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A NOVA RETÓRICA PERELMIANA Contrapontos Entre Aristóteles e Perelman

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CAPA: http://www.philodroit.be/IMG/jpg/C-Perelman-4.jpg

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Marcio Pedro Cabral

A NOVA RETÓRICA PERELMIANA Contrapontos Entre Aristóteles e Perelman

Primeira Edição

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Maringá – PR

2014

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Copyright 2014 by Marcio Pedro Cabral

EDITORES: Daniela Valentini

José Francisco de Assis Dias CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Dr. José Aparecido Pereira [PUCPR] Prof. Dr. José Beluci Caporalini [UEM-Maringá]

Prof. Dra. Lorella Congiunti [PUU-Roma] REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

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Cabral, Marcio Pedro

C117n A nova retórica perelmiana: contrapontos entre

Aristóteles e Perelman / Márcio Pedro Cabral. --

1. ed. Maringá,PR: Vivens, 2014.

138 p.; 14x21 cm.

ISBN 978-85-8401-020-2

Disponível em: www.vivens.com.br

1. Argumentação. 2. Retórica. 3. Persuasão.

4. Justiça. 5. Direito - filosofia. I. Perelman,

Chaim, 1912. II. Aristóteles.

CDD 22.ed.340.1

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Aos meus pais, minha esposa, meu filho e meus amigos, parceiros de todas as lutas.

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A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois, não se

delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da

argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às

certezas do cálculo.

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 1)

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................... I - A RETÓRICA DE ARISTÓTELES.................................. 1.1 A definição de retórica aristotélica.................................... 1.2 Os meios de prova............................................................ 1.3 Os três meios técnicos de persuasão............................... 1.4 O exemplo e o entimema................................................... 1.5 Os três gêneros de discurso.......................................... 1.6 O uso dos tópicos ou lugares-comuns........................... 1.7 O problema da justiça.................................................... 1.8 Estilo, composição e partes do discurso........................ II - A RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN.......................... 2.1 Os âmbitos da argumentação.......................................

2.1.1 A comunidade dos espíritos................................. 2.1.2 O conceito de auditório........................................

2.2 O ponto de partida da argumentação............................. 2.3 O Acordo na argumentação...........................................

2.3.1 Os tipos de objeto de acordo: o acordo sobre o real..........................................

2.3.2 Os tipos de objeto de acordo: o acordo sobre o preferível..................................

2.4 Os lugares na argumentação......................................... 2.5 A escolha, seleção e interpretação dos dados

e sua adequação à argumentação................................

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III - A NOVA RETÓRICA DE PERELMAN.......................... 3.1 O desenvolvimento da Nova Retórica: uma reabilitação da retórica “antiga” aristotélica............ 3.2 A Nova Retórica: ruptura com o racionalismo cartesiano.......................... 3.3 A retórica de Aristóteles e Perelman: conceitos retomados por Perelman da retórica aristotélica....................................................

3.3.1 A questão do auditório.......................................... 3.3.2 A questão da justiça.............................................. 3.3.3 A prova em direito................................................. 3.3.4 A retórica de Perelman e Aristóteles:

tópicos que explicam as aproximações e diferenças entre as duas teorias.........................

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................ REFERÊNCIAS.............................................................

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INTRODUÇÃO É notório que o direito atual ainda não opera de

forma efetiva no seio da sociedade, transformando-a numa sociedade mais justa e mais humana. No seu atual paradigma, vê-se uma sociedade pautada por regras, com a justiça concreta surgindo tão somente por meio de uma válida aplicação da lei. Esse padrão social tem seus pontos positivos, porém faz com que o homem seja tolhido de sua identidade, pois o direito atual é o pedagógico, ou seja, aquele que é ensinado, mas, por vezes, não é aprendido. Assim, uma investigação acerca de uma nova visão do direito torna-se necessária, à medida que surgem novos desafios no âmbito jurídico, que por isso mesmo encontra-se em constante transformação e evolução.

Conforme Valle (2007, p. 167), “sempre ensinamos, agora, é preciso mais do que nunca aprender. Da Sociedade à Comunidade [...] sobre a palavra na Comunidade precisamos de uma nova retórica como nos ensina Chaïm Perelman [...]”. Seguindo esse pensamento, nesta dissertação a filosofia do direito será vista como uma investigação acerca de um novo paradigma do direito, que procura formular hipóteses de natureza epistemológica, ética e ontológica ao efetuar o resgate da retórica aristotélica, envolvendo-a na prática do campo jurídico.

Para cada item citado, poder-se-ia realizar uma análise específica, mas este estudo terá como delimitação a análise dos elementos epistemológicos que deram à retórica o status de nova, a partir da perspectiva de Chaïm Perelman. Aponta-se em específico o estudo desenvolvido pelo jusfilósofo belga com o objetivo de encontrar em suas reflexões epistemológicas elementos que contribuam para a discussão sobre a teoria da argumentação.

A nova retórica da teoria da argumentação de Perelman rompe a concepção da razão e do raciocínio que nasceu com Descartes e marcou a filosofia nos últimos

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três séculos (XVIII, XIX e XX). Por meio do uso da retórica, o homem não pode ser reduzido arbitrariamente à emoção dos gritos da alma ou, ao contrário, à razão constritiva dos raciocínios dedutivos. A retórica mostra que, ao lado da densidade racional, existe no homem a densidade do razoável; nesse âmbito estão os valores éticos, políticos e religiosos, pois isso é o que conta para o homem. Destarte, seu ponto de partida consiste em arrancá-lo do mundo dos valores, do arbitrário e da pura emotividade, para reconduzi-lo à “razoabilidade” que lhe é própria. Era o que os antigos gregos tinham compreendido.

A escolha pelo estudo das ideias de Perelman deve-se ao fato de acreditar-se que muitas questões referentes a esse objeto podem ser desvendadas por meio de uma análise da construção de sua teoria da argumentação. Como a finalidade desta pesquisa é analisar os elementos que podem estar presentes no pensamento epistemológico desse filósofo, seu objeto de estudo é entender as influências desses pressupostos epistemológicos na construção da teoria da nova retórica, visando a apresentar pontos conceituais para a compreensão desse conceito. Por sua vez, o problema proposto consiste no esclarecimento da nova retórica perelmiana e como ela é apresentada conceitualmente com relação ao pensamento aristotélico. Para tanto, serão contrapostos os conceitos de retórica de Perelman e Aristóteles, identificando suas diferenças e similaridades.

Um pressuposto epistemológico fundamental para compreender as obras de Aristóteles é que a verdade e a justiça são mais fortes que seus contrários. Nesse contexto, os homens são suficientemente dotados para o verdadeiro e alcançam amiúde a verdade. Sendo assim, na segunda seção, serão expostos os fundamentos retóricos desse filósofo, tendo como base tópicos da obra Retórica (2005), constituída de três livros codificados a partir de seus princípios, sendo um escrito fundamental que classificou e arranjou os formatos de discursos até o

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século III a.C. e que se mantém, com raras alterações, até o presente.

Ainda nessa seção, buscar-se-á expor a afinidade da retórica com o saber prático, pois, por não ser ciência nem puro empirismo, não se funda no geral, mas no que produz as mais das vezes, não sendo, no entanto, prática, ou seja, não influi no comportamento geral da vida, mas é poética, visto que formula as regras da sua criação. Enfim, sua finalidade não é tanto persuadir quanto descobrir o que há de persuasivo em cada caso. Depois de assentada essa base sólida, Aristóteles aplica-se a discriminar as analogias e diferenças da retórica e da dialética, pois conclui que nenhuma delas é disciplina especial.

A retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão, ou seja, parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para persuadir. Dessa forma, pode-se dizer que suas regras não se aplicam a um gênero próprio e determinado. Diante disso, pretende-se resgatar os argumentos sobre as provas, tanto as que dependem da arte quanto as que não dependem. As independentes são todas aquelas que não são fornecidas por nós, mas preexistem, como, por exemplo, os testemunhos, as confissões sob tortura etc.; já as dependentes são todas as que podem ser fornecidas por nossos próprios meios. Com relação às primeiras, basta que nos utilizemos delas, quanto às outras, precisamos encontrá-las.

Também serão apresentados os três meios de persuasão que Aristóteles concebe, decorrentes do caráter do orador, das disposições criadas no ouvinte e do próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar. Portanto, obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso procede de maneira a deixar a impressão de o orador ser digno de confiança, pois as pessoas de bem inspiram confiança mais eficaz e rapidamente em todos os assuntos, de modo geral. Da

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mesma forma, a persuasão acontece quando o discurso leva os ouvintes a sentir uma paixão, porque os juízos proferidos variam, consoante se experimenta aflição ou alegria, amizade ou ódio. Por fim, é pelo discurso que se persuade sempre que é demonstrada a verdade ou o que parece ser a verdade, de acordo com o que é suscetível de persuadir sobre cada assunto.

Para abordar as formas de argumentos, Aristóteles utiliza o exemplo e o entimema, sendo este um silogismo oratório e aquele uma indução oratória. Os discursos baseados em exemplos prestam-se mais que outros para persuadir; de outro modo, os baseados em entimemas impressionam mais. Ademais, serão articulados nessa seção os três gêneros da retórica: deliberativo, epidítico e judiciário. Numa deliberação, aconselha-se ou desaconselha-se, quer se delibere sobre uma questão de interesse particular, quer seja de interesse público; uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa; já o gênero epidítico comporta duas partes: o elogio e a censura. Cada um desses gêneros tem por objeto uma parte do tempo que lhes é própria – para o deliberativo, é o futuro; para o judiciário, o passado; e para o epidítico, o presente. Além disso, existe uma necessidade de ter premissas para todos os três gêneros da retórica, pois, uma vez que um silogismo vale-se de premissas e o entimema é um silogismo, este é constituído pelas premissas de que se valem todos os gêneros.

Seguidamente, tratar-se-á do tema da justiça. Nesse sentido, Aristóteles observa que a verdadeira justiça é a equitativa, pois os atos que podem ser perdoados são passíveis da equidade; além disso, não devem ser punidos igualmente os erros e os atos injustos, como também os erros e as inadvertências (todos os atos desprovidos de maldade). Mostrar-se equitativo é mostrar-se indulgente com as fraquezas humanas, é também ter menos consideração pela lei do que pelo legislador.

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Aristóteles, no livro três de Retórica (2005), trata do estilo do discurso e sua composição, afirmando que não basta possuir a matéria do discurso, devendo-se exprimir de forma conveniente, o que é de suma importância para dar ao discurso uma aparência satisfatória. Procura-se o que vem em primeiro lugar, isto é, o que há de convincente nas coisas; em segundo lugar, vem o estilo que permite a ordem; e, em terceiro lugar, a ação retórica. Dessas partes do discurso, verificam-se apenas duas: a indicação do assunto e sua demonstração; assim, são apresentadas como obrigatórias a proposição e a prova, mas o discurso propriamente dito é constituído pelo exórdio, exposição, prova e epílogo.

Na terceira seção, apresentar-se-á a teoria da argumentação de Perelman, expondo conceitos presentes na obra Tratado da argumentação: a nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Partindo dos âmbitos da argumentação, o filósofo faz críticas aos lógicos formalistas e alerta, assim como Aristóteles, para os cuidados que o orador deve ter ao discutir com certas pessoas, para que não perca a qualidade de sua argumentação; ainda, relaciona o orador e seu auditório, afirmando que, para que uma argumentação se desenvolva, é preciso, de fato, que aqueles a quem ela se destina lhe prestem alguma atenção. Segundo ele, um dos principais objetivos da argumentação é aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento, ou seja, criar uma disposição para a ação. Dessa forma, a função do processo argumentativo é gerar ou intensificar a aderência das mentes às questões que lhes são oferecidas. Para isso, insere em sua teoria a constituição de uma comunidade a quem se destina a argumentação, denominada “comunidade dos espíritos”.

Ainda nessa seção, será tratada a noção de auditório, considerada um dos elementos mais significantes na teoria de Perelman, pois auditório não é tão somente aqueles que ouvem um discurso, mas a

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construção na mente do orador, em que são estruturadas todas as etapas do processo argumentativo. Na sequência, apresentar-se-á o ponto de partida da argumentação, dividido em três partes: o acordo, a escolha dos dados e sua adaptação com vistas à argumentação e a apresentação dos dados e forma do discurso.

O acordo trata das premissas da argumentação do orador, ou seja, suas escolhas referentes à categoria do real: fatos, verdades e presunções, e à categoria preferível: valores e hierarquias. Sobre os lugares, estes podem ser: lugares da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da pessoa. O orador deve assegurar para si certos acordos e não certas rejeições; por isso, deve tomar cuidado com a ordem de sua argumentação, para não correr o risco de ser desqualificado. Quanto à seleção de dados e presença, para cada auditório existe um conjunto de coisas admitidas que têm a possibilidade de influenciar as reações; portanto, as escolhas do orador devem ser precisas e sua presença deve agir na sensibilidade do auditório. Já a interpretação dos dados deve proporcionar um só significado e não ser ambígua, a menos que seja a intenção do orador.

Para finalizar, na quarta seção, apresentar-se-á o pensamento retórico de Perelman, denominado por ele mesmo de nova retórica, de modo a explicar tal terminologia, ou seja, a novidade que contém a retórica perelmiana. Portanto, o enfoque desta seção é compreender a nova retórica como uma entidade que não buscou substituir a retórica antiga, mas estendê-la e aumentar sua abrangência. Sendo grande a influência do pensamento aristotélico na retórica de Perelman, buscar-se-á relacionar questões de ambos os filósofos sobre a retórica, de modo a tornar claras as características estruturantes do conceito analisado.

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- I -

A RETÓRICA DE ARISTÓTELES O pensamento de Aristóteles influenciou todo o

crescimento da cultura do Ocidente nas várias áreas, como ciência, metafísica, moral, política, estética e retórica. Uma de suas obras de grande relevância, Retórica (2005), é um escrito fundamental que qualificou e dispôs os formatos de discursos até o século III a.C. e que se conservam, com poucas alterações, até hoje. Na atualidade, a retórica é usualmente vista como um agrupamento de regras referentes à eloquência, sendo mais utilizada na prática do direito, da comunicação e da política. Sem o entendimento apropriado de seu emprego próprio, como também com o esquecimento dessa arte, quase se perde uma valiosa ferramenta para a investigação da verdade, visto que a arte retórica apresentada nos textos aristotélicos convida à reflexão sobre a ação social, política e historicamente correta.

A subseção seguinte dará início a um encadeamento de conceitos, cujo objetivo é apresentar o pensamento retórico desse filósofo, iniciando pela definição da retórica e sua afinidade com o saber prático, tipos de prova, noções de paixões, exemplo e entimema, relacionando-os aos gêneros de discurso, utilização dos lugares comuns, justiça, desembocando nas questões de estilo e composição do discurso.

A partir das exposições realizadas nesta seção, sob a luz das contribuições de Aristóteles, encaminhar-se-á a reflexão do presente trabalho sobre a compreensão de questões pertinentes à retórica, para, mais adiante, entender sua influência no pensamento de Perelman.

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1.1 A DEFINIÇÃO DE RETÓRICA ARISTOTÉLICA A retórica tem sua raiz relacionada às novas

relações sociais sucedidas pelo surgimento da polis1. Desde suas origens, esteve, portanto, indissociavelmente ligada à filosofia e ao direito, tendo se expandido de modo pleno após a concretização da democracia ateniense, segundo a qual todos os cidadãos atenienses tomavam parte diretamente nas assembleias populares, que possuíam funções legislativas, executivas e judiciárias.

Conforme ensinamento de Reale (1997), o Aristóteles jovem (estaria com aproximadamente 25 anos de idade nessa época), em sua primeira obra, chamada Grilo (em homenagem a Grilo, filho de Xenofonte, morto em 362 a.C., na batalha de Mantineia), apontava sua polêmica contra a retórica compreendida na forma de instigação irracional das emoções, como Górgias a idealizara e Isócrates e sua escola a tinham voltado a recomendar. Nessa obra, Aristóteles posiciona-se a favor da Paideia platônica e contra a Paideia isocrática que se baseava na retórica. Sua tese defendia a ideia (a mesma de Platão) de que a retórica não é uma tchene, ou seja, não é uma arte, nem uma ciência.

O conteúdo retórico que estabelecia a base dos escritos em honra de Grilo, entre os quais parece ter existido um do próprio Isócrates, era precisamente o tipo de retórica contra a qual polemizara Platão em Górgias e que, como já foi dito, Isócrates novamente reanimava. O assentimento a essa obra pela Academia levou Aristóteles a ser encarregado a dar um curso oficial de retórica. Todo o ensinamento do seu curso era no sentido de desfazer todas as pretensões de tipo gorgiano e isocrático, como

1 Polis significa cidade-estado. Na Grécia Antiga, era um pequeno território localizado geograficamente no ponto mais alto da região, cujas características eram equivalentes a uma cidade. Seu surgimento foi um dos mais importantes aspectos no desenvolvimento da civilização grega.

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também de defender a dialética e, provavelmente, mostrar, como já Platão fizera no Fedro, que a retórica para poder adquirir valor tinha que se basear na dialética (BERTI, 2002).

Nesse debate entre Aristóteles e Isócrates e, portanto, contra a retórica de tipo georgiano, o que mais é importante é a nova concepção de retórica como a arte da comunicação, não mais do puro encantamento ou da pura sugestão emotiva. Por esse motivo, a retórica aristotélica atraiu o interesse dos filósofos da contemporaneidade, seja como possível lógica do discurso político ou judiciário, seja como ocasião de recuperação da dimensão comunicativa da linguagem, para além daquela dimensão puramente instrumental própria da ciência e da técnica modernas (BERTI, 2002).

Estão presentes na relação de grandes obras de Aristóteles dois tratados diferentes sobre a elaboração do discurso: Retórica (2005) e Arte Poética (1991). O primeiro ocupa-se da arte da comunicação, do discurso feito em público com fins persuasivos, já o segundo trata da arte da evocação imaginária, do discurso arranjado com propósitos fundamentalmente literários e poéticos. No entanto, a novidade do filósofo foi considerar o argumento lógico componente essencial na arte persuasiva. A retórica aristotélica caracteriza-se, então, como uma retórica da prova, do raciocínio, do silogismo retórico, ou seja, uma teoria da argumentação persuasiva, tendo como um de seus maiores atributos a dinamicidade de aplicação dessa técnica a qualquer assunto.

Nesse diapasão, a retórica pode ser comparada à dialética no que se refere à forma argumentativa. Assim, na reflexão sobre a natureza da arte e ao apresentar a retórica como arte pura, Aristóteles afirma a racionalidade de sua teoria, apresentando-a como forma de conhecimento prático, identificando-a, assim, com a arte do diálogo. Sobre o conceito de retórica, diz o filósofo:

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Entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. Esta não é seguramente a função de nenhuma outra arte; pois cada uma das outras apenas é instrutiva e persuasiva nas áreas da sua competência; como, por exemplo, a medicina sobre a saúde e a doença, a geometria sobre as variações que afectam as grandezas, e a aritmética sobre os números; o mesmo se passando com todas as outras artes e ciências. Mas a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que, como arte, as suas regras não se aplicam a nenhum género específico de coisas (ARISTÓTELES, 2005, I, 2, p. 95).2 Somando-se ao que foi citado, pode-se expor uma

síntese dos aspectos que caracterizam o esquema retórico em Aristóteles, segundo Alexandre (in Aristóteles [384-322 a. C.], 2005, p. 35):

1) A distinção de duas categorias formais de persuasão: provas técnicas e não técnicas; 2) A identificação de três meios de prova, modos de apelo ou formas de persuasão: a lógica do assunto, o caráter do orador e a emoção dos ouvintes; 3) A distinção de três espécies de retórica: judicial, deliberativa e epidíctica; 4) A formalização de duas categorias de argumentos retóricos: o entimema, como prova dedutiva; o exemplo, usado na argumentação indutiva como forma de argumentação secundária;

2 Não consta, em boa parte dessa edição, a numeração por parágrafos; dessa forma, optou-se neste trabalho pela citação na seguinte sequência: nome do autor, ano da edição, número do livro; número do capítulo e número da página. Quando a edição trouxer a numeração por parágrafos, a sequência será: ano da edição (ou título da obra), número do livro, número do capítulo e numeração por parágrafo, excluindo, neste caso, o número da página. Em outras ocasiões, poderá constar da seguinte forma: autor original (Aristóteles), data de publicação e página.

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5) A concepção e o uso de várias categorias de tópicos na construção dos argumentos: tópicos especificamente relacionados com cada género de discurso; tópicos geralmente aplicáveis a todos os géneros; e tópicos que proporcionam estratégias de argumentação, igualmente comuns a todos os géneros de discurso; 6) A concepção de normas básicas de estilo e composição, nomeadamente sobre a necessidade de clareza, a compreensão do efeito de diferentes tipos de linguagem e estrutura formal, e a explicitação do papel da metáfora; 7) A classificação e ordenação das várias partes do discurso.

Diferentemente da retórica sofística, a verdadeira

arte retórica baseia-se em provas, concebendo-as como uma espécie de demonstração, que colabora para a formação de um juízo, ou seja, um raciocínio por meio de entimemas, conceito que será explicado adiante.

1.2 OS MEIOS DE PROVA A finalidade primeira do discurso retórico é a

persuasão. Para alcançá-la, o orador deve oferecer provas que façam a audiência aderir à tese defendida. Aristóteles elenca dois tipos de prova: não técnico ou inartístico e técnico ou artístico. As provas não técnicas são aquelas não inventadas pelo orador, que se valem da evidência de testemunhos ou contratos escritos; por sua vez, as provas técnicas necessitam de meios de persuasão criados pelo orador. Sobre isso, explica Aristóteles (2005, I, 2, p. 96):

Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamo provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem preparar pelo método

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e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as segundas.

Os meios de provas não técnicas ou inartísticas

são dados antecipadamente e não convém buscá-los, pois podem ser utilizados sem ter a necessidade de desvendá-los. Por outro lado, os meios de provas técnicas ou artísticas são o campo da retórica propriamente dito; é nessa área que atuam os retóricos, utilizando-se dos artifícios técnicos para persuadir. O que faz técnicas essas provas e as diferencia das demais é o fato de não preexistirem ao discurso, mas serem elaboradas pelo orador no instante da elocução.

Reboul (2004) apresenta outra terminologia para esses tipos de prova; são as chamadas provas extrínsecas e intrínsecas. Extrínsecas são as exibidas antes da invenção: testemunhas, confissões, leis, contratos etc.; assim, num discurso epidítico, é tudo o que se sabe da personagem cujo elogio se faz. As provas criadas pelo orador são as intrínsecas, que dependem de seu método e de seu talento pessoal, sendo sua maneira própria de impor seu relatório.

As provas consideradas técnicas assim o são por serem estruturadas segundo as regras e os métodos próprios da arte retórica, na medida em que são construídas somente por meios discursivos. O interesse desta pesquisa é centrar sua atenção nesse tipo de prova e, mais precisamente, em duas delas: as provas pelo ethos3 do orador e pelo pathos4 do ouvinte, a fim de compreender de que maneira são elas necessárias à arte retórica e como são justificadas na teoria aristotélica acerca dessa arte (FRANCISCO, 2000).

3 Na retórica, o ethos é um dos modos de persuasão ou componentes

de um argumento caracterizados por Aristóteles. É a componente moral, o caráter ou autoridade do orador para influenciar o público. 4 Em retórica, significa o uso da emoção. Tipo de experiência humana, ou sua representação em arte, que evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor.

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1.3 OS TRÊS MEIOS TÉCNICOS DE PERSUASÃO Para Aristóteles, a retórica não era tão somente

persuasão, mas distinção e seleção dos meios adequados para persuadir. Para tanto, recorria às provas técnicas, que entendia como sendo de três naturezas distintas:

As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar (ARISTÓTELES, 2005, I, 2, p. 96).

Sendo assim, a persuasão que se desenvolve pelo

caráter do orador é o discurso proferido de tal maneira que deixa a impressão de ele ser digno de fé e confiança. Observa-se que se acredita com maior rapidez e grau de intensidade elevado em pessoas aparentemente idôneas, em todas as coisas em geral, mas, sobretudo, nas de que não há conhecimento acabado e que deixam margem para suspeita. Sobre isso, afirma Reale (1994, p. 475):

Com relação ao primeiro ponto, o caráter do orador, o Estagirita observa que, para ser digno de fé e persuasivo, um orador deve ser ou mostrar-se dotado dessas três qualidades: sabedoria, honestidade, benevolência. De fato os oradores podem errar ao falar sobre algo e ao aconselhá-lo, ou por falta de sabedoria, ou porque, mesmo sabendo o que seria oportuno aconselhar, não o aconselham por desonestidade, ou, enfim, porque, mesmo sabendo o que deveria ser aconselhado e mesmo sendo honestos, não têm benevolência com aqueles com que falam.

A persuasão baseada na disposição dos ouvintes

ocorre quando a argumentação utilizada por meio do discurso interfere diretamente em suas emoções, pois os juízos emitidos transformam-se conforme o sentimento é

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experimentado. Nesse sentido, Reale (1994, p. 475) reafirma:

Conforme o estado de ânimo no qual se encontra o ouvinte, ele julga de modo diferente as mesmas coisas e, por isso, um conhecimento da psicologia das paixões isto é, o conhecimento da alma humana que já no Fedro, Platão punha como um dos fundamentos da verdadeira retórica é indispensável ao orador.

