relevância
que nossa própria história possui, torna-se mais fácil compreender a história do outro. O
indivíduo constrói-se em sua individualidade ao mesmo tempo em que se projeta como ser
social.
É necessário criar uma metodologia própria para esse tipo de pesquisa qualitativa, e
não analisar seus componentes à luz da metodologia de cunho quantitativo. O caráter objetivo
atribuído a pesquisas quantitativas baseia-se no resultado final, obtido através da compilação
de dados. O que pouco se sabe é que, antes de se tornar uma resposta em números, esses
dados passam por uma triagem inteiramente subjetiva. É comum validar imediatamente os
dados que o entrevistado preenche numa ficha, mas quando esses mesmos dados são colhidos
por meio de uma entrevista, para muitos a pesquisa adquire instantaneamente um caráter
duvidoso.
Os artigos que compõem a obra Artes de existir: trajetórias de vida e formação
(OLINDA & JR., 2008) servem como exemplo da pluralidade que o trabalho com
autobiografia, história de vida, escrita de si e demais manifestações da autoescrita pode
abarcar. Alguns autores analisam sua própria aprendizagem enquanto outros exploram a
intervenção da autobiografia na aprendizagem de outros sujeitos.
Outros autores mostram que também é possível aliar esse tipo de estudo às escritas
etnográficas5, assim como aos escritos literários6. É também passível de utilização para a
compreensão do processo formativo de arte-educadores, de cuidadores, de professores etc.
Um dos autores considera, indo mais longe ainda, as próprias situações de escrita e pesquisa
acadêmicas como processos autobiográficos (GONDIM & MARTINS apud OLINDA &
JÚNIOR, 2008). Aqui, fazemos referência a apenas um livro de uma determinada área, a
Educação. Sabe-se que a autobiografia permeia os estudos sociológicos desde os estudos
iniciais de Becker (1997), que já chamava a atenção para esse tipo de pesquisa. Na História,
Ginzburg (2007) buscou identificar, em escritos históricos, marcas que apontassem para a
5 KLINGER, 2006.
6 MIRANDA, 1992.
32
presença pessoal de um autor em um texto que deveria ser notadamente informal. O autor
italiano considera que o próprio ato de refletir sobre o texto é um processo de autoformação.
De um modo geral, as pesquisa (auto) biográficas tomam como objeto de estudo a
forma que as pessoas atribuem às suas experiências, como estas ganham significado e como
são inscritas no curso de vida desse sujeito. É a busca de perceber as modalidades através das
quais os sujeitos vivenciam sua própria existência.
É por meio da socialização de nossas experiências que nos fazemos autores de nossas
vidas. Somos modificados a cada experiência, o que implica que a pessoa que passará pela
experiência subsequente já é outra. É nisso que se deve apoiar um processo educativo que visa
ser consistente: nas experiências, nos conhecimentos e nos interesses de cada um. Por meio
dessa reflexão crítica, é possível reconhecer os problemas existentes e encontrar os meios para
solucioná-los.
Essa preocupação com o outro é própria dos estudos autobiográficos no âmbito da
Educação. Compreende-se que, a partir do momento em que o sujeito formador compreender
seu próprio trajeto formativo, ele é capaz de sensibilizar-se em relação ao caminho de
formação que o sujeito que está sob a sua tutela está percorrendo (ECKERT-HOFF, 2008;
PASSEGGI, 2005).
Enquanto sujeito do mundo, o indivíduo é bombardeado por experiências o tempo
inteiro. Essas experiências vão adquirir relevância, significação, a partir do instante em que o
sujeito reflete sobre elas. A reflexão das experiências é um momento de autodiálogo, em que
o sujeito pondera, atribui peso, avalia, enfim, efetua uma série de operações de acordo com a
sua vivência. É nesse momento que o indivíduo se constrói enquanto ser singular, para, num
momento posterior, definir-se enquanto ser social. Essa atribuição de valores às experiências é
o segundo passo: o de socializar, externar as experiências que o sujeito considerou mais
significativas.
Os estudos autobiográficos iniciais contemplaram – e continuam nessa abordagem até
hoje, em sua maioria – o processo formativo do indivíduo adulto. No levantamento
bibliográfico realizado para nosso estudo, percebeu-se uma tendência (que talvez se deva à
área de conhecimento na qual os estudos têm mais visibilidade) a voltar o olhar para o
processo formativo do adulto professor. No sentido de organização temporal e estrutural dos
episódios e experiências de vida ocorridas na vida do sujeito, toda biografia seria um percurso
de formação; em contrapartida, toda experiência vivenciada por esse sujeito é formativa, a
partir do momento em que ela se encaixa nesse todo biográfico e adquire um sentido próprio.
33
Olinda & Jr. (2008) citam alguns outros temas que podem ser trabalhados sob a
perspectiva da abordagem autobiográfica: “formação juvenil; experiência religiosa;
espiritualidade; valores em educação e cultura de paz; educação ambiental dialógica; arte e
cultura popular; gênero e movimentos sociais.” (p. 15). Nossa pesquisa, assim como a grande
maioria dos estudos consultados, também envolveu o sujeito adulto, mas do lado oposto: o
aluno adulto, da modalidade de ensino de educação de jovens e adultos.
O processo formativo tão citado nesses estudos não está aliado apenas à simples
vivência de experiência. Não é suficiente estar no mundo e simplesmente deixar que os
acontecimentos resvalem; isso não caracteriza a internalização da experiência. Um indivíduo
que passa por um certo acontecimento, que experiencia uma dada situação em qualquer
momento de sua vida, precisa tomar para si o momento de reflexão sobre o ocorrido, para que
a partir daí essa experiência adquira significado e torne-se um marco em seu trajeto pessoal. A
modificação causada pela reflexão acerca desse acontecimento afeta também as experiências
seguintes, já que transforma o indivíduo que passou por essas vivências.
2.4 As produções dos alunos da EJA
O indivíduo que está matriculado na EJA precisou interromper seus estudos em algum
momento de sua vida escolar. Num momento posterior, retomou-os. Os fatos que circundam
esses acontecimentos são de extrema importância para a compreensão desses dois momentos:
o abandono e a retomada. Os jovens e adultos que participam dessa modalidade de ensino
devem ter acesso às mesmas possibilidades de desenvolvimento e descobertas que o aluno do
ensino regular. Porém, ao contrário do aluno do ensino básico, que é uma criança
desvendando o mundo através do que o professor apresenta em sala de aula, o aluno da EJA já
possui suas próprias experiências. O trabalho do professor é fazer com que essas experiências
adquiram um significado que reflita em seu aprendizado.
A escolha desse objeto de estudo, a comparação da organização da sequência narrativa
em récits de vie produzidos por alunos da EJA com a organização de uma sequência narrativa
prototípica, justifica-se pela tentativa de enquadrar os récits de vie como um objeto de estudo
relevante no âmbito da pesquisa linguística. Além disso, esse trabalho com os récits pode
despertar o interesse do aluno pela escrita, já que valoriza o conhecimento que o aluno tem a
respeito da língua, e não impõe ou descreve determinadas estrutura para fins de aprendizado.
Nosso objetivo inicial é, a partir das análises das estruturas narrativas propostas por diversos
autores, mapear qual estrutura proposta ao longo de todos esses anos de estudos sobre
34
narrativa seria mais adequada ao récit, e vice-e-versa. Colocamos algumas perguntas, com a
intenção de respondê-las no decorrer de nosso trabalho: é possível perceber que o récit possui
características que faltam à narrativa prototípica? Se ele não compartilha dessas
características, seria pertinente classificá-lo como narrativa? Qual seria, então, o modelo
narrativo mais adequado à nossa proposta autobiográfica?
Um de nossos objetivos específicos é mapear as características básicas dos récits de
vie, enquanto gênero que utiliza a sequência narrativa. Para atingir tal objetivo, selecionamos
como critério de análise as categorias nomeadas funções e índices, propostas por Barthes
(1971, 2008) em sua Análise estrutural da narrativa. Esses conceitos serão retomados e
explicados mais à frente, com a utilização de exemplos tanto do próprio autor como do nosso
corpus. Por ora, consideremos que tais categorias são estruturas fundamentais para a
caracterização de uma narrativa. Desse modo, são suas relações - que veremos que são
distribucionais e integrativas - que vão dando corpo ao ato de narrar.
As funções compreendem as ações que vão dando forma à narrativa. Temos funções
cardinais e catálises. As primeiras desenvolvem o texto e é por meio da escolha de uma
função cardinal em detrimento de outra que a narração pode ir por esse ou aquele caminho. As
catálises são ações paralelas, que acontecem ao derredor dessas ações principais e vão
agregando informações. A relação entre essas funções é de natureza distribucionais.
Já os índices dizem respeito aos subentendidos que compõem a narrativa. Podem
denotar algo sobre o caráter do personagem (no caso da categoria índices, subcategoria que
leva o mesmo nome da categoria principal) ou informa algo de caráter puramente descritivo
(no caso do informante, outra subcategoria). A relação que existe entre os índices é de
natureza integrativa: como só é possível compreender a relevância da descrição sobre o
caráter de um personagem por meio de determinada ação ocorrida na narrativa, é necessário,
então, adentrar o nível das funções.
2.5 A escolha do termo récit de vie
Um dos primeiros empecilhos com o qual nos deparamos ao estudar materiais
autobiográficos é sua própria nomenclatura. Relato, memorial, diário, autobiografia, narrativa
de si, história de vida e tantos outros são conceitos utilizados de acordo com a pesquisa que se
busca desenvolver. O termo autobiografia, por exemplo, pode ser encontrado como uma obra
literária acerca de determinada pessoa famosa ou como a tentativa de narração da vida inteira
35
de uma pessoa. O diário está associado à ideia de um caderno, datado, no qual cada página é
dedicada ao registro de um dia da vida do indivíduo que o escreve7.
Em seu trabalho sobre o caráter memorialista em Memórias do cárcere, de Graciliano
Ramos e em Em liberdade, de Silviano Santiago, Wander Melo Miranda (1992) realizou uma
discussão das diversas conceituações da autobiografia, os motivos de sua ocorrência na
literatura ocidental e suas possíveis relações com outras formas narrativas.
Esse interesse pelo individualismo dataria, no mundo ocidental, da época da
Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos. Seria uma necessidade de configuração
ideológica até então não percebida. É na autobiografia que a manifestação de pessoa encontra
um dos meios mais adequados para vir à tona. Em sua obra, Miranda (1992) buscou averiguar
se os limites do texto autobiográfico estavam alienados à vida concreta do autor ou à estrutura
textual do material. Para a verificação e atribuição de veracidade a esse material, ele cita
Lejeune (1975) e seu pacto autobiográfico, que considera que “a partir de análise, no nível
global da publicação do contrato implícito ou explícito do autor com o leitor, o qual determina
o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos a ele, parecem defini-lo como
uma autobiografia. (pp. 29 e 30)”. A autobiografia é considerada aqui como a retrospectiva da
história completa da vida de um sujeito. Esse sujeito, então, reafirmar-se-ia através da
reevocação do passado: numa mescla dos fatores tempo e identidade, não será contado apenas
o que aconteceu em um tempo pretérito, mas como aquele sujeito do passado se transformou
no sujeito narratário presente.
Uma das primeiras diferenciações que o autor faz é entre a autobiografia e o romance.
Como sua obra Corpos escritos tem por objetivo estabelecer as relações existentes entre a
autobiografia e a ficção, ele atribui a responsabilidade dessa primeira distinção a esse pacto
prévio realizado entre autor e leitor.
Em relação ao diário íntimo, a autobiografia distingue-se em virtude da mínima
separação entre o momento vivido e o registro desse momento. O diário, enquanto registro
escrito, permite uma maior exatidão de descrições da experiência real. A autobiografia recorre
a uma seleção da memória, e esse momento de seleção contribui para uma ordenação dos
fatos vivenciados, ao passo que o diário é fragmentado.
O autorretrato, por sua vez, aproximar-se-ia tanto da autobiografia quanto do diário.
No primeiro caso, essa aproximação acontece devido à busca pelo autoconhecimento. No
segundo, o objetivo do autorretratista é o mesmo do diarista: deixar registradas suas
7 ARTIÈRES, 1974.
36
impressões sobre si mesmo. Porém, o autorretrato está ligado à experiência de morte: o
indivíduo obriga-se a produzir um resumo de sua vida, resumo esse de caráter confessional e
realizado quando se sente já muito próximo do final.
No que tange ao memorial, Miranda considera essa a distinção mais complicada de
perceber. Alega, então, que essa diferenciação residiria na escolha dos fatos narrados. O
tempo inteiro, durante a narrativa, o memorial é permeado por acontecimentos externos que
passam a ser privilegiados. Esse gênero não possui o mesmo enfoque da autobiografia, que
seria a vida individual de um sujeito.
Essa situação clássica da autobiografia - a de narrativa que contempla os episódios de
uma vida inteira de uma celebridade – é modificada em meados dos anos 60, quando
narrativas de camponeses, operários, prisioneiros etc., são publicadas em forma de livro. Essa
mudança promove também a revisão de procedimentos técnico-formais dessa escrita
autobiográfica.
Assim, nossa pesquisa elegeu como corpus alguns escritos que narram determinados
momentos do percurso de um indivíduo, acontecimentos que, em alguns casos, foram
traumáticos e modificaram a trajetória de vida do narrador de alguma forma. Foi solicitado
aos indivíduos participantes da pesquisa que escrevessem sobre o motivo pelo qual
abandonaram a escola e por que haviam retornado. São escritos que enfatizam um
acontecimento específico da vida do sujeito. A partir dele, a grande maioria realizou uma
retrospectiva da própria vida, trilhando novamente o percurso que o levou ao ponto em que
estava no momento em que escreveu o texto, na tentativa de encontrar no passado
justificativas para as ações presentes. São escritos mais curtos que aqueles que encontramos
sendo trabalhados pelas pesquisas autobiográficas.