Aristóteles observa a importância do orador em

saber provocar em cada auditório a paixão que seja mais conveniente aos interesses de sua fala, pois os mesmos acontecimentos podem ser entendidos de várias maneiras e sentidos distintos, o que está sujeito à situação, como também às variações de emoção do receptor da mensagem. O filósofo trata desse tema já no início do Livro II de Retórica:

Os factos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está indignado ou para o calmo, mas, ou são completamente diferentes ou diferem segundo critérios de grandeza. Por um lado, quem ama acha que o juízo que deve formular sobre quem é julgado é de não culpabilidade ou de pouca culpabilidade; por outro, quem odeia acha o contrário. Quem deseja e espera alguma coisa, se o que estiver para acontecer for à medida dos seus desejos, não só lhe há de parecer que tal coisa acontecerá, como até será uma coisa boa; mas para o insensível e para o mal-humorado passa-se exactamente o contrário (ARISTÓTELES, 2005, II, 1, p. 159).

Nesse sentido, constata-se que os mesmos fatos

tomam aparência inteiramente diferente e revestem outra importância, ou seja, quando se ama aquele que é julgado, ele não é considerado culpado. Se o que se deseja ou se

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espera é agradável, tem-se a sensação de que o que virá será algo bom.

Persuade-se por meio do discurso quando se mostra a veracidade, ou o que parece verdade, do que é persuasivo particularmente em cada caso. Reale (1994) expõe que esse ponto refere-se às argumentações lógicas e é aquele, como já informado, que Aristóteles considera mais importante e mais novo. É também o mais técnico e o que leva a retórica a conjugar-se com a dialética.

Com base nessas noções, formam-se os silogismos, ou seja, o raciocínio lógico, a compreensão do caráter humano e suas qualidades, o entendimento de suas paixões e, principalmente, de que forma podem ser instigadas. Os artifícios argumentativos que a retórica fornece, portanto, não deverão surgir das premissas originárias de que parte a ciência, mas das convicções frequentemente acolhidas, nas quais também se baseia a dialética.

Na medida em que a retórica é uma técnica discursiva de verdade, as provas pelo ethos e pelo pathos, tanto quanto a prova lógica, têm por escopo causar no ouvinte uma convicção de verdade, isto é, fazê-lo acolher como verdadeira certa tese defendida pelo orador. Contudo, enquanto esta procura essa finalidade apresentando razões que dirigem o ouvinte à admissão da verdade dessa tese, aquelas o fazem por caminhos inteiramente distintos. Por exemplo, elas atuam sobre o ouvinte, criando nele seja uma imagem do orador como pessoa digna de ser acreditada, seja um estado emocional favorável a esse orador, de maneira a admitir a verdade da mesma tese (FRANCISCO, 2000).

Assim, o que parece estar em questão nessas duas provas é a suscitação no interlocutor de uma convicção de verdade, mas não unicamente por meios puramente argumentativos ou lógicos. Há o uso do entimema e do exemplo, isto é, a apresentação de premissas que permitem sustentar a verdade de uma conclusão. É por

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meio deles que Aristóteles introduz a lógica em sua teoria retórica.

1.4 O EXEMPLO E O ENTIMEMA Nos dizeres de Aristóteles (2005), a retórica não

ensina, pois isso é tarefa da ciência e a maior parte dos homens não é capaz de seguir o raciocínio científico. Sendo assim, a argumentação que a retórica proporciona não tem seu ponto de partida nas premissas de que vale a demonstração científica, mas, sim, naquelas que são corriqueiramente aceitas e que também se identificam com a dialética. Verifica-se que a retórica não se apresenta de forma que o ouvinte comum não consiga entender, mas de maneira que consiga concluir rapidamente das premissas o que foi falado.

Quem deseja persuadir deve usar o melhor método e este consiste em possuir provas, isto é, na retórica, para se demonstrar, são usados o entimema e o exemplo. Reboul (2004), da mesma forma que Aristóteles, distingue dois tipos de argumento, o entimema ou silogismo, baseado em premissas prováveis, sendo dedutivo, e o exemplo, que a partir dos fatos passados conclui possibilidades futuras, sendo indutivo. Ainda nesse sentido, disserta Aristóteles (2005, I, 2, p. 98) sobre as formas e natureza dos argumentos:

Pois o exemplo é uma indução, o entimema é um silogismo, e o entimema aparente é um silogismo aparente. Chamo entimema ao silogismo retórico e exemplo à indução retórica. E, para demonstrar, todos produzem provas por persuasão, quer recorrendo a exemplos quer a entimemas, pois fora destes nada mais há. De sorte que, se é realmente necessário que toda a demonstração se faça ou pelo silogismo ou pela indução (e isso é para nós claro desde os Analíticos), então importa que estes dois métodos sejam idênticos nas duas artes.

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O entimema é um silogismo cujas premissas têm conteúdo provável e não científico. Silogismo, do grego, significa “ligação” ou “conexão de ideias”, pois, por meio de duas proposições, chamadas premissas, se obtém uma terceira, que é a conclusão. O silogismo é um argumento dedutivo, que seria aquele que parte de assuntos gerais para o contexto particular. Na definição de Aristóteles (apud ABBAGNANO, 2007), é um raciocínio em que, postas algumas coisas, se seguem necessariamente outras, pelo simples fato de aquelas existirem. Isso significa que delas deriva alguma coisa, não sendo preciso acrescentar nada de exterior para que a dedução se siga necessariamente.

A constituição do silogismo e de suas conclusões pode originar-se de premissas que já foram provadas por outros silogismos ou de premissas que ainda não foram demonstradas. No primeiro caso, a demonstração torna-se difícil pela grande quantidade de premissas e, se os ouvintes forem incapazes de compreender por essa via, não se alcançará o objetivo do discurso: a persuasão. No segundo caso, tratando-se de premissas sobre as quais os interlocutores não estão de acordo, não se alcança igualmente o objetivo do discurso, pois elas não são assentidas pela maioria (NASCIMENTO, 2012). Portanto, o entimema é um silogismo que se compõe de poucas proposições, que, em geral, são admitidas pela maior parte das pessoas, facilitando o entendimento dos ouvintes e a persuasão.

Os entimemas são classificados em demonstrativos e refutativos. Os primeiros provam alguma proposição afirmativa ou negativa e os segundos a refutam. Em outras palavras, o demonstrativo é aquele em que se obtém a conclusão a partir de premissas com as quais se está de acordo (proposições compatíveis); o refutativo conduz a conclusões que o adversário não aceita (proposições incompatíveis) (ARISTÓTELES, 2007).

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Além do entimema, o exemplo é utilizado pela retórica, mas não como uma estrutura lógica; por meio desse artifício, torna-se evidente o que se quer confirmar. Na retórica, baseia-se em fatos que aconteceram determinada quantidade de vezes, havendo no presente uma repetição deles. Não existe aí a relação do universal com o particular, nem do particular com o universal, mas, sim, das partes e dos semelhantes.

Da mesma maneira que o entimema corresponde ao silogismo, o exemplo retórico corresponde à indução lógica. Também como o entimema, é uma prova comum a todos os gêneros (ARISTÓTELES, 2007) e se divide em duas espécies: os que provêm de fatos passados e os que são criados pelo próprio orador, como as parábolas e as fábulas esópicas e líbicas (NASCIMENTO, 2012).

Sobre a diferença entre o exemplo e o entimema, esclarece Aristóteles (2005, I, 2, p. 98):

Quanto à diferença entre o exemplo e o entimema, ela está clara nos Tópicos (pois já aí se falou do silogismo e da indução). Demonstrar que algo é assim na base de muitos casos semelhantes é na dialéctica indução e na retórica exemplo; mas demonstrar que, de certas premissas, pode resultar uma proposição nova e diferente só porque elas são sempre ou quase sempre verdadeiras, a isso chama-se em dialéctica silogismo e entimema na retórica.

Ao realizar um discurso, é necessário saber sobre

o que ele deve abordar, portanto, sobre a espécie de discurso, ou seja, o gênero conveniente ao assunto. Conforme Aristóteles (2007), a poética e a retórica, ao contrário da filosofia teorética5, não se encontram enraizadas no ente como substância, mas dirigem-se primordialmente a um auditório. O discurso do orador,

5 Aristóteles divide a filosofia em prática, poética e teorética; esta, por sua vez, divide-se em física, matemática e filosofia primeira (metafísica

e teologia).

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assim como a tragédia6 e a epopeia7, apenas adquire o seu sentido próprio em relação a um público ao qual se dirige. Para a retórica, é o tipo de auditório perante o qual o discurso é pronunciado que permite classificar os diversos tipos de gênero de discurso.

1.5 OS TRÊS GÊNEROS DE DISCURSO A retórica, sendo a arte do bem se expressar, tendo

a intenção de expor ideias de maneira lógica para outrem com o objetivo de influenciá-lo e persuadi-lo de algo e utilizando-se para isso de argumentos, necessita comover e convencer para poder conduzir o entendimento do ouvinte. Como afirma Reboul (2004, p. 13-14), é

a articulação dos argumentos e do estilo numa mesma função [...] a arte de persuadir pelo discurso [...] por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma sequência de frases que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido.

Nesse sentido, cada tipo de discurso tem um

auditório, uma intenção, um objeto e um método próprio. A esse respeito, Aristóteles (2005, I, 3, p. 104) disserta:

6 Aristóteles teorizou que a tragédia resulta numa catarse da audiência e isso explicaria o motivo de os humanos apreciarem assistir ao sofrimento dramatizado. Entretanto, nem todas as peças que são largamente reconhecidas como tragédias resultam nesse tipo de final catártico – algumas têm finais neutros ou mesmo finais dubiamente felizes. 7 Epopeia é um conjunto de acontecimentos históricos narrados em

verso e pode não representar os acontecimentos com fidelidade, porém apresenta fatos com relevante conceito moral e atos heroicos, por exemplo, transcorridos durante guerras ou relativo a fenômenos históricos, lendários ou míticos e que são representantes de uma determinada cultura.

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As espécies de retórica são três em número; pois outras tantas são as classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta três elementos: o orador, o assunto de que fala, e o ouvinte; e o fim do discurso refere-se a este último, isto é, ao ouvinte. Ora, é necessário que o ouvinte ou seja espectador ou juiz, e que um juiz se pronuncie ou sobre o passado ou sobre o futuro. O que se pronuncia sobre o futuro é, por exemplo, um membro de uma assembleia; o que se pronuncia sobre o passado é o juiz; o espectador, por seu turno, pronuncia-se sobre o talento do orador. De sorte que é necessário que existam três géneros de discursos retóricos: o deliberativo, o judicial e o epidíctico.

Observa-se que cada gênero citado comporta uma

finalidade distinta, ou seja, três fins para três gêneros. Para o que delibera, o fim é o conveniente ou o prejudicial; para o que aconselha, sugere-o como o melhor; e para o que desaconselha, dissuade-o como o pior; todos os demais, como o justo ou o injusto, o belo ou o feio, são suplementos. Aqueles que se pronunciam em um tribunal e buscam o justo e o injusto também fazem parte de outros raciocínios auxiliares. Para os que elogiam e censuram, o fim é o belo e o feio, somando-se a esses outros raciocínios complementares.

Os discursos deliberativos ou são exortações ou dissuasões e tendem a manifestar as vantagens ou desvantagens de alguma atitude. A fala deliberativa é a Assembleia (Senado), que aconselha ou desaconselha sobre as questões da cidade (Reboul, 2004). Sobre a ação do orador deliberativo, afirma Aristóteles (2005, I, 3, p. 106):

Importa primeiramente compreender que coisas, boas ou más, aconselha o orador deliberativo, pois não se ocupa de todas as coisas, mas apenas das que podem vir a acontecer ou não. Sobre tudo o que necessariamente existe ou existirá, ou sobre tudo o que

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é impossível que exista ou venha a existir, sobre isso não há deliberação.

O auditório da fala judiciária é o tribunal, pois é um

discurso que serve como acusação ou defesa (REBOUL, 2004), isto é, os discursos judiciais ou são acusações ou defesas sobre coisas feitas no passado e visam a mostrar a justiça ou injustiça do que foi feito. Reale (1994) concorda com as afirmações anteriores dizendo que é próprio da retórica judiciária defender ou acusar, com referência a atos ou circunstâncias passadas, para demonstrar que não acontecem ou aconteceram contra o que foi estabelecido pela lei.

Nota-se que o fator tempo é algo a ser considerado por Aristóteles no que se refere aos gêneros do discurso. Nesse sentido, Reboul (2004, p. 45) explica:

O judiciário refere- se ao passado, pois são fatos passados que cumpre esclarecer, qualificar e julgar. O deliberativo refere-se ao futuro, pois inspira decisões e projetos. Finalmente, o epidíctico refere-se ao presente, pois o orador propõe-se à admiração dos espectadores, ainda que extraia argumentos do passado e do futuro.

A retórica epidítica ou celebrativa tem como fim

elogiar ou lastimar, em geral, fatos ou eventos presentes para convencer de que são dignos de louvor ou lástima (ARISTÓTELES apud REALE, 1994). Reboul (2004, p. 45) revela que o discurso “epidíctico censura e, na maioria das vezes, louva um homem ou uma categoria de homens, como os mortos na guerra, ora uma cidade, ora seres lendários, como Helena [...]”. Aristóteles (2005, I, 9, p. 125), por sua vez, expõe que, “para os que elogiam e censuram, o fim é o belo e o feio [...]” e continua:

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Pois bem, o belo é o que, sendo preferível por si mesmo, é digno de louvor; ou o que, sendo bom, é agradável porque é bom. E se isto é belo, então a virtude é necessariamente bela; pois, sendo boa, é digna de louvor. A virtude é, como parece, o poder de produzir e conservar os bens, a faculdade de prestar muitos e relevantes serviços de toda a sorte e em todos os casos. Os elementos da virtude são a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência e a sabedoria (ARISTÓTELES, 2005, I, 9, p. 125).

Com a utilização desses tipos de discurso, o orador

objetiva provocar a aderência do auditório; assim, a relação estabelecida entre ambos representa grande importância. A imagem que o auditório faz do orador resulta na credibilidade que lhe atribui, como também na confiabilidade à argumentação utilizada. Para tanto, os argumentos precisam ser selecionados em função do assunto e do auditório a quem são direcionados; por isso, o orador tem sempre que se adaptar ao seu auditório. Com base nisso, sucede-se que cada gênero apresentado deve contar com argumentações específicas, que partem de premissas de mesma natureza, tanto o discursador político e o judiciário quanto o que busca realizar discursos celebrativos.

Com o intuito de provocar a persuasão, entre os modos de argumentação, é apresentada uma série de tópicos argumentativos. Na subseção seguinte, são apresentados os tipos e a utilidade dos tópicos no discurso, também conhecidos como lugares, que têm a função de tornar mais claro o aspecto formal da retórica, bem como sua estrutura lógica.

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1.6 O USO DOS TÓPICOS OU LUGARES-COMUNS Os silogismos oratórios e dialéticos têm como

premissas, além dos sinais e das verossimilhanças, os tópicos ou os também chamados lugares-comuns. Reboul (2004) realiza a pergunta: como encontrar argumentos? Ao que responde: por lugares. Assim continua completando a resposta:

Esse termo é tão corrente quanto obscuro. Na dúvida, pode-se sempre traduzir ‘lugar’ por argumento. Mas lembremos que esse termo tem pelo menos três sentidos que exporemos por níveis de tecnicidade. No sentido mais antigo e mais simples, o lugar é um argumento pronto que o defensor pode colocar em determinado momento do seu discurso, muitas vezes depois de o ter aprendido de cor. Numa forma menos rígida, esses lugares são encontrados em toda retórica antiga [...] Em sentido mais técnico, o lugar já não é um argumento-tipo, é um tipo de argumento, um esquema que pode ganhar os conteúdos mais diversos (REBOUL, 2004, p. 51).

Aristóteles aconselha o uso dos lugares-comuns

em qualquer espécie de discurso. Os lugares do mais e do menos, por exemplo, são mais inclinados ao gênero deliberativo, mas também importantes para o judiciário, pois a partir deles o advogado intenta o aumento ou a diminuição da importância, do valor e do crédito dos meios de prova; assim, tenta alargar as provas e argumentos que lhe forem favoráveis, ao passo que busca reduzir os que lhe forem contrários à tese defendida.

Outro tópico é o do mais e o do menos; por exemplo: ‘se nem os deuses sabem tudo, menos ainda os homens’. O que equivale a dizer: ‘se de facto uma afirmação não se aplica ao que seria mais aplicável, é óbvio que também não se aplica ao que seria menos’. O

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argumento, ‘uma pessoa que bate nos vizinhos, também bate no pai’, assenta no raciocínio seguinte: ‘se há o menos, também há o mais’, visto que se bate sempre menos nos pais do que nos vizinhos. Ou então empregam-se um e outro argumento desta forma: ‘se uma afirmação se aplica ao que é mais, não se aplica’, ‘se ao que é menos, aplica-se’, conforme seja preciso demonstrar o que é e o que não é (ARISTÓTELES, 2005, II, 23, p. 218).

O orador precisa de mostrar que uma coisa é mais ou menos importante, mais ou menos vantajosa, da mesma maneira que precisará de mostrar que ela é possível ou impossível (ALEXANDRE, in Aristóteles [384-322 a. C.], 2005, p. 39). Reboul (2004, p. 52) esclarece que o lugar do mais

e do menos é extremamente verossímil, longe de ser evidente, pois “toda verossimilhança, pode ser contestada”. Assim sendo, seria incontestável se fosse aplicado a realidades homogêneas, como, por exemplo, o dinheiro: quem consegue emprestar mil reais, poderia ter emprestado somente cem. Entretanto, tal definição, ao ser aplicada a casos heterogêneos, deixa de ser evidente. O autor menciona o exemplo dos saberes e dos poderes dizendo: “Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de quem sabe mais; o mesmo para o poder: uma enfermeira pode coisas que o médico não pode, etc. Quem pode o mais, não pode necessariamente o menos” (p. 52).

Classicamente, dá-se a esses lugares o nome de “lugares-comuns”, pois se aplicam a toda espécie de argumentação; no caso atual, não passam de opinião banal expressa de modo estereotipado, enquanto o lugar clássico é um esquema de argumento que se aplica aos dados mais diversos. Tecnicamente, opõem-se ao lugar próprio, sendo um tipo de argumento particular de um gênero do discurso (REBOUL, 2004).

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Reboul (2004, p. 53) afirma a tecnicidade do terceiro “lugar”: “O lugar não é um argumento-tipo nem um tipo de argumento, mas uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-argumentos [...]”. Assevera também que esse caso é muito encontrado “num lugar próprio do gênero judiciário, o do estado da causa (stasis, status)” (p. 53). Supondo que alguém seja acionado por um delito,

[...] a acusação e a defesa vão propor-se as mesmas perguntas, que a antiga retórica sintetiza em quatro: 1. Estado de conjectura: ele matou realmente? 2. Estado de definição: trata-se de crime premeditado, não premeditado, de homicídio involuntário? 3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido o crime voluntário, quais são as circunstâncias que podem acusar ou escusar o réu: motivo patriótico, religioso? 4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se o tribunal é realmente competente, se a instrução foi suficiente, etc. Finalmente, lugar é tudo o que possibilita ou facilita a invenção, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invenção deixa de sê-lo à medida que se torna fácil! (REBOUL, 2004, p. 54). Aristóteles, ao verificar que a disposição da

conduta e do caráter torna-se fundamental à retórica, busca raciocinar sob quais condições é possível que esta promova a justiça, como também a verdade, uma vez que é justamente para defendê-las que consiste a sua utilidade.

Uma das grandes contribuições de Aristóteles para a filosofia do direito foi a elaboração de uma noção de justiça que, discriminando os sentidos do conceito, traçou linhas mestras que perduram até hoje (REALE, 1997). Da mesma forma que Platão, concebeu a justiça como virtude total ou virtude perfeita e injustiça como um vício absoluto.

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1.7 O PROBLEMA DA JUSTIÇA O termo ‘justiça’, de modo geral, diz respeito à

igualdade de todos os indivíduos em uma sociedade, sendo o princípio fundamental de um acordo que mantém a ordem social por meio da garantia dos direitos em sua forma legal, ou seja, pela constitucionalidade das leis ou seu emprego a casos específicos da sociedade, como, por exemplo, os litígios.

A retórica aristotélica torna-se uma análise das possibilidades de justiça, na medida em que analisa essencialmente as virtudes do discursador e as paixões dos ouvintes, de que o orador precisa ter ciência se almeja que seu discurso seja direcionado à justiça. O filósofo distingue a justiça em duas importantes classes: a universal e a particular. Ele disserta:

Entendamos por cometer injustiça causar dano voluntariamente em violação da lei. Ora a lei ou é particular ou comum. Chamo particular à lei escrita pela qual se rege cada cidade; e comuns, às leis não escritas, sobre as quais parece haver um acordo unânime entre todos. As pessoas agem voluntariamente quando sabem o que fazem, e não são forçadas. Ora os actos voluntários nem sempre se fazem premeditadamente; mas todos os actos premeditados se fazem com conhecimento, pois ninguém ignora o que decide fazer (ARISTÓTELES, 2005, I, 10, p. 130).

O que age com justiça, portanto, é aquele que,

como Sócrates, no diálogo platônico Críton, vive conforme a lei. Nesse sentido, abarca as demais virtudes, pois o que a lei determina é o cumprimento de todas as virtudes éticas particulares. Chama-se justiça particular o hábito que realiza a igualdade, a imputação a cada um do que lhe é devido. Dessa maneira, a justiça aproxima-se das demais virtudes, pois admitir a igualdade implica, quando preciso, agir com bravura ou com prudência etc.

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Sobre isso, salienta Aristóteles (2005, I, 13, p. 144): Distingamos agora todos os actos de injustiça e de justiça, começando por observar que o que é justo e injusto foi já definido de duas maneiras em relação a dois tipos de leis e a duas classes de pessoas. Chamo lei tanto à que é particular como à que é comum. É lei particular a que foi definida por cada povo em relação a si mesmo, quer seja escrita ou não escrita; e comum, a que é segundo a natureza. Pois há na natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos de algum modo adivinham mesmo que não haja entre si comunicação ou acordo.

A justiça particular divide-se em duas: a justiça

distributiva e a justiça corretiva. A justiça distributiva é a mais essencial, pois responsável pela conservação da ordem e da harmonia da pólis grega. Implica conferir a cada um o que lhe é merecido, visando à sua excelência, seu valor para a sociedade, e tem por finalidade fundamental a repartição de bens e honras da comunidade, observando para que cada um do grupo perceba o proveito adequado a seus méritos; por fim, significa a realização da justiça segundo um critério de igualdade geométrica.

Igualdade, distribuição e, consequentemente, o meio-termo, ou seja, o justo, sendo correlato de igualdade, é um equilíbrio entre o mais e o menos, isto é, o justo é, desse modo, um meio-termo. Essa igualdade é o ponto intermediário entre os tipos de ação em que existe o mais e entre os tipos de ação em que há o menos, ou seja, entre as ações díspares. “Se, pois, o injusto é desigual, o justo é igual [...] E, como o igual é um ponto intermediário, o justo será um meio-termo (ARISTÓTELES, 2011, V, 3, 1131a).

Já a justiça corretiva, também designada justiça comutativa, nasce do contato entre um indivíduo e outro, que pode ocorrer voluntária ou involuntariamente, e tem

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como finalidade restaurar o equilíbrio por um meio-termo entre a perda e o ganho. Assim como a justiça distributiva, é igualitária e busca um meio-termo, mas não com a mesma espécie de proporção.

Diferentemente da justiça distributiva, que se caracteriza por uma proporção geométrica, a justiça corretiva realiza-se por uma proporção numérica, ou seja, não trata das relações das pessoas com a comunidade, mas daquelas ocorridas entre os próprios membros do grupo, como, por exemplo, as de troca de coisas ou recursos. “A justiça nas transações entre um homem e outro é efetivamente uma espécie de igualdade, e a injustiça uma espécie de desigualdade; não de acordo com essa espécie de proporção, todavia, mas de acordo com uma proporção aritmética” (ARISTÓTELES, 2011, V, 4, 1132a).

Em relação às pessoas, a justiça é definida de duas maneiras; pois o que se deve fazer e não deve fazer é definido, querem relação à comunidade quer em relação a um dos seus membros. Por conseguinte, é possível cometer a injustiça e praticar a justiça de duas maneiras, pois ela pratica-se em relação a um determinado indivíduo ou em relação à comunidade; porque o que comete adultério ou fere alguém comete injustiça contra um dos indivíduos, mas o que não cumpre os seus deveres militares comete-o contra a comunidade (ARISTÓTELES, 2011, V, 4, 1132a).

Assim, Aristóteles demonstra o caráter comunitário

e individual da justiça, mas, com relação ao sistema de leis, afirma que o “justo” tem dois sentidos: aquele que age conforme a lei age justamente e o injusto seria o que não observa as prescrições legais. Essa significação é mais apropriada ao se tratar uma ação, pois a outra forma diz respeito ao sujeito, quando este consegue ser neutro nas suas ações; neste caso, essa ideia de justiça identifica-se com a ideia de igualdade. Da mesma forma, esses

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conceitos podem ser empregados às autoridades, quando estas são obrigadas a seguir a lei ao realizar um julgamento tratando os iguais como iguais. Sobre isso, completa:

Se, pois, não é possível uma definição exacta, mas a legislação é necessária, a lei deve ser expressa em termos gerais; de modo que se uma pessoa não tem mais que um anel no dedo quando levanta a mão ou fere outra, segundo a lei escrita é culpada e comete injustiça, mas segundo a verdade não a comete, e é isso que é equidade. Ora, se a equidade é o que acabamos de dizer, é fácil de ver quais são os actos equitativos e quais o não são, e quais as pessoas que não são equitativas. Os actos que devem ser perdoados são próprios da equidade, e é equitativo não julgar dignos de igual tratamento os erros e os delitos, nem as desgraças (ARISTÓTELES, 2005, I, 13, p. 146).

Assim, tanto lei justa quanto a injusta seguem

sempre uma lei, respeitando o ideal de justiça de forma legal, ou seja, observando a igualdade, eliminam ações discriminatórias, extinguindo privilégios ou tratamentos baixos. Um governante justo segue, então, os fundamentos da “distribuição equitativa” das vantagens e do correto e errado com as pessoas sob seu comando. Nesse diapasão, o indivíduo justo seria o que cumpre as leis e o injusto, o que a descumpre; a justiça fundamenta-se sob o ideal de igualdade e equidade, já a injustiça teria como base a ilegalidade e a desigualdade.

O justo e o injusto também podem ser expressos utilizando os discursos oratórios, mas necessitam de regras e arranjos para que o discurso seja satisfatório. Destarte, o estilo e a composição da fala são fundamentais para uma adequada comunicação, além da sistematização das partes do discurso, resultando na facilitação do entendimento acerca do conteúdo abordado.

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1.8 ESTILO, COMPOSIÇÃO E PARTES DO DISCURSO A elaboração do discurso e sua apresentação

diante de um público requerem a observância de vários aspectos que se complementam. A elocução, por exemplo, encontra-se na terceira parte de Retórica (ARISTÓTELES, 2005) e aborda a língua e o estilo. Em sentido técnico, é a redação do discurso. “A elocução é, pois, o ponto em que a retórica encontra a literatura. Todavia, antes de ser uma questão de estilo, diz respeito à língua como tal. Para os antigos, o primeiro problema da elocução é o da correção linguística” (REBOUL, 2004, p. 61). Nesse sentido, Reboul (2004, p. 61) faz uma retomada do tratamento que era dado aos estilos na filosofia grega:

A retórica foi a primeira prosa literária e durante muito tempo permaneceu como a única; por isso, precisou distinguir-se da poesia e encontrar suas próprias normas. Por quê? Afinal, um discurso poético pode ser perfeitamente convincente. Só que a poesia grega utilizava língua arcaizante, bastante esotérica, e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portanto, era preciso recorrer à prosa, mas uma prosa digna de rivalizar com a poesia. Em suma, entre o hermetismo dos poetas e o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa oratória devia encontrar suas próprias regras.

Observa-se que essas normas fazem referência à

organização e à capacidade de comunicação que possui o discurso. Sobre esse ponto, Aristóteles (2005) disserta que, se o discurso da prosa não transmitir algo com clareza, não chegará ao seu objetivo. Assim, pensa que tal discurso não precisa ser nem rasteiro, nem acima do seu valor, mas, sim, apropriado:

[...] o afastamento do sentido corrente faz um discurso parecer mais solene. Na verdade, as pessoas sentem perante falantes estrangeiros e concidadãos o mesmo

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que com a expressão enunciativa. É necessário, portanto, produzir uma linguagem não familiar, pois as pessoas admiram o que é afastado, e aquilo que provoca admiração é coisa agradável. Na poesia este efeito é produzido por muitos elementos, e é sobretudo aí que tais palavras são ajustadas, pois esta está mais afastada dos assuntos e das personagens de que o discurso trata. Na prosa, porém, tais recursos são menores, pois o tema é menos elevado, [...] o que é apropriado pode ser obtido igualmente quer concentrando quer ampliando. É por isto que os autores, ao comporem, devem fazer passar despercebido e não mostrar claramente que falam com artificialidade, mas sim com naturalidade, pois este último modo resulta persuasivo, o anterior, o oposto (ARISTÓTELES, 2005, III, 2, p. 245).

As normas na prosa oratória referem-se à escolha

das palavras e à construção de frases, o que produz um discurso ao mesmo tempo correto e bonito (REBOUL, 2004). Para distinguir a prosa oratória da poesia da prosa vulgar, é necessário realizar uma seleção adequada das palavras, a fim de evitar tanto arcaísmos quanto neologismos; dessa forma, utilizam-se metáforas e outras figuras, desde que sejam claras, ao contrário das figuras empregadas pelos poetas (REBOUL, 2004). Sobre isso, expõe Aristóteles (2005, III, 2, p. 246):

Dos nomes e dos verbos de que o discurso é composto (sendo os tipos de nomes aqueles que foram já examinados na Poética), devem utilizar-se, pouquíssimas vezes e em número reduzido de situações, palavras raras, termos compostos e neologismos [...]. Só o termo ‘próprio’ e ‘apropriado’ e a metáfora são valiosos no estilo da prosa. Sinal disto é que são só estes que todos utilizam. Na verdade, todos falam por meio de metáforas e de palavras no seu sentido ‘próprio’ e ‘apropriado’, o que deste modo demonstra que, se se compõe correctamente, o texto resultará algo de não familiar, mas, ao mesmo tempo,

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será possível dissimulá-lo e resultar claro. Esta, disse, é a maior virtude do discurso retórico. Por seu turno, as palavras úteis para o sofista são as homónimas (pois é por meio destas que ele perfaz a sua má acção), para os poetas, os sinónimos. Por palavras em sentido ‘próprio’ e sinónimas refiro-me, por exemplo, a ‘ir’ e ‘andar’; pois ambas são empregues em sentido ‘próprio’ e são sinónimas uma da outra.

A prosa retórica deve ter ritmo e não ser métrica,

pois a fala ritmada é mais agradável, porque organiza as palavras conforme a estrutura; outrossim, cada gênero literário tem seu próprio ritmo e, como afirma Reboul (2004), evitava-se, sobretudo, qualquer frase métrica, como os versos dos poetas. O ritmo era flexível e sempre a serviço do sentido. Também nessa direção, Aristóteles (2005, III, 8, p. 259) afirma:

A forma de expressão não deve ser nem métrica nem desprovida de ritmo. De facto, a primeira não é persuasiva, pois parece artificial, e, ao mesmo tempo, desvia a atenção do ouvinte, pois fá-lo prestar atenção a elemento idêntico, quando a este regressar.

O filósofo aconselha certa prudência no emprego

adequado da língua e aponta cinco normas direcionadas à correção gramatical:

emprego correcto das partículas, rigor no uso das palavras, omissão de termos ambíguos, uso correcto do género, uso correcto do número. Todas estas normas visam a clareza da linguagem, a recta observância das regras gramaticais e das convenções da língua (ALEXANDRE, in Aristóteles [384-322 a. C.], 2005, p. 46).

A construção da frase é outra questão pontuada

por Aristóteles, tendo sido desenvolvido um conceito de período. Alexandre (In Aristóteles [384-322 a. C.], 2005, p.

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47) explica que período é “um todo estruturado, uma frase com princípio e fim em si mesmos e com uma extensão facilmente adaptável à capacidade respiratória”. Por sua vez, os elementos da frase se “inter-relacionam para tornar o discurso mais inteligível e mais agradável ao ouvido; um todo estruturado em que a tensão gerada no princípio se resolve no fim” (p. 47).

Em relação aos elementos, para Aristóteles (2005, III, 4, p. 252), o símile funciona como um formato ampliado da metáfora:

O símile é também uma metáfora. A diferença, na verdade, é pequena: sempre que se diz ‘lançou- se como um leão’, é um símile; mas quando se diz ‘ele lançou um leão’, é uma metáfora. Pois, devido ao facto de ambos serem valorosos, transferindo-se o sentido, chamou-se ‘leão’ a Aquiles. O símile é útil na prosa, embora poucas vezes, pois é um elemento poético. Além disso, deve ser utilizado como as metáforas, pois no fundo não passa de metáfora, diferenciando-se no que foi dito.

O filósofo, a respeito das formas de metáfora,

salienta que são meios eficazes tanto na prosa quanto na poesia. Sucede que no discurso da prosa é preciso ser cauteloso com relação a esses elementos, pois a prosa possui menos recursos que a poesia (ARISTÓTELES, 2005). Segundo ele, a metáfora possui clareza, agradabilidade e exotismo:

Se tu desejares enaltecer o assunto, usa uma metáfora retirada das de maior valor dentro do mesmo género; mas se desejares censurar, uma retirada das de menor valor. Quero dizer, por exemplo, afirmar-se que uma pessoa que mendiga ‘suplica’ e uma que suplica ‘mendiga’, porque são coisas contrárias dentro do mesmo género, visto que ambas são formas de ‘pedir’, perfaz o que foi dito. [...] Do mesmo modo, aqueles que chamamos ‘aduladores de Dionísio’ denominam-se a si

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próprios ‘artistas’ [...]; agora, até os salteadores se chamam a si próprios ‘homens de negócios’, e por isso é que é lícito dizer que aquele que praticou um delito cometeu um erro e que aquele que cometeu um erro praticou um delito, e daquele que roubou afirmar quer que ‘tomou’, quer que ‘arranjou’ (ARISTÓTELES, 2005, III, 2, p. 247).

Para que o emprego da metáfora no discurso tenha

êxito, é preciso relacioná-la a sentidos próximos, por meio de bons enigmas, e, também, que decorra de coisas belas. Pode-se constatar sua afirmação na passagem seguinte:

É ainda necessário usar metáforas provindas não de coisas muito afastadas, mas de coisas semelhantes e do mesmo género e da mesma espécie da do termo usado, designando assim algo que não tem designação, de forma que seja evidente que estão relacionadas. Por exemplo, no renomado enigma: eu vi um homem colar a fogo bronze a um homem. Efectivamente, este procedimento não possui designação, mas ambos são um tipo de aplicação (denomina-se ‘colagem’ a aplicação da ventosa. Ora, metáforas implicam enigmas e, por conseguinte, é evidente que são bons métodos de transposição. Por outro lado, devem provir de coisas belas. Beleza verbal, como Licímnio diz, reside no som e no significado; e outro tanto se passa com a fealdade. [...] Daqui é que se devem tirar as metáforas: de coisas belas quer em som, quer em efeito, quer em poder de visualização, quer numa outra qualquer forma de percepção. Não é a mesma coisa dizer, por exemplo, ‘aurora de dedos de rosa’ ou ‘de dedos de púrpura’, ou ainda, de forma mais pobre, ‘de dedos rubros’ (ARISTÓTELES, 2005, III, 2, p. 248, grifo do autor).

Para Reboul (2004), a metáfora em si é um

argumento, pois condensa uma analogia. No entanto, continua indagando:

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Mas nesse caso ela não é menos convincente do que seria a própria analogia? De modo mais geral, essa teoria da metáfora não será redutora, como acha Paul Ricoeur, por esvaziar tudo o que a metáfora comporta de poesia, de invenção? A essas duas perguntas pode-se responder que a metáfora não é menos convincente, porém mais que a analogia, precisamente pela mistura que opera entre foro e tema, tornando perceptível a união dos termos heterogêneos (REBOUL, 2004, p. 187).

Novamente, Aristóteles (2005, III, 11, p. 271)

qualifica a metáfora como um dos principais subsídios responsáveis pela elegância do discurso retórico:

A maioria das expressões ‘elegantes’ deriva da metáfora e radica no engano prévio do ouvinte. Pois torna-se mais evidente que se aprende algo se os elementos resultam ao contrário do que se esperava; e o espírito parece dizer: ‘como é verdade, e eu estava enganado!’ As expressões ‘elegantes’ dos apotegmas, por seu turno, assentam no facto de exprimirem o que não dizem. Por exemplo, quando Estesícoro diz que ‘as cigarras cantarão no chão para elas próprias’. E pela mesma razão são agradáveis tanto os bons enigmas (pois neles há um ensinamento e uma metáfora), como dizer ‘coisas inesperadas’, como designou Teodoro.

Por fim, complementa Reboul (2004, p. 62): A retórica criou uma estética da prosa, uma estética puramente funcional, da qual tudo o que é inútil é excluído, em que o mínimo efeito de estilo se justifica pela exigência de persuadir, em que qualquer artifício gratuito engendra preciosismo ou vulgaridade.

No decorrer do processo de sistematização da

retórica, são demonstradas as regras gerais a ser empregadas nos discursos persuasivos, visto que todo discurso tem uma ordem determinada, um plano, que é

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imprescindível. São basicamente quatro etapas: o exórdio (preâmbulo ou proêmio), a narração (exposição), a prova (persuasão ou confirmação) e o epílogo (peroração).

Ao considerar essa divisão, Aristóteles (2005) reconhece que, em alguns casos, o discurso pode ter que se dividir nas quatro partes mencionadas, mas as duas verdadeiramente necessárias são a narração e a prova. Acrescenta dizendo que, “destas duas partes do discurso, uma é a exposição, outra são as provas, tal como se se fizesse a distinção de que uma coisa é o problema, outra a sua demonstração” (III, 13, p. 278). A refutação dos elementos do oponente pertence às provas e a refutação por comparação é uma amplificação delas, de forma que também faz parte das provas, pois aquele que a formula procura a demonstração de algo. Contudo, este não é o caso nem do proêmio, nem do epílogo, que têm como função apenas rememorar.

O exórdio é a parte que inicia o discurso e sua função é essencialmente fática: torna o auditório dócil, atento e benevolente (REBOUL, 2004). Por dócil entende-se a disposição daquele que assimila muito bem uma orientação, que obedece sem oferecer relutância. Sobre isso, explica Aristóteles (2005, III, 14, 282):

Os elementos que se relacionam com o auditório consistem em obter sua benevolência, suscitar a sua cólera, e, por vezes, atrair a sua atenção ou o contrário. Na realidade, nem sempre é conveniente pôr o auditório atento, razão pela qual muitos oradores tenham levá-lo a rir. Todos estes recursos, se se quiser, levam a uma boa compreensão e a apresentar o orador como um homem respeitável, pois a este os auditores representam mais atenção. São também mais atentos a temas importantes, a coisas que lhes digam respeito, às que os encham de espanto, às agradáveis. E por isso é que é necessário introduzir a ideia de que o discurso é acerca de coisas deste género. Porém, se a intenção é a de que os auditores não sejam atentos, deverá dizer-

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se que o assunto não é importante, que não lhes diz respeito, que é penoso.

Entretanto, o filósofo afirma que o deliberativo

quase não precisa do exórdio, pois o auditório já sabe do que se trata. Já no epidítico, o exórdio consiste em fazer o auditório sentir que está pessoalmente implicado no que se vai dizer, ou seja, em incluí-lo no fato (REBOUL, 2004).

Nos discursos epidícticos, é necessário fazer o ouvinte pensar que partilha do elogio, ou ele próprio ou sua família, ou o seu modo de vida, ou pelo menos algo deste tipo. Pois é verdade o que Sócrates afirma no seu discurso fúnebre: que não é difícil ‘louvar os Atenienses diante dos Atenienses, mas sim diante dos Lacedemónios’ (ARISTÓTELES, 2005, III, 14, p. 283).

Segundo Alexandre (in Aristóteles [384-322 a. C.],

2005, p. 49), o objetivo do exórdio consiste na elucidação da finalidade do discurso: “Tem por função tornar claro esse objetivo, preparando os ouvintes para a narração e a prova”.

Após a apresentação do exórdio, tem-se o segundo elemento do discurso, sobretudo no gênero judicial, que é a exposição dos fatos atinentes à causa. Na narração, os eventos são expostos aparentemente de forma objetiva, conforme as necessidades da defesa e da acusação. Este é momento em que se expõe o assunto, embasando-o por meio da demonstração da tese. Na verdade, esse modo de exibir os fatos já constitui um argumento (REBOUL, 2004), porém, se não for objetivo, deverá aparecer. Assim, como na narração o logos supera o ethos e o pathos, para ser eficaz essa exposição deve ter três qualidades: clareza, brevidade e credibilidade (REBOUL, 2004).

Hoje em dia, diz-se de forma ridícula que a narração deve ser rápida. E, contudo, isto é como aquela do padeiro que perguntava se deveria fazer massa de consistência dura ou macia; ‘o quê’, replicou-lhe alguém,

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‘não é possível fazê-la bem?’. E aqui é o mesmo. Efectivamente, é preciso que se componham narrações não de grandes dimensões, tal como não se devem elaborar proémios nem provas muito extensas. Pois também aqui o melhor não é a rapidez ou a concisão, mas sim a justa medida. Isto significa falar tanto quanto aquilo de que o assunto necessita para ficar claro, ou tanto quanto permita supor que algo sucedeu ou que dele resultou algum prejuízo ou injustiça, ou que os assuntos são da importância que se quer demonstrar; o adversário, por seu turno, deve contrapor as razões opostas (ARISTÓTELES, 2005, III, 16, p. 286-287).

Reboul (2004, p. 57) salienta que, no gênero

deliberativo, a narração, na concepção de Aristóteles, “quase não tem razão de ser, pois esse discurso trata do futuro; no máximo, pode fornecer exemplos”. De forma antagônica, no gênero epidítico, “é tão importante que há interesse em dividi-la segundo as questões: os fatos que ilustram a coragem, os que ilustram generosidade, etc.” (p. 57).

No género deliberativo, a narração é menos importante, porque ninguém elabora uma narração sobre factos futuros. Mas se por acaso houver narração, que seja sobre acontecimentos passados de forma que, sendo recordados, se delibere melhor sobre os futuros, quer se critique quer se elogie. Porém, o orador nesse caso não perfaz a função de m orador do gênero deliberativo. Se o facto narrado não for crível, é necessário prometer que as razões serão ditas de imediato, e que serão tomadas as medidas que mais se desejarem [...] (ARISTÓTELES, 2005, III, 16, p. 289).

Após a exposição do tema, para sustentar o

desenvolvimento da tese, é realizada a apresentação do conjunto de provas (ou confirmação), a fim de demonstrar a veracidade das proposições ou a realidade do fato alegado. No gênero judiciário, é a sua parte argumentativa

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que comumente vem acompanhada de uma refutação, com o intuito de anular os argumentos adversários.

Aristóteles (2005, III, 17, p. 290) discorre sobre a prova nos três gêneros de discurso – o epidítico, o deliberativo e o judiciário:

No discurso epidíctico, a amplificação deve ser empregue para provar que os factos são belos e úteis, pois tais factos têm de ser dignos de crédito. É por isso que poucas vezes requerem demonstração, a não ser que não sejam dignos de crédito ou que outro tenha a responsabilidade. No discurso deliberativo, poder-se-á discutir se o que se recomenda não terá conseqüências, ou o que ocorrerá, mas que não será justo nem vantajoso nem de tamanha importância. É preciso também observar se, exterior ao assunto, se diz algo de falso, pois isto revelar-se-ia um argumento irrefutável de que se pronunciam falsidades sobre todo o resto. Exemplificação é o que é mais apropriado ao discurso deliberativo, entimema ao discurso judiciário. Efectivamente, um concerne ao futuro, de forma que é forçoso narrar exemplos de acontecimentos passados; o outro, por seu lado, relaciona-se com factos que são ou não são, onde é mais necessária a demonstração, pois os factos do passado implicam um tipo de necessidade.

Enfim, o fim do discurso é denominado epílogo ou

peroração, em que acontece o resumo dos pontos mais importantes. “Note-se, enfim, que a peroração é o momento por excelência em que a afetividade se une à argumentação, o que constitui a alma da retórica” (REBOUL, 2004, p. 60).

Aristóteles (2005, III, 19, p. 296) afirma que “o epílogo é composto por quatro elementos: tornar o ouvinte favorável para o orador e desfavorável para a do adversário; amplificar ou minimizar; dispor o ouvinte para um comportamento emocional; recapitular”. Segundo ele, “após ter-se mostrado que se diz a verdade e o adversário

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a falsidade, faça-se um elogio ou uma censura, e finalmente sublinhe-se de novo o assunto” (ibidem).

O filósofo também explica que, no epílogo, é necessário observar duas situações: revelar-se como homem de bem diante dos ouvintes e apresentar o adversário como perverso. Seguidamente, assinala a importância da amplificação ou da minimização do que é demonstrado, de acordo com sua natureza (ARISTÓTELES, 2005) – como exemplo de amplificação, tem-se: se o acusador tiver mostrado a realidade de um crime, procurará insistir, ressaltando a sua gravidade (REBOUL, 2004). Esclarecidas as qualidades, como também as dimensões dos fatos, convém incitar no ouvinte comportamentos emocionais, que são, segundo Aristóteles (2005), a compaixão, a indignação, a ira, o ódio, a inveja, a rivalidade e o sentimento de discórdia.

Por derradeiro, para que o entendimento das ideias seja eficaz, indica-se que sejam realizadas muitas repetições. Se no proêmio é conveniente que se exponha o assunto de forma que a temática em questão não passe despercebida, no epílogo basta recapitular as passagens importantes do que foi exposto, contando que se cumpriu o que foi prometido. Assim, resta comparar os próprios argumentos com os do adversário, utilizando, para isso, artifícios como a ironia e a interrogação.

A esse respeito, Aristóteles (2005, III, 19, p. 297) afirma:

Pode-se concluir deste modo por comparação, ou segundo a ordem natural dos argumentos, tal como se disse, e depois, se se quiser, tratar separadamente os do discurso adversário. Como conclusão, é ajustada a expressão assindética, para que seja realmente epílogo e não discurso.

Ainda que a retórica aristotélica tenha sido

imaginada com o ideal voltado para a ética e a sabedoria, o seu desenvolvimento nos séculos seguintes não foi

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favorável à sua aceitação nas práticas sociais. De fato, até o século XIX, ela se conservou nos currículos escolares, mas acabou cedendo à investida ativa de duas correntes do pensamento, quais sejam: o Romantismo e o Positivismo Cientificista. O Positivismo, por seu turno, eliminou de seu ideal de constituição de uma ciência da linguagem todo um conjunto de elementos valorativos e emotivos, até então consagrados na tradição dos procedimentos retóricos.

Nesse período, a retórica ficou esquecida e, somente no século XX, paralelamente aos estudos da filosofia da linguagem e da filosofia dos valores, filósofos e estudiosos começaram a apreciá-la como um artifício merecedor de investigação, seja sobre sua forma, seja sobre sua aparência, como recurso de persuasão. Chaïm Perelman, filósofo de origem polonesa radicado na Bélgica, foi um desses autores e, em sua obra mais conhecida, Tratado da argumentação: a nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), demonstra um novo caminho para o movimento retórico, apontando o diálogo como uma opção substitutiva à violência.

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A retórica de Chaïm Perelman 53

- II -

A RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN Na busca pelo resgate da retórica, Perelman

dedica a primeira parte de sua obra Tratado da argumentação: a nova retórica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005) para a abordagem sobre os elementos que devem estar presentes no discurso, dando ênfase aos sujeitos, orador e auditório, sendo estes os elementos centrais da sua teoria (CAMARGO, 2003). De forma simples, o orador é aquele que argumenta, que apresenta o seu pensamento, e o auditório8 é todo aquele que, de determinada maneira, está sujeito aos argumentos expostos.

Dos conceitos de seu pensamento retórico presentes na obra supracitada, serão aqui apresentados: os domínios ou âmbitos da argumentação, seu ponto de partida e acordo, seus lugares, bem como a escolha, seleção e interpretação dos dados visando à argumentação.

2.1 OS ÂMBITOS DA ARGUMENTAÇÃO Para bem apresentar os atributos particulares da

argumentação e os problemas inerentes a seu estudo, nada como contrapô-la à concepção clássica da demonstração e, de maneira especial, à lógica formal que se restringe à análise dos elementos de prova demonstrativos.

Sobre a demonstração,9 expõe Perelman que,

8 O conceito de auditório será apresentado na subseção 3.1.2, a seguir. 9 Aristóteles (1973, p. 40 - 43) expõe no comentário à segunda aporia da obra Metafísica: “Entendo por princípios de demonstração as

opiniões comuns sobre as quais todos os homens se baseiam para

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A retórica de Chaïm Perelman 54

quando se trata de demonstrar uma proposição, basta indicar mediante quais procedimentos ela pode ser obtida como última expressão de uma sequência dedutiva, cujos primeiros elementos são fornecidos por quem construiu o sistema axiomático dentro do qual se efetua a demonstração (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 16).

Na lógica moderna, proveniente de uma reflexão

sobre o juízo matemático, os sistemas formais já não são correlacionados com uma evidência racional qualquer. O lógico é livre para elaborar como lhe aprouver a linguagem artificial do sistema que constrói, para determinar os signos e combinações de signos que poderão ser utilizados (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Entretanto, quando se deseja influenciar por meio do discurso a intensidade de adesão de um auditório, não se podem menosprezar completamente suas condições psíquicas e sociais, considerando-as irrelevantes, pois, sendo assim, a argumentação ficaria sem objeto ou sem efeito.