A narrativa a que esses estudos fazem referência não é a tipologia / sequência textual
como é descrita na Linguística, mas, sim, o processo mesmo de contar uma história, de
elencar uma sequência de fatos que tem início, meio e fim e uma relação de causalidade. O
presente estudo busca analisar os récits por esse viés, tentando identificar pontos de interseção
e de diferença entre uma narrativa prototípica e uma, por assim dizer, narrativa
autobiográfica. Para tanto, utilizaremos as categorias descritas por Barthes (1971, 2008), a
saber, funções e índices8.
A autobiografia manifesta-se sob os mais variados estilos. Cada um deve ser adequado
à escolha do sujeito que narra, pois só sua chancela interessa, e não é imputada nenhuma
8 Essas categorias serão descritas no tópico 4.1 dessa dissertação.
37
obrigatoriedade de seleção de gênero. Será sempre uma autointerpretação, que se constrói não
apenas da relação do narratário com seu passado, mas também a partir do projeto que é
forjado para dar-se a conhecer ao outro.
Com base em todas as leituras que realizamos das publicações sobre o método
autobiográfico, é possível notar objetivos, teorias e abordagens das mais diversas. Um ponto
em comum é a presença do sujeito enquanto autor que coloca em xeque o próprio processo de
formação. Vale ressaltar que o termo “formação” aqui utilizado não faz referência ao mesmo
processo de que tratam os trabalhos na área da Educação. O processo com o qual o sujeito se
depara, nesse caso, é aquele que lhe é solicitado relembrar. Em nosso estudo, o mote para a
feitura do récit de vie foi o abandono e o posterior retorno à escola e as motivações para que
isso acontecesse. Ou seja, o processo, em nossa perspectiva de trabalho, resume-se a um
evento (traumático ou não), passível de ser contado por meio de um recorte que o indivíduo
efetua em seu percurso biográfico. Citando Formenti (2008, apud PASSEGGI, 2008)
O sujeito-autor (re) pensa o próprio processo de formação e descobre possibilidades e limites do narrar, da perspectiva que vê a própria vida, palavra e gramática que adquiriu para poder se contar. O sujeito torna-se um pesquisador que procura compreender o viver a partir de si, a partir do próprio saber. O sulco entre saber pessoal e saberes adquiridos atenua-se. (p. 53)
Sem confundir-se com a chamada pesquisa-ação, em que também é atribuído ao
indivíduo participante da pesquisa o caráter de pesquisador, a pesquisa autobiográfica é
participativa. Ela depende não apenas da aceitação do indivíduo em colaborar com o
pesquisador; ela leva esse mesmo indivíduo a olhar para si mesmo, revivendo-se e revivendo
as situações pelas quais passou. Esse momento faz com que ele reflita sobre essas vivências e,
ainda que inconscientemente, vá atribuindo justificativas às decisões tomadas ou procurando
explicações para o que aconteceu e não estava sob seu domínio. Ele toma consciência de suas
próprias reflexões a partir desse novo ponto de vista em que se coloca. Para a Educação e as
pesquisas que tem um caráter formativo, esse viés de pesquisa é bem vindo, pois faz com que
esse fazer autobiográfico ganhe um caráter gerador de reflexões e de sentidos.
38
3 Catando conchinhas nas narrativas...
3.1 O estudo da narrativa
Em sua consagrada obra Análise estrutural da narrativa (1971, VOZES), Roland
Barthes assevera que
a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas.
Se são incontáveis as narrativas do mundo, como ousar, então, colocá-las ao abrigo de
um mesmo rótulo, se essas narrativas são produto do homem ao longo do tempo e em diversas
situações sociais, econômicas e históricas diferentes? Questões como essa nos fazem refletir
incessantemente acerca das relações entre a história de vida e a narrativa construída a partir de
histórias vividas.
Barthes admite que as histórias de mundo – que são inúmeras e nos mais variados
gêneros - tendem a uma narrativização. Essa tendência advém da presença da narrativa na
própria história do mundo, na forma oral ou na forma escrita, nas mais variadas épocas e
sociedades.
Em seu estudo sobre a utilização da narrativa no gênero banco de dados, Tavares
(2007) considera
A ideia de narrativa como algo que perpassa o tempo e se engendra em diferentes períodos da história, que ultrapassa fronteiras culturais e se faz onipresente em todas as civilizações, nos leva a pensar que talvez, ela, a narrativa, seja o melhor instrumento para tentar compreender o homem e sua jornada pelo mundo. Sob esse aspecto podemos pensar na narrativa, e em seus discursos, como uma forma de expressão do pensamento e das relações pessoais e sociais do homem com e em sua época. (p.10)
Continuando sua reflexão, Barthes indaga se essa enorme variedade de narrativas
figuraria como um impedimento para o indivíduo que se propõe lançar-se nesta seara de
desenvolver um estudo sobre essa estrutura. Essa variedade infindável de gêneros seria,
portanto, um empecilho para a elaboração dessa análise narrativa? É impossível descrever um
modelo comum a essas variedades narrativas, visto que seria inviável abarcar todos os
gêneros através dos quais a narrativa de si se manifesta? Barthes dá prosseguimento a suas
reflexões colocando a narrativa como polos de possibilidade distintos: no primeiro, a narrativa
39
seria uma simples “acumulação de acontecimentos” e a sua descrição estaria tão-somente
relacionada à maestria do autor que a escreveu; a outra possibilidade seria a existência de uma
“estrutura acessível à análise”, ainda que essa estrutura seja difícil de desvendar. Assumindo
essa segunda posição, a narrativa dependeria, então, de uma combinatória de unidades e
regras em um sistema implícito.
O autor propõe, então, que essa busca pela estrutura universal da narrativa parta de um
procedimento dedutivo, de simples descrição. A partir daí, por comparação, verificar-se-ia a
proximidade ou não dos textos chamados narrativos com esse modelo.
Nessa obra, a linguística é considerada como o cerne da significação para uma análise
da estrutura narrativa. Toda unidade que se pretende analisar precisa ser descrita em
diferentes níveis. Barthes retoma esse pressuposto dos níveis a partir do que foi proposto por
Benveniste. Há dois tipos de relação possíveis: a distribucional, em que essas relações
acontecem no mesmo nível, e a integrativa, quando essa relação acontece entre unidades que
estão em níveis diferentes.
Retomando várias proposições de categorias de análise das estruturas narrativas,
Barthes reúne as propostas de Todorov, Propp, Bremond e Greimas, resumindo assim sua
proposta de análise, a partir da qual selecionaremos determinadas categorias para a realização
do estudo aqui proposto:
Propõe-se distinguir na obra narrativa três níveis de descrição: o nível das «funções» (no sentido que esta palavra tem em Propp e em Bremond), o nível das «ações» (no sentido que esta palavra tem em Greimas quando fala dos personagens como actantes) e o nível da «narração » (que é, grosso modo, o nível do «discurso» em Todorov). Será bom lembrar que estes três níveis estão ligados entre si segundo um modo de integração progressiva: uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu próprio código. (p. 27)
O advento do Modernismo ocorreu, para fins de didatismo histórico, após a revolução
francesa, com a crença do homem em um mundo melhor, resultado dos benefícios trazidos
pelo progresso. Sua consagração enquanto movimento artístico, no final do século XIX e
início do século XX, propiciou, dentre outras mudanças, a conceituação da narrativa enquanto
acontecimento. As obras produzidas nesse período buscaram romper com os cânones
literários anteriores, quando um modelo preestabelecido era seguido por todos os autores que
se propunham a escrever sob o rótulo de determinada estética. A partir de então, surgiu uma
nova maneira de escrever e compreender um texto: ao leitor, foi dada a possibilidade de
40
interagir com o texto; ao escritor, foi dado espaço para que sua escrita fluísse sem amarras,
levando a interpretações das mais diversas.
Sobre esse período, interessam-nos sobremaneira as modificações causadas na
estruturação da narrativa: se coube ao leitor a responsabilidade de realizar a leitura da forma
como lhe parecia melhor, a organização começo – meio - fim da narrativa clássica começa a
sofrer abalos.
Essa linearidade, estudada por Aristóteles em sua narrativa da tragédia, supõe uma
ordem lógica, de causa e efeito, fechada em si e que não admite ações que não foram
previamente anunciadas. A história ou acontecimento vai se construindo à medida que uma
ação é realizada. Eis uma das primeiras mudanças perceptíveis nas narrativas modernas e pós-
modernas: a possibilidade de o texto começar ou terminar em qualquer ponto, ou seja, o
acontecimento ocorre no momento mesmo que o leitor vivencia aquela história.
Para nosso estudo, admitimos os récits de vie como um recorte realizado pelo
narratário em sua trajetória pessoal. Em nossa situação de pesquisa, o indivíduo não
necessitou estabelecer sua genealogia, infância, adolescência etc. para justificar o que o levou
a tomar determinada atitude ou situar o acontecimento historicamente. Quando o tema foi
proposto, ele pôde começar sua narração a partir do ponto que considerou mais adequado para
responder ao que lhe era colocado, do mesmo modo que pôde também findá-la no instante em
que considerasse sua narração coerente o suficiente, sem preocupações com o entendimento
que o leitor-pesquisador teria do que lhe foi contado. Sobre isso, concordamos com Martins
(2008), quando essa autora diz que "em face do caráter fluido do que seja a
contemporaneidade, torna-se também fluida a análise do que seja a narrativa contemporânea.
(p. 29)".
Na continuidade, a autora admite que essa seria uma das características mais
marcantes da narrativa contemporânea: sua não linearidade. Ela argumenta que isso talvez
ocorra por conta da multiplicidade de gêneros produzidos hoje. Esses gêneros buscariam
enfatizar pontos na narrativa que lhe parecessem mais importantes, daí tal diversidade. Nesse
sentido, a narrativa contemporânea constitui uma espécie de afronta aos modelos tradicionais
e às narrativas pré-existentes, dada a sua heterogeneidade.
Essa descontinuidade na narrativa leva-nos a uma segunda característica verificável
nos récits de vie: a quebra do tempo cronológico durante os relatos. Isso é visível e esperado
em nosso corpus, visto que a recuperação do passado por meio da memória é muitas vezes
falha e o sujeito organiza esses eventos do modo como melhor lhe parece, para ficar mais bem
posicionado perante a lente daquele que o escuta ou para esconder fatos que prefere não
41
divulgar. Assim sendo, é ofício do indivíduo narrador operar recortes, selecionar passagens,
recriar eventos, criar situações e, à medida que realiza esse exercício, ir tecendo suas
memórias frente àquele que o escuta.
A emergência de um autor atende a diversas necessidades, conscientes ou não. Por
vezes estamos sob o jugo da coerção – acadêmica, escolar, profissional - ou a escrita surge
como forma de dar vazão a algo que nem conhecemos pelo nome. Aqui, não trabalharemos
com o surgimento desse autor, mas com o texto por ele produzido nessa sua nova condição.
Os objetivos deste trabalho não abarcam as pesquisas sobre autoria9, sendo esse último
tão somente um exemplo de categoria que os estudos sobre a narrativa podem alcançar.
Buscamos a delimitação de uma noção de narrativa que abrangesse as narrativas de
cunho autobiográfico que são produzidas, que – conforme uma das hipóteses da presente
pesquisa – não são passíveis de classificação segundo a conceituação daquilo que é uma
narrativa prototípica, aqui considerada como sendo um texto que conta uma história com
princípio, meio e fim e que conjuga da linearidade aristotélica já citada.
Assim como o que foi afirmado por Freitas (2010), quando da eleição de um modelo
que pudesse ser utilizado para a realização das análises do seu corpus - a saber, narrativas de
viajantes -,o modelo estrutural de análise narrativa ora escolhido também é passível de
aplicação ao estudo dos récits de vie, visto que um de seus interesses de pesquisa “[...] recai
sobre a necessidade de identificar as regularidades constitutivas que caracterizariam o
conjunto de textos que elegemos” (FREITAS, 2010, P. 48). Ao buscar uma abordagem
discursiva para tratar seu corpus, a autora relata uma mesma dificuldade que já apontamos
aqui: a de que a Análise do Discurso - no seu caso - não possui uma metodologia que
contribuísse satisfatoriamente para uma análise da narrativa. Decide, portanto, enveredar pela
análise narrativa que se baseia em categorias literárias.
Pela relevância do trabalho, reconhecido e tomado como base por grande parte dos
estudiosos do texto/discurso, e por sua categorização de elementos da análise narrativa,
consideramos que as categorias presentes no trabalho de Barthes e demais pesquisadores,
ainda que tenham sido elaboradas tomando por base narrativas literárias, servem ao nosso
propósito, visto que nosso objetivo maior é a identificação de determinadas estruturas que
possam classificar o récit de vie no âmbito da tipologia narrativa.
Pensamos como Freitas (op. cit.), quando a autora diz que
9 Sobre esse assunto, ver Freitas (2010).
42
Ao adotarmos a perspectiva da análise estrutural para o exame das narrativas de viajantes, não estamos em busca de uma estrutura imanente que possa contemplar todas as narrativas, uma vez que, em nosso entendimento, cada narrativa é um acontecimento discursivo com contingências próprias, dada a inscrição dos sujeitos-narradores em um lugar sócio-histórico definido. (pp. 48 e 49)
Nosso objetivo geral firma-se na busca de atribuir, nos estudos linguísticos, a devida
importância que o récit de vie possui, caracterizando essas narrativas como um tipo de
narrativa diferente das que encontramos descritas e que ainda não foi devidamente
caracterizada.
Genette (1979) atribui três designações diferentes a situações que podem alçar-se à
categoria de narrativa. A primeira designação seria o “o enunciado narrativo, o discurso oral
ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos.” (p.
23) A narrativa é, portanto, o acontecimento encerrado em si mesmo. A segunda se compõe
da “sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objecto desses discursos,
e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição de repetição, etc.” (p. 24) A análise
da narrativa consistiria, então, nos estudos de ações e situações consideradas nelas mesmas.
Nossos estudos se enquadram, mais provavelmente, no terceiro sentido que Genette atribui ao
conceito de narrativa: o momento, a situação, “que consiste em que alguém conte alguma
coisa: o acto de narrar tomado em si mesmo” (p. 24).