Perelman evidencia a dificuldade de descrever o auditório para quem se vai falar, pois existe em grande número e “está longe de abranger, para cada qual, todos os seres humanos [...] com efeito, para argumentar é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 18). Para persuadir um auditório heterogêneo, devem-se empregar argumentos múltiplos, pois o orador deve adaptar-se a ele, partindo do pressuposto de que a retórica busca o raciocínio sistemático e muitos auditórios podem não se identificar com tal característica. No entanto, para os

demonstrar, por exemplo, que toda coisa deve necessariamente ser afirmada ou negada, e que é impossível que uma coisa seja e não seja, ao mesmo tempo, e todas as demais premissas deste teor”.

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autores existe uma distinção entre a persuasão e o convencimento: “Uma argumentação persuasiva é aquela dirigida a somente um auditório particular e convincente, a argumentação cuja função seria a de obter a adesão de todo ser racional” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 31).

O filósofo desenvolve termos novos no estudo da argumentação, como “contato dos espíritos”, que visa à “adesão dos espíritos”. Num primeiro momento, considera-se que essa adesão nada mais é do que o apoio do interlocutor às ideias defendidas em um discurso, seja ele oral ou escrito.

2.1.1 A comunidade dos espíritos

Na obra Tratado da argumentação: a nova retórica

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), Perelman atribui à argumentação a tarefa de provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes são apresentadas. O sentido do estudo da argumentação é superado quando é exposto o conceito de formação de uma comunidade a quem ela se destina. O filósofo, então, informa as condições para a formação de uma comunidade efetiva dos espíritos, demonstrando que:

três elementos tornam-se fundamentais: primeiro que haja uma linguagem de uso comum entre discursador e auditório; segundo, que haja apreço por parte do orador pela adesão do auditório e, terceiro, a disposição para ouvir de quem se destina a argumentação. Contudo, chegar a esses três fatores é um procedimento complexo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 17).

Na comunidade dos espíritos, para que a

argumentação de fato aconteça, necessita-se que seus membros compartilhem de uma linguagem comum, apresentando-se como um princípio indispensável ao

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procedimento argumentativo, ou seja, uma técnica que permite a comunicação. Destaca-se que somente dispor da apreciação do auditório não significa partilhar da mesma linguagem e do mesmo princípio de crenças de todos os membros ou preparar algo interessante para falar e que o orador julga ser do mesmo interesse do auditório.

A sintonia na linguagem é necessária, porém mais importante ainda é entrar em contato com os espíritos para que se constitua a formação da comunidade, possibilitando posteriormente o início de um diálogo. Nesse sentido, Perelman observa que, na sociedade em que estamos inseridos, a existência de regras e hierarquias estabelecidas a partir de acordos prévios resultantes do convívio social garantiria as condições necessárias para uma conversa ser desenvolvida, mas sem garantias de que os integrantes do auditório estarão dispostos a ouvir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

É possível perceber a necessidade de sintonia na linguagem e contato com os espíritos na passagem em que Perelman utiliza a estória de Alice para explicitar a importância da disposição dos ouvintes para se entabular um diálogo. Quando Alice por acidente visita o País das Maravilhas, domina a mesma linguagem dos seus habitantes, dispõe de vontade de conversar, mas para seus interlocutores não existem pretextos para conversarem, devido à inexistência de regras, hierarquias ou quaisquer costumes que façam com que alguém deva responder ao ser interpelado. Assim, observa-se que não há o desejo de ouvir Alice ou de interrogá-la, de modo que ela incorpora o orador sem público, por ser uma coisa desinteressante ao ouvinte e, mais ainda, por não possuir prestígio junto àquelas pessoas com quem busca interagir (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). O filósofo, com isso, assinala outro componente importante para que aconteça a formação da comunidade. Trata-se da importância dada pelo interlocutor ao ouvinte: “Com efeito,

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para argumentar, é preciso ter consideração pela aderência do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação intelectual” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 18).

Existe outro fator na teoria de Perelman que se ratifica numa divisão de categorias de seres a quem o orador manifesta ou não a sua estima, como segue: a categoria dos seres que o orador deseja influenciar, a categoria dos seres com quem não se importa em dirigir a palavra, aqueles com quem não tem o interesse em debater e aqueles que o orador busca ordenar. Examinando a primeira categoria, nota-se que a argumentação implica um contato intelectual entre orador e os membros do auditório, induzindo-o a uma atitude de preocupação pelo envolvimento do ouvinte, pelo seu consentimento, pela sua aderência (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

Para o filósofo, relacionar-se e conviver estando inserido numa dada sociedade é uma forma de fazer parte de uma sociedade igualitária e de associar-se à categoria de pessoas que alguém poderá se interessar em persuadir. “Participar de um mesmo círculo, conviver, manter afinidades sociais, tudo isso facilita a realização das condições prévias para o contato dos espíritos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 19). A partir da condição da inserção em um mesmo meio, verifica-se a necessidade da comunicação, isto é, o orador e as pessoas integrantes do auditório precisam ter em comum o domínio de uma linguagem para que seja estabelecida a ação comunicativa, existindo também a necessidade de ambos demonstrarem interesse um pelo outro para que ela aconteça com efetividade.

Segundo Perelman, falar ou escrever não é o bastante ao se tratar de argumentação, ou seja, tomar a palavra e ser ouvido requer mais do que aptidão linguística; o conteúdo da argumentação deve ser algo de interesse dos interlocutores ou, ainda, estar autorizado

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pelo grupo, como, por exemplo, sendo o orador seu porta-voz (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Nesse sentido, escrever e ser lido vão muito além do reconhecimento como escritor, implicando, da mesma forma que na utilização da oratória, versar sobre algo admitido como importante e interessante por aquele a quem se destina a obra.

No último item do conjunto de relações, estar disponível a ouvir alguém ou negar essa oportunidade da fala subentende uma caracterização de disposição ou negação em aceitar possíveis pontos de vista. Sobre isso, o autor disserta:

Quando Churchill proibiu os diplomatas ingleses até de ouvirem as propostas de paz que os emissários alemães poderiam transmitir-lhes, ou quando um partido político avisa estar disposto a escutar as propostas que lhe poderia apresentar um formador de ministério, essas duas atitudes são significativas, porque impedem o estabelecimento ou reconhecem a existência das condições prévias para uma eventual argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 19).

Quando o orador coloca-se à disposição para ouvir

alguém, isso implica também estar disposto a aceitar os argumentos da outra parte, ao passo que negar a oportunidade da fala leva ao impedimento de qualquer tentativa de conversação, como no caso de Alice e os seres do País das Maravilhas.

Em outro momento, a qualificação para falar e ser ouvido dependerá de uma regulamentação ou de que se exerça uma função dentro do grupo ao qual se fala ou do auditório universal que lhe dê tal autorização, como é o caso de um político que fará um discurso. Em suma, a condição de ser lido e ouvido é ponto fundamental na visão de Perelman, pois é a partir dela que se estabelecem as bases para a realização de um diálogo. Ter a atenção de alguém, de uma audiência, ser admitido a fazer uso da

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palavra, revela certa admiração e respeito dos membros do auditório em relação à sua imagem.

Não há ao certo uma maneira segura de certificar-se de que o que o orador irá proferir corresponderá ao que o auditório deseja ouvir; portanto, isso deve ser presumido. Somente ao considerar essa identificação com o outro há condições para a formação da comunidade dos espíritos. Perelman (2004, p. 370), em sua obra Retóricas, expõe essa concepção de interesse mútuo:

A pessoa intervém a cada passo; com sua estabilidade, mas também com sua faculdade de escolha, com sua liberdade criadora, com os imprevistos do seu comportamento, com a precariedade de seus compromissos. A adesão da pessoa às teses que se lhe apresentam não é simples registro dos resultados conseguidos pela argumentação: as teses adotadas podem ser remanejadas, modificadas, a fim de ser harmonizadas com outras crenças; podem ser realizadas novas estruturações para permitir a adesão plena ao que é proposto.

Existe uma reciprocidade entre o orador e o ouvinte

numa argumentação, a qual induz à aceitação de uma tese, pois o objetivo é atingir os três pontos que possibilitam as condições para a ocorrência do diálogo, ou seja, onde o orador e os membros do auditório formam a comunidade dos espíritos, a saber: a linguagem comum entre discursador e auditório, o apreço por parte do orador pelo auditório e a disposição para ouvir o destinatário do discurso. A partir da condição de que para haver argumentação é necessária a existência da comunidade, verifica-se que é dentro dos limites desta que acontece o contato com o outro, pois “todo ato argumentativo busca a adesão dos espíritos e, por isso mesmo, implica a existência de um contato intelectual” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 16).

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O contato intelectual de que trata Perelman traduz-se nas condições de igualdade de participação e interesse dos sujeitos em agir na conversação, sendo estabelecidas relações de espíritos letrados, cultos, com as mesmas condições de compreensão. Não existindo esse contato, evidenciado pela participação dos sujeitos, ou sem a constituição da comunidade, a argumentação não tem efeito algum, tornando-se nula.

Na visão do filósofo, na ausência de um auditório e uma comunidade, não há diálogo; a existência unicamente de um lado do pêndulo não tem validade, havendo unicamente discursador, por exemplo. A argumentação é idealizada como uma ação: a de um orador sobre um ouvinte. Se, ao contrário, a ação ocorresse do ouvinte sobre o orador, a conversação não existiria, pois, não havendo ouvinte, não haveria espíritos dos quais o orador buscaria o assentimento, porque é sempre em função de um auditório que uma argumentação desenvolve-se e sem auditório não se concebe a comunidade.

Percebe-se, na teoria perelmiana, que é no campo da comunidade dos espíritos que as ações do orador e ouvintes/leitores são legitimadas; como decorrência, esse modelo ideal regula as demais comunidades, as crenças e valores presentes na obra de Perelman. No entanto, a comunidade dos espíritos decorre diretamente do auditório universal, ao passo que ela o legitima e, em consequência disso, representa toda e qualquer comunidade particular perelmiana, pois, nesse sentido, envolve uma situação ideal.

A importância de entender o conceito de “comunidade dos espíritos” justifica-se pelo fato de, em Perelman, a argumentação não ser apenas a descrição de um fato, mas se tornar prescritiva no sentido de as pessoas agirem tendo como referência o que foi estabelecido em comum acordo dentro do grupo, elevando, assim, a argumentação a uma instância também de consequências, que tem seu ponto central no consenso aceito pelos

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integrantes do auditório universal, validado no âmbito dessa comunidade.

Perelman entende a teoria da argumentação como uma técnica capaz de substituir a violência, ou seja, o que a violência pretende obter pela coerção, a argumentação pretende fazer pela adesão. Portanto, o recurso à argumentação requer o estabelecimento de uma comunidade de espíritos que, pelo mecanismo interno de sua própria constituição, exclua a violência. Isso porque, em uma comunidade baseada em princípios igualitários, as próprias instituições regulam as discussões (MONTEIRO, 2006).

2.1.2 O conceito de auditório

A concepção de auditório é uma das noções mais

importantes no pensamento retórico de Perelman. Muitas vezes é o bastante relatar experiências, mencionar fatos ou enunciar algumas verdades para suscitar no ouvinte o devido interesse no que lhe dito. Nesse sentido, é necessário que o ouvinte preste atenção ao orador, pois esse contato não diz respeito unicamente às condições prévias da argumentação, mas também ao seu desenvolvimento. Sendo assim, eis o conceito de auditório definido pelo filósofo:

É por essa razão que, em matéria de retórica, parece-nos preferível estabelecer o auditório como o conjunto daqueles que o discursador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador raciocina, de uma maneira mais ou menos consciente, nos que procura convencer e que formam o auditório ao qual se dirigem seus discursos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 22).

Com base nessa citação, verifica-se que o auditório

é algo estabelecido pelo orador, de modo que o conhecimento daqueles de quem se busca o assentimento

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torna-se requisito prévio a qualquer tentativa de argumentação. É a partir da definição clássica de Aristóteles que Perelman concebe sua concepção de auditório e acrescenta ao seu pensamento um conceito original: o de auditório universal.

Considerando o princípio de que é a partir dos ouvintes que toda argumentação desenvolve-se, assinala o auditório universal como “formado por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN, 1996, p. 33). Fica subentendido que, quanto mais se conhece de seu auditório, menos trabalhoso torna-se o exercício da argumentação, pois este “é composto por cada qual a partir do que conhece de seus semelhantes, de maneira a superar as poucas oposições de que tem consciência” (PERELMAN, 1996, p. 37).

No entanto, quando da idealização de um auditório universal, os argumentos do orador devem objetivar um discurso, que resultará na criação da imagem de um auditório que envolva todos os seres. Como afirma Reboul (2004, p. 93),

o orador sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumentação.

O auditório universal apresenta-se como uma

finalidade a ser atingida, mas, mesmo sendo indispensável, admite-se certa imprecisão com relação a esse conceito, considerando que cada cultura ou cada indivíduo pode concebê-lo de forma diversificada.

Sobre o conceito de auditório perelmiano, salienta Atienza (2000, p. 63, grifo do autor):

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Uma das funções que esse conceito desempenha na obra de Perelman é a de permitir distinguir (embora se trate de uma distinção imprecisa, como ocorre também com a distinção entre os diversos auditórios) entre persuadir e convencer. Uma argumentação persuasiva, para Perelman, é aquela que só vale para um auditório particular, ao passo que uma argumentação convincente é a que se pretende válida para todo ser dotado de razão.

A partir disso, nota-se que o objeto de discussão

aqui apresentado – o auditório universal –, além de promover a referência ideal de visualização da direção do discurso, permite ao orador com pouca experiência escolher entre duas estratégias argumentativas: persuadir ou convencer, as quais, por também serem fontes de conceitos imprecisos, são intensamente criticadas por outros autores.

Atienza (2000, p. 81) continua: Alexy, por seu lado, parece aceitar o caráter ideal da noção, mas entende que em, Perelman, encontra-se dois sentidos diferentes de auditório universal. Por um lado, o auditório universal seria uma construção do orador (daí seu caráter ideal) dependendo, portanto, das ideias de indivíduos particulares e de diferentes culturas. Mas nesse caso um auditório só é um auditório universal, para quem o reconhece como tal, com o que o papel normativo da noção é seriamente limitado (ATIENZA, 2003, p. 81).

Analisando o pensamento de Perelman, Atienza

(2000) considera tanto aspectos positivos quanto negativos. Com relação ao aspecto positivo, concorda com Robert Alexy e sua caracterização ideal à concepção de auditório universal, ao passo que, como aspecto negativo, se observa uma noção um pouco confusa. Alexy, num olhar mais apurado acerca dessa ligação, afirma que a aparência de auditório universal associa-se com a

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condição ideal de Habermas. “O que em Perelman é o acordo do auditório universal, é em Habermas o consenso obtido sob condições ideais” (ALEXY, 2005, p. 170).

Acredita-se que é a partir do acordo obtido por parte do auditório universal que surge o parâmetro de racionalidade e objetividade argumentativo, levando em conta que esse auditório só é persuadido por meio de argumentos racionais. Nisso funda-se o caráter objetivo, estendendo essa legalidade a todo ser racional, a partir do cultivo de utilização de argumentos racionais, ao analisar que “cada homem crê num grupo de fatos, de veracidades, que todo homem ‘normal’ precisa, segundo ele, acolher, porque são adequados para todo ser racional” (PERELMAN, 1996, p. 31).

Para obter o assentimento do auditório, o orador deve persuadi-lo. Nessa ocasião, Perelman faz um questionamento: como idealizar os auditórios aos quais é conferido o papel normativo que permite decidir a natureza convincente de uma argumentação? (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Um rumo para essa pergunta encontra-se na fundamentação de dois tipos de auditório: o particular e o universal. Dar-se-á atenção, neste momento, ao auditório particular, em contraponto ao auditório universal.

Pode-se entender como auditório particular aquele que se situa no tempo e no espaço, formado por um grupo reservado e com certo grau de limitações. Ao se adaptar a esse tipo de auditório, o discursador prepara sua tese, que, ao menos a princípio, pode diferir ou mesmo contrapor-se a teses acolhidas por outros auditórios. Nesse contexto, o que é aceito por um auditório particular é válido somente quando se refere a ele mesmo, visto que o que convenceu determinado auditório pode não satisfazer outro. Como ponto de partida de sua argumentação, o discursador pode utilizar crenças específicas, divididas apenas pelos elementos daquele grupo, ao direcionar a sua argumentação a um auditório específico. Assim, a

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argumentação acolhida por esse auditório não vai além do que sua limitação permite.

Para demonstrar os limites de adesão de um auditório particular, imagine-se um argumento conduzido a um grupo de operários, que tivesse como ponto de partida a tese de que eles deveriam ter os seus salários aumentados, pois assim poderiam viver melhor, tendo suas necessidades básicas supridas. Um representante de sindicato poderia perfeitamente, em seu discurso, tomar tal tese como ponto de partida de sua argumentação, uma vez que todos os integrantes operários concordariam com ela, mas, se esse mesmo representante se dirigisse a um empresário, por exemplo, visando à sua adesão, ele deveria refazer seu ponto de partida, pois, almejando se dirigir a todos os seres racionais, deveria buscar pontos de partida universais.

Cumpre alertar para a diferença existente entre auditório concreto e auditório ideal. O primeiro é aquele formado de pessoas verdadeiramente reais, ou seja, um auditório fisicamente localizado, já o segundo apresenta-se como uma irrealidade, um simples arranjo do orador. Ressalta-se que, a partir das várias combinações de auditório, constitui-se outra diversidade de argumentações. Nessa linha, supõe-se que o auditório particular concreto é formado por pessoas reais e com limitações, porém o auditório particular ideal é aquele almejado por uma argumentação, que, mesmo envolto por valores exclusivos compartilhados pelo grupo, põe como regra a racionalização dos argumentos, para então ocorrer a conversação.

Com relação ao auditório universal concreto, este se compõe de toda humanidade viva, ou seja, as pessoas capazes de utilizar a racionalidade num determinado local e época; por sua vez, o auditório universal ideal é aquele constituído por todos os indivíduos racionais, mas não está exposto a nenhuma limitação, seja temporal ou espacial. O auditório universal pode ser entendido de várias formas

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em razão da abundância de informações contidas em sua definição. Entretanto, podem-se apontar quatro caminhos entre as possíveis interpretações da noção de auditório universal: demonstrativa, psicológica, sociológica e filosófica.

A interpretação demonstrativa utiliza-se dos princípios da lógica, acreditando que, com o processo demonstrativo, possivelmente pode-se ocorrer uma maior qualidade argumentativa com relação ao auditório universal. Perelman, em determinado momento, parece recomendar que, no extremo, as regras de inferência válidas da lógica formal deveriam ser respeitadas para que a argumentação ocorresse com eficácia. “Uma argumentação conduzida a um auditório universal deve persuadir o leitor, da característica coerciva das razões oferecidas, de sua evidência, de sua legitimidade intemporal e absoluta, independente das contingências locais ou históricas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 41).

É notável em seus escritos que Perelman utiliza os termos ‘evidência’ e ‘prova lógica’ para indicar o caráter das explicações relacionadas ao auditório universal. Analisando tais passagens de forma individual, elas levam a crer que a eficácia da argumentação direcionada ao auditório universal é proporcionada pela própria lógica, pois há conexão entre ambas. No entanto, o filósofo visivelmente rejeita essa forma de interpretação, demonstrando a todo momento o caráter difícil do auditório universal.

Sobre o termo ‘evidência’, isso é explicável devido a uma falta de precisão terminológica, pois se verifica, em outras passagens, que o autor teve a atenção de apresentar tal expressão entre parênteses, explicando que não se poderia utilizar com precisão naquele caso. Não pensar a argumentação de forma evidente dificulta a possibilidade de sua adaptação por meio da lógica, “pois este é realizado de uma forma essencialmente mecânica,

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ao passo que a argumentação apresenta-se de forma justificatória conduzida ao livre assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 35).

Afirmar que o auditório universal pode ser interpretado psicologicamente é reduzi-lo a algo simplesmente psíquico, pois essa interpretação entende o receptor da mensagem como algo criado apenas na imaginação do discursador. A partir do conceito de auditório universal, é possível enumerar algumas noções que levam a esse entendimento: primeiramente, pela razão de ele ser ideal ao se opor ao auditório concreto; depois, por ser simplesmente uma edificação do orador e sua adesão ser somente uma mera aspiração do discursador; por último, pelo fato de ser uma suposição, ou seja, dependendo do orador, pode variar também o auditório.

Verifica-se que o auditório universal é, dessa forma, alguma coisa idealizada pelo orador e depende apenas de suas percepções individuais. Num primeiro momento, Perelman demonstra concordar com essa forma interpretativa: “[...] é óbvio que esse auditório universal, ao qual se dirige cada pensador racional, é apenas uma criação de sua mente: ele depende deste último, de sua informação, da concepção que ele tem dos valores que chamamos universais [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 120).

A interpretação sociológica busca seu sentido no fato de o auditório universal ser estabelecido no tempo e espaço, como também transformado a partir da influência que a cultura exerce sobre ele. Vale salientar que, na medida em que se modifica a cultura, varia o tipo de auditório; aliás, em vários momentos Perelman salienta essa noção. O grande impasse nesse tipo de interpretação não se encontra na dificuldade de compreensão do auditório universal, tampouco na aceitação de interpretações precipitadas de alguns fragmentos do filósofo em que parece demonstrar certa concordância

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com relação ao aspecto sociológico. Como defensor dessa visão, cita-se o professor de direito e jurisprudência na Universidade de Bruxelas, Wintgens (1993, p. 346), “que buscou no modelo sociológico de racionalidade, um modo unilateral de ver o auditório universal”.

A princípio, parece ser uma interpretação apropriada, porém o equívoco está em querer admiti-la como a única interpretação provável, visto que o auditório universal não pode ser assumido como concepção única de uma sociedade. Em consequência disso, uma singela interpretação sociológica do auditório não permite elucidar exatamente a característica universal ligada à noção de auditório universal.

A interpretação filosófica é a que mais se adapta ao auditório universal de todas apresentadas anteriormente, pois, encarnando a própria razão, satisfaz o ideal argumentativo universal, ou seja, compreende todos os seres racionais e não somente uma parte dos integrantes de um mesmo grupo. Consoante Perelman, “a argumentação de semelhante diálogo só tem significado filosófico se ela pretende ser válida aos olhos de todos” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 41).

Observa-se que essa forma interpretativa contrapõe-se ao aspecto sociológico, pois, nesta forma de entender, o imaginário do povo fica em destaque, não passando o auditório universal de uma comunidade, de modo que o ideal interpretativo sociológico perdura tão somente na medida em que esse grupo perdura no tempo, ficando historicamente estabelecido num espaço geográfico e também por um período.

Entende-se que, ao dirigir a sua argumentação ao auditório universal, o orador busca ultrapassar os limites de espaço e tempo, mirando diretamente à razão dos que recebem o convite argumentativo. Pressupõe que a pessoa com pleno uso da racionalidade e, consequentemente, dotada de certa autonomia pode optar por aquilo que é mais adequado para si e consegue decidir

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partindo de seus próprios conceitos e não de uma influência social, representando, dessa forma, um mero espectador manipulável.

De acordo com Toulmin (1984), o ponto de partida da argumentação é o fato de que raciocinamos e apresentamos aos outros razões para tudo o que fazemos, pensamos ou dizemos. O autor defende que o termo ‘argumentação’ condiz com a “atividade total de propor pretensões, pô-las em questão, respaldá-las, produzindo razões, criticando essas razões, refutando essas críticas” (p. 14).

2.2 O PONTO DE PARTIDA DA ARGUMENTAÇÃO É importante salientar que Perelman, em sua teoria

da argumentação, expõe que o ato de argumentar é, sobretudo, a ação de influenciar o auditório por meio da fala, utilizando para isso razões com a intenção de confirmar ou refutar um ponto que necessita do consentimento de um interlocutor. Para que isso ocorra, é necessário que aconteça uma interação entre indivíduos, ou seja, que se estabeleça o contato intelectual entre as mentes, que estão situadas num determinado período da história e inseridas em um grupo social.

Ademais, para que uma argumentação ocorra de forma eficiente, é necessário que o orador conheça previamente o auditório ao qual quer se dirigir. Nesse sentido, precisa presumir quais são as opiniões, as crenças, ou seja, o que é admitido como verdade pelos seus ouvintes, de forma antecipada, ao preparar um discurso; assim, é preciso que exista um acordo entre quem pronuncia e quem recebe o discurso.

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2.3 O ACORDO NA ARGUMENTAÇÃO A elaboração dos argumentos, sejam eles falados

ou escritos, ocorre em duas etapas: a produção dos acordos prévios e o emprego de técnicas argumentativas, com o intento de convencer ou persuadir um dado auditório.

O acordo prévio é premissa básica para uma argumentação, pois, dessa forma, garante-se que os interlocutores não duvidem posteriormente daquilo que já foi aceito da tese apresentada.

Portanto, esse acordo tem por objeto ora o assunto das premissas explícitas, ora as ligações particulares utilizadas, ora a forma de servir-se dessas ligações; do início ao fim, a análise da argumentação versa sobre o que é presumidamente admitido pelos ouvintes (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 73).

Ainda sobre isso, expõe Perelman: O discursador, utilizando as premissas que servirão de fundamento à sua construção, conta com a aderência de seus ouvintes às hipóteses iniciais, mas estes lhe podem recusar, seja por não aderirem ao que o orador lhes apresenta como adquirido, seja por perceberem o caráter unilateral da escolha das premissas, seja por ficarem contrariados com o caráter tendencioso da apresentação delas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 73).

Para a aderência de uma fala, deve-se procurar o

acordo com premissas já aceitas por um auditório. No entanto, Perelman, acreditando na impossibilidade de constituir uma relação com todos os objetos que poderiam gerar a concordância, faz a distinção entre tipos de objeto de acordo, classificados por conta de suas variadas funções no processo de argumentação. Com efeito, tanto o desenvolvimento quanto o ponto de partida da

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argumentação pressupõem o acordo do auditório, o qual tem por objeto ora o conteúdo das premissas explícitas, ora as ligações particulares utilizadas, ora a forma de servir-se dessas ligações. Do princípio ao fim, a análise da argumentação versa sobre o que é presumidamente admitido pelos ouvintes (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

Como já destacado, o processo argumentativo inicia-se a partir do acordo com o auditório, o qual se exprime no conteúdo das premissas apresentadas na argumentação. Esses acordos podem ser ocorrer no campo do real (fatos, verdades e presunções) ou no campo do preferível (valores, hierarquias e lugares); os primeiros sugerem a aderência de um auditório universal, ao passo que segundos tendem aos auditórios particulares.

2.3.1 Os tipos de objeto de acordo: o acordo sobre o real Destacou-se, anteriormente, a importância de um

acordo prévio entre discursador e auditório para que a argumentação realize-se de modo efetivo. Esse acordo baseia-se inicialmente sobre fatos, verdades e presunções, que são pontos de partida da argumentação; assim sendo, tratam da realidade e não equivalem, num primeiro momento, a um julgamento.

O conceito de fato, tratando-se do ato argumentativo, manifesta-se como uma espécie de acordo, por ser considerado algo inerente ao pensamento de vários indivíduos, cuja aceitação é uma reação pessoal e que se estabelece para a maioria. Ressalta-se que sua função na argumentação é se referir a uma realidade objetiva, em que todos partilham da mesma crença. Ele se reveste de uma certeza tão aprofundada que se torna desnecessária a justificação da sua importância.

Sobre isso, diz Perelman:

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Os fatos são subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a intensidade de adesão não tem nenhuma necessidade de justificação. A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 75).

Portanto, o fato encontra-se à margem da

argumentação, representando apenas um apoio, uma premissa que não é problematizada e que é acolhida, constituindo a realidade objetiva.

Os fatos são subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a intensidade de adesão não tem de ser aumentada, nem de ser generalizada, e que essa adesão não tem nenhuma necessidade de justificação. A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 75).

O conceito de verdade é um princípio complexo e

relativo, que se refere a acordos entre fatos religiosos, filosóficos, científicos ou que ultrapassam a experimentação.

Entende[-se] a verdade de forma parecida ao fato, com a diferença de que a verdade se refere a um princípio mais difícil, com alvo mais universal, ou seja, uma mistura de ligações entre fatos, e que pode se expressar em concepções filosóficas, religiosas e mesmo em teorias científicas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 92).

As verdades diferem dos fatos por sua

abrangência, servindo estes, na maioria das vezes, para indicar objetos precisos, restritos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Fatos e verdades são

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premissas válidas sob o ponto de vista prático. Seus regulamentos naturalmente já se encontram internalizados pelos ouvintes; portanto, no lugar em que se encontram, não é necessário que o discursador reforce a aderência. No entanto, destaca-se que verdades e fatos, quando contestados pelo auditório, podem perder sua identificação como premissas. Isso acontece quando de seu uso na condição de objetos de dúvidas ou quando não são considerados premissas apropriadas para determinada realidade, por ampla quantidade de pessoas no auditório.

A presunção é um conceito ligado ao verossímil ou normal, porém seu poder de persuasão é limitado. O ato de presumir sempre é sopesado partindo de determinados grupos, mostrando-se passível de variações de ponto de vista, o que não ocorre com o probabilismo. Constata-se ainda que, na tentativa de explicar uma presunção, existe a possibilidade de intensificá-la, mas, quando comparada às verdades e fatos, pode ocorrer a diminuição do seu poder de convencimento. Sobre isso, ressalta Reboul (2004, p. 165):

As presunções têm função capital, pois constituem o que chamamos de ‘verossímil’, ou seja, o que todos admitem até prova em contrário. Por exemplo, não está provado que todos os juízes são honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se alguém desmente tal ou tal caso, cabe-lhe o ônus da prova. O verossímil é a confiança presumida.

É notável, portanto, que, mesmo tendo pontos de

divergência em seus fundamentos com relação aos fatos e verdades, as presunções aceitam constituir um ato persuasivo que pode ser provável ou razoável.

Nessa linha de raciocínio, Perelman explica as presunções de uso comum:

Citaremos algumas presunções de uso corrente: a presunção de que a qualidade de um ato manifesta a da

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pessoa que o praticou; a presunção da credulidade natural, que faz com que nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro o que nos dizem e que é admitida enquanto e na medida em que não tivermos motivo para desconfiar; a presunção de interesse, segundo a qual concluímos que todo enunciado levado ao nosso conhecimento supostamente nos interessa; a presunção referente ao caráter sensato de toda ação humana (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 79).

As presunções estão vinculadas, em cada caso

particular, ao normal e ao verossímil (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). O “normal” é o que ocorrerá ou ocorreu, ou melhor, é uma base com a qual podemos contar em nossos raciocínios; assim, o que é “normal” está ligado a alguma coisa idêntica, que já existe. As presunções estão relacionadas, desse modo, a essas perspectivas. “Presume-se, até prova em contrário, que o normal é um embasamento com o qual podemos considerar em nossos raciocínios” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.80), o que não significa uma representação definível em termos de distribuição estatística, devendo-se frisar que uma presunção difere da probabilidade calculada. O que se espera das pessoas maldosas é que cometam más ações e das bondosas, ações boas, da mesma forma que se presume que as mentirosas falem mentiras e que as confiáveis falem com veracidade.

2.3.2 Os tipos de objeto de acordo: o acordo sobre o preferível Convém ressaltar que, enquanto a verdade e a

presunção propõem um dizer real no sentido de que são falas relacionadas a fatos, os valores, as hierarquias e os lugares do preferível expõem uma ligação aos pontos de início do processo argumentativo, vinculados ao que é

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preferível, buscando a adesão específica de alguns grupos.

O valor serve de base para várias concepções, sobretudo no que se refere às ciências humanas; não obstante, pode interferir no desenvolvimento, como, por exemplo, em matéria de direito, filosofia etc. Existem valores concretos e abstratos. Os valores concretos dizem respeito aos seres vivos, grupo específico, ou seja, um elemento particular avaliado a partir do fator exclusivo. Esses valores geralmente são identificados como elementos conservadores, ao passo que os valores abstratos são elementos que servem para motivar as transformações.

Perelman classifica a adesão a um valor da seguinte forma:

Estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, que se pode alegar numa argumentação, sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos. A existência dos valores, como objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir, é vinculada à ideia de multiplicidade dos grupos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 84).

Se a caridade é, para mim, um valor, isso designa

uma atitude perante certo tipo de organização social, mesmo que eventualmente ela não faça diretamente parte do meu real. Em outras palavras, um auditório pode estar de acordo sobre um valor como a caridade, definindo, assim, uma atitude perante o real, sem que considere o seu acordo sobre a caridade um fato, particularmente, naquela situação.

Perelman ainda comenta que os valores, em certo momento, interferem em todas as argumentações, ou seja, em campo, como em raciocínios de nível científico, ao se pretender a construção de um valor de verdade, os valores

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restringem-se geralmente à origem da formação de regras e conceitos constituintes de um dado sistema (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

As hierarquias são princípios de classificação relativos aos valores concretos e abstratos, como, por exemplo, raça humana acima da raça dos animais ou o justo sendo mais significante que o útil. A existência e utilização de valores pressupõem uma constituição de hierarquias produzidas por esses mesmos valores. Por exemplo: ao valorizar o ser humano, institui-se uma hierarquia que, consequentemente, o coloca acima de todas as outras criaturas habitantes no mundo; da mesma forma, uma valorização do lucro sobre a “justiça social” coloca no cume da hierarquia os valores da competitividade e concorrência, sobre os valores do conforto, da comodidade, da alegria etc. Assim, as hierarquias podem, por vezes, ser consideradas mais convenientes que os próprios valores, porque representam as vontades do auditório particular, referindo-se aos fundamentos que classificam e constituem os valores.

Selecionar valores a ser aceitos por um auditório é menos difícil que conseguir estipular de que forma serão verdadeiramente hierarquizados, comparados. Isso porque a argumentação não se ampara somente nos valores abstratos e concretos, competindo também ressaltar a importância das hierarquias.

Um dos princípios hierarquizantes mais usuais é a quantidade maior ou menor de alguma coisa. Assim é que teremos, ao lado das hierarquias de valores baseadas na preferência concedida a um desses valores, hierarquias propriamente ditas baseadas na quantidade de um mesmo valor: o grau superior é caracterizado por uma quantidade de certo caráter (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 91).

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Entretanto, as hierarquias de valores são, de certa forma, mais significante com relação à composição de uma argumentação, do que os próprios valores. Com efeito, a maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 92).

Assim, a aderência de certos auditórios aos valores

acontece como maior ou menor força, sendo sua hierarquia determinada pelo grau de intensidade de adesão que ocorre com uma ou outra pessoa.

Além dos vários tipos de acordo, tanto no campo do real quanto no campo do preferível, outra questão determinante para a argumentação diz respeito aos “lugares” utilizados como recursos à argumentação.

2.4 OS LUGARES NA ARGUMENTAÇÃO A função essencial dos “lugares” consiste em

fundamentar as hierarquias e os valores, podendo ser de forma específica ou comum, conforme a conveniência da sua utilização. Com relação à sua importância e função, contribui Perelman da seguinte forma:

Quando se trata de fundamentar valores ou hierarquias, ou de reforçar a intensidade da adesão que eles suscitam, pode-se relacioná-los como outros valores ou com outras hierarquias, para consolidá-los, mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral, qualificaremos com o nome de lugares, os topoi, dos quais derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocínio dialético (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 94).

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O entendimento do termo ‘comum’ tem sido muitas vezes realizado de forma equivocada, pois a expressão ‘lugar comum’ leva a pensar no conceito pejorativo de trivialidade, banalidade, ou seja, aquele que todas as pessoas distinguem sem utilizar muito a racionalidade. Na verdade, a expressão era empregada por Aristóteles para distinguir do lugar específico.

A partir dos escritos de Perelman, percebe-se a existência de uma variedade de lugares, como, por exemplo, da essência, ordem, presença, existência e pessoa. Todavia, existem dois gêneros que se sobressaem; trata-se dos lugares de qualidade e quantidade.

Os lugares da quantidade alegam que um argumento é mais perfeito do que outro se valendo de motivos quantitativos. Basicamente, esses lugares estabelecem valores; por exemplo, na política, há a democracia, a disciplina e a sensatez. Uma vez que esses lugares priorizam a opção por algo fundamentado numa valorização da quantidade, nota-se que o conceito de “quantidade” pode ter várias declinações, especificamente a declinação temporal, em que se apreciam a quantidade de período e, consequentemente, a resistência ou constância. “Os lugares da quantidade podem servir de premissas a uma argumentação de aspecto quase-lógico” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 264). “É preferível aquilo que possibilita mais benefícios, o bem máximo, o mais durável, ou ainda o que propicia o ‘mal menor’” (REBOUL, 2004, p. 166).

Os lugares da qualidade vêm de encontro ao conceito de quantidade, pois aprecia o distinto como valioso, exclusivo, uma vez que o que é singular obviamente não é o trivial, banal ou mesmo simples, mas é tido com atributos de originalidade, merecedor de respeito. Assim sendo, o lugar da qualidade contrapõe-se ao valor do número, apreciando aquilo que é único, o que perdura, ou seja, tem valor tudo o que é raro, eterno, único,

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especial. “Desse modo, o único passa a ser o preferível; enquanto se despreza o banal, o intercambiável, ‘a sociedade de consumo’, valoriza-se o raro, o precário, o insubstituível. A norma já não é o normal, é o original, até mesmo o marginal, o anômalo” (REBOUL, 2004, p. 166). Exemplificando: a importância de uma obra de arte, por tratar-se de um exemplar singular e inédito.

Os lugares da ordem afirmam o predomínio do anterior sobre o posterior, “ora da causa, dos princípios, ora do fim ou do objetivo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 105).

O lugar do existente tem como critério a existência, ou seja, dá preferência ao que já existe. Em outras palavras, “os lugares do existente afirmam a superioridade do existente, do que é atual, da realidade, sobre o possível, o eventual ou o impossível” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 106).

O lugar da essência é o que confere “[...] um valor elevado às pessoas enquanto representantes bem caracterizados dessa essência” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 106). Segundo Reboul (2004, p. 167), “a superioridade do essencial em contraponto ao acidental, ao fortuito”.

Por fim, o lugar da pessoa refere-se a tudo o que é ligado a pessoas e isso consiste em colocá-las num lugar elevado com relação às outras coisas.

Diferentemente do raciocínio analítico, o raciocínio argumentativo desenvolvido por um orador é fundamentado na escolha de vários pontos de início disponíveis, ou seja, as premissas para um acordo. Depois da seleção das premissas da argumentação, tendo o auditório admitido o conteúdo da tese, o orador define a melhor forma de descrever e expor essas premissas, determinando o tipo de linguagem a ser empregado, a forma de insistência a ser utilizada e as técnicas de apresentação a ser exercidas. Esses recursos de apresentação são compostos pelos dados do discurso,

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que buscam alcançar a presença e/ou a comunhão do auditório.

2.5 A ESCOLHA, SELEÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS E SUA ADEQUAÇÃO À ARGUMENTAÇÃO A escolha dos dados, como ponto de partida da

argumentação, é necessária a todo processo argumentativo, pois confere a ele uma caracterização de presença.10 Assim sendo, todo ato argumentativo é fundamentado, a princípio, em escolhas. Ressaltam-se, nesse sentido, as palavras de Reboul (2004, p. 167):

Segundo o TA11, certas figuras contribuem para reforçar o acordo prévio: figuras de escolhas, como a definição oratória; figuras de presença, como a epanalepse e principalmente a hipotipose, que faz do espetáculo um argumento e do argumento um espetáculo; figuras de comunhão, como a alusão, a pergunta retórica, etc.

Na construção da linha argumentativa, o orador

fundamenta-a na escolha de diversos assuntos no início de todo processo, utilizando temas que estejam à sua disposição, que também podem se chamar premissas. Depois de escolher as premissas da argumentação, ou seja, um ponto previamente aceito pelo ouvinte, ele determina a melhor maneira de descrevê-las e apresentá-las. Seguidamente, determina o tipo de linguagem a ser empregado, o formato de constância a ser utilizado e, por fim, os artifícios para a apresentação dos dados.

10 A presença procura enfatizar algum componente da articulação, colocando-o no primeiro plano da consciência, ampliando a atenção e a relevância que lhe são dispensadas, especialmente quando esse elemento é de grande valor para o argumento do orador. 11 Reboul (2004) utiliza essa sigla para expressar o nome da obra de Perelman e Olbrechts-Tyteca denominada Tratado da argumentação: a nova retórica.

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À medida que a demonstração estabelece como critério a determinação do mesmo sentido para todos os dados apresentados, a argumentação impele-nos a considerar, num primeiro momento, a seleção dos dados, porém, num segundo momento, e não menos importante, a forma por meio da qual são interpretadas essas informações torna-se fundamental para o aumento da qualidade da argumentação.

Sobre a interpretação dos dados, garante Perelman:

A utilização dos dados tendo em vista a argumentação não pode ser feita sem uma elaboração conceitual que lhes confira um sentido e os torne relevantes para o seguimento do discurso. São os aspectos dessa elaboração – dessa formalização – que fornecem um dos ângulos pelos quais se pode apreender melhor o que distingue uma argumentação de uma demonstração (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 136).

O processo de interpretação dos dados envolve

“signos e indícios”. Segundo Perelman, signos “são todos os acontecimentos suscetíveis de evocar outro acontecimento, na medida em que são utilizados numa ação comunicativa, com vistas a essa evocação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 139). Já o indício “permite evocar outro fenômeno, de uma forma por assim dizer objetiva, independentemente de qualquer intencionalidade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 139). Assim, a prática interpretativa consiste em procurar um significado aproximado ao sentido que o orador gostaria de apresentar em seus vocábulos se estivesse observando sua própria fala, sendo a interpretação equitativa aquela que o criador do texto admite como satisfatória, considerando o contexto em que está inserida.

Segundo Perelman, “ao selecionar bem as informações fazem com que estas, ocasionem um efeito

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psicológico indispensável no processo argumentativo, pois, atua inteiramente sobre a parte sensível do ser humano” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 139). A esse conceito é atribuído o nome de presença. Diz respeito ao que se passa pela consciência no dia a dia, ou seja, as coisas lembradas a todo momento; por isso mesmo, produz um resultado mais persuasivo do que todas as coisas desconhecidas ou afastadas, por se tratar de fatos não experimentados cotidianamente.

Por exemplo, a discussão sobre a eutanásia. Uma exposição realizada por um bom orador enfatizando a agonia de doentes que durante anos estão acamados num hospital torna presente um sentimento de dignidade que influencia o auditório, levando-o a aceitar que a eutanásia é a melhor solução para o caso em questão. Obviamente que, tratando-se desse tema, se omite a escolha de fatos que não incluem, por exemplo, grandes descobertas na área da neurociência, demonstrando visivelmente que pacientes em estado vegetativo conseguem se comunicar de diversas formas, evidenciando certo grau de consciência por parte do paciente, bem como exemplos de pessoas que, depois de vários anos em estado de coma, conseguem evoluir para um estado muito próximo daquele em que estavam antes de terem adoecido. Esses argumentos demonstram, pelo menos em parte, o deficiente alcance de persuasão dessa alternativa, demonstrando que a eutanásia não representa uma opção tão bem-sucedida assim.

Portanto, o que está presente na consciência torna-se uma ação eficaz para a argumentação. Entretanto, a existência real de um fato não é o bastante para a evocação desse sentimento no auditório; como consequência disso, observa-se o mérito do orador, por apresentar em sua argumentação questões que poderiam ter sido ignoradas pelo auditório.

O processo argumentativo não só depende da interpretação de seus elementos, como também da

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apresentação de certos dados. A partir dos acordos preparados, é preciso evidenciar as premissas, sendo necessário, para isso, pensar na forma da apresentação. Nesse sentido, Perelman apresenta elementos que permitem a apresentação dos dados num grau capaz de produzir certa intensidade nas mentes, destacando aspectos objetivamente definidos:

Uma apresentação eficaz, que impressiona a consciência dos ouvintes, é essencial não só em toda argumentação visando à ação imediata, mas também naquela que visa a orientar o espírito de uma certa forma, a fazer que prevaleçam certos esquemas interpretativos, a inserir os elementos de acordo num contexto que os torne significativos e lhes confira o lugar que lhes compete num conjunto (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 161).

Além da escolha das informações e da presença,

as apresentações das informações num discurso têm como meta a adesão de um auditório em função de uma confiança sobre os fatos apresentados. Para o filósofo, nessas apresentações, podem-se observar alguns dados de ordem técnica que são determinantes tanto na escolha quanto na exposição das informações.

Primeiramente, o tempo, outrora limitado, condiciona a seleção e conservação do dado em sua apresentação. Em geral, o tempo de apresentação de um dado é aplicado de modo adequado à sua autoridade no processo argumentativo. O orador que busca o assentimento dos ouvintes deve preparar seu tempo tendo como base a atenção do público. Não é necessário pronunciar uma premissa, uma vez que esta é totalmente admitida pelos ouvintes, mesmo não sendo simples sua distinção, pois muitas vezes ela não se manifesta com evidência. Além disso, não é difícil verificar uma finalidade argumentativa, quando se nota uma maneira de proceder do orador, que se mostra alheia à linguagem comum, visto

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que não existe escolha neutra, mesmo havendo aquelas que aparentam tal característica.

A prática de apresentação das informações, quando devidamente adaptada, torna-se um elemento extraordinário na justificação da adesão de um auditório. Ressalta-se que, quando o auditório percebe o modo técnico ao qual está exposto, se perde a eficácia retórica do discurso que está sendo praticado. Geralmente, o discurso que mais se adapta ao auditório é aquele em que a estratégia utilizada não é claramente evidenciada. Muitas vezes, demonstrar que certos argumentos são organizados a partir de determinados artifícios deixa sob desconfiança, também por completo, a elaboração da linha argumentativa.

Num processo argumentativo, almeja-se a concepção da presença dos elementos do discurso. Assim, a comunhão com o auditório torna-se uma ação indispensável, como observa Perelman: “O orador busca instituir uma comunhão em volta de adequados valores reconhecidos pelo auditório, valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe para ampliar e valorizar” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 57). Observa-se que, por meio da comunhão, o discursador conquista uma consideração por parte do auditório, que, a partir disso, permanece mais predisposto à persuasão.

Por todos esses aspectos, para que uma argumentação seja bem acertada, faz-se necessária a escolha de informações e procedimentos de exposição que garantam a presença desses elementos, como também, ao final, a comunhão com o auditório. “O estudo da argumentação nos força, de fato, a considerar não só a escolha das informações, mas forma igual, o modo como são interpretados, o significado que se escolheu atribuir-lhes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.132).

Ao buscar o acordo com o auditório, o orador utiliza-se de vários meios para fins de apresentação; sendo assim, as figuras apresentam-se como uma dessas

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alternativas, pois são estilos de manifestação do pensamento que não se ajustam no campo do comum. Sobre as figuras, explica Reboul (2004, p. 113):

O que é uma figura? Um recurso de estilo que permite expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado. Livre, no sentido de que não somos obrigados a recorrer a ela para comunicar-nos; dessa forma, qualquer um poderá dizer que vai se suicidar para pôr fim a uma paixão culposa, sem precisar recorrer às figuras de Fedra: Para ocultar da luz uma chama tão negra.

Basicamente, as figuras podem ser de escolha, de

presença ou de comunhão. As figuras de escolha tendem a fixar ou recomendar a escolha, ao passo que as figuras de presença têm como finalidade enfatizar a presença e, seguidamente, as figuras de comunhão anseiam a comunhão.

Percebe-se que, ao menosprezar o real papel das figuras, se corre o risco de comprometer seu sentido e sua importância. Perelman explica que “se menosprezarmos esse papel argumentativo das figuras, seu estudo parecerá de forma rápida, um vão passatempo, a busca de nomes estranhos para modos de expressão rebuscados” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 190), já Reboul (2004, p. 112) afirma que “a figura de retórica é funcional”.

A partir da contribuição de Reboul (2004), identifica-se uma contrariedade entre o que é figura argumentativa e o que é figura de estilo, compreendida como mero ornamento. Conforme o efeito produzido no auditório, dar-se-á a interpretação de uma figura como argumentativa ou de estilo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Perelman aponta as duas características essenciais a partir das quais se pode construir uma figura:

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[...] uma estrutura discernível, independente do conteúdo, ou seja, uma forma, (seja ela, conforme a distinção dos lógicos modernos, sintática, semântica ou pragmática) e um emprego que se afasta do modo normal de expressar-se e, com isso, chama a atenção. Uma dessas exigências, pelo menos, encontra-se na maioria das definições das figuras propostas no curso dos séculos; a outra se introduziu por algum viés (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 190).

Quando a retórica transformou-se em simples

modalidade de classificação das figuras, ou seja, em uma mera taxonomia das palavras, viu-se rebaixada, subjugada. Por outro lado, no século XX, sua atividade voltou à cena com novo fôlego. Todo o conteúdo apresentado nesta seção teve como objetivo realizar uma preparação para entender a reestruturação da retórica “antiga” feita por Perelman, que deu a esse novo formato o nome de nova retórica.

Após a apresentação da retórica de Perelman, buscar-se-á investigar os motivos que o levaram a constituir essa nova retórica e, sendo relevante a grande influência aristotélica em sua obra, será realizada também uma contraposição entre conceitos discutidos nas seções anteriores relativos às teorias de ambos os filósofos.

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- III -

A NOVA RETÓRICA DE PERELMAN Após a exposição dos pensamentos retóricos de

Aristóteles e Perelman, convém agora examinar questões dessas teorias para atender ao objetivo proposto para este trabalho de apresentar a nova retórica de Perelman, além de evidenciar conceitos que se aproximam na teoria dos dois filósofos. Tendo em vista que Perelman chamou de nova retórica o seu estudo a respeito da argumentação, procurar-se-á, num primeiro momento, esclarecer os motivos que justificam tal terminologia; posteriormente, serão demonstradas questões semelhantes e contrapontos de ideias entre ele e Aristóteles.