Citando Levi-Strauss, Pinto (1971), na introdução de Análise estrutural da
narrativa, admite que uma teoria que busca interpretar a estrutura narrativa, deve conter pelo
menos dois componentes: a armadura e o código. A armadura seria uma espécie de esqueleto
e, como tal, invariante, comum ao que o autor chama de narrativas-exemplo (PINTO, 1971).
Nosso estudo buscou definir, dentre os outros objetivos anteriormente citados, como os récits
de vie, enquanto produções narrativas, partilham dessa “armadura” das consideradas
narrativas-exemplo. Sobre o código, diz Pinto que, “é, em última análise, um dicionário em
que determinados lexemas narrativos estão definidos por um semema (conjunto de semas)”
(p. 14). Essas duas estruturas seriam, segundo a lógica expressa por Pinto, componentes
universais.
Barthes corrobora isso quando afirma que
a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomina, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na
43
conversação. Além disso, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente essas narrativas são apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida (p. 19 e 20).
Vemos, entretanto, que nem as descrições de Barthes, nem as de Genette dão conta da
análise das narrativas pessoais em suas características peculiares. Fez-se necessário um estudo
acerca das narrativas, uma remodelização para compreensão das estruturas das narrativas
pessoais. As histórias de vida em narrativas escritas em redações ou contadas em modalidade
oral fogem ao modelo prototípico, ora por não respeitarem a sequência vista em narrativas
literárias, com os elementos preestabelecidos, ora por serem pontuadas de pequenos e
múltiplos clímax, ou nenhum, sem a obrigatória apresentação de solução em forma de
desfecho, uma vez que muitas vezes os relatos são interrompidos por lembranças adjacentes
ao tema sobre o que se tratava a história no início do reconto.
Passeggi (2008) também atribui essa tendência narrativa ao discurso das pessoas que
se propõem a falar de si. Segundo a autora, essa organização narrativa existiria até mesmo
antes da concretização desse falar. As situações vividas vão sendo organizadas em função de
uma “sintaxe da narrativa” e vão se adequando a esse molde (PASSEGGI, 2008). Quando são
externalizadas, são passíveis de identificação com gêneros que utilizam a narrativa como
tipologia textual. Desse modo, essa atividade de falar de si deixa de ser apenas uma atividade
isolada e passa ao nível de uma atividade crítica do indivíduo, em direção ao seu
autoentendimento e compreensão de seu ambiente sócio-histórico.
Essa narrativização da experiência seria o cerne da metodologia (auto) biográfica. É o
melhor caminho que a escrita de si busca empreender na direção da compreensão dos fatos
vivenciados. Por outro lado, corre-se o risco de perder o contato com essa experiência, quando
da tentativa de racionalizar seu percurso para que este se torne inteligível ao interlocutor. O
indivíduo que escuta o faz com base em uma forma de interpretação por ele escolhida, e ela
pode não ser suficiente para alcançar os sentidos que essa narrativa comporta. A própria
forma narrativa também coage, também poda aquele que conta, pois estamos limitados ao
nosso vocabulário, aos gêneros que conhecemos e dominamos.
Essa variedade infindável de gêneros seria, portanto, um empecilho para a elaboração
dessa análise narrativa? É impossível descrever um modelo comum a essas variedades
narrativas, visto que seria inviável abarcar todos os gêneros através dos quais ela se
44
manifesta? Barthes dá prosseguimento a suas reflexões colocando a narrativa em polos de
possibilidade distintos: no primeiro, a narrativa seria uma simples “acumulação de
acontecimentos” e a sua descrição estaria tão-somente relacionada à maestria do autor que a
escreveu; a outra possibilidade seria a existência de uma “estrutura acessível à análise”, ainda
que essa estrutura seja difícil de desvendar. Considerando essa segunda posição, a narrativa
dependeria, então, de uma combinatória de unidades e regras em um sistema implícito.
3.2 Funções e índices: as categorias propostas por Barthes
Barthes propõe como primeiro passo para essa análise estrutural da narrativa a
definição de unidades narrativas mínimas. Retomando sua proposição integrativa, não se pode
sobrevalorizar uma definição meramente distribucional das unidades. A significação precisa
ser, desde o início, o critério da unidade. É essa funcionalidade que transforma a unidade nela
mesma. Ou seja, a enunciação de uma forma linguística nunca será vazia, constituindo, assim,
uma função ou unidade narrativa. O autor afirma que a narrativa só se compõe de funções.
Até mesmo a ausência de significação possui “a significação de absurdo ou de inútil” (p. 28).
Do ponto de vista linguístico, essa função é uma unidade de conteúdo.
Barthes chama a atenção para a independência da significação das unidades narrativas
em relação à significação das unidades linguísticas. Assim pensado, tomando a frase como
base, determinadas unidades funcionais podem ser inferiores a essa estrutura. Descarta-se,
pois, a aproximação dessas estruturas com aquelas às quais estamos habituados quando
tratamos do estudo tradicional da narrativa, a saber: ações, cenas, diálogos, sentimentos e
motivações dos personagens etc.
As unidades propostas por Barthes e descritas anteriormente precisam dividir-se em
classes formais. Retomemos aqui a consideração de que certas unidades mantêm relação com
outras do mesmo nível e que também podem divergir de nível com essas outras unidades, o
que leva à categorização das duas grandes classes de funções: a distribucional e a integrativa.
Essas primeiras classes correspondem às funções sugeridas por Propp e assim serão
nomeadas. A segunda classe compreenderá os chamados índices, descritos como conceitos
que não são elevados à categoria de função, mas são necessários para a compreensão da
história que é narrada. Sobre os personagens, podemos ter índices que denotam sua
identidade, por exemplo. Para compreender uma notação indicial, é necessário, entretanto,
passar a um nível superior. Os índices, por sua vez, remetem a um sentido que não necessita
estar explícito, pois não dizem respeito a uma ação.
45
Barthes admite que estas duas grandes classes de unidades já tornariam possível uma
certa classificação das narrativas: “certas narrativas são fortemente funcionais (assim os
contos populares), e em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances
psicológicos)”. (p. 32)
Continuando sua classificação, ele concebe, dentro de cada uma dessas grandes
classes, duas subclasses de unidades narrativas.
No que diz respeito à classe das funções, as unidades assim classificadas não possuem
um mesmo valor. Enquanto que umas constituem um trecho deveras importante dentro da
narrativa, outras apenas preenchem o espaço que ficaria vazio. Essas primeiras funções,
primordiais para o funcionamento da narrativa, são chamadas funções cardinais (ou núcleos).
As últimas, dada essa sua natureza de preenchimento, são chamadas catálises. Para que uma
função cardinal seja assim considerada, é satisfatório que a ação à qual ela se reporta abra
possibilidades para que a história narrada tenha continuidade, seja essa uma possibilidade de
início, prosseguimento ou conclusão.
Entre duas funções cardinais, é provável haver notações que se reúnem em torno
desses núcleos sem lhes modificar o sentido, apenas acrescentando informações. Enquanto
que esses núcleos são momentos decisivos da narrativa – pois, a partir de um núcleo, é
possível partir para outro núcleo, sendo que esse momento fará com que se opte por um
caminho que será tomado pela narrativa em detrimento de outra possibilidade -, a catálise
pode ser considerada uma zona de conforto, o que não deve atribuir a essa subclasse um
caráter desnecessário: a catálise mantém o curso da narrativa, curso esse que é determinado
pelas funções cardinais.
Em relação aos índices, segunda grande classe descrita por Barthes, estes se
distinguem em índices propriamente ditos – sugestões de implícitos, como os sentimentos ou
o caráter de um personagem – e informações que, como diz a própria nomenclatura, são
utilizadas para indicar a situação espaço-temporal da narrativa. Os índices, portanto, têm
significados subentendidos, ao passo que as informações constituem um conhecimento
pronto; têm um caráter fraco, porém não nulo, assim como as catálises. Face ao exposto,
podemos assim organizar, de forma esquemática, as classes de análise propostas por Barthes:
46
CLASSES DE UNIDADES NARRATIVAS
Figura 3: Diagrama das classes propostas por Barthes (1971, 2008)
Quais seriam, então, as regras que regeriam a associação dessas diferentes unidades,
ao longo da estrutura narrativa? Barthes levanta algumas possibilidades. A primeira dela é
simples e direta: informantes e índices, dentro da classificação maior de Índice, tem
possibilidade combinatória livre. Outra relação básica é a que une as catálises e os núcleos:
uma catálise envolve a existência de um núcleo, mas a recíproca não é verdadeira.
Isto pode dever-se ao fato de que catálises e núcleos não estão num mesmo nível, ao
passo que uma função de espécie cardinal mantém uma relação de solidariedade com outra de
mesmo nível, numa analogia recíproca.
Neste ponto de discussão, Barthes faz uma observação que podemos considerar como
um ponto de partida para a definição dos elementos indispensáveis da estrutura narrativa:
enquanto que é possível a supressão das catálises, os núcleos não permitem tal ação. Esse será
um dos primeiros passos de nosso trabalho: definir os núcleos presentes no Conto de escola e
nas produções textuais dos sujeitos participantes da pesquisa selecionadas como corpus.
Mais adiante, o autor tratará da definição da sequência narrativa, a saber: “Uma
sequência é uma série lógica de núcleos, unidos entre si por uma relação de solidariedade: a
sequência abre-se assim que um dos seus termos não tenha antecedente solidário e se fecha
logo que um de seus termos não tenha mais consequente.” (p. 39) A sequência, ainda que
formada por poucos núcleos, é uma opção de sentido que a narrativa pode seguir. Quando
resumida em suas funções, pode assumir um papel de índice para uma sequência maior, que,
por sua vez, servirá ela mesma de microssequência para outra sequência maior, e assim por
47
diante. Desse modo, o que define a função que a unidade desempenhará na estrutura narrativa
é sua não função frente a outras estruturas.
No que concerne à relação narrador – leitor, nossa visão aproxima-se da do autor
quando ele diz que “o problema não é de interiorizar os motivos de narrador nem os efeitos
que a narração produz sobre o leitor; é o de descrever o código através do qual o leitor e o
narrador são significados no decorrer da própria narrativa.” (p. 47) Um dos objetivos do nosso
trabalho é identificar se esse código narrativo também está presente nos récits de vie.
3.3 Algumas resenhas necessárias
No campo dos estudos da análise da narrativa, inscrevem-se os trabalhos de Barthes
(1971, 2008), que didatizam uma classificação que tenta ser aplicável às narrativas de forma
bem geral, um clássico que trata do assunto e obra da qual selecionamos as categorias de
análise que foram aplicadas ao nosso corpus, e trabalhos mais recentes como Tavares (2007),
com a aplicabilidade da estrutura narrativa a gêneros como o banco de dados e o
documentário; Martins (2008), que analisa a narrativa do romance contemporâneo de Wilson
Bueno; e Freitas (2010) em sua investigação acerca de narrativas de viajantes da era do
descobrimento do Brasil.
Tavares (2007) traz uma proposta muito interessante para o tratamento da narrativa na
atualidade. Em sua pesquisa que propõe a criação de um documentário interativo, a autora
inicia realizando um apanhado histórico sobre os estudos narrativos propostos até então. Seu
objeto de análise consistiu no estudo da narrativa de duas obras diferentes: a primeira delas foi
um documentário que, segundo a autora, foi montado segundo a narrativa cinematográfica
clássica. Já a segunda, um documentário em hipermídia, obedecia ao modelo do banco de
dados enquanto gênero. Tavares (2007) buscava identificar as especificidades de cada tipo de
narrativa, com vistas à adequação a um determinado tipo de mídia. Para o estudo clássico da
narrativa, a autora cita os estudos de Aristóteles, Barthes e sua Aventura semiológica e O
discurso da narrativa proposto por Genette (1970). Vale salientar que, em ambos os casos,
os autores citados trabalham com a narrativa que tem como suporte o texto escrito. Ainda
assim, essa mudança de suporte não inviabilizou a pesquisa que a estudiosa buscou
empreender.
Martins (2008), por sua vez, analisou a recriação de um romance do escritor Wilson
Bueno. Sua análise estava focada nas tendências contemporâneas que vêm sendo incorporadas
pelas narrativas, causadas pela pós-modernidade, com ênfase na narrativa literária. A autora
48
apresenta características que vêm compondo a narrativa contemporânea, como o uso da
metalinguagem e a fragmentação textual. A pesquisa ressalta a novidade das construções
realizadas por Bueno em Amar-te a ti nem sei se com carícias como um claro exemplo das
mudanças ocorridas na estrutura narrativa proposta desde Aristóteles até antes dos
movimentos modernistas.
Tanto Tavares (2007) como Martins (2008) estudam a narrativa a partir dos
rompimentos que vêm acontecendo atualmente. É uma visão da narrativa na qual se permite a
inversão da ordem aristotélica, a participação do leitor no rumo que essa narrativa vai tomar, a
conexão com outros tipos de discursos e suportes, dentre outros. Seria, portanto, nesse
momento que se apresenta a revolução na maneira de o homem organizar a narrativa? Esses
dois trabalhos serviram-nos para a conceituação do estado da arte da narrativa moderna.
Assim como o que é proposto em nosso trabalho, Freitas (2010) estudou os textos
escritos por viajantes trabalhando com a mesma noção de narrativa: um texto que conta uma
história e que apresenta início, meio e fim. A autora, que tomou como corpus os textos
escritos por viajantes que estiveram no Brasil entre os séculos XVI a XIX, buscando verificar
a constituição da categoria da autoria nessas narrativas, utilizou parâmetros da análise do
discurso, além do diagrama proposto por Cardoso e Maia-Vasconcelos (2009) para um
entendimento mais amplo de textos autobiográficos. A relevância desse trabalho consistiu no
conceito de narrativa como autoria circunstancial adotado pela autora e suas considerações
sobre tal conceito.
Os estudos sobre autobiografia utilizados como embasamento teórico serão o de
Nóvoa (1998), Dominicé (2006), Pineau (2006) Josso (2007), Passeggi (2008) e Bertaux
(2010), por serem esses os teóricos que mais vêm tratando do assunto nos últimos anos, a fim
de definir procedimentos teórico–metodológicos adequados e aplicáveis.
Pineau (2006) relata uma dificuldade já apresentada por nós: a definição de uma
nomenclatura para o que ele chama de "tentativas de expressão". O autor considera que a
força que o movimento biográfico adquiriu na atualidade é consequência da efervescência de
sentidos que hoje são atribuídos à nossa trajetória, seja ela pessoal ou profissional, pública ou
privada. Desse modo, cada ser humano é levado a lidar individualmente com cada uma dessas
questões que são impostas e a repensar como se dá o impacto no todo.
Josso (2007) centra sua pesquisa na formação de professores, atribuindo à ação de
narrar a própria vida um ato de refletir sobre essa formação, momento que a autora considera
fundamental para um trabalho satisfatório de educação continuada. Seria uma situação que
proporcionaria ao educador a percepção da identidade que forjou para si mesmo em seus anos
49
de atuação no magistério. A proposta é refletir sobre o percurso trilhado e, a partir daí, buscar
soluções, propor mudanças de postura, elaborar projetos de vida. Seu trabalho busca uma
interpretação dessas histórias de vida para trabalhar questões de identidade.
A coletânea de artigos organizada por Passeggi (2008) traz tendências de pesquisas de
abordagem autobiográficas à tona, a partir dos mais diversos campos de estudos, com ênfase
em frentes de estudo como as práticas formativas da narrativa pessoal, já amplamente
debatido na Educação, e as práticas de intervenção baseadas em experiências de imigração,
territórios ainda pouco explorados. É possível perceber o processo de biografização
acontecendo e sendo registrado por outros domínios da ciência, como a Psicologia, figurando
como salutar para a compreensão do indivíduo pós-moderno.
Bertaux (2010) apresenta uma proposta a ser aplicada em relatos orais. Estudioso de
longa data sobre essa temática, o autor acredita que
a oferta de proposta de ação pelas diversas escolas teóricas é abundante. O diferencial das narrativas de vida é que elas nos dão a possibilidade de estudar não só o produto - a ação em si -, mas o processo, o percurso de ação situada. (p. 11).
Na busca por uma orientação precisa para sua pesquisa, o autor trabalhou seu corpus a
partir da perspectiva etnossociológica, que estuda um fragmento particular da realidade sócio-
histórica de modo objetivista, ou seja, com foco em uma atividade específica desenvolvida em
um mundo social por um conjunto de pessoas que se encontram em uma determinada situação
social. Ele passa a considerar a existência de uma narrativa de vida quando há uma descrição
de um fragmento de experiência de vida sob forma narrativa.
O autor elenca diversas áreas da vida que podem permear a narração dos
acontecimentos vividos pelo sujeito: as relações familiares e interpessoais, a experiência da
escola, a inserção profissional, o emprego e descreve uma possível articulação desses
domínios de existência. Depois de apresentar também funções das narrativas de vida, Bertaux
sugere uma metodologia que visa a orientar a coleta e o tratamento de dados autobiográficos
orais.
Para fins comparativos, serão utilizados variados trabalhos de orientação
autobiográfica. Apesar das abordagens e dos propósitos serem bastante diversos, estudos
como o de Signorini (2005) e Eckert-hoff (2008) nos permitem avaliar como as pesquisas
acerca da autobiografia vêm sendo desenvolvidas, no que diz respeito à utilização e aplicação
da teoria nas ferramentas destas pesquisas.
Signorini (2005) utilizou relatos autobiográficos orais e escritos produzidos por
professores de ensino fundamental e médio. O objetivo de sua pesquisa foi perceber as
50
ressignificações que eram realizadas por uma professora em específico, no momento em que a
autora do relato narrava acontecimentos ocorridos durante seu processo de
escolarização/formação. Como o relato foi colhido por meio de entrevista, a autora
compreende esse momento como um evento interacional, realizado em uma situação
colaborativa, situada e dinâmica. Essas práticas formadoras seriam reconstruídas no momento
em que o relato é doado ao entrevistador. Seria, então, uma possibilidade de sistematizar os
saberes heterogêneos que são adquiridos ao longo da formação, e refletir sobre eles e seu
impacto no ser profissional em que o sujeito se transformou.
Eckert-hoff (2006) busca compreender esse lugar social em que o sujeito professor se
inscreve ao falar de si mesmo. O momento da narração é quando acontece o jogo de
construção desse relato de si: o sujeito que narra se esconde e se mostra, exibe suas falhas ao
mesmo tempo que tenta escondê-las.
A autora aponta que os trabalhos iniciais com histórias de vida na Educação já
buscavam elucidar a imagem que o professor faz de si mesmo, apontando as dificuldades da
profissão para tentar resolver esses problemas em grupos de autoaprendizagem. É nas
histórias de vida que a formação acontece. Porém, ao narrar sua história, o indivíduo coloca-
se não como é, pois há as lacunas causadas pelas falhas da memória e também a tentativa de
esconder defeitos e fatos vergonhosos a seu ver; no decorrer dessa narrativa, o sujeito oscila
sobre si mesmo.
51
4 Em busca de um método
A pesquisa ora proposta, a análise da organização narrativa dos récits de vie, é um
trabalho de intervenção exploratória e documental, de abordagem qualitativa. Qualifica-se
como exploratória pela pouca exploração tanto do tema – autobiográfico - como de uma parte
do material empírico – os récits de vie - no campo da Linguística. Assim, foi necessário que
passássemos por todo um processo de testagem e sondagem para que pudéssemos construir
uma técnica com vistas à construção das hipóteses.
A pesquisa ora apresentada também se caracteriza como documental dado o material
de análise ser constituído por documentos nunca antes analisados, no caso dos récits de vie.
Pelo tratamento dos dados, consideramos essa análise qualitativa, dado ser caráter descritivo e
a fundamental intervenção do pesquisador no momento de análise.
Considerando os procedimentos técnicos utilizados para levantamento dos dados,
caracterizamos nosso estudo como uma pesquisa de campo. Lakatos (2009) define esse tipo
de pesquisa como sendo aquela que envolve uma observação direta por meio, dentre outros,
do preenchimento de formulários ou questionários.
4.1 Caracterização da pesquisa
Quanto aos objetivos, a pesquisa aqui apresentada é considerada descritiva, de caráter
hipotético-dedutivo. O passo inicial é a escritura do texto por parte dos sujeitos pesquisados.
Num momento posterior, os dados coletados serão submetidos à análise.
Nossa atenção esteve voltada para a identificação dos núcleos – categoria proposta por
Barthes (1971) - da estrutura narrativa dos récits de vie. Para tanto, optamos por um corpus
formado por redações escritas em situação de sala de aula por alunos da EJA.
4.2 Sujeitos da pesquisa
Os sujeitos da pesquisa foram alunos da modalidade de ensino EJA de uma escola
estadual. A faixa etária varia entre 19 (dezenove) e 54 (cinquenta e quatro) anos. Foram
consideradas pelo menos 02 (duas) produções de cada aluno: uma com tema autobiográfico e
outra de tema não biográfico, para fins comparativos. Ao corpo desse trabalho, foram
anexadas apenas as produções dos récits de vie, que foram comparadas, num segundo
momento, com a estrutura elaborada a partir do texto Conto de escola, de Machado de Assis.
52
O principal critério de seleção dos sujeitos foi a escritura do material solicitado e,
posteriormente, a faixa etária em que esses indivíduos se encontram.
4.3 Material
A amostra de textos para composição do corpus e para a análise foi constituída pelos
textos produzidos em sala de aula de EJA e uma edição do texto de Machado de Assis, Conto
de escola para posterior comparação. Ao todo, foram colhidas 22 (vinte e duas) redações.
Para ilustrar as categorias e forjar a comparação entre os textos, foram utilizados 09 (nove)
produções, das quais foram retirados trechos que exemplificavam a categoria ora analisada.
Para fins de elaboração do quadro comparativo, todos os récits foram utilizados.
4.4 Procedimentos de geração de dados
A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento do estado da arte, para definir
o que já foi produzido e em que ponto os estudos sobre o tema se encontram. Na grande
maioria dos trabalhos lidos para a elaboração desse projeto (ECKERT-HOFF, 2008;
ARAÚJO & OLINDA, 2010), a utilização de ferramentas autobiográficas serviu para
propiciar a reflexão sobre os caminhos escolhidos pelo indivíduo narrador, fosse na profissão
que ele decidiu seguir, fosse nos rumos que sua história pessoal tomou. Através de nossa
pesquisa, buscamos ir mais além, situando o estudo dos textos autobiográficos no âmbito da
Teoria Linguística.
A segunda etapa foi a da elaboração dos instrumentos de pesquisa para coleta de
corpus. Foi solicitado aos alunos que escrevessem um texto sobre o motivo pelo qual
abandonaram a escola, porque tinham decidido voltar, qual profissão exerciam à época da
pesquisa e por que haviam escolhido aquela profissão. Achamos por bem não formalizar um
tema para que os sujeitos não acabassem - por conta de uma indicação nossa - adaptando o
material produzido ao que eles conheciam como redação escolar.
Na terceira etapa, foi feita a escolha dos alunos, conforme já foi descrito no item 5.2.
Foi apresentada a proposta e apenas os interessados participaram da atividade. Solicitou-se ao
aluno de EJA que escrevesse textos que envolvessem temas de cunho autobiográfico. Não foi
discutido em sala acerca do conceito de autobiografia. os alunos escreveriam sobre suas
experiências individuais. Os temas propostos envolveram a saída prematura da escola, o
retorno à sala de aula, a escolha da profissão que esse aluno exerce etc.
53
Em nossas considerações iniciais, todos os textos produzidos pelos alunos seriam
contemplados. Para efeito de delimitação de corpus, foi dada primazia aos textos dos
indivíduos que estão na faixa etária concernente a essa modalidade de ensino, ou seja, com
idade igual ou superior a 18 anos. É visível o fenômeno que vem ocorrendo ultimamente:
alunos do ensino regular abandonam a sala de aula para posteriormente retomar os estudos
nas turmas de EJA. Isso se deve ao fato de que comumente o ensino na EJA é considerado de
qualidade inferior e, portanto, mais “fácil”.
Em seguida, após leitura acurada das produções textuais, foi selecionado o corpus para
análise, atendendo a dois critérios:
1 - Dos textos produzidos pela turma em questão - 2º ano do ensino médio -, apenas
aqueles em que os produtores possuíam faixa etária de acordo com aquela exigida para esse
nível de ensino: 18 anos completos ou mais.
2 - Para compor o corpus, selecionamos os textos que atendiam à nossa demanda
temática, tratando do abandono e retorno à escola e da escolha da profissão ora exercida.
Essa seleção buscou respeitar as limitações metodológicas propostas para a realização
desse projeto de pesquisa, que trabalhou com as produções escritas de alunos de EJA.
Partimos do princípio de que esse aluno teve sua formação sustada há um período de tempo
relativamente longo, de modo que o seu conhecimento para produção de uma redação escolar
nos moldes como é geralmente solicitado é incompleto. Cabe salientar que os critérios de
correção de redação que geralmente são utilizados para analisar produções textuais escolares
não foram considerados em nossa pesquisa, e todos os textos digitados guardaram a escrita do
participante, inclusive as quebras de linhas e os desvios gramaticais, ortográficos, léxicos etc.
Por fim, levantou-se a hipótese de que, por meio de uma análise comparativa entre os
textos, os récits de vie compartilham com Conto de escola unidades estruturais que os
caracterizam como narrativa, com base na descrição realizada por Barthes (1971, 2008).
4.5 Análise dos dados
Nessa análise, observamos, então, a presença ou ausência de funções cardinais,
catálises, índices e informantes, estruturas passíveis de serem compartilhadas com uma
narrativa prototípica e descritas por Barthes (1971, 2008) como essenciais para a
caracterização de um texto como narrativa.
54
5 Juntando os rastros...
5.1 Categorias de análise
Elegemos, como categoria de análise, as classes de unidades narrativas delimitadas por
Barthes (1971, 2008), a saber:
- Funções, que por sua vez, desdobram-se em funções cardinais e catálises;
- Índices, que se subdividem em índices e informantes.
Como os trabalhos com autobiografia na linguística ainda são incipientes, mostrou-se
primordial eleger categorias básicas, que são tomadas como ponto de partida para as mais
diversas teorias de estudo do texto/discurso atualmente, já que nosso objetivo inicial foi
inscrever a delimitação dos récits de vie no campo dos estudos linguísticos.
5.2 Análise do corpus
Para fins de compreensão geral, iniciemos com uma síntese do conto de Machado de
Assis, parte de nosso material empírico:
Conto de escola
Os estudiosos da obra machadiana reconhecem que ainda há muito a se pesquisar
sobre seus escritos. O texto que escolhemos para realizar nosso estudo de fins comparativos,
Conto de escola, foi publicado pela primeira vez em 1884, na Gazeta de Notícias, e
posteriormente selecionado para a coletânea Várias Histórias, em 1896. Vejamos um pequeno
resumo e algumas análises de estudiosos sobre esse texto.
O conto é ambientado no Rio de Janeiro, no século XIX, e deriva das lembranças de
Pilar, narrador-protagonista, sobre sua época de escola. Ele apresenta todo o ambiente, o
caminho até a escola, fala de si mesmo e do pai. Todas essas descrições funcionam como um
pano de fundo, enquanto que o protagonista vai-se encaminhando para a escola. Pilar descreve
o professor, o ambiente na sala, para lançar a atenção sobre um episódio em especial: o colega
Raimundo, filho do professor Policarpo, propõe a Pilar que este lhe ensine um ponto da lição
em troca de uma moeda de prata. Pilar pensa em negar, mas acaba cedendo. Os dois, que
julgavam não estar sendo observados por ninguém, são delatados por outro colega, Curvelo.