Perelman, em seu tratado da argumentação, disserta:

Embora nestes três últimos séculos tenham sido lançadas obras de eclesiásticos preocupados com problemas levantados pela fé e pela prédica, embora o século XX possa mesmo ter sido qualificado de século da publicidade e da propaganda, e tenham sido dedicados numerosos trabalhos a essa matéria, os lógicos e os filósofos modernos, por sua vez, se desinteressaram completamente pelo nosso assunto (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 5).

Explica-se, assim, sua preocupação em tratar de

temas relacionados ao do Renascimento e, consequentemente, aos dos autores gregos e latinos, que estudaram a arte de persuadir e de convencer, a técnica da deliberação e da discussão. De forma abreviada, pode-se dizer que é por essa razão também que sua teoria da argumentação é apresentada como uma nova retórica. Contudo, esses dados ainda são insuficientes para

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comprovar de que forma isso se dá, ou seja, porque a nova retórica apresenta-se como algo novo.

3.1 O DESENVOLVIMENTO DA NOVA RETÓRICA: UMA REABILITAÇÃO DA RETÓRICA “ANTIGA” ARISTOTÉLICA Com o Renascimento e seu intrínseco humanismo,

não mais uma ciência orientada para a contemplação do divino era preconizada. Agora, as disciplinas do trivium12 eram priorizadas, pois o mesmo motivo que as diminuíra agora as elevava a um novo nível de consideração, sendo elas pertinentes às questões relacionadas à comunicação humana (SILVA, 2010).

Após a sistematização de uma concepção retórica coerente ao pensamento platônico da Academia,13 Aristóteles também formulou uma estruturação do pensamento e da argumentação que empregava a lógica para constituir conexões, que seriam obrigatórias, com a verdade, resistindo à acepção prévia advinda dos sofistas pré-socráticos e, em sua contemporaneidade, praticada por Górgias e Isócrates. O aprendizado da disciplina Retórica, assim como sua demanda como teoria fundamental à concepção das ideias, permaneceu durante a Idade Média, relacionando-se sempre à utilização no âmbito jurídico (sobretudo por meio da latinização feita por

12 Trivium (do latim tres: três e vía: caminho) era o nome dado na Idade Média ao conjunto de três matérias ensinadas nas universidades no início do percurso educativo: gramática, lógica e retórica. Representa três das sete artes liberais; as restantes formam o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música. 13 Academia de Platão, Academia Platônica ou Academia de Atenas foi uma escola fundada por Platão, por volta de 387 a.C. Trata-se da primeira universidade da história, na qual grupos de seus seguidores recebiam educação formal. A Academia continuou a existir até o século VI, quando o imperador Justiniano fechou-a como parte de seu plano de abolir a cultura helenista pagã.

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Cícero e Quintiliano), eliminando cada vez mais seu componente dialético a priori (SILVA, 2010).

Abandonando sua formação lógica neopositivista, Perelman buscou nos antigos tratados de retórica e, em especial, em Retórica e nos Tópicos de Aristóteles a possibilidade de colocar os juízos de valor no campo do racional. Entretanto, os raciocínios tratados por Aristóteles nos Tópicos são por ele chamados de dialéticos. Nesse sentido, um primeiro questionamento que surge é: por que nova retórica e não nova dialética? Perelman justifica a preferência do termo ‘retórica’ em detrimento de dialética logo no início de sua obra Tratado da argumentação: a nova retórica e, por mais extensa que seja, ainda assim convém a seguinte citação:

Nossa análise concerne às provas que Aristóteles chama de dialéticas, examinadas por ele nos Tópicos, e cuja utilização mostra na Retórica. Essa evocação da terminologia de Aristóteles teria justificado a aproximação da teoria da argumentação à dialética, concebida pelo próprio Aristóteles como a arte de raciocinar a partir de opiniões geralmente aceitas. Várias razões, porém, incentivaram-nos a preferir a aproximação à retórica. A primeira delas é o risco de confusão que essa volta a Aristóteles poderia trazer. Pois se a palavra dialética serviu, durante séculos, para designar a própria lógica, desde Hegel, e por influência de doutrinas nele inspiradas, ela adquiriu um sentido muito distante de seu sentido primitivo, geralmente aceito na terminologia filosófica contemporânea. Não ocorre o mesmo com a palavra retórica, cujo emprego filosófico caiu em tamanho desuso, que nem sequer é mencionada no vocabulário de filosofia de A. Lalande. Esperamos que nossa tentativa fará reviver uma tradição gloriosa e secular. Mas outra razão, muito mais importante, a nosso ver, motivou nossa escolha: é o próprio espírito com o qual a Antiguidade se ocupou de dialética e de retórica. O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições

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necessárias. A própria ideia de que a dialética concerne a opiniões, ou seja, a teses às quais se adere com uma intensidade variável, não foi aproveitada. Dir-se-ia que o estatuto do opinável é impessoal e que as opiniões não são relativas às mentes que a elas aderem. Em contrapartida, essa ideia de adesão e de mentes visadas pelo discurso é essencial em todas as teorias antigas da retórica. Nossa aproximação desta última visa a enfatizar o fato de que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. O estudo do opinável dos Tópicos poderá, nesse contexto, inserir-se em seu lugar (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 5).

A nova retórica não procura ultrapassar os limites

da retórica antiga, mesmo deixando de considerar alguns aspectos trabalhados pelos retóricos antigos, pois

o objeto da retórica antiga era, acima de tudo, a arte de falar em público de modo persuasivo; referia-se, pois, ao uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multidão reunida na praça pública, com o intuito de obter a adesão desta a uma tese que se lhe apresentava (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 5).

Constata-se que a finalidade da arte oratória é

idêntica a qualquer tipo de argumentação. Entretanto, Perelman não se detém a estudar tão somente a argumentação oral, nem aquela realizada publicamente numa praça:

A rejeição da primeira limitação resulta do fato de nossas preocupações serem mais as de um lógico desejoso de compreender o mecanismo do pensamento do que as de um mestre de eloquência cioso de formar praticantes; basta-nos citar a Retórica de Aristóteles para mostrar que nosso modo de encarar a retórica pode prevalecer-se de exemplo ilustres. Nosso estudo, preocupando-se sobretudo com a estrutura da argumentação, não insistirá, portanto, na maneira pela qual se efetua a

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comunicação com o auditório. Conquanto seja verdade que a técnica do discurso público difere daquela argumentação escrita, como nosso cuidado é analisar a argumentação, não podemos limitar-nos ao exame da técnica do discurso oral (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6).

Sua nova retórica procura reabilitar a retórica

antiga, sem, todavia, equiparar-se a ela, o que esclarece o uso do adjetivo ‘nova’. O objeto da retórica antiga era, principalmente, a arte de falar publicamente de maneira persuasiva. Ela vinculava-se, usualmente, à arte de falar bem, de falar de forma a atingir o fim aguardado, tendendo a adquirir a configuração de uma receita, de exercícios práticos oratórios, de como agradar o auditório. Por sua vez, a nova retórica não se preocupa com o discurso enquanto fala, mas, sim, com sua aparência lógica, ressaltando a correspondência argumentativa fundamentada em razões, ou seja, a persuasão e o convencimento. Conforme afirma Perelman, “nosso tratado só versará sobre recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos: apenas a técnica que utiliza a linguagem para persuadir e para convencer será examinada a seguir” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 8).

No pensamento aristotélico, existem dois tipos de raciocínio: o analítico e o dialético. O raciocínio analítico estaria relacionado à ideia de demonstração, ou seja, expondo as premissas e observando as regras de inferência, chegar-se-ia a uma conclusão; dessa forma, existe uma verdade a ser buscada e obtida. Para um dado problema, há uma única e exclusiva resposta adequada e pensar de forma diferente é incidir em erro.

Por outro lado, o raciocínio dialético opera com o verossímil, isto é, o provável, o aceitável, não estando relacionado à ideia de esclarecimento, mas, sim, com a de justificação. Nessa espécie de raciocínio, existem também premissas, regras de inferência e conclusão, mas a

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dinâmica é diferente. Aqui não se pretende procurar uma solução para o problema, mas a melhor solução. Há, assim, uma diferença quantitativa entre as posições divergentes. Segundo Perelman (2000, p. 147), “enquanto os raciocínios demonstrativos, as inferências formais são corretos ou incorretos, os argumentos, as razões fornecidas pró ou contra uma tese têm maior ou menor força e fazem variar a intensidade da adesão de um auditório”.

Foi exatamente a diferenciação entre os raciocínios analítico e dialético que atraiu os olhares de Perelman para a obra de Aristóteles. Consoante Atienza (2002, p. 83), “Perelman parte – como já indiquei – da distinção básica de origem aristotélica entre raciocínios analíticos ou lógico-formais, por um lado, e raciocínios dialéticos ou retóricos, por outro, e situa sua teoria da argumentação nesse segundo item”. É importante observar que Aristóteles não reconhece nenhuma relação hierárquica entre esses dois tipos de raciocínio, ou seja, quando ele os separa, não deixa evidente a inferioridade do raciocínio dialético em relação ao analítico, pois a área de cada um é distinta, não cabendo equiparação.

Por fim, ao se tratar do raciocínio no século XX, verificava-se, ainda, grande influência do racionalismo de Descartes, tendo a retórica perdido em parte sua utilidade, pois a busca da “verdade” dava-se de forma essencialmente empírica. De forma mais pontual, ver-se-á adiante a nova retórica de Perelman como reação ao raciocínio cartesiano.

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3.2 A NOVA RETÓRICA: RUPTURA COM O RACIONALISMO CARTESIANO Contrariando o racionalismo cartesiano, Perelman

localiza a articulação dos conceitos fundamentais do pensamento tradicional, que procura aportar seu sistema de veracidade irrefragável na ideia de evidência, sendo a razão condição de desenvolvimento de uma teoria da argumentação. Dessa forma, a ruptura com o cartesianismo possibilita que ele estabeleça os parâmetros filosóficos mínimos de uma nova linha de investigação vinculada ao campo dos raciocínios não formais.

A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes que marcou com seu cunho a filosofia ocidental no três últimos séculos. Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do Método, era a de considerar ‘quase como falso tudo quanto era apenas verossímil’. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de ideias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodíticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 1).

Perelman não contesta a importância do

pensamento cartesiano naquele momento histórico e muito conturbado, no que se refere às guerras religiosas europeias no período da Reforma, que acendeu o anseio de reformulação do perfil prevalente do conhecimento. Necessitava-se de uma teoria capaz de ser aceita por todos, independentemente das desavenças religiosas; nesse sentido, a ambição de Descartes e de seus contemporâneos foi estabelecer um sistema racional incontestável, motivados pelas ciências dedutivas, como a

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astronomia, a geometria e a física. A proposta de Descartes (1996, p. 40) pode ser resumida em quatro regras ou etapas fundamentais:

A primeira, pertinente à evidência, impele-nos a aceitar como verdade aquilo sobre o que a intuição clara e distinta não pode ter dúvida; a segunda determina a subdivisão das dificuldades em parcelas, facilitando o exame rigoroso; a terceira propõe a ordem dos pensamentos, de tal forma que possam ser deduzidos uns dos outros, dos mais simples aos mais complexos; e, finalmente, a quarta determina a necessidade de revisão e de enumeração de cada passo.

O método cartesiano consiste em suplantar as

certezas matemáticas a todas as áreas do conhecimento, estabelecendo o conceito de evidência como único critério de referência do pensamento racional. Assim, afirma Descartes (1996, p. 37):

Há muito tempo eu notara que, quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir, como se fossem indubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi dito acima; mas, como então desejava ocupar-me somente da procura da verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crença alguma coisa que fosse inteiramente indubitável.

Como o espaço argumentativo das relações

humanas assemelha-se, precisamente, ao estudo dos raciocínios que não são evidentes e que não podem ser logicamente demonstrados, fica automaticamente descartado como objeto de investigação científica.

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Sobre isso, Perelman (2000, p. 142) disserta: Descartes e os racionalistas puderam deixar de lado a retórica na medida em que a verdade das premissas era garantida pela evidência, resultante do fato de se referirem a ideias claras e distintas, a respeito das quais nenhuma discussão era possível. Pressupondo a evidência do ponto de partida, os racionalistas desinteressaram-se de todos os problemas levantados pelo manejo de uma linguagem.

Em consequência disso, o filósofo expande o

campo da racionalidade para além da lógica formal, considerando como racional, em certo grau, toda espécie de justificação:

Esperamos que o nosso tratado provoque uma salutar reação, e que sua simples presença impeça que no futuro se reduzam todas as técnicas de prova à lógica formal e que se veja como racional apenas a faculdade calculadora. Se uma concepção estreita da prova e da lógica acarretou uma concepção limitada da razão, o alargamento da noção de prova e o enriquecimento da lógica dela decorrente devem provocar uma reação, por sua vez, sobre a maneira pela qual é concebida nossa faculdade de raciocinar (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6).

O afastamento da evidência ocorre porque, na

demonstração, a prova é evidente e força a mente à adesão, eliminando qualquer possibilidade para a liberdade de assentimento, para a escolha justificada, que é fundamental na concepção da argumentação de Perelman. No entanto, justificar deve sempre ser um ato que vise à justiça, pois, como exposto anteriormente, a retórica é útil porque a verdade e a justiça são naturalmente mais fortes que os seus contrários; sendo assim, se os juízos não valerem, elas serão basicamente vencidas por eles.

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3.3 A RETÓRICA DE ARISTÓTELES E PERELMAN: CONCEITOS RETOMADOS POR PERELMAN DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA A discussão proposta não está relacionada tão

somente a um estudo da oratória, porém, sendo a teoria da argumentação de Perelman uma retomada da antiga arte retórica idealizada por Aristóteles, o estudo do pensamento perelmiano poderia parecer, em um primeiro momento, uma simples reedição dos antigos princípios aristotélicos. Entretanto, o próprio Perelman afirma que seu trabalho trata-se de uma nova visão acerca da antiga retórica, mantendo desta basicamente a ideia de auditório, entre outras (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

A palavra ‘retórica’ encontra sua origem no vocábulo grego rhetor, que se refere ao orador numa assembleia. Todavia, mais do que escolher uma definição em meio a uma gama delas, é necessário comparar, já nesse âmbito, as relações conceituais entre o maior representante da retórica clássica, Aristóteles, e Perelman, autor que estudou e sistematizou o movimento denominado nova retórica, no século XX (SILVA, 2010).

Perelman oferece uma definição preliminar: “É o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 4). Por sua vez, Aristóteles (2005, I, 1, p. 89) sintetiza o objeto de seu estudo na introdução de sua obra Retórica, pois entende que o leitor já estaria familiarizado com todas as discussões acerca da retórica, por lhes ser contemporâneas:

A retórica é a outra face da dialética; pois ambas se ocupam de questões mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e não correspondem a nenhuma ciência particular. De fato, todas as pessoas de alguma maneira participam de uma e de outra, pois todas elas

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tentam em certa medida questionar e sustentar um argumento, defender-se ou acusar.

Nota-se que a argumentação constitui o objeto

central dos estudos de Aristóteles e Perelman, sendo importante destacar isso, pois, entre a gama de definições, existia uma substancial corrente que se referia à retórica apenas como uma arte oratória ou do bem falar.

Perelman incorpora ao seu pensamento retórico um aspecto diretamente oriundo de Aristóteles em relação ao objetivo: o discurso visa sempre à adesão dos espíritos aos quais o discurso dirige-se. Desse ponto, desenvolve-se aquilo que é a principal atualização do filósofo para a definição e para o próprio conceito de retórica, que diz respeito ao objetivo: “[...] é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6).

Na concepção perelmiana, a construção de uma teoria da argumentação advém necessariamente da lógica aristotélica, concebida para funcionar como uma teoria geral do discurso, utilizando-se dos raciocínios retórico e dialético. Como essa teoria tem de lidar com um imenso grau de dispersão da informação, outro conceito aristotélico é trabalhado: o auditório.

3.3.1 A questão do auditório

A retórica clássica desenvolveu seu estudo sobre o

conceito de auditório considerando as práticas oratórias realizadas via oral, sobretudo nas praças públicas, locais apropriados à discussão. A nova retórica de Perelman vai à frente, introduzindo o conceito de auditório universal, argumentação com um único ouvinte e, mesmo, deliberação consigo mesmo, todos ainda objetos de seu interesse, realçando sua importância nos três pilares de sustentação da retórica: o discurso, o orador e o auditório.

Guiando-se pelo pensamento de Perelman, Reboul (2004, p. 92) expõe que “sempre se argumenta diante de

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alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores”. E acrescenta: “Em suma, o auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo” (p. 93). Dessa forma, observa-se que “a qualidade da argumentação e o desempenho dos argumentadores deve-se em muito à função ímpar do auditório” (p. 27).

É notória na filosofia de Perelman a seriedade que aplica ao conceito de auditório, que deve ser percebido puramente como o conjunto daqueles a quem o discurso se dirige, ou seja, aqueles de quem se quer obter o assentimento, consistindo no agrupamento daqueles que o discursador quer influenciar com a sua argumentação. Assim sendo, o auditório não se limita às pessoas que efetivamente tiveram ou terão acesso ao discurso, seja ele falado ou escrito.

A partir dessa constatação, o filósofo amplia o sentido de auditório, não dando margem para uma interpretação empírica. O auditório apresenta-se, assim, como uma construção do orador, isto é, o conjunto daqueles cuja adesão o orador visou a ganhar ao desenvolver o seu discurso. Ao discorrer ou mesmo preparar o seu discurso, o orador deve decidir a quem seu discurso se dirige, pois não existe discurso sem auditório, ainda que seja apenas o orador deliberando consigo mesmo.

Com o conceito determinado dessa maneira, verifica-se que o auditório apresenta-se como algo que depende da atuação do orador, deixando-o livre para criá-lo. Entretanto, sendo atribuída a ele tal incumbência, não se pode idealizar o orador fora e livre do auditório, pois ambos são essenciais a qualquer processo argumentativo. Por conseguinte, entende-se que o maior valor direcionado ao auditório deve-se ao fato de o discurso depender dele para ser edificado, pois toda característica da

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argumentação tem como referência o auditório a quem se destina o discurso. Destarte, para compreender uma argumentação, o olhar deve se voltar ao destinatário da fala e não a quem o enuncia, cabendo ao orador acomodar-se ao auditório, pois, ainda que o auditório seja uma concepção sua, uma vez criado, o orador fica na sua dependência.

A adaptação do discurso em função do tipo de auditório é uma noção hoje controversa, mas que se coloca dentro desse sistema como essencial à efetivação do objetivo, que é levar o ouvinte a aderir à tese apresentada. Essa visão é controversa por implicar a prática efetiva do respeito, da tolerância e da admissão da validade de um pluralismo de valores, visto não como um fim em si mesmo, mas como um meio de conhecer e de estabelecer os axiomas da negociação (SILVA, 2010).

De fato, para iniciar a argumentação, obrigatoriamente se faz necessário o acordo do auditório. Assim, estudar a grande variedade de auditórios particulares é de grande relevância ao pregador que ambiciona concretizar com eficiência sua argumentação. No entanto, não se encontram nos estudos de Perelman descrições relativas às diversas particularidades psicológicas e sociológicas dos diversos auditórios; seu intuito é desenvolver um quadro conceitual mais abrangente para uma teoria integral da argumentação e, não, apresentar detalhadamente auditórios particulares. Objetivando apresentar um panorama geral sobre a teoria da argumentação, aponta vários tipos de auditório que permitem qualificar as diversas argumentações, referenciando Aristóteles ao distinguir os diferentes gêneros oratórios.

Como assinalado anteriormente, existe uma gama praticamente infinita de auditórios e, à medida que eles definem a qualidade e o desenvolvimento da argumentação, obtêm-se infinitos tipos de argumentação. Perelman busca, dentro desse universo, propor distinções

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que permitam diferenciar os auditórios de argumentações mais elaboradas visando ao convencimento de seus ouvintes daqueles com argumentações menos elaboradas que visam simplesmente a um ato persuasivo.

Da mesma forma que existem vários tipos de auditório e argumentação, há uma diversidade de concepção de justiça, pois se trata de uma questão que angustia os homens ao longo da história da humanidade. Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco (2011), concebe a justiça como virtude. De acordo com o pensamento aristotélico, “toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam a algum bem; e por isso foi dito, não sem razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem” (ARISTÓTELES, 2006, p. 17).

3.3.2 A questão da justiça

Ao considerar que as atividades humanas são

variadas, entende-se que não há um modelo preestabelecido de como atingir a justiça, cabendo a cada um analisar suas ações e os resultados que elas produzem, ou seja, se os resultados das ações atingiram a justiça na sociedade para a qual foram direcionadas. É nessa direção o posicionamento de Aristóteles (2006, p. 19), ao assegurar que “cada homem julga bem as coisas que conhece, e desses assuntos ele é bom juiz. Assim, o homem instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesse assunto, e o homem que recebeu instrução a respeito de todas as coisas é bom juiz em geral”.

A partir do pensamento aristotélico, o caráter da escolha apropriada, isto é, o julgamento justo, estaria intrinsecamente no ser humano, que é fundamentalmente bom. As escolhas seriam traduzidas em ações, mas a deliberação exigiria consciência e discernimento, além de predisposição para a mediania. Assim, Aristóteles (2006, p. 103-105) compreende a justiça como virtude:

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Segundo a opinião geral, a justiça é aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e a desejar o que é justo; e de modo análogo, a injustiça é a disposição que leva as pessoas a agir injustamente e a desejar o que é injusto. [...] Tanto o homem que infringe a lei como o homem ganancioso e ímprobo são considerados injustos, de tal modo que tanto aquele que cumpre a lei como o homem honesto obviamente são justos. O justo, portanto, é aquele que cumpre e respeita a lei e é probo, e o injusto é o homem sem lei e ímprobo. [...] Com efeito, a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno sentido do termo, porque é o exercício atual da virtude completa. Ela é completa porque a pessoa que a possui pode exercer sua virtude não só em relação a si mesmo, como também em relação ao próximo [...] portanto, nesse sentido a justiça não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira; nem seu contrário, a injustiça, é uma parte do vício, mas o vício inteiro.

A virtude aparece como um elemento intrínseco do

ser humano, que naturalmente buscaria o bem que lhe é próprio. Ela está justamente nessa busca e constitui uma ação, pela qual se vê a virtude humana de fazer o bem. Se a justiça é virtude, logo, o homem sempre estaria buscando a realização da justiça (GAMBA; MONTAL, 2008).

Seguindo o raciocínio de Aristóteles, Perelman (1996), nas reflexões a respeito da justiça, enfatiza que ela é considerada por muitos a principal virtude, sendo uma das mais eminentes em função da forte carga emocional que carrega consigo, pois cada indivíduo defende uma concepção de justiça que lhe dá a razão e contraria a pretensão do adversário. Pode-se dizer que a questão da justiça, além de ser uma constante no pensamento de Perelman, é um dos pontos principais de toda a sua teoria; principal porque é da tentativa de definir a justiça a partir da lógica formal, base da sua formação intelectual, que o filósofo chega à teoria da argumentação, proposta como

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fundamento para o novo conhecimento filosófico, rompendo, assim, de forma definitiva com a tradição metafísica clássica.

Perelman (1996, p. 64) entende que “a justiça como manifestação da razão na ação, deve contentar-se com um desenvolvimento formalmente correto de um ou de vários valores, que não são determinados pela razão nem por um sentimento de justiça”. Com isso, quer reafirmar que, tratando-se de justiça, se busca eliminar toda arbitrariedade relativa às regras para que não se resulte em um juízo de valor irredutível. Continua:

Todo valor sendo arbitrário, não há espaço para a justiça absoluta, inteiramente fundamentada na razão. Para ser mais preciso, não existe justiça absoluta, exceto a respeito de seres idênticos que, seja qual for o critério escolhido, sempre farão parte da mesma categoria essencial. Assim que dois seres deixam de ser idênticos, assim que é preciso fazer a pergunta de saber se é preciso desprezar as diferenças que os separa ou se, ao contrário, cumpre levá-la em conta, assim que é preciso distinguir as qualidades essenciais e secundárias para a aplicação da justiça, faz-se intervir considerações de valor, necessariamente arbitrárias (PERELMAN, 1996, p. 64).

Em suas primeiras pesquisas, Perelman busca

definir a justiça a partir da lógica formal e, consequentemente, começa a compor sua teoria da argumentação. Influenciado pela lógica formal, apresenta seis concepções concretas da noção de “justiça”:

1) a cada qual a mesma coisa: esta concepção

não leva em conta as diferenças que tornam possível a distinção dos indivíduos, mesmo sendo um jovem e um velho, um pobre e um rico. Sobre ela, afirma Perelman (1996, p. 9) que “é justo que todos sejam tratados da mesma forma, sem discriminação alguma, sem

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discernimento algum”. Dessa forma, todos seriam tratados da mesma maneira;

2) a cada qual segundo seus méritos: esta concepção não exige tratamento igual e, sim, que haja um tratamento proporcional à pessoa, conforme seus méritos. Assim sendo, o resultado não tem seu valor reconhecido e, sim, o esforço. Acrescenta Perelman (1996, p. 9): “Eis uma concepção de justiça que já não exige a igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, ao mérito da pessoa”;

3) a cada qual segundo suas obras: da mesma forma que a anterior, requer um tratamento proporcional, porém o critério aqui não é moral, ou seja, não leva em conta a intenção, mas, sim, o que resulta da ação. Sobre isso, escreve Perelman (1996, p. 10):

É nessa concepção que, aliás, admite muitas variantes, que se inspira o pagamento do salário dos operários, por hora ou por peça, que se inspiram os exames e os concursos em que, sem se preocupar com o esforço fornecido, levando em conta apenas o resultado, a resposta do candidato, o trabalho que apresentou.