Pilar e Raimundo são severamente castigados. Pilar pensa em vingar-se de Curvelo, mas o
delator acaba por escapar. No dia seguinte, Pilar sai mais cedo para ir à escola na tentativa de
55
recuperar a moeda da qual o mestre Policarpo se livrou, atirando-a à rua. Depara-se, então,
com uma companhia do batalhão de fuzileiros em marcha e acaba por esquecer sua busca, na
ânsia por acompanhar os soldados, esquecendo-se também da corrupção, da delação e, mais
uma vez, de comparecer à aula.
Recordando-se de si mesmo quando criança, Pilar apresenta-se como um menino sem
virtudes. Não gostava de frequentar a aula e a única motivação que o faz ir à escola no dia em
questão é a lembrança da última surra que levou do pai, velho empregado ríspido e
intolerante, exatamente por essa falta.
Raimundo, colega de Pilar e filho do mestre, é um menino limitado, sobre o qual
recaíam rígidas cobranças, exatamente por ser filho do professor. A inteligência, que sobra em
Pilar, falta em grande quantidade a Raimundo. O grave crime dos dois é justamente esse: Pilar
“vender” seus conhecimentos a Raimundo, em troca da moeda de prata.
A importância do conto reside no conhecimento que temos acerca da infância do
narrador personagem e suas reações em relação às situações sociais com as quais se deparava.
Pilar adulto transmite ao leitor suas impressões atuais sobre os fatos que aconteceram em sua
infância.
Ribeiro (2006) afirma que a construção da narrativa desse conto machadiano dá-se por
dialogia: a personalidade de Pilar versus a personalidade do pai e, posteriormente, em
confronto com a personalidade de Raimundo; o espaço da escola versus o espaço da rua; a
imagem de um papagaio de papel voando no espaço externo versus o modo ereto de sentar-se
em sala de aula, de pernas unidas; Curvelo versus os meninos da rua.
Como é de costume na obra machadiana, Conto de escola está impregnado de severas
críticas sociais, todas elas subjetivas, mascaradas nas atitudes e nas avaliações que Pilar faz de
si e dos outros.
Kloss, Santos e Umbach (2002) discordam de Proença (1997) quando afirma que a
esperança, representada pela figura da criança em Conto de escola, afasta um pouco o conto
do estilo machadiano. Na perspectiva deste último, isso fica claro no episódio em que Pilar
escuta o som do tambor da marcha militar e esquece a vingança contra Curvelo e também de
encontrar a moeda. Porém, Kloss, Santos e Umbach (2002) acreditam que, já nessa obra, estão
presentes características próprias da segunda fase do autor, como o pessimismo e a ironia.
Pilar narra suas histórias de criança quando adulto. Se havia inocência à época do ocorrido,
esta não persistiu no caráter da personagem.
56
Récits de EJA
Como a produção dos textos utilizados para a construção do corpus de nosso estudo
foi solicitada em situação de sala de aula, o material aproxima-se muito do gênero hoje
classificado como redação escolar (GERALDI, 1991). Apesar de esses alunos estarem
afastados há algum tempo da escola, em grande parte dos casos, o trabalho com esse gênero
escolar é o conhecimento básico que eles detêm sobre escrita de textos e, como as redações
foram colhidas em situação de sala de aula, os sujeitos deram a entender que achavam que era
isso que esperávamos que fosse produzido: uma redação escolar sobre o motivo pelo qual
abdicaram dos estudos. De todo modo, esse fato não comprometeu a qualidade do material
colhido, visto que não houve indicação quanto ao gênero/tipo que os alunos deveriam utilizar
ao compor seus textos.
Para fins de preservação da identidade dos sujeitos pesquisados, os récits de vie
produzidos foram digitalizados e, para utilização nessa pesquisa, digitados ipsis litteris. Não
foram levados em consideração a inadequação vocabular, ortográfica, morfológica, sintática
ou quaisquer outros conceitos que geralmente são utilizados como critério para correção ou
análise de redações escolares. O número de linhas a serem escritas também não foi estipulado.
Enquanto uns se limitaram a responder às perguntas que compuseram o tema – a saber: qual a
profissão que você exerce atualmente? Por que você escolheu essa profissão? Por que você
deixou de estudar? Por que você voltou a estudar? -, outros escreveram de forma bem mais
detalhada, como veremos na sequência.
A análise
Iniciamos a análise desses materiais recuperando os estudos que trataram da análise da
estrutura narrativa desde Aristóteles. Barthes elege duas grandes classes de unidades
composicionais da narrativa, uma distribucional, outra integrativa. As estruturas presentes na
classe distribucional, denominadas funções, estão num mesmo nível, ao passo que as
integrativas, denominadas índices, estão em níveis diferentes entre si e em relação às funções.
Barthes não se alonga na descrição dessas unidades distribucionais. O autor explica
que “a compra de um revólver tem como correlato o momento em que será usado (e, se não é
usado, a notação transforma-se em signo de veleidade, etc.), tirar o telefone do gancho tem
como correlato o momento em que aí será recolocado (...)” (1971, p. 31). Assim, uma ação
57
forja correlação com outra, iniciando, justificando ou fechando a ação anteriormente
principiada.
Para exemplificar usando a narrativa eleita para fins desse estudo como prototípica,
selecionemos o momento em que Pilar e Raimundo são descobertos em sua empreitada.
Seguindo a proposição de Barthes, a revelação do intento dos meninos por parte do delator
Curvelo teria como momento correlato a punição aplicada pelo mestre Policarpo. É salutar
observar que a ação da delação de Curvelo fica subentendida. Se fosse descrita, o autor não
atingiria o clímax causado pelo momento em que, inebriado por ter recebido a moeda de
prata, Pilar é chamado aos brados pelo professor. Vejamos os trechos do conto machadiano
que apresentam essas ações correlatas:
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. [...] De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito. [...] Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior.
Até então, o texto não revela as atitudes de Curvelo, quando muito, é possível
perceber-lhe as intenções. A seguir, o leitor descobre o que o menino fez aos colegas, quando
Pilar é chamado à realidade pelos gritos do professor:
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
Nos récits de vie analisados, essas situações correspondentes não são tão claramente
definidas. Tomando como modelo a produção de S. F. 07, as ações que surgem não aparecem
pautadas em ações correlatas, que passam essa ideia de início e fechamento. Reproduzimos a
seguir o texto por completo, da forma como foi escrito, conservando, inclusive, a
translineação realizada pelo sujeito, e parte digitalizada do mesmo texto:
Tenho 33 anos. trabalho desde dos 10 anos. Trabalhava na roça, estudei até a 3ª serie parei por causa do trabalho depois voltei fiz a 4ª e a 6ª, a cabeça ficou confusa com a matemática e o Português. retomei em 2005 estudei mais dois anos e parei de novo agora
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voltei para terminar por que sem o segundo grau não se consegue fazer nada. Começei como baba, agora trabalho na casa de familia, mais meu sonho e ser médica obistetra ou pediatrica quando terminar pretendo fazer uma faculdade de medicina e realizar meu sonho
É possível apreender funções que se iniciam (o primeiro trabalho, o abandono e
retomada dos estudos diversas vezes etc.); por outro lado, uma função correlata, que feche a
função anterior para que a narrativa prossiga com o início de uma nova função, não é
perceptível.
Vejamos mais um exemplo, na reprodução completa do texto de outro sujeito:
muca tinha entrado mua sala de aula: porque tinha que trabalha para a judar macriação dos meus irmão: são 10. mais mão ne arepedo nuca e tade para começa porrico comesei a estuda para movo nais gosto doquifaca gostaria mais de conecineto na minha aria de trabalho: gosto do que facia.
S. F. 05 dá a explicação para uma das primeiras questões propostas na situação de
pesquisa: por que havia abandonado a escola. Nesse ponto, é possível perceber a correlação
entre as ações, pois uma vem logo a seguir da outra. O sujeito também justifica a volta à
escola com o clichê de que “nunca é tarde para começar”. Porém, apesar de afirmar duas
vezes que não gosta do que faz, não deixa claro que profissão exerce, questionamento que
também faz parte da temática proposta em nossa situação de pesquisa.
59
Estamos diante, então, do que podemos considerar como uma primeira característica
da estrutura narrativa dos récits de vie: há a presença das funções cardinais, mas estas, por
vezes, não estabelecem relação direta, como propõe Barthes. Isso pode dever-se a uma
característica primeira dos textos autobiográficos: eles não precisam necessariamente conter
um início. O récit de vie consiste num recorte que o narratário faz na sua história. Esse recorte
pode ser realizado pelo próprio sujeito que fala de si ou a pedido do sujeito ouvinte, como foi
o nosso caso. Ele não precisa iniciar “do início”, por assim dizer: não é necessário contar a
história de seus pais, de seu nascimento, de sua infância para justificar as ações atuais
(conquanto haja a possibilidade de o sujeito, por conta própria, fazer essa retomada).
Em nossa coleta de textos podemos afirmar de antemão que os récits de vie iniciam-se
pelo clímax: uma situação traumática deslancha o desejo de dizer-se de contar-se - no trabalho
ora apresentado, esse trauma seria o abandono da escola - e, a partir daí, ações outras são
descritas nesse continuum que forma o entorno do sujeito que conta. Miranda (1992) admite
que apenas “um abalo vindo do exterior” justificaria a escritura de uma autobiografia. Do
contrário, esse relato de um determinado acontecimento externo pode resumir-se à narração
de uma “série de eventos exteriores, mais condizentes à efetivação do que Benveniste chama
de ‘história’, que prescinde de um narrador em primeira pessoa. (p. 31)”. Se é essa ruptura
que justifica a emergência de um autor que fala de si, a estrutura narrativa do récit de vie teria
como primeiro componente o fato que promoveu essa ruptura, o que justificaria a contento a
conceptualização de autoria circunstancial de Freitas (2010). As demais estruturas surgem (ou
não) no decorrer da narração. O desfecho, por exemplo, pode não existir, se o sujeito
pesquisado estiver narrando um acontecimento que ainda está se desenrolando, a que
chamaremos de narrativa em trânsito.
Quando os récits de vie estão oralizados, é mais simples perceber essas funções
cardinais (ou núcleos) descritas por Barthes. As retomadas e reflexões que o indivíduo faz
durante sua narração, levando o entrevistador a pensar suas atitudes junto com ele,
justificando determinadas ações, demandam que o sujeito que escuta execute esse
rompimento com a linearidade da narrativa em direção a esse tempo outro a que o sujeito que
fala o convida, sem perder o fio da história, que o narratário pode retomar a qualquer
momento, sem aviso prévio. A transitividade narrativa permite ao sujeito que conta essa
operação de ir e vir constante, uma vez que sua narrativa depende do fluxo de sua memória
que, ativado por um estímulo exterior, vai romper novas barreiras das lembranças esquecidas
pelo fluxo do tempo. Maia-Vasconcelos (2010, p. 111) exibiu assim essa ondulação narrativa,
quando tratou do diálogo entre mãe e filho ao longo do tempo:
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Gráfico da ondulação narrativa
A não linearidade do récit corrobora com a perspectiva de surpresa constante para o
ouvinte/leitor-pesquisador. Nada está previsto, nada pode ser deduzido. Quando os récits de
vie são escritos, essas unidades funcionais são menos perceptíveis. Ao escrever, a tradição
escolar à qual o sujeito foi (ainda que minimamente) submetido o coage a atribuir início, meio
e fim intrinsecamente ligados numa relação de causa-consequência. Por vezes, ele não alcança
esse intento. As coerções se intensificam, uma vez que a figura da escola, apesar das
mudanças de atitudes hoje claramente expostas, ainda representa uma lei, um sistema de
regras a seguir.
Vale ressaltar que a falta dessa relação direta não descaracteriza os récits de vie como
exemplo de unidade narrativa. Barthes, em sua análise, exige a presença dos núcleos, mas não
determina de que modo esses núcleos devem se comportar no texto. Daí termos em nosso
estudo ressaltado as distinções entre os textos.
A segunda grande classe de unidades, de natureza integrativa, compreende os
chamados índices. Essa unidade remete não a uma operação complementar e consequente, e
sim a uma ideia subjetiva, necessária ao sentido da narrativa: informações relativas às
personagens, características do ambiente, tempo e espaço nos quais a narrativa se desenrola,
sugestões do que pode vir a acontecer (como percebermos no exemplo de Conto de escola)
etc. A relação, então, passa de distribucional à integrativa: só é possível perceber a
importância de uma notação indicial passando-se a um nível superior e estabelecendo as
relações.
A frase de abertura do conto machadiano, “A escola era na Rua do Costa, um
sobradinho de grade de pau”, é um informante que só vai explicar-se mais adiante, quando a
função de Pilar ir obrigado à escola surgir. A função corresponde a uma ação, enquanto que o
informante está ligado a uma ação ou descrição.
Conhecido pela característica de conversar com o leitor no decorrer de seu texto,
Machado de Assis vai expondo índices no decorrer do escrito e apresentando a função à qual
aquele índice faz referência: “Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo
61
que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão”. (grifo nosso) A seguir,
convoca o leitor a recordar com ele a surra que levou do pai por ter faltado à aula. Os índices,
portanto, “remetem a um significado não a uma ‘operação’” (BARTHES, 1971, p. 31).
Na produção de S. M. 01, no trecho em que ele discorre sobre os empregos que já
teve, o sujeito inicia com a função sobre as assinaturas que possui na carteira de trabalho,
justificando, a seguir, essa ação com um índice que reporta ao fato de as oportunidades que
surgiram terem sido, em sua maioria, para o emprego de porteiro: “A maioria das assinaturas foi
como porteiro, mas, te confeço que não gosto de trabalhar como porteiro, mas foi oque arrumei
(quando estava desempregado).”
Percebemos essa construção também na produção de S. F. 01, quando o sujeito lança a
pergunta retórica sobre a escolha de sua profissão, justificando com a escolha de outrem:
(...) sou vendedora vendo de porta em porta escolhi essa profissão por que? essa é uma das perguntas que eu também me fasso na verdade eu não escolhi ser vendedora, aconteceu que o meu marido comessou a vender Roupas e eu embarquei com ele (...)