4) a cada qual segundo suas necessidades: esta

concepção não leva em conta os méritos da pessoa, tampouco sua produção. O que tenta abrandar é o sofrimento da pessoa humana em detrimento da falta de suprimento de suas necessidades basilares. Nesse sentido, relata Perelman (1996, p. 10): “Desta forma, levar-se-á em conta um mínimo vital que cumprirá assegurar a cada homem, seus encargos familiares, sua saúde mais ou menos precária, os cuidados requeridos por sua pouca idade ou por sua velhice, etc”. Diante da impossibilidade

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do homem em satisfazer suas necessidades essenciais, o filósofo afirma que esta concepção é a que mais se aproxima da noção de caridade, pois garante ao necessitado a diminuição de suas aflições;

5) a cada qual segundo sua posição: este critério é apresentado como sendo aristocrático e, dessa forma, é direcionado somente a um grupo de pessoas de acordo com sua posição social. Diz Perelman (1996, p. 11):

As mesmas regras de justiça não se aplicam a seres pertencentes a categorias por demais diferentes. Assim é que a fórmula ‘a cada qual segundo sua posição’ difere das outras fórmulas da justiça no fato de ela, em vez de ser universalista, repartir os homens em categorias diversas que serão tratadas de forma diferente. [...] se consideramos essa fórmula de justiça aristocrática é porque é sempre preconizada e energicamente defendida pelos beneficiários dessa concepção [...] e tal reivindicação é habitualmente apoiada pela força conferida pelas armas, quer pelo fato de ser uma maioria defrontada com uma minoria sem defesa.

6) a cada qual segundo o que o sistema jurídico

lhe impõe: sobre isso, Perelman (1996, p. 12) diz:

Se ser justo é atribuir a cada qual o que lhe cabe, cumpre, para evitar um círculo vicioso, poder determinar o que cabe a cada homem. Se atribuímos ao termo ‘o que cabe a cada homem’ um sentido jurídico, chegamos à conclusão de que ser justo é possibilitar a cada indivíduo, o que a lei lhe atribui.

A consequência dessa colocação é que ser justo é aplicar as leis do país ou, ainda, o juiz é justo, íntegro, quando aplica as mesmas leis

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a situações idênticas. Ainda a esse respeito, complementa o filósofo:

Cada sistema de direito uma justiça relativa a esse direito. O que pode ser justo numa legislação, pode não o ser em numa legislação diferente: com efeito, ser justo é aplicar, ser injusto é distorcer, em sua aplicação, as regras de um determinado sistema jurídico (PERELMAN, 1996, p. 12).

Perelman entende que, na prática, nenhuma

dessas concepções atenderia ao almejado ideal de justiça. Assim, diante da dificuldade de conciliá-las, propõe três atitudes: a) constatar que as concepções de justiça não têm definitivamente nada em comum e não estão unidas por nenhum vínculo conceitual; b) em nome da justiça, abandonar todas essas concepções ou, então, escolher apenas uma delas, porém reconhece-se que se trata de escolhas difíceis e que se mostram parciais e ineficazes em termos práticos; c) buscar o que existe em comum entre os pontos de vista demonstrados, concluindo que a ideia de certa igualdade está presente em todas as fórmulas analisadas (GAMBA; MONTAL, 2008). Consequentemente, a noção de justiça sugeriria, decisivamente, uma ideia de certa igualdade.

Destarte, o filósofo adota o critério da igualdade como base para sua noção de justiça, por esse conceito perpassar todas as épocas. Como não se pode conceber a igualdade sem fundamentá-la em valores, toma a justiça formal como critério de justiça, dando a ela um aspecto legal. Define, assim, que a ideia de justiça consiste na aplicação da ideia de igualdade, porém isso só é possível havendo nessa concepção um elemento indeterminado, uma variável possibilitando outras fórmulas de justiça. Analisando sistematicamente todas elas, percebe-se a existência de uma característica comum: justiça seria tratar de forma igual. Sobre isso, afirma Perelman (1996, p. 18):

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Seja qual for a discórdia deles sobre outras questões, todos estão, pois, de acordo sobre o fato de que ser justo é dar tratamento igual a pessoas iguais, num determinado ponto de vista, possuindo similar característica, a única que se deva ser considerada na administração da justiça.

Para criar uma noção de justiça, é preciso expor

precisamente o que de comum existe entre suas várias concepções, como também os pontos que diferem entre elas. Pode-se chamá-la justiça formal: “seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” (PERELMAN, 1996, p. 19), observando a regra que “enuncia a obrigação de tratar de certa maneira todos os seres de uma determinada categoria” (PERELMAN, 1996, p. 45). Entretanto, a justiça formal não pode ser reduzida ao bom emprego de uma norma, mas, sim, à execução de uma regra justa. A dificuldade está em estabelecer o critério de justiça de uma regra. Num primeiro momento, percebe-se que os princípios norteadores que fundamentam essa lei seriam a chave para começar um entendimento acerca dessa dificuldade.

Diante da percepção de justiça formal apresentada, pode-se supor que uma ação será formalmente justa se adequar-se a uma regra que manda tratar de uma maneira todos os seres de uma determinada categoria. Contudo, dizer que um ato é formalmente justo é diferente de dizer que uma regra é justa. Uma ação é convencionalmente justa ao se enquadrar nos parâmetros da lei, ou seja, a regra é justa se estiver de acordo com o princípio que a fundamenta, mas sempre existem ocasiões em que a injustiça faz-se presente, prevalecendo sobre a justiça; nesse sentido, é sempre possível, como alerta Perelman, resistir à injustiça formal por meio da modificação da regra.

Não se pode reduzir a concepção de justiça à justiça formal; isso seria reduzi-la ao princípio do precedente. Ora, em nome da justiça, é preciso, às vezes,

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afastar-se do precedente, sobretudo tendo em vista consequências desastrosas decorrentes de sua aplicação. A justiça é uma característica que pode ser considerada por diversos pontos de vista. A princípio, pode se relacionar ao sujeito, que pode ser julgado como justo ou injusto.

Aristóteles (2005, I, 13, p. 146) está de acordo sobre esse último aspecto, ou seja, de que a ideia de justiça traz implicitamente uma definição de igualdade:

O equitativo parece ser justo, e é equitativa a justiça que ultrapassa a lei escrita. Ora esta omissão umas vezes acontece contra a vontade dos legisladores, e outras por sua vontade: contra a vontade dos legisladores, quando o caso lhes passa despercebido; e por sua vontade, quando o não podem definir a rigor, mas se veem na necessidade de empregar uma fórmula geral que, não sendo universal, é válida para a maioria dos casos. Também os casos em que não é fácil dar uma definição devido à sua indeterminação; por exemplo, no caso de ferir com um instrumento de ferro, ou determinar o seu tamanho e a sua forma pois não chegaria a vida para enumerar todas as possibilidades. Se, pois, não é possível uma definição exacta, mas a legislação é necessária, a lei deve ser expressa em termos gerais; de modo que se uma pessoa não tem mais que um anel no dedo quando levanta a mão ou fere outra, segundo a lei escrita é culpada e comete injustiça, mas segundo a verdade não a comete, e é isso que é equidade.

Da mesma maneira, esses conceitos podem ser

empregados às autoridades, quando estas devem seguir a lei ao efetivar um julgamento tratando os iguais como iguais. Sobre isso, conclui Aristóteles (2005, I, 13, p. 146):

Se, pois, não é possível uma definição exacta, mas a legislação é necessária, a lei deve ser expressa em termos gerais; de modo que se uma pessoa não tem mais que um anel no dedo quando levanta a mão ou fere outra, segundo a lei escrita é culpada e comete injustiça,

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mas segundo a verdade não a comete, e é isso que é equidade.

Com base na ideia de justiça formal e justiça

concreta, Perelman busca definir o sentido e o uso da concepção de equidade. O anseio de justiça pondera múltiplas categorias basilares ao mesmo tempo, como, por exemplo, o merecimento e a necessidade; todavia, ante as contradições da lei, é preciso aceitar a inexistência de uma justiça perfeita. Assim, nunca se pode garantir que o indivíduo será perfeitamente justo, pois, ao julgar, sempre se levará em consideração o sentimento de justiça que é próprio do julgador.

O filósofo percebe que, diante das antinomias14 da justiça, se deve apelar à equidade, a qual é o complemento imprescindível da justiça formal todas as vezes que o emprego desta é impraticável nos casos concretos. A equidade visa à diminuição da desigualdade quando o estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justiça formal, é impraticável pelo fato de existirem, ao mesmo tempo, duas ou várias qualidades essenciais que entram em oposição de interesses em algumas situações de aplicação das normas. Entretanto, é indispensável aconselhar, conforme Passos (2000, p. 62), “que a igualdade absoluta é irrealizável e constitui apenas um ideal para o qual se pode tender, um limite do qual se pode tentar aproximar, mas jamais será atingida em sua plenitude, conforme acentua”.

Não obstante a estrutura lógica de uma justiça formal, exposta por Perelman como a exclusiva justiça aceitável, segundo a referência da igualdade, o filósofo transpassa o modo positivista kelsiano e nota o ordenamento jurídico consolidado sobre uma pauta

14 Antinomia, no âmbito do direito, refere-se a uma contradição real ou aparente entre normas dentro de um sistema jurídico, dificultando, assim, sua interpretação e reduzindo a segurança jurídica no território e tempo de vigência daquele sistema.

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valorativa. Uma vez que os valores são naturalmente arbitrários, nenhum sistema poderá eliminar toda avaliação arbitrária que possa surgir. Logo, os princípios gerais de um sistema, em vez de garantirem o que é, determinam o que vale, mas de maneira arbitrária e não necessariamente lógica, como anseia Kelsen (1998) ao apresentar seu conceito de norma fundamental. A partir disso, assevera que, “como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral” (p. 3). Continua, acrescentando alguns elementos:

A conduta social de um indivíduo é justa quando corresponde a uma norma que prescreve essa conduta, isto é, que a põe como devida e, assim, constitui o valor justiça. A conduta social de um indivíduo é injusta quando contraria uma norma que prescreve uma determinada conduta. A justiça de um indivíduo é a justiça da sua conduta social; e a justiça da sua conduta social consiste em ela corresponder a uma norma que constitui o valor justiça e, neste sentido, ser justa. Podemos designar esta norma como norma da justiça (KELSEN, 1998, p. 3).

Configura-se, dessa forma, um conceito de justiça

direcionado à realização social, mas, para tanto, as necessidades particulares necessitam transformar-se em necessidades sociais, constituindo uma justiça igualitária. Trata-se de um antigo conceito de justiça em plena conformidade com os seus principais atributos, presentes em aproximadamente quase todas as concepções sobre ela.

As necessidades individuais referem-se a juízos de valor e, quando há desordem com relação a esses valores, utiliza-se um recurso de modo subjetivo, ponderado por meio de uma categoria de valores. Então, qual seria o valor categoricamente superior? A saúde, para alguns, é tida como uma virtude soberana, já para outros é a paz o sumo

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bem. Segundo o princípio da igualdade, todos os indivíduos devem ser tratados da mesma maneira, mas ele está incompatível com a sociedade. Kelsen (1998, p. 54) esclarece essa noção:

O princípio não é, pois, de forma alguma, um princípio de igualdade. Ele não postula um tratamento igual, ou melhor, postula não apenas um tratamento igual, mas também um tratamento desigual. Por isso, tem de haver uma norma correspondente a este princípio que expressamente defina certas qualidades em relação às quais as desigualdades serão levadas em conta, a fim de que as desigualdades em relação às outras qualidades possam permanecer irrelevantes, a fim de que possam existir, portanto, indivíduos ‘iguais’.

Uma norma de justiça é a norma que indica um

tratamento específico aos indivíduos. Assim, se a igualdade é um valor a ser considerado pela norma, todas as pessoas devem ser tratadas igualmente e sem exceção. Kelsen (1998, p. 61) disserta o que constitui uma norma de justiça:

É uma norma que prescreve um determinado tratamento dos homens. Se uma norma de justiça não determina que todos os homens devem ser tratados de maneira igual – e, de acordo com todas as normas de justiça, com exceção de uma só, não devem todos os homens ser tratados igualmente –, a justiça não é igualdade.

Conclui-se, dessas considerações, que uma

sociedade feliz é uma sociedade justa e uma sociedade justa é aquela em que predomina a igualdade. No entanto, assim como Kelsen, Platão, Aristóteles, Santo Tomás e alguns filósofos do direito contemporâneo estão de acordo com relação a esse último aspecto, ou seja, de que a definição de justiça traz implicitamente uma ideia de igualdade.

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Por fim, sobre a “questão da justiça”, constata-se que em todas as suas concepções na nova retórica perelmiana existe uma ideia de igualdade relacionada a um ideal supremo de justiça, conforme demonstrado por Perelman. Uma vez que a definição de justiça está ligada diretamente ao conceito de prova num âmbito jurídico, o conceito de igualdade perelmiano representa dar a cada pessoa o tratamento que lhe é devido segundo suas características, ou seja, incorpora-se a ideia de que as pessoas são diferentes e, por conseguinte, também são diferentes as suas necessidades.

3.3.3 A prova em direito

De início, vale recapitular o que foi dito por

Aristóteles sobre os meios de provas. São dois os tipos de prova: um não técnico ou não artístico e outro técnico ou artístico. O não técnico é aquele que não é inventado pelo orador, sendo auxiliado pela evidência de testemunhos ou contratos escritos; por sua vez, o técnico ou artístico vale-se de elementos de persuasão instituídos pelo orador. Sobre isso, explica Aristóteles (2005, I, 2, p. 96):

Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamo provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem preparar pelo método e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as segundas.

Coincide com o pensamento aristotélico a negação

do trabalho junto às provas não técnicas, que na nova retórica são apresentadas como um recurso que pretende induzir ao convencimento sem que se empregue a argumentação, mas, sim, de qualquer outro jeito, “do afago

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ao tapa” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 9).

Em Aristóteles, isso é visto como qualquer presunção oriunda de ambiente distinto à liberdade, devendo ser quaisquer dessas informações totalmente eliminadas do âmbito argumentativo (SILVA, 2010). Destas, as que mais se aproximam da teoria perelmiana são as provas não técnicas, porque são específicas da retórica judicial, visto que já existem, ou seja, seu uso é limitado. São diferentes das provas técnicas, pois estas podem e devem ser inventadas pelo orador. Destas, destacam-se os argumentos lógicos, que se apresentam sob duas formas: induções, ou uso de exemplos, e deduções, denominadas em retórica “entimemas”. O entimema, ou silogismo retórico, é aquela espécie de silogismo em que as premissas não fazem referência ao que é certo, mas ao que é provável, e têm importância fundamental para a retórica, uma vez que, na maioria dos conflitos humanos, nem sempre se pode utilizar a argumentação apenas naquilo que é verdadeiro, mas, sim, no que é verossímil, provável.

Tratando-se da expressão ‘prova’ no processo jurídico, como também em outros ramos do conhecimento, esta pode admitir diferentes sentidos. No âmbito judicial, é todo artifício designado a convencer o juiz, seu destinatário, no que diz respeito à verdade de um fato levado a um julgamento. Nesse sentido, as provas fornecem informações ao juiz, a fim de que este constitua uma certificação a respeito de fatos controversos, consistindo em elemento fundamental para o bom andamento do processo. Numa forma mais clássica, encontra-se a afirmação de que “provar é fazer que se conheça em justiça a verdade de uma alegação pela qual se afirma um fato do qual decorrem consequências jurídicas” (COLIN; CAPITANT apud PERELMAN, 1996, p. 591).

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Num primeiro momento, nota-se que os vários tipos de prova não contêm, necessariamente, um caráter jurídico, pois sua fundamentação está sujeita ao senso comum, métodos científicos, regramento silogístico, entre outras maneiras. Entretanto, na prática, não é o que ocorre, visto que, nas palavras de Perelman (1996, p. 592),

veremos que as técnicas de prova variam não só conforme os sistemas jurídicos, mas até conforme as finalidades de cada ramo do direito; os meios de prova aceitos variam também no tempo, segundo a preeminência concedida a este ou aquele valor.

Citando o art. 131 do Código de Processo Civil

(CPC) brasileiro ao dizer que “o juiz apreciará livremente a prova” (BRASIL, 1973), verifica-se a referência à análise legal dos dados levados ao processo por meio da obtenção das informações, utilizando a atividade probatória, constituindo, assim, fontes de prova. Assim sendo, observa-se que a prova representa tamanha importância que, sem ela, o processo não necessitaria existir. Pode-se, ainda, utilizar o termo ‘prova’ para indicar a representação produzida na imaginação do juiz pelos dados fornecidos pela ação comprobatória, como, por exemplo, a passagem do art. 364 do CPC ao dizer que “o documento público faz prova dos fatos que o escrivão declarar ter ocorrido em sua presença, dispondo que a imagem daqueles fatos na mente do juiz deverá estar em conformidade com o declarado pelo escrivão” (BRASIL, 1973). Destaca-se, assim, que o conceito de prova sempre esteve acompanhado, objetivamente, da ideia de procura da “verdade” acerca dos acontecimentos que envolvem determinado processo.

Num outro momento, poder-se-ia dizer que provar é convencer o espírito da verdade relativa a algum acontecimento, pois, ao ocorrer uma divergência de interesses, o que se pretende com a produção de determinada prova é dirigir a mente do árbitro ao

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conhecimento da “verdade” acerca dos fatos relevantes para a sua dissolução. No entanto, isso somente será razoável se o juiz estabelecer relação entre a sua percepção e o meio de onde a prova se manifestou.

Nesse sentido, é conveniente demonstrar o entendimento de Aristóteles (2005, I, 1, p. 93) sobre a verdade:

Mas a retórica é útil porque a verdade e a justiça são por natureza mais fortes que os seus contrários. De sorte que, se os juízos se não fizerem como convém, a verdade e a justiça serão necessariamente vencidas pelos seus contrários, e isso é digno de censura. Além disso, nem mesmo que tivéssemos a ciência mais exacta nos seria fácil persuadir com ela certos auditórios. Pois o discurso científico é próprio do ensino, e o ensino é aqui impossível, visto ser necessário que as provas por persuasão e os raciocínios se formem de argumentos comuns.

Verifica-se que Aristóteles justifica a utilidade da

retórica como sendo um elemento que irá garantir a vitória da verdade e da justiça num debate. Em outras palavras, ela irá fornecer as provas necessárias a uma boa argumentação, porém estas se servirão de argumentos corriqueiros.

É necessário destacar a associação teleológica que se pode fazer entre a concepção de prova e a ideia de procura da “verdade” relativa aos fatos que compreendem determinada ação. A princípio, provar é convencer o espírito da verdade que se faz referência a algo. Na produção de determinada prova, pretende-se dirigir o espírito do julgador à ciência da “verdade” referente aos fatos significativos para a dissolução de determinada divergência entre interesses. Contudo, isso somente ocorre a partir do ponto em que o juiz, pelo meio de sua sensação, relaciona sua própria impressão e o ambiente que a prova revelar.

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Carnelutti (2002, p. 82) demonstra a diferença entre a prova direta e a prova indireta da seguinte forma:

A prova direta coloca-se como aquela em que o juiz constrói através da relação direta de sua definição com os fatos. Já as provas indiretas não são tão naturalmente perceptíveis, por mostrar-se como um caso jurídico que perpassa os tempos e por se situar no passado somente se dá a conhecer através da dedução que se deve fazer do fato com o que servirá de referência.

Após o seu acontecimento, os fatos deixam de

existir, restando somente comprovações, informações e apontamentos, que formarão o máximo de conteúdo de prova possível, pois são apenas passagens. Portanto, o que chega à ciência do juiz trata-se de um registro da sua ocorrência, pois não representa o fato em si, estando influenciado por modificações provenientes da percepção, valores e ações psíquicas dos que com ele têm relação.

Diagnosticadas as noções essenciais que constituem alguma busca de caracterização da prova jurídica, ao mesmo tempo que se constata que o resultado final do processo probatório fica submisso a um nível de incerteza, faz-se necessária uma análise acerca do ideal de verdade, concebendo-o como uma equivalência entre a realidade fatual e o conceito idealizado. Conduzindo tal discussão para a esfera da presente investigação, uma vez aceita a afirmativa de que a prova é satisfatória para levar ao julgador a “verdade” sobre as ocorrências, ela deve ser apta para proporcionar ao julgador a certeza, definitivamente íntegra de dúvidas, acerca da correspondência entre a noção por ele idealizada e a realidade de fato.

A discussão acerca da argumentação no campo do direito, não é a argumentação elaborada pelo advogado, tampouco aquela estruturada pelo juiz monocrático, o foco de atenções da nova retórica; o seu alvo de exame refere-se aos raciocínios presentes nos arestos dos tribunais

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superiores, uma vez que são eles os fixadores dos grandes lineamentos norteadores da jurisprudência, elemento fundamental do funcionamento do direito.

O gênero do discurso que orienta todas as suas etapas, desde a concepção das provas, é também revisto. Em Aristóteles, são subdivididos três gêneros: o deliberativo, o jurídico e o epidítico. Os dois primeiros tiveram seu estudo cada vez mais privilegiado desde a Idade Média, devido à sua utilização direta e às consequências imediatas do seu bom uso. Para esse filósofo, o orador propõe-se a atingir, conforme o gênero do discurso, finalidades diferentes: no deliberativo, aconselhando o útil, ou seja, o melhor; no judiciário, pleiteando o justo; no epidítico, que trata do elogio ou da censura, tendo apenas de ocupar-se com o que é belo ou feio. Portanto, trata-se mesmo de reconhecer valores (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

Perelman, entretanto, reconsidera que o gênero epidítico mereça maior destaque dentro de uma concepção retórica para a atualidade, pois preenche a maior das lacunas deixadas pelo Positivismo, que é a amplificação da intensidade de adesão a certos valores comuns do auditório e do orador (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), que sustentam a própria discussão judiciária e política, revalidando, assim, o objetivo primeiro, segundo Aristóteles, que seria ocupar-se nesse gênero com a questão estética.

Uma vez exposto o pensamento de Perelman sobre a questão da justiça, resta agora apresentar de forma ordenada alguns conceitos (não menos importantes que os temas já apresentados) semelhantes entre ele e Aristóteles que ajudarão a entender as aproximações entre sua nova retórica e a retórica de Aristóteles.

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3.3.4 A retórica de Perelman e Aristóteles: tópicos que explicam as aproximações e diferenças entre as duas teorias A construção de um texto retórico a partir de

Aristóteles mobiliza uma série de operações que obedecem às quatro fases pelas quais deve passar aquele que compõe um discurso: a invenção (heurésis/inventio) – “busca que empreende o orador de todos os argumentos e de outros elementos de persuasão relacionados ao tema do discurso” –; a disposição (taxis/dispositio) – “ordenação desses argumentos, donde resultará a organização interna do discurso” –; a elocução (lexis/elocutio) – “não diz respeito à palavra oral, mas à redação escrita do discurso, ao estilo” –; e a ação (hypocrisis/actio) – “proferição efetiva do discurso” (REBOUL, 2004, p. 43-44).

Nesta subseção, serão apresentados conceitos que se relacionam nas teorias aristotélica e perelmiana, iniciando uma reflexão comparativa entre o que é chamado ponto de partida da argumentação em Perelman e inventio (invenção) clássico em Aristóteles.

Seguindo esse traçado, logo na fase da inventio, Aristóteles (2005) distingue dois estilos de “provas” ou “meios de persuasão”: as provas inartísticas (não técnicas), não inventadas pelo orador e preexistentes ao discurso, e as provas artísticas (técnicas), inventadas pelo próprio orador para sustentar a argumentação. De outro modo, a concepção perelmiana das ideias como ponto de partida da argumentação necessita lidar com a dicotomia inerente entre o real e o preferível, em que o real abarca os fatos, as verdades e as presunções e o preferível, questões a respeito dos valores, hierarquias e lugares do preferível (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Isso tudo serve de base para estabelecer o acordo tão necessário à argumentação, na qual Aristóteles utiliza as provas citadas anteriormente.

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No que se refere aos valores, a nova retórica não pretende uma aceitação unânime, ou seja, não busca a persuasão do auditório universal, o que significa que a valoração das ideias parte de âmbitos particulares e não de verdades metafísicas absolutas, visto que a aceitação do belo absoluto, por exemplo, só pode ser obtida a partir de certa situação genérica e nunca ao se especificar um conteúdo, concordando com Aristóteles ao entender a necessidade da mutualidade generativa de valores na relação entre o concreto e o abstrato (SILVA, 2010).

Uma das características similares das duas teorias consta do lugar-comum, que nada mais é do que um ponto de vista, um valor que é preciso considerar em qualquer discussão e cuja elaboração apropriada redunda numa regra, que o orador utiliza em seu esforço de persuasão. É assim, explica Perelman, que uma reflexão que parte de um lugar-comum tal como a liberdade vale mais do que a escravidão (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Sendo assim, de Aristóteles, Perelman resgata também o conceito de lugar (topoi), partilhando das ideias de lugar-comum até os lugares de quantidade e qualidade.