Também consideramos representativo o trecho em que S. M. 03 admite não gostar da
profissão. A explicação vai fazendo sentido à medida que as funções vão aparecendo:
Na verdade eu não gostaria de ser, caseiro, não porque trabalha muito e exige muita confiança, mas sim porque preciso de uma profissão onde chegando em qualquer lugar possa ter emprego.
O sujeito salienta a necessidade de uma profissão que tenha um campo maior de
atuação, e utiliza esse índice para justificar, a seguir, a ação do retorno à escola:
Por isso pretendo terminar meus estudo para fazer cursos e busca uma qualificação para o meu futuro.
Admitindo o conto machadiano como um exemplo de narrativa prototípica, podemos
fazer a segunda constatação sobre a estrutura dos récits de vie colhidos como material
empírico para essa pesquisa - quiçá a mais importante, considerando nosso objetivo de
apontar a importância do estudo desses textos pela Linguística: é possível identificar nesses
textos as classes de unidades distribucionais – funções – e as integrativas – índices-,
62
como também suas subcategorias, que são descritas por Barthes como essenciais para a
elaboração de uma análise da estrutura narrativa e que denominam o texto como tal.
Sobre essa primeira classificação, Barthes conclui considerando que
estas duas grandes classes de unidades, funções e índices, deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas. Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances “psicológicos”); entre estes dois polos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do gênero. (p.32)
Seguindo tais indicações, poderíamos, inicialmente, enquadrar os récits de vie como
narrativas fortemente indiciais. Tal categorização justificaria, inclusive, a dificuldade
relatada anteriormente: a de identificar núcleos correlatos dentro desse tipo de narrativa, já
que nesse caso os índices são mais notáveis. Vejamos um exemplo, novamente no trecho
escrito por S. F. 01: “ ja lavar passar, limpar etc tirando cuzinhar e cuidar dos “meus homens”
Bruno e Breno eu odeio, ja estudar sempre foi o meu sonho”. O sujeito descreve atividades
que não gosta de realizar, que, por sua vez, parecem justificar a afirmação a seguir: a de que
sempre teve desejo de estudar.
Barthes dá prosseguimento, subdividindo essas duas grandes classes em outras duas
classes menores cada uma. No caso das funções, essa subdivisão deve-se ao caráter de
importância diferenciado que essas funções possuem. Barthes elege dois tipos de funções: as
primeiras são verdadeiros fragmentos da narrativa – são as funções cardinais ou núcleos. As
outras, porém, têm a tarefa elementar de preencher o vazio presente entre esses núcleos – são
as catálises.
Para que uma função seja considerada cardinal, é necessário que ela tenha um caráter
determinante na narrativa: ela precisa inaugurar, manter a continuidade ou fechar uma ação.
Utilizemos, mais uma vez, o texto machadiano para didatizar essa conceituação; mais
especificamente, o momento em que Pilar e Raimundo são delatados. Mestre Policarpo decide
por punir os meninos. À guisa de esquema, poderíamos assim organizar esse trecho da
narrativa:
FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CORRELATA
Delação de Pilar e Raimundo Punição aplicada por mestre Policarpo
Quadro 01: Exemplo de funções cardinais no conto de Machado de Assis.
63
A função correlata também é uma função cardinal. Foi assim nomeada para ficar claro
que faz relação direta à função anterior, no caso, função cardinal 1. Porém, a função cardinal
1 abre possibilidades para que outras funções cardinais que não a punição aplicada por mestre
Policarpo deem prosseguimento à narrativa. Seria possível, por exemplo, que o professor
deixasse o episódio passar em brancas nuvens, pelo fato de um dos envolvidos ser seu próprio
filho. Outra probabilidade seria a de os meninos escaparem ao castigo.
É, então, entre esses dois núcleos que as funções catálises se inserem. Segundo
Barthes, são notações que vão se ajuntando em torno das funções cardinais sem alterar a
essência destas últimas. Na ocasião que ocorreu envolvendo Pilar e Raimundo, podemos
acrescentar uma catálise, caracterizada pelo momento em que mestre Policarpo os chama à
mesa para inquirir sobre a moeda que Raimundo deu a Pilar. Nosso esquema ficaria, portanto,
assim:
FUNÇÃO CARDINAL 1 CATÁLISE FUNÇÃO CARDINAL 2
Delação de Pilar e Raimundo Inquisição do mestre Policarpo
Punição aplicada por mestre Policarpo
Quadro 02: Exemplo de catálise no conto de Machado de Assis.
Esta catálise permanece, como ilustra Barthes, funcional, pois se correlaciona com
outros núcleos. Sua utilidade principal, porém, é meramente cronológica: “descreve-se o que
separa dois momentos da história. (p.33)”. Porém, a catálise não preenche de forma
insignificante o espaço entre os núcleos. Ela possui também a característica de alterar a
cronologia desse espaço narrativo: em alguns casos, pode adiantar um fato que está por
acontecer na narrativa. Em se tratando do trecho em discussão, a própria escolha do lexema
“inquisição” pode ser considerada uma indicação de que os meninos serão punidos de alguma
forma. Por outro lado, essa catálise também pode retardar o que está para acontecer; isso é
notável nas narrativas de autores que se perdem na descrição minuciosa de personagens e
cenários, por vezes causando confusão, quando o leitor tenta recuperar a função cardinal, que
é a unidade que realmente dá andamento à narrativa.
Como dito anteriormente, deparamos com certa dificuldade para identificar os núcleos
dos récits de vie. Tal obstáculo deve-se ao fato de que, nesses textos, as ações estão no
passado. Até aquelas que não são citadas no pretérito buscam ali sua justificativa. Assim, é
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por vezes confusa a classificação em função ou informante - categoria que veremos mais à
frente.
Desse modo, é esperado também um certo obstáculo ao buscar classificar essas
funções cardinais a fim de encaixar as catálises que as rodeiam. Utilizando a continuação do
trecho do S. F. 01, o seguinte quadro foi elaborado:
FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CARDINAL 2
desde 5 anos eu pedia para ir para o colégio
por motivo de saúde só fui fazer a 1ª série
com 8 anos
Quadro 03: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 01.
A função cardinal 1 liga-se imediatamente à função cardinal 2. Logo após a expressão
do desejo de estudar desde os cinco anos de idade, o sujeito explica que só começou a estudar
aos oito anos, por motivos de saúde.
Vejamos essa ocorrência em outras duas produções dos sujeitos pesquisados.
O trecho a seguir contém a explicação de S. F. 04 para o fato de trabalhar:
FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CARDINAL 2
o motivo de eu trabalha para. não ter que ficar esperando. pedir dinheiro para marido.
Quadro 04: Exemplo de funções cardinais no récit de vie de S. F. 04.
S. F. 07, de 33 anos, forneceu informações mais detalhadas sobre sua situação de
retorno à escola. Podemos elaborar, a partir dessa produção, um esquema narrativo que
comporte funções cardinais e catálises. Vejamos a seguir:
CATÁLISE FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CARDINAL 2
Trabalhava na roça estudei até a 3ª serie parei por causa do trabalho
Quadro 05: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 07.
65
Entre as duas funções cardinais catalogadas, poderíamos incluir, por exemplo, uma
catálise que se desenvolveria a partir da citação do abandono da escola. Nesse momento, o
sujeito poderia ter descrito o momento em que deixou de frequentar as aulas.
No texto de S. F. 12, o sujeito apresenta a justificativa para o abandono da escola e
permeia a informação sobre esse abandono com catálises sobre seu histórico profissional:
FUNÇÃO CARDINAL 01 FUNÇÃO CARDINAL 02 CATÁLISE
casei muito nova por isso parei de estuda e
comecei a trabalha
comecei em casa de familia, depois de um tempo fiz uns cursos na aréa de beleza,
Quadro 06: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 12.
Também é possível perceber a inserção de uma catálise no texto de S. F. 14, quando o
sujeito apresenta seus motivos para abdicar da escola:
FUNÇÃO CARDINAL 01 FUNÇÃO CARDINAL 02 CATÁLISE
O que me levou a larga os
estudo
fou o trabalho com 12 ano eu fui mora ma
casa dos outro e trabalha para
me sustenta e ali que parei de
estuda
Quadro 07: Exemplo de catálise no récit de vie de S. F. 14.
A catálise, como observa Barthes, também tem o poder de manter o diálogo entre
narrador e narratário. Em nosso corpus, quando o sujeito se reserva o direito de apenas
responder de modo direto às perguntas presentes na proposta, a impressão que nos passa é que
a narrativa perde em riqueza de detalhes, o que torna o texto um tanto quanto pobre aos olhos
de quem o lê. Aí também reside a importância da catálise: engrandecer a narrativa. Cabe
salientar que a catálise não exige a presença de uma função correlata. É a mera citação de uma
ação. Observemos também que, por conta da solicitação do tema, a função cardinal 1 de
alguns quadros esquemáticos coincidirá.
Continuando a subdivisão, a classe dos índices é desmembrada em outras duas: os
índices e os informantes. Nesse ponto da discussão, Barthes atribui a essa classe de unidades
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integrativas um caráter paramétrico. Essas estruturas só são compreendidas no nível da
narrativa propriamente dito; elas envolvem uma associação com a narrativa, com as
personagens etc.
A primeira subclasse, que conserva o nome da classe superior, são as pistas dadas no
decorrer da narrativa, no que concerne ao caráter de uma personagem, seus sentimentos, sua
filosofia etc. Os informantes, como é possível deduzir de sua própria nomenclatura,
comunicam dados acerca da situação narrativa no tempo e no espaço. Reproduzimos aqui o
trecho analisado por Barthes para apontar a existência dessas duas subclasses:
Dizer que Bond está de guarda em um escritório cuja janela aberta deixa ver a Lua entre grossas nuvens que passam é indexar uma noite de verão tempestuosa, e esta dedução mesma forma um índice atmosferial que remete ao clima pesado, angustiante de uma ação que não se conhece ainda. (p. 34)
A título de exemplificação no corpus escolhido para nosso estudo, verificaremos um
trecho da narrativa machadiana, sobre o caráter de Pilar, descrito de modo implícito pela
própria personagem.
Alguns autores afirmam que o mote do conto é exatamente a formação do caráter
dessa personagem. As tensões presentes na narrativa seriam de extrema importância para a
formação da personalidade de Pilar. A própria personagem chega à conclusão de que “não era
um menino de virtudes”, já que vivia em tentações, sempre esperando por um motivo que ele
considerasse “justo” para não comparecer à aula e que só o tinha feito naquele dia porque “foi
a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio.”.
Machado de Assis leva os dois primeiros parágrafos inteiros para descrever o dilema
sofrido por Pilar: ir à escola ou entregar-se aos prazeres da rua:
A Escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
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Considerando o elevado número de índices aí doados, poderíamos considerar
desnecessária a afirmação que Pilar faz sobre sua própria falta de virtudes. Nesse início do
conto, também podemos identificar informantes, como é o caso do início do primeiro
parágrafo, em que ele informa o endereço da escola e o ano em que o fato aconteceu, e o
início do segundo parágrafo, quando vai contar o fato que houve na semana anterior e que
serviu como mais um incentivo para sua ida à escola no dia em questão
Utilizando exemplos dos récits de vie, temos o início do texto do sujeito S. F. 02, que
diz: “Parei de estudar aos 12 anos de idade, na época morava em Duque de Caxias, onde perdi
a minha mãe.”. Dando continuidade à leitura, percebemos que esse dado, além de situar o
leitor acerca do local onde o sujeito residia, servirá para explicar o motivo pelo qual ele
abandonou a escola. É, portanto, um conceito necessário à história, ainda que não possua uma
ação correlata. Para que se esclareça essa informação dada, é necessário, como previsto por
Barthes, passar a um nível superior - das funções - , como descrito a seguir:
INFORMANTE
INFORMANTE
FUNÇÃO
CARDINAL 1
FUNÇÃO CARDINAL 2
na época morava em
Duque de Caxias
onde perdi a minha
mãe.
Não tendo parentes
no Rio
tive que regressas para a
minha terra Recife.
Quadro 08: Exemplo de informante no récit de vie de S. F. 02.
É o surgimento da função cardinal 02 que explica a informação passada pelo índice
aqui colocado.
Nas poucas linhas escritas pelo sujeito S. F. 04, é possível identificar boa parte das
categorias de análise aqui propostas:
FUNÇÃO CARDINAL 1 FUNÇÃO CARDINAL 2 CATÁLISE ÍNDICE
o motivo de eu trabalha para. não ter que ficar esperando. pedir dinheiro para marido
já trabalho a 13 ano uma casa de a companhante gosto do que. fáço.
pretendo terminar o ensino médio.
Quadro 09: Exemplo de índice no récit de vie de S. F. 04.
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Nosso objetivo, todavia, não é elaborar um quadro particular para cada um dos textos
que compõem o corpus. Buscamos, apenas, identificar a existência de tais categorias na
composição tanto do texto eleito como prototípico como dos récits de vie produzidos pelos
sujeitos.
Assim, podemos resumir as análises realizadas em um quadro comparativo, tomando
como categoria a presença e o comportamento das classes propostas por Barthes, tanto no
texto machadiano como nos récits de vie.
Conto de escola Récits de vie
Presença de funções
cardinais (núcleos)
X X
Presença de catálises X X
Presença de índices X X
Presença de informantes X X
Quadro 10: Quadro comparativo elaborado a partir da ocorrência das categorias analíticas no material
empírico.
Assim, é notável a presença de todas as classes tanto num texto como no outro, apesar
de determinadas categorias serem mais perceptíveis em um texto e vice-versa. Quanto à
classificação das narrativas segundo as duas categorias principais, como dito anteriormente,
os récits de vie dos alunos da EJA podem ser considerados narrativas indiciais. Mais do que
funções de abertura e fechamento que dão continuidade à narrativa, esses textos possuem as
reflexões dos sujeitos narratários, que, ao expor suas experiências ao sujeito ouvinte,
indagam-se a si próprios sobre a natureza dos atos tomados, justificam suas escolhas, esboçam
arrependimentos etc. O conto de Machado de Assis, em contrapartida, é uma narrativa
funcional, pois a maior parte do texto acontece a partir de operações de início e conclusão das
ações realizadas pelas personagens, ficando os índices e informantes como um pano de fundo
dessas ações.