Quando se trata de fundamentar valores ou hierarquias, ou de reforçar a intensidade da adesão que eles suscitam, pode-se relacioná-los com outros valores ou com outras hierarquias, para consolidá-los, mas pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral, que qualificaremos com o nome de lugares, os topoi, dos quais derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocínio dialético. Para os antigos, e isto parece ligado à preocupação de ajudar o esforço de invenção do orador, os lugares designam rubricas nas quais se podem classificar os argumentos (PERELMAN; OBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 94).

Tais lugares-comuns não são, a bem dizer, senão

uma aplicação dos lugares-comuns, no sentido aristotélico, a temas particulares (PERELMAN;

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OLBRECHTS-TYTECA, 2005). Com relação ao lugar da quantidade, utiliza-se o raciocínio lógico para estabelecer a hierarquização a partir desses aspectos, coincidindo com o pensamento aristotélico onde algo é mais preferível a outro quando é útil em maior parte do tempo que o segundo (ARISTÓTELES, 2005). Quanto aos lugares da qualidade, Perelman valida a ideia sob o critério da importância referente ao emprego comum.

Diferentemente de Aristóteles, Perelman não julga ser útil, para o entendimento geral da argumentação, elaborar uma lista exaustiva dos lugares que poderiam ser utilizados na argumentação, pois essa tarefa parece-lhe, aliás, dificilmente realizável. O que interessa é o aspecto pelo qual todos os auditórios, sejam eles quais forem, levam em conta lugares, que serão agrupados de acordo com alguns itens bastante gerais: lugares da quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da pessoa (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

De qualquer forma, os lugares, sejam eles comuns ou específicos, têm uma função predominante nas premissas de qualquer argumentação, uma vez que, por definição, são os argumentos relativamente aos quais o orador pode ter por assegurado o acordo do auditório.

No procedimento retórico, em que se realiza a escolha dos dados que corresponde ao dispositio clássico (organização do conteúdo) aristotélico, os acordos estabelecidos para a composição das premissas são diversos e correspondem a uma variedade de conexões com o objetivo pretendido; por isso, é necessário que haja seleção crítica daquilo que mais servirá ao intento modificador do discurso. A presença de um dado em vez de outro no discurso sugere que ele traz uma carga de acepções mais adequada e esse simples fato leva à precedência desse dado em relação aos que não são mencionados (SILVA, 2010).

Uma vez definido o que se pretende enunciar, passa-se à segunda fase do trabalho retórico, que consiste

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no dispositio aristotélico, ou seja, na organização interna do texto, de modo a assegurar a transitividade da mensagem moral exigida ao receptor. A sensibilidade da ideia, a percepção do dado, é um fato que demanda extrema prudência do orador, como era corriqueiro aos retóricos antigos, que utilizavam objetos próximos a eles durante o discurso ou figuras recorrentes no imaginário da audiência, provocando o efeito diametralmente contrário, é óbvio, ao suprimir determinado dado. “O conteúdo das premissas deve se destacar frente ao fundo indistinto dos elementos de acordo disponíveis” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 161). A escolha e utilização desses dados devem vir necessariamente seguidas de uma elaboração conceitual, pois é justamente isso que diferencia argumentação de demonstração.

A interpretação desse dado carrega em si grande importância, visto que é ela que contribui para o assentimento da audiência, sendo por ela já conhecida. Por exemplo, ao falar de números referentes à exportação do país, é mais efetivo utilizar a figura de um produto do primeiro setor para uma audiência composta por trabalhadores rurais do que citar o número de parafusos exportados (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), isso se o desígnio for realmente ser compreendido. Essa seleção representa, portanto, uma relevância envolta em complexidade, que, ao ser somada aos índices subjetivos da audiência, torna-se fator fundamental à adesão ao argumento. Um dos problemas que surgem com a reflexão sobre esse ponto é a ambiguidade inerente a qualquer palavra ou signo e Perelman trabalha essa questão, primeiramente, atribuindo precedência à argumentação que mais satisfaz ao ouvinte (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

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Também se destacam as qualificações que serão apresentadas de certo dado, as quais cabem ao epíteto15 ou à seleção de determinada característica do dado, podendo, por vezes, de um mesmo fato construir duas realidades argumentativas opostas, como faz Aristóteles (2005) ao mostrar a possibilidade de denominar Orestes de “vingador de seu pai” ou de “assassino de sua mãe”. Por vezes, essa etapa em que apenas se escolhem os dados pode parecer similar à apresentação deles, porém o elocutio (verbalização) de Aristóteles abarca outros vários aspectos do discurso que modificam o impacto da ideia que é levada ao assentimento do auditório. Já a nova retórica não inclui em suas investigações questões relativas ao efeito estético da harmonia ou do ritmo da oratória, por exemplo, embora reconheça seu valor, como o faz Aristóteles (2005).

Uma atualização feita por Perelman é a substituição do que foi enunciado por Aristóteles que, se alguma premissa for bem conhecida, sequer é necessário enunciá-la, pelo que foi dito por Quintiliano, para quem é sempre efetivo se destacar os pontos em comum com o adversário, na argumentação (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005). A nova retórica reconhece acentuada importância ao bem estabelecimento dos axiomas16 que estruturam o discurso, reduzindo as possibilidades de petição do princípio17 e reforçando a

15 Epíteto significa acrescido, posto ao lado. É um termo de origem grega que, associado ao substantivo, o qualifica como uma alcunha, um apelido, ornamentando o nome e o distinguindo. 16 Axiomas são verdades inquestionáveis universalmente válidas, muitas vezes utilizadas como princípios na construção de uma teoria ou como base para uma argumentação. A palavra ‘axioma’ deriva do grego axios, cujo significado é digno ou válido. Em muitos contextos, axioma é sinônimo de postulado, lei ou princípio. 17 Uma petição de princípio é um argumento falacioso em que se tenta provar uma conclusão com base em premissas que a pressupõem como verdadeira. Em outras palavras, a ideia que precisa ser justificada é usada como meio de justificação ou, ainda, a ideia que está em causa é dada como adquirida.

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valorização da relação lógica entre os argumentos apresentados, exaltando, sobretudo, o valor da repetição como recurso que acresce a presença de espírito do dado apresentado.

Embora os dados já estejam escolhidos, deve-se determinar a forma por meio da qual serão expostos. Essa escolha refletirá o tipo de compreensão do argumento, por isso é complexo aceitar a existência de sinônimos sob o enfoque argumentativo. Para isso, a nova retórica serve-se dos estudos semiológicos efetuados durante o século XX como meio de distinguir os procedimentos de significação acarretados por cada agrupamento linguístico, recuperando, mais uma vez, a concepção aristotélica (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

A apresentação dos dados pode corresponder a vários tipos de ordenação lógica, como foi mencionado, mas a nova acepção retórica perelmiana confere à forma não só a implicação organizacional, como também um caráter de comunhão com o auditório.

A forma em que são apresentados os dados não se destina somente a produzir efeitos argumentativos relativos ao objeto do discurso; pode também oferecer um conjunto de características relativas à comunhão com o auditório. Todo sistema linguístico implica regras formais de estrutura que unem os usuários desse sistema, mas a utilização deste aceita diversos estilos, expressões particulares, características de um meio, do lugar que nele se ocupa, de certa atmosfera cultural (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 185).

Nesse âmbito, Perelman reforça a importância da

utilização, introduzida por Aristóteles, de formulações que agreguem valores já assentidos pela audiência, conferindo caráter ético ao discurso, por meio das máximas, pois seu uso faz ver claramente o papel dos valores aceitos e os processos de sua transferência (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005), que possibilitam retirar de

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conceitos gerais já aceitos adesões particulares. Na contemporaneidade, são bem conhecidos os usos feitos de adesões prévias nos slogans, que, entretanto, se direcionam apenas para ações particulares, constituindo máximas elaboradas para as necessidades de uma ação particular (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005).

A nova retórica retoma também o objeto de estudo que muito ocupou as investigações da retórica. Trata-se das figuras de retórica, que aqui recebem mais uma predicação indicando sua ênfase na nova teoria, sendo também designadas como figuras de argumentação:

Desde a Antiguidade, provavelmente desde que o homem meditou sobre a linguagem, reconheceu-se a existência de certos modos de expressão que não se enquadram no comum, cujo estudo foi em geral incluído nos tratados de retórica; daí seu nome de figuras de retórica. Em consequência da tendência da retórica a limitar-se aos problemas de estilo e de expressão, as figuras foram cada vez mais consideradas simples ornamentos, que contribuem para deixar o estilo artificial e floreado (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 189).

Portanto, a linguagem humana desenvolveu-se em

torno da tensão entre literalidades e figurações, mas quase sempre focando os problemas do estilo e da expressão. Perelman pretende menos se dedicar a uma taxonomia prescritiva e mais ao efeito persuasivo do uso de figuras na realização da argumentação. Concebe, assim, seu estudo como “em que e como o emprego de algumas figuras determinadas se explica pela necessidade da argumentação” (PERELMAN, 1996, p. 190).

Perelman descreve duas características indispensáveis para que haja uma figura:

Uma estrutura discernível, independente do conteúdo, ou seja, uma forma (seja ela, conforme a distinção dos lógicos modernos, sintática, semântica ou pragmática),

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e um emprego que se afasta do modo normal de expressar-se e, com isso, chama a atenção. Uma dessas exigências, pelo menos, encontra-se na maioria das definições das figuras propostas no curso dos séculos; a outra se introduziu por algum viés (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 190).

Para se certificar de que tais condições são

atendidas, é preciso que o agrupamento seja isolável e, ainda assim, conserve os atributos figurativos esperados, de uma exclamação a uma interrogação.

Essa etapa da classificação é considerada de muita valia, pois, para que tal figura seja denominada argumentativa, é necessário que o estado de anormalidade existente antes de sua utilização seja transformado em uma perspectiva em que ela passe a ser normal. Se seu emprego não muda em nada o sentido do discurso, ele não é nada além de uma figura de estilo (SILVA, 2010).

Por fim, pode ser visto que o caráter geral da reavaliação feita por Perelman dos conceitos componentes da retórica consiste na confirmação e expansão dos originais aristotélicos, refutando alguns poucos pontos apenas para que haja adequação ao atual estado da lógica, possibilitando, assim, a ampliação de paradigmas já conhecidos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A nova retórica da teoria da argumentação de

Perelman rompe com a concepção da razão e do raciocínio que nasceu com Descartes e marcou a filosofia nos últimos três séculos (XVIII, XIX e XX). Por meio do uso da retórica, o homem não pode ser reduzido arbitrariamente à emoção dos gritos da alma, ou, ao contrário, à razão constritiva dos raciocínios dedutivos.

A retórica mostra que, ao lado da densidade racional, existe no homem a densidade do razoável; nesse âmbito, estão os valores éticos, políticos e religiosos, pois isso é o que conta para o homem. O ponto de partida da nova retórica consiste em retirá-lo do mundo dos valores, do arbitrário e da pura emotividade, para reconduzi-lo à “razoabilidade” que lhe é própria. Era o que os antigos gregos tinham compreendido.

A análise da teoria perelmiana diz respeito às provas que Aristóteles chama de “dialéticas”, examinadas nos seus Tópicos (1987) e cujo emprego mostra na Retórica (2005). A teoria da argumentação configura-se como uma análise da estrutura, da função e dos limites do discurso persuasivo, determinando e delimitando o campo do razoável, distinto tanto do racional puro, quanto do irracional (BOBBIO, 1995). Assim, procurou-se definir a retórica de acordo com sua afinidade com o saber prático, pois ela não é ciência, nem puro empirismo, não se funda no geral, mas no que produz as mais das vezes, não é prática, ou seja, não influi no comportamento geral da vida, mas é poética, visto que formula as regras da sua criação.

Segundo Meyer (In PERELMAN, C; OLBRECHTS-TYTECA, L. 2005), prefaciador de uma das principais obras de Perelman, a retórica ressurge sempre em períodos de crise, como aconteceu com a derrocada do mito entre os gregos, que coincidiu com o grande período

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sofista. A impossibilidade de fundar a ciência moderna e sua apoditicidade matemática diante do predomínio da escolástica e da teologia na Idade Média levaram também à retomada da retórica clássica pelo Renascimento. Hoje, o fim das grandes explicações monolíticas, das ideologias e, mais precisamente, da racionalidade cartesiana assinala o fim de certa concepção de logos.

Perelman posiciona-se expressamente contra a filosofia da evidência de Descartes. Seu esforço consiste, justamente, na busca de outra dimensão da racionalidade compatível com a vida prática, pretendendo demonstrar a aptidão da razão para lidar também com valores, organizar preferências e fundamentar com razoabilidade nossas decisões. Ele percebe que nem tudo se sujeita ao campo da matemática, que exibe como verdade apenas aquilo que é rigorosamente demonstrável ou provado como evidente. Também é próprio do homem, como ser dotado de razão, deliberar e argumentar, aspecto do pensamento que a lógica dos modernos abandonou devido aos limites impostos pelo raciocínio apodítico. A partir de então, anuncia a ruptura com o cartesianismo e estabelece, como paradigma filosófico, a concepção relacional e retórica da razão prática. Isso faz com que a razão seja aceita não do ponto de vista da contemplação, mas do ponto de vista da justificação das nossas convicções e das nossas opiniões.

Na realidade, a grande contribuição de Perelman para a filosofia tem origem no franco descontentamento que demonstrou em não conseguir resolver, de forma totalmente satisfatória, com instrumentos da lógica formal, a questão da justiça. Pode-se dizer que essa questão, além de ser uma constante no seu pensamento, é um dos pontos principais de toda a sua teoria; principal porque é da tentativa de definir a justiça a partir da lógica formal, base da sua formação intelectual, que ele chega à teoria da argumentação, proposta como base para o novo conhecimento filosófico, rompendo assim, de forma definitiva, com a tradição metafísica clássica. Ele acredita

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que somente mediante regras versando sobre a sua aplicação a justiça poderia ser analisada com algum nível de certeza e indiscutibilidade.

Sendo significativa a influência do pensamento aristotélico na retórica de Perelman, buscou-se, nesta dissertação, apresentar diferenças e aproximações entre os pensamentos aristotélicos e perelmianos.

A obra Retórica (ARISTÓTELES, 2005), constituída de três livros codificados a partir dos princípios de Aristóteles, é um escrito fundamental que qualificou e dispôs os formatos de discursos até o século III a.C. e que se conservam, com poucas alterações, até hoje. A autoridade da retórica na perspectiva desse filósofo incide na competência do orador em persuadir o ouvinte, fazendo com que ele estabeleça um juízo sobre a circunstância que lhe é exposta. O texto apresentado na segunda seção sobre a retórica de Aristóteles permitiu ao leitor o acompanhamento, passo a passo, da ligação dos vários conceitos da sua obra.

Inicialmente, procurou-se definir a retórica por meio de sua afinidade com o saber prático, pois não é ciência, nem puro empirismo, não se funda no geral, mas no que produz as mais das vezes, não é prática, ou seja, não influi no comportamento geral da vida, mas é poética, visto que formula as regras da sua criação. Enfim, sua finalidade não é tanto persuadir quanto descobrir o que há de persuasivo em cada caso. Depois de assentada essa base sólida, Aristóteles aplica-se a discriminar as analogias e diferenças da retórica e da dialética, pois conclui que nem uma nem outra são disciplinas especiais.

A retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão, ou seja, parece ser capaz de, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para persuadir. Sendo assim, pode-se dizer que suas regras não se aplicam a um gênero próprio e determinado. Para isso, a retórica vale-se de provas e estas podem ser de dois tipos: dependente da

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arte e independente desta. As provas independentes da arte são todas as não fornecidas por nós, mas preexistentes, como, por exemplo, os testemunhos, as confissões sob tortura etc. Constituem provas dependentes da arte todas as que podem ser fornecidas por nossos próprios meios. Com relação às primeiras, basta que nos utilizemos delas, quanto às outras, precisamos encontrá-las.

Aristóteles concebe três meios de persuasão, ou seja, as provas fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter do orador; outras, nas disposições criadas no ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece demonstrar. Assim, obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral quando o discurso procede de maneira a deixar a impressão de o orador ser digno de confiança, pois as pessoas de bem inspiram confiança mais eficaz e rapidamente em todos os assuntos, de modo geral. Ademais, obtém-se a persuasão nos ouvintes quando o discurso leva-os a sentir paixão, porque os juízos proferidos variam, consoante se experimenta aflição ou alegria, amizade ou ódio. Por fim, é pelo discurso que se persuade, sempre que é demonstrada a verdade ou o que parece ser a verdade, de acordo com o que, sobre cada assunto, é suscetível de persuadir.

Quanto às formas dos argumentos, o filósofo cita o exemplo ou silogismo oratório e o entimema ou indução oratória. Os discursos baseados em exemplos prestam-se mais que os outros para persuadir; de outro modo, os baseados em entimemas impressionam mais.

Falou-se também sobre os três gêneros da retórica: o deliberativo, o epidítico e o judiciário. Numa deliberação, aconselha-se ou desaconselha-se, quer se delibere sobre uma questão de interesse particular ou público. Uma ação judiciária comporta a acusação e a defesa. Já o gênero demonstrativo comporta duas partes: o elogio e a censura. Cada um desses gêneros tem por objeto uma parte do

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tempo que lhes é própria: para o deliberativo, é o futuro; para o judiciário, o passado; e, para o epidítico, o presente. Constatou-se que há, ainda, a necessidade de ter premissas para todos os três gêneros da retórica; uma vez que um silogismo vale-se de premissas e o entimema é um silogismo, este é constituído pelas premissas, de que se valem todos os gêneros.

Um tema fundamental tratado em seguida é a justiça. Aristóteles observa que a verdadeira justiça é a equitativa, pois os atos que podem ser perdoados são passíveis da equidade; além disso, não devem ser punidos igualmente os erros e os atos injustos, tampouco os erros e as inadvertências (todos os atos desprovidos de maldade). Mostrar-se equitativo é mostrar-se indulgente com as fraquezas humanas, como também ter menos consideração pela lei do que pelo legislador.

No livro três de sua obra, o filósofo trata do estilo do discurso e sua composição, pois não basta possuir a matéria do discurso, deve-se exprimi-lo na forma conveniente, o que é de suma importância para dar a ele uma aparência satisfatória. Procurou-se, então, o que vem em primeiro lugar, isto é, o que há de convincente nas coisas; em segundo lugar, vem o estilo que permite ordená-las; em terceiro lugar, uma questão importante é a ação retórica. Já sobre as partes do discurso, são destacadas apenas duas: a indicação do assunto de que se trata e a demonstração. Assim, são apresentadas como obrigatórias a proposição e a prova, mas o discurso propriamente dito é constituído pelo exórdio, exposição, prova e epílogo.

A nova retórica de Perelman representa uma ruptura da tradição, da razão apodítica cartesiana.

Nosso procedimento diferirá radicalmente do procedimento adotado pelos filósofos que se esforçam em reduzir os raciocínios sobre questões sociais, políticas ou filosóficas, inspirando-se em modelos fornecidos pelas ciências dedutivas ou experimentais, e

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que rejeitam com sem valor tudo o que não se amolda aos esquemas previamente impostos. Muito pelo contrário, nós nos inspiraremos nos lógicos, mas para imitar os métodos que lhes têm propiciado tão bons resultados de um século para cá (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.10).

Perelman, a partir do problema da justiça, que

verifica não poder resolver com os mecanismos da lógica tradicional, vê-se mobilizado com a razão, ou o método, que rege as relações sociais, adstritas a valores. Admite que seu cuidado é o do lógico às voltas com a realidade social. Tal inquietação, entretanto, já o tinha aproximado da retórica aristotélica. Ele confessa identificar-se com Aristóteles quando se volta para a busca de um tipo de raciocínio capaz de lidar com incertezas, objetivando, naturalmente, alcançar soluções. Nesse mister, despreza os ornamentos da oratória, como parte da retórica antiga, concentrando-se no problema da relatividade dos valores.

Importa recordar que, após Descartes, o âmbito da racionalidade permaneceu inexplorado, porque, com ele e daí em diante, a razão foi identificada como as “demonstrações capazes de estender, a partir de ideias claras e distintas e através de provas apodíticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas” (PERELMAN; OLBRECHTS – TYECA, 2005, p. 1).

Perelman torna-se um bom crítico de Descartes e de todo o ponto de vista racionalista cientificista que almejava abordar as ciências humanas nos mesmos padrões das ciências voltadas à natureza. É contrariando o racionalismo cartesiano que localiza a articulação dos conceitos básicos de seu pensamento tradicional, que procura aportar seu sistema de veracidade incontestável na ideia de evidência. Nessa nova busca, depara-se com a obra de Aristóteles, especificamente com os chamados raciocínios dialéticos, o que acaba inspirando-o a desenvolver sua teoria da argumentação, por ele nomeada como uma “nova retórica”.

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Adota o critério da igualdade, após observar que tal característica é a que se reproduz em praticamente todos os conceitos relacionados à justiça. Observa, também, que não existe uma dependência desta com relação aos valores e às regras, pois igualdade supõe que ocorra tratamento igual às pessoas em semelhantes condições entre si e não que todos devam pensar da mesma maneira. Ainda que descubra a não existência de uma lógica de valores, pois estes são escolhidos de forma arbitrária e, para cada época, concebidos de formas diferentes, Perelman observa que o aspecto de igualdade é o elemento comum a todos os critérios considerados, verificando que valerá somente dentro de uma correta aplicação da lei, cujas regras deverão ser justificadas a partir de valores, como também sua interpretação.

Nesta investigação, constatou-se o fato de que a nova retórica serve de base para encontrar os valores necessários à aplicação da lei em cada caso, utilizando, para isso, as técnicas argumentativas, pois, nessa teoria, é necessário que exista um interlocutor (ou auditório), de modo que essas personagens podem mudar de posição na medida em que assumem o seu papel. Portanto, pode ser importante ter esse elemento em conta em um processo, pois usar argumentos contrários aos valores aceitos na época estará fora de sintonia com a argumentação e, consequentemente, não levará à adesão daqueles que se quer influenciar.

A dimensão argumentativa da retórica, desenvolvida por Aristóteles, preocupada com a argumentação, a dialética e os conflitos postos pelo necessário caráter intersubjetivo da vida social, foi completamente abandonada pelo pensamento moderno. O aspecto central da perspectiva perelmiana foi a recuperação dessa tradição no campo jurídico.

Com a crise do modelo positivista-legalista, ocasionada pelo fim da Segunda Guerra Mundial, e a patente insuficiência de um paradigma legal que deixasse

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de lado a referência à dimensão axiológica do mundo jurídico, como é o caso da teoria do direito kelseana, iniciou-se todo um movimento de questionamento nos campos da filosofia do direito e da metodologia jurídica. A teoria da argumentação de Perelman ou nova retórica está relacionada à filosofia do direito e é extremamente significativa para outros âmbitos do discurso, como os da filosofia, da política e da comunicação. A nova retórica não é um discurso vazio e abstrato sobre pretensas capacidades humanas; por meio dos tipos de argumentação persuasiva, Perelman pretende caracterizar as diversas estruturas de argumentação e construir sua teoria, analisando os meios de prova de que se servem as ciências humanas, o direito e a filosofia, apresentados por jornalistas, políticos, advogados, juízes e filósofos.

Portanto, o tratado da argumentação é o tratado da lógica das provas não demonstrativas, é o tratado da “lógica” que procura argumentar pró ou contra o opinável e o preterível. É uma forma de ampliar a palavra ‘prova’ para além da dedução e da experiência, significando a retomada de uma antiga tradição: a tradição da retórica e da dialética. Destarte, remete-se, principalmente, ao pensamento renascentista e, para além dele, ao dos autores gregos e latinos que estudavam a arte de persuadir e convencer, que é a técnica da deliberação e discussão, denominando-se, por isso, nova retórica.

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O AUTOR:

Marcio Pedro Cabral nasceu em Maringá - PR, formou-se em Licenciatura em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente estuda graduação em Pedagogia pelo INSEP - Faculdade Instituto Superior de Educação do Paraná; graduação em Sociologia pela Faculdade UNIASELVI.

Como curso de pós-graduação possui, Especialização em Filosofia, Sociologia e Ensino Religioso pela Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco; Especialização em Psicopedagogia Institucional, Clínica e Hospitalar pela Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco; Especialização em Docência no Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atuando como docente no Ensino Superior foi professor na FEITEP - Faculdade de Engenharia e Inovação Técnico Profissional - Maringá - PR, e também, professor convidado na UNIUBE - Universidade de Uberaba - Pólo Maringá - PR. Como docente no Ensino fundamental e Médio lecionou nas instituições: Colégio Dom Bosco - COC - CDB - Maringá - PR; Colégio Carlos Démia - Ensino infantil, Fundamental e Médio - Maringá - PR; Colégio Anjos Custódios - Educação infantil, ensino fundamental e médio - Marialva - PR; Secretaria de Estado da Educação do Paraná - Núcleo Regional de Educação Maringá - SEED - Maringá - PR; Governo do Estado do Paraná - GOVERNO/PR - Alfabetização de adultos. Área de

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atuação: Filosofia e Ética; Filosofia do Direito; Hermenêutica e Argumentação; Ciência Política e Sociologia.