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6 Conclusão: uma leitura provisória
A grande arte da pesquisa não nos permite ter respostas exatas, sobretudo no domínio
das Ciências Humanas. O que apresentaremos nesse momento não são respostas a perguntas,
são talvez mais e mais questões que surtirão reflexões ainda por muitas horas em todos nós
que fazemos o GELDA.
Desse modo, nesse último capítulo, apresentaremos os resultados obtidos em nossa
pesquisa, a partir da aplicação das categorias de análise no corpus escolhido. Para tanto,
retomaremos o quadro de objetivos, problemas e hipóteses colocado no início dessa
dissertação.
Nosso objetivo principal baseou-se na tentativa maior de buscar um enquadramento
para os textos autobiográficos no âmbito da Linguística, ainda que esse enquadramento fosse
inicial. Desde que nos propusemos a um tratamento de dados autobiográficos, percebemos a
dificuldade de utilizar uma metodologia propriamente linguística, visto que o estudo desses
textos não deve visar apenas à simples análise de sua estrutura, dada a riqueza de detalhes que
o sujeito nos fornece sobre si mesmo, para a compreensão de dificuldades outras, inclusive as
concernentes à linguagem; por outro lado, percebemos exatamente essa lacuna – pela qual
resolvemos enveredar -, ao empreendermos a busca por uma teoria aplicável a esses textos:
uma análise simplesmente estrutural daria conta de um corpus tão rico, escrito por um sujeito
que busca justificar-se e, para tanto, realiza progressões e digressões, envereda por quebras
textuais, apodera-se de gêneros e tipos textuais dos mais diversos para narrar-se? Em parte,
sim.
Numa esfera menor, buscamos verificar como se dava a organização narrativa desses
escritos autobiográficos, ora denominados récits de vie, para não incorrermos na subtração de
chamar-lhe diário, relato ou memorial, gêneros já consagrados e nos quais nosso corpus não
se enquadrou. Para tanto, foi-nos imperativo, inicialmente, definir um texto reconhecido como
narrativo a partir do que o senso comum considerado como narração; e, a seguir, elencar
categorias de análise basicamente estruturais, que nos permitissem forjar um esquema
aplicável à narrativa eleita prototípica e, caso se confirmassem nossas hipóteses, ao nosso
corpus.
Os textos autobiográficos surgiram como uma forma de registrar os feitos de nobres,
heróis e outras figuras ilustres. Com a evolução da pesquisa científica e, posteriormente, a
necessidade de uma nova forma de observação do sujeito, as histórias de vida foram alçadas a
um instrumento de coleta de corpus inovador, que apresentava, com riqueza de detalhes, as
70
impressões de sujeitos que estavam inseridos nos mais diversos contextos. Era uma forma de
compreender o impacto no coletivo a partir da visão de um indivíduo e, com base nessa
perspectiva, compreender o próprio coletivo, numa análise retroativa. Na abertura de seu
texto, Pineau (2006) sinaliza para uma dificuldade de delimitação científica: “Nas ciências
humanas e sociais, a flutuação terminológica em torno das histórias e relatos de vida,
biografias e autobiografias é indicativa da flutuação do sentido atribuído a essas tentativas de
expressão da temporalidade vivida pessoalmente. (p. 41)”. Seria essa flutuação ainda um
começo de caminho a ser percorrido por mais quantas pesquisas forem dedicadas a esse
intuito?
Em nossas leituras, observamos diversas tentativas, em outros campos de pesquisa, de
sistematizar uma metodologia aplicável aos récits de vie. Como explicamos no decorrer de
nosso trabalho, as variações vão desde a escolha de uma nomenclatura adequada a esses
textos até o corpus analisado. Cada setor de estudo buscou, nas contribuições de seus próprios
autores, algo que considerasse adequado ao tratamento do corpus que tinha em mãos e
considerando o fenômeno que tentava analisar. Durante o processo que realizamos,
constatamos, porém, que os estudos linguísticos ainda não compartilham, ou compartilham
pouco, de tal preocupação. Seja com o manuseio de um corpus oral ou escrito, pouco
encontramos teorias linguísticas que contemplassem o estudo de um material tão rico, em que
o sujeito participante da pesquisa se mostre tão engajado em colaborar, seja oralizando, seja
escrevendo suas experiências por meio da descoberta de sua própria história em uma
narrativa. Assim, buscamos uma proposta teórica básica, que se mostrasse adequada ao nosso
objetivo principal e que nos servisse como categorias de análise: o enquadramento inicial
desse material no âmbito da pesquisa linguística.
Desse modo, a partir das análises realizadas, pudemos verificar a existência das
funções descritas por Barthes (1971, 2008) como essenciais para considerar um texto escrito,
tanto no conto que elegemos como narrativa prototípica como nos récits de vie produzidos
pelos alunos de EJA. Como observamos em nossas leituras, vários estudiosos de
texto/discurso partem das propostas metodológicas de Barthes para formular seus próprios
conceitos. Então, foi-nos imperativo focar em um estudo elementar, já que buscamos por um
posicionamento inaugural da pesquisa com récits de vie no campo linguístico.
Além de verificar a existência tanto dessas funções principais - funções e índices -
como de suas subcategorias - funções cardinais/núcleos, catálises, índices e informantes - nos
récits de vie, foi possível elaborar um quadro geral, de caráter inicial, que mapeou a relação
entre essas funções nesses textos. Nossa classificação é bastante inicial e abre possibilidades
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para futuras pesquisas mais aprofundadas. No que concerne à classificação de Barthes,
pudemos perceber que, nos récits de vie, a ação descrita já está no passado. Assim, o que
poderia ser tratado, em uma narrativa prototípica, como uma ação, no corpus ora analisado às
vezes ocupa a categoria de informante. Como, então, delimitar o que é uma função e o que é
apenas um informante?
Enveredando pelo estudo dos gêneros, caberia dizer que o récit de vie é um novo
gênero? Saliente-se que “novo” aqui não é utilizado no sentido de ter surgido recentemente,
para atender a uma necessidade dos falantes; o récit de vie seria novo enquanto objeto de
estudo linguístico. Uma proposta de pesquisa seria o mapeamento das características desse
gênero.
Em nossa pesquisa, também apresentamos brevemente os itens que estão no
imaginário popular e nas descrições das categorias narrativas como necessários para o
desenvolvimento do texto que utiliza essa tipologia, a saber: a apresentação, a complicação, o
clímax e o desfecho. Em Conto de escola, podemos decompor todas as ações e informações
nessas quatro categorias: a apresentação dos personagens e do ambiente em que se passa o
fato; a complicação, presente no pedido de Raimundo a Pilar; o clímax, atingido quando os
meninos são denunciados por Curvelo ao professor Policarpo; e o desfecho, quando o
professor desfaz-se da moeda de prata e pune os meninos. Em se tratando dos récits de vie, é
possível extrair essas categorias? Elas apareceriam nessa linearidade? Algumas de nossas
conclusões apontam respostas, ainda que bastante elementares, para alguns desses
questionamentos: as categorias existem, mas não obedecem à essa linearidade proposta.
Essas propostas e interrogações não inviabilizam o trabalho aqui apresentado. Nossa
proposta inicial de enquadramento dos récits de vie no âmbito da linguística a partir de uma
proposta metodológica desse campo de estudo pode contribuir para que esse corpus, enquanto
texto escrito, possa ser tratado de acordo com outras teorias textuais e/ou discursivas, pois
acreditamos que, assim como propõe Pineau (2006), tais sugestões levam-nos a expandir os
horizontes epistemológicos da pesquisa autobiográfica.
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ANEXOS
S.M. 01 – 36a Atualmente eu trabalho como porteiro de edifício. Eu comecei a trabalha aos 13 anos de idade, como aprendiz de marceneiro. Depois fui trabalhar como ajudante de soldador, ajudante de pintor de autos, ajudante de caminhão...Até resolver assinar a minha carteira de trabalho (1996) em um edifício resencial. A maioria das assinaturas foi como porteiro, mas, te confeço que não gosto de trabalhar como porteiro, mas foi oque arrumei (quando estava desempregado). Já fui repositor de mercadorias (BEBIDAS) no Super Prix (ICARAÍ) e até entregador em loja de móveis. Eu voltei a estudar, para concluir meus estudos e ter melhores condições de emprego, universidade e concursos público. Se o mundo não acabar em 2012, eu pretendo tentar uma vaga em uma universida (paga) para ampliar o meu currículo e ter mais chances de emprego. Tenho um filho estudante e pretendo ser exemplo para ele. isso é tudo!
S. F. 01 – 21 anos minha profissão e altonoma e também sou domestica cuido da minha casa do meu marido e do meu filho sou vendedora vendo de porta em porta escolhi essa profissão por que? essa é uma das perguntas que eu também me fasso na verdade eu não escolhi ser vendedora, aconteceu que o meu marido comessou a vender Roupas e eu embarquei com ele e ser dona de casa foi consequencia do casamento mas eu me endentifico com o meu trabalho sim. gosto de vender. ja lavar passar, limpar etc tirando cuzinhar e cuidar dos “meus homens” Bruno e Breno eu odeio, ja estudar sempre foi o meu sonho desde 5 anos eu pedia para ir para o colegio mas por motivo de saúde só fui fazer a 1ª série com 8 anos eu nunca fiquei reprovada ou de dependencia mas quando fiz a 4º série fiquei 2 anos parada por que onde eu morava não tinha colégio perto da 5º série em diante depois o governo colocou carro p/ levar os alunos p/ outro colégio e eu fiz até a quase a 6º parei dinovo motivo. o carro que levava aos alunos era um fusca sem freio e todo ferrado e o motorista era pedofelo e eu estava p/ me casar, após me casar aos 16 anos voutei a estudar e fui ate a 8º série depois fui viajar e não voutei p/ o colegio e estou voltando agora depois de ter tido o meu filho
S. F. 02 - * anos Parei de estudar aos 12 anos de idade, na época morava em Duque de Caxias, onde perdi a minha mãe. Não tendo parentes no Rio tive que regressas para a minha terra Recife. Chegando lá com os meus familiares não me adaptei os meus familiares não me colocaram de volta ao colégio, fui trabalhar como babá lá fiquei 2 anos sendo explorada para fazer todos os tipos de serviços domésticos. Saí e arrumei um outro onde fiquei para fazer todo o serviços doméstico para uma pessoa, com quem me dei bem para mim era quase uma mãe e não uma patroa, fiquei com ela dez anos pois o que eu queria mesmo era voltar para o Rio de Janeiro voltar a estudar e melhorar de vida tendo algo que eu podesse dizer que era meu, um cantinho mesmo muito humilde mas era tudo que eu queria e foi, o que fiz me aventurei peguei um onde em plena virada de ano novo (1985 do dia 1º de janeiro) cheguei aqui procurei por uma prima que não mais residia no Rio já havia partido para São Paulo, fiquei na casa da irmã dele. Fui trabalhar em uma casa de família onde durante o dia trabalhava e a noite ia para a casa dessa amiga, daí entrei em contato com a minha prima e fui para são Paulo no mês de setembro e lá logo arrumei emprego trabalhei 6 meses em uma metalugica como ajudante, voltei para o Rio, pois la não me adaptei. Fiqui em Niterói trabalhei em um supermercado nas Sendas, durante 2 anos logo casei tive filhos e fiquei como dona do lar por 10 anos mais não deixei de contribuir com INSS. E depois de 10 anos vendo que não dava mais para ficar em casa vivendo as custas do meu marido, as dificuldades finaceira almentou filhos em colégio particular e aí resolvi voltar a trabalhar novamente como doméstica onde estou até hoje entrando a treze anos de trabalho. E assim estou realizando o meus sonhos vendo meus filhos se realizando proficionalmente. Voltei a estudar para me reciclar, me atualizar e levantar minha alto estima apesar de estar a quase 30 anos afastada dos estudos. Estou adorando, me sentindo capaz.
S. F. 03 - * anos Eu trabalho de domestica por que naõ tiver condicão de a rumar um emprego melho por falta de estudo mais agora que eu estou estudado eu vou ver ser da para fazer um cucinho bazico para melhora a minha vida e a vida dos mes filhos ssasi eu vou pode dar um futuro melho para os mes filhos.
S. F. 04 - * anos o motivo de eu trabalha para. não ter que ficar esperando. pedir dinheiro para marido. já trabalho a 13 ano uma casa de a companhante gosto do que. fáço. pretendo terminar o ensino médio.
S. F. 05 – 56 anos muca tinha entrado mua sala de aula: porque tinha que trabalha para a judar macriação dos meus irmão: são 10. mais mão ne arepedo nuca e tade para começa porrico (?) comesei a estuda para movo ??? nais gosto doquifaca gostaria mais de conecineto na minha aria de trabalho: gosto do que facia.
S. F. 06 – 43 anos O motivo que fez eu voltar a retorna a escola foi porque eu senti muita vontade de ter uma profissão e também meu esposo me falou que era muito importante de um profissão mais pra isso eu tinha que estuda Eu levo minha mãe muito no médico e senti muita vontade de ter um profissão por isso eu voltei estuda meu desejo e miforma fisoderapia e também mostra para minha família que e possivél realizar um sonho mais pra isso você tem que querer e porisso que eu voltei pra escola
S. F. 07 – 33 anos Tenho 33 anos. trabalho desde dos 10 anos. Trabalhava na roça, estudei até a 3ª serie parei por causa do trabalho depois voltei fiz a 4ª e a 6ª, a cabeça ficou confusa com a matemática e o Português. retomei em 2005 estudei mais dois anos e parei de novo agora voltei para terminar por que sem o segundo grau não se consegue fazer nada. Começei como baba, agora trabalho na casa de familia, mais meu sonho e ser médica obistetra ou pediatrica quando terminar pretendo fazer uma faculdade de medicina e realizar meu sonho
S. M. 02 – 44 anos bem as 13 anos eu fugie de casa no ceára por tanto trabalho alem disso meu pai me deu uma Baita de uma Surra que fiquei doente ai então um senho vinha embora eu resovi e fugir eu cheguei Senpre trabalhei não tive tempo para estudar eu a prendie atrabalha cedo hoje gosto do que eu faço tenho varias profissão, sou copeiro chapeiro Pisarolo e Pedreiro armador e carpinteiro bem eu estudo porque eu acredito que sem estudo nosso País não vai para a frente nunca eu sempre fala para os filhos de colegas meu lugar de criança e na Escola ele ir de mim você esta tão velho por que estuda eu repondo para estar para está sempre atualizado no mercado ser eu podesse queria ser Engenheiro civil já que eu hoje trabalho de carpinteiro
S.F. 08 – 63 anos Eu parei de estudar por motivo de trabalho Parei na 4º série com 14 anos vim para u Rio trabalhar para ajudar minha mãe que era lavadeira dai prá frente não tive mais tempo, agente não tinha tempo, trabalhava até na hora de dormi pelo menos o meu (?) era assim. Depois veio marido filhos ai que pioraram tudo, mais sempre pensando nos estudo um dia eu voltarei a estudar, mais marido não deixava. agora ja separados eu fiquei livre e pensei vou voltar a escola e assim fiz agora estou aqui, eu preciso aprende mais o português, eu não voltei por causa de profissão, porque minha idade agora não mais permiti, e tambem o mercado de trabalho esta dificil prá jovem que dira pra terceira idade. agora eu só quero completar o 3º ano que era a minha esperança. E vou termina porque esse é o meu desejo por isso retornei com muita força e fé que eu vou vencer essa luta difícil que agora nessa idade a gente esquece tudo, e quem sabe eu possa chegar até a faculdade que era também outro sonho e me formar em picicologa que era outro sonho.
S.M.03 – 29 anos Bom! trabalho de caseiro. Na verdade eu não gostaria de ser, caseiro, não porque trabalha muito e exige muita confiança, mas sim porque preciso de uma profissão onde chegando em qualquer lugar possa ter emprego. Por isso pretendo terminar meus estudo para fazer cursos e busca uma qualificação para o meu futuro. porque nos dia de hoje a profissão de caseiro e muito dificiu devido muitos acontecumento, como o emprega- do matar patrões ou robaram. isso provoca uma diminuição nessa profissão. Mas pelos meus patrões confiarem em mim gosto do meu emprego.
S.F.09 – 29 anos Eu parei de estudar com 12 anos porque meus pais não tinham condiões de manter a casa porque eramos em cinco irmão. Sempre tive um sonho de ternimar os estudo e me forma em enfermagem, mais não foi posível porque logo fiquei gravida eu tinha 16 anos parei de estuda na 4ª série para trabalha e cuidar do meu filho, me casei e cinco anos depois me separe nesse período tive outro relacionamento e engravi- dei de novo, portanto parei tudo fiquei 10 anos sem estudar. Ai venho uma bençau de Deus na minha vida que meu atual marido ja a sente anos ele quem me da muita força para estudar, agora ao 29 anos vol realizar meu grande sonho de ter uma profissão, agrade- ço a ele por tudo que tem feito por mim e pelos meus filhos que são uma bençau de Deus na minha vida também, assim como meu esposo. trabalhei como doméstica por muito tempo fui muito uni lhada durante muito tempo agora atualmente trabalho como recpicionista estou adorando mais o que quero é me atualizar na aréa da saúde.
S.F.10 – 60 anos Bem eu parei de estudar quando me casei, não porque meu marido queria, é porque eu já estava grafida e enseguida tive que trabalhar para ajudar a criar os filhos. E o tempo foi passando quando vi já tinha passado um bom tempo, os meus dois filhos já estavam criados. Aí não havia mais tempo de estudar para arrumar um bom emprego, voltei a estudar para obter conheci- mento, que sempre foi o meu dezejo, e aí estou. Mas não me arrependo de ter que para de estudar para tomar conta de casa e dos filhos. Hoje eles tem o que eu nçao tive, vendo eles bem encaminhados para mim é o que enteressa, estou feliz.
S.F.11 – 48 anos Eu já trabalhei durante muito anos em casa de família comecei a trabalhar 13 anos de idade e só parei quando me casei. comoceu a ficar tudo difício, porque veio os filhos e a 20 anos atras era muito difício colocar os filhos na creche eram poucas. por esse motivo parei de estudar. Eu parei de estudar na quarta série com 20 anos de idade comecei a estudar com 17 anos porque os meus pais não me colocaram na escola quando criança eles eram do interior e não sabiam ler. Bem! por conta disso só agora que estou tentando terminar os estudos. particulamente pra mim está sendo muito dificio pois as coisas mudaram. mais eu estou tendo muita força de vondade. porque eu pretendo terminar os estudos e fazer uma faculdade de psicologia e esse e o meu objetivo mais eu sei que não vai ser facio eu vou ter que estudar muito Emquanto eu não tralho tenho tempo para estudar. mais quando eu voltar a trabalhar vou ter que ter tempo.
S.F.12 – 32 anos Tenho 3 filhos, casei muito no- va por isso parei de estuda e come cei a trabalha, comecei em casa de familia, depois de um tempo fiz uns cursos na aréa de beleza, fui trabalha em salão de beleza como cabelereira. Gosto do que faço, mais tive que para de trabalha nessa área, porque eu não tinha muito tempo para meus filhos. Voltei a trabalha em casa de familia mas nos finais de semana faço cabelo dos meu cliente em casa, tenho um pequeno salão de beleza em casa Gosto muito das duas profissões não tenho vergonha mais voltei a estudar porque tenho outros objetivos. Quero fazer um vestibular passa para um faculdade, ainda não sei exatamente o que quero seu quero conquista coisas que eu nunca imaginei que poderia conquistar. Ser um exemplo para meus filhos e Familia. Quem sabe uma facul- dade da minha área de beleza.
S.F.13 – 32 anos Eu tinha 15 anos quando comesei a estudar a noite para trabalhar durante o dia. Pois eu era muito nova fiz muitas amizades na escola. Comecei a matar aulas para ficar namorando. Com isso eu não estava mais assistindo as aulas. Minha mãe foi chamada na escola e a direção informou para ela que eu não estava assistindo as aulas. Com o tempo eu comecei a trabalhar de babá e a dormi no trabalho, pois eu estava ganhando bem, largei os estudos. A pouco tempo voltei a estudar Agora eu trabalho e não gosto do que faço. Trabalho como diarista. Mais e por pouco tempo. Por que eu tenho um Objetivo. e vou cumprir. fazer minha faculdade de moda. Só falta mais um ano para eu termi- nar.
S.F.14 – 36 anos O que me levou a larga os estudo fou o traba lho porque com 12 ano eu fui mora ma casa dos outro e trabalha para me sustenta e ali que parei de estuda mais a gora eu voutei para termina e faze um curso de e colomia para a bri um restorante meu mesmos. porque eu gosto muito de comsinha. mais para iso eu presisso de estuda muito e para se um bom esempro para minhas filha se auguma coisa navida por que sem estudo não da para se nada. A qui Eu termimo a minha redação medezejando uma boa sorte para mim.
S.M.04 – 53 anos Sou motorista gosto muito do meu trabalho tenho duas filha esposa, estou estudando para melhorar há minha escrita porque tenho dificuldade para ler e escrever gosto muito de estudar mais tem pessoas que gosta de atrapalhar mas não vai consegui por que eu vou mim esforça o massimo, possivel e vou consegui se deus quizer.
S.F.15 - * anos Bom quando eu parei de estudar eu era ainda muito pequena pois meu pai não deixou eu e minhas irmã estuda por que perdemos minha mãe muito sedo então ele resolveu colocar nós para trabalhar na roça logo eu ? e tudo mudou quando consegui sair de casa eu já era uma moça aí micazei e comesei atrabalha para da o melhor pro meu filho ao longo do tempo percebie que precizava voutar a estuda pois o trabalho me exigiu que eu estivese pelo menos o ensino fundamental e o meu filho foi cresendo e perguntando se eu estudava eu fala que não aí percebie que ele também estava se desenteresando pelos estudos ele é só uma criança voutei a estudar é ele ficou feliz e hoje gosta muito de estuda e eu preciso termina os estudo para pode alcansar os meus objetivos.
S.M.05 – 51 anos Na verdade eu ainda não consegui oficializar na minha profissão porque quando eu era mais jovem e estudava em uma escola na minha ci- dade e não tinha objetivo para um futuro me- lhor. Eu ainda não tinha ambições maiores de me tornar quem sabe um advogado, médico ou um jogador de futebol. Foi quando vi minhas ideias e sonhos cairem, porque com 17 anos eu tive que abandonar meus estudos e procurar um emprego para ajudar a minha família pois as coisas estavam muito ruins para minha mãe e irmãos. Nesse período fui aprendiz de fabricação em Uma empresa conseguindo com os tempos de tra- balho experiência na função fazendo todo tipo de trabalho nessa empresa e ai veio a era do desemprego e acabei ficando sem trabalho, mas não desanimei e consegui outro emprego 3 meses depois em um condominio residencial, mas so fiqueo 90 dias, o que foi muito bom pois aprendi as noções de portaria assim consegui outro trabalho em condominio aonde estou até hoje. Hoje graças a Deus estou muito contente com meu trabalho, mas gostaria mesmo era de ser eletricista residencial e estou retornando ao estudos para conseguir um curso de aperfeicoar nessa profissão e se Deus quizer vou conseguir o meu objetivo.
S.F.16 – 37 anos Tenho 37 anos sou dona de casa, esposa, mãe, avó e consultora Mary Kay, (produtos de beleza). Me casei cedo, tive filhos e por isso tive meus estudos interrompidos. Hoje estou colhendo o que plantei na juventude, mas estou tentando mudar. Voltei estudar e estou disposta a terminar o Ensino Médio e cursas faculdade de Geografia por dois moti- vos: para saber bem mais sobre vários assuntos que me interessam, que só aprendemos na escola como: escrever corretamente, me expressar melhor, falar corretamente, etc., o outro motivo é que desde criança sonho em fazer geografia. Continuarei sendo dona de casa que é o meu trabalho, sendo que serei uma dona de casa formada em geografia.
S.F.17 – 34 anos trabalho em casa de fanília há 9 anos gosto muito do que faço. estou aqui no rio há 13 anos tenho duas filhas linda uma têm 14 anos e a outra têm oito anos e tudo pra mim, voltei a estudar porque o meu sonho era de estuda para saber ler é escrever uma carta eu sempre quis estuda mas meus pai não poderam min dar esta alegria de ir para o colégio estuda mas não fico triste por não ter estudado quando pequena talveis não daria valor como dar hoje porque pra min hoje e maravilhoso está estudando e dificial é, mais há recompença com serteza e maravilhoso sair do trabalho e ir pra aula.
Conto de Escola
de Machado de Assis
A Escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840.
Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na
Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o
Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um
espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro
ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei
para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento
das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai
doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante.
Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos
mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas
que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela
manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele
entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em
chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande
colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez
sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois
relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele,
tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda.
Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta
minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um
grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre.
Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que
conosco.
— O que é que você quer?
— Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola;
mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e
de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem
mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava
sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua,
ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a
mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe
cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e
a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas,
instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio
senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por
andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico
Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para
cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do
morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que
bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de
leitura e a gramática nos joelhos.
— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me
alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me
que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
— Que é?
— Você...
— Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo,
olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns
minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo,
e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas
podia ser também alguma cousa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo.
Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe
baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou
então, de tarde...
— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
— Então agora...
— Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas
vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o
nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que
ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim
da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas
nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa
lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só
levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí,
pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou
outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse;
levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos
jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso
das calças e olhou para mim.
— Sabe o que tenho aqui?
— Não.
— Uma pratinha que mamãe me deu.
— Hoje?
— Não, no outro dia, quando fiz anos...
— Pratinha de verdade?
— De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei,
cuido que doze vinténs ou dous tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que
me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois
perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que
não.
— Mas então você fica sem ela?
— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa
caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa
do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em
seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe
explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com
medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes
própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de
criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na
troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação.
Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo
aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem
pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece
que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e
não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado
mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas
queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava
como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como
uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia
cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a
ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o
filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o
mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais,
lendo com fogo, com indignação...— Tome, tome...
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao
Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei;
mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe
vi mais nada. Então cobrei ânimo.
— Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com
um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar
o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos
conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com
cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para
aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que
me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do
mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente.
Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto
ameaçador. O coração bateu-me muito.
— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
— Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o
contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo,
que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso
dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava
como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo,
pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na
mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um
lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra
embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que
me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me
não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a
inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o
mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo.
Pareceu-me adivinhar tudo.
— Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos
pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém
fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a
curiosidade e o pavor de todos.
— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? Disse-me
o Policarpo.
— Eu...
— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo
bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso,
vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de
raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de cousas duras,
que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania,
e para emenda e exemplo íamos ser castigados.
Aqui pegou da palmatória.
— Perdão, seu mestre... solucei eu.
— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
— Mas, seu mestre...
— Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns
por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e
inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois,
quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos semvergonhas,
desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!
tratantes! faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os
olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do
mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual
negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá
dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo
como três e dous serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou
a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com
medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz.
Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que
denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma cousa?
" Tu me pagas! tão duro como osso!" dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali
mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando,
porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente se em algum corredor ou loja; entrei
numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu
notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha
mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dous
meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar
à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia
estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que
minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como
se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim
à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram
bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando.
Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda,
ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos
pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei
para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio
que cantarolando alguma cousa.
Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde,
e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem
pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles,
Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da
delação; mas o diabo do tambor...