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NASS, M. Ensaios Filosóficos, Volume XI – Julho/2015
A noite do desenho: fé e saber em Memórias de Cego de Jacques
Derrida
Michael Nass1
Tradução e revisão por Dirce Eleonora Nigro Solis
Resumo
Este artigo analisa a escolha do tema da cegueira em Memórias de Cego, de Jacques
Derrida, a partir de uma demanda pessoal do autor em função de um episódio narrado
por ele em sua infância. Discute por que uma interrogação sobre as origens do desenho
traz também uma interrogação sobre a invisibilidade, a crença cega e a fé em Derrida,
ligada a uma ruptura com o visível e à dimensão do autorretrato. Sustenta que é uma
certa fé que abre espaço para não apenas a arte religiosa, mas para a arte em geral.
Palavras-chave: Memória. Fé. Desenho.
Résumé
Cet article porte sur le choix du thème de la cécité dans Mémoires D’Aveugles de
Jacques Derrida en fonction d’une demande personnelle de l'auteur dans un épisode de
son enfance raconté par lui. Explique pourquoi une question sur les origines du dessin
apporte également une question sur l'invisibilité, la croyance aveugle et la foi en
Derrida, reliée à une rupture avec le visible et la taille de l'auto-portrait. Soutient que
c’est une certaine foi qui ouvre de l’espace pour non seulement de l'art religieux, mais
de l'art en général.
Mots-Clés: Mémoire. Foi. Dessin.
Em 1990, o museu do Louvre inaugurou sob o título “Parti Pris” uma nova
série de exposições organizadas por não-especialistas em arte ou em história da arte,
quer dizer, por pensadores, escritores, ou intelectuais cuja formação não era nas artes
propriamente ditas, mas cujo trabalho teórico ou intelectual poderia trazer um novo
olhar sobre a arte.2 O primeiro a ser convidado a tomar parte dessa iniciativa foi o
filósofo Jacques Derrida. Com a ajuda, pois, dos curadores do Louvre, Derrida escolheu
nos porões do museu mais de setenta desenhos e quadros para sua exposição e redigiu
um texto ou catálogo de uma centena de páginas para acompanhar e comentar as obras
selecionadas. O tema que Derrida escolheu para esta exposição no seio das artes ditas
“visuais” não foi outro que aquele do cegamento (l’aveuglement) ou da cegueira (cécité)
no desenho e na pintura, a relação entre o visível e um certo invisível, e o título dado a
1 DePaul University. E-mail: [email protected]
2 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada em julho de 2009 por ocasião de um colóquio
organizado pela Associação Internacional de Estudos Franceses e publicada no Cahier de l’ A.E.E.F.
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esta exposição e a seu catálogo foi Memórias de cego.3 Mas então por que este tema da
cegueira (l’aveuglement), e por que não era ele completamente imprevisível?
Conhecido essencialmente por seu trabalho em história da filosofia de Platão a
Heidegger e para além, Derrida interrogou em numerosos textos desde os anos sessenta
as condições da aparência, do fenômeno, da ideia, ou seja, da visibilidade simplesmente,
na história da filosofia, a relação entre o visível e tudo o que condiciona esse visível.
Num texto chave dos anos sessenta, por exemplo, A farmácia de Platão (1968), Derrida
demonstra como, em Platão, o invisível não está apenas em relação com o visível, mas é
sua condição mesma, a origem que se esconde num para além do ser que abre o espaço
do visível4. O invisível está, pois, na origem de uma filosofia que foi iluminada em
todos os seus conceitos.
Derrida o diz no texto que nos concerne aqui, Mémoires d’Aveugle [Memórias
de Cego], “Toda a história, toda a semântica da ideia europeia, em sua genealogia grega,
sabemos, vemos, atribui o ver ao saber” (MA 18,). Vemos ou compreendemos bem o
que Derrida quer dizer aqui; o entendimento ou o saber- a ideia, idea ou eidos, como
contorno ou configuração visível- se representa desde Platão a partir de uma visibilidade
inteligível, visibilidade ao mesmo tempo metafórica e fonte de toda metáfora. Mas a
fonte desta visibilidade inteligível é ela mesma, enquanto tal, invisível, um Bem
absoluto (senão uma Khora) que se oculta num para além do ser e, portanto, num para
além do visível e da luz. É, pois, certa invisibilidade, uma certa noite, e não o sol
inteligível e hiper luminoso que está na origem de toda visibilidade, seja a visibilidade
sensível, seja a visibilidade inteligível.
Esta análise de Platão é apenas um exemplo de uma trajetória e de um
argumento que podemos seguir nos múltiplos textos de Derrida em sua releitura da
história da filosofia. Cada vez é uma certa visibilidade, um certa cegueira, se quisermos,
que está na origem do visível- origem que é preciso, bem evidentemente, pensar sem luz
e pois sem presença ou sem fundamento presente. E Derrida até tratou estes temas, sem
ser- deixe-me repetir isso mais uma vez- especialista em nenhuma arte, em numerosos
escritos teóricos sobre estética em geral (por exemplo em Glas ou La vérité en peinture
3 Mémoires d’aveugle: L´’autoportrait et d’autres ruines. Paris: Éditions de la Réunion des
musées nationaux, 1990. [Memórias de cego: autorretrato e outras ruinas]. A partir daqui abreviado MA-
A exposição no Louvre teve lugar entre 26 de outubro e 21 de janeiro de 1991. 4 “A farmácia de Platão” in La Dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972, 69-197. Derrida fala
aí por exemplo da “invisibilidade absoluta da origem do visível, do bem-sol-pai-capital, o ocultamento na
forma da presença ou do estado de ser ( étantité), todo esse excesso que Platão designa como epekeina
tes ousias” ( 193)
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[A verdade na pintura]), bem como em textos mais pontuais e bastante numerosos para
citar aqui sobre pintura, teatro, cinema e fotografia, quer dizer, quase todas as artes da
representação e do espetáculo.
A escolha do cegamento (aveuglement) ou da cegueira (cécité) na arte não foi,
pois, totalmente imprevisível para esta exposição no museu do Louvre em 1990. Mas
um pouco mais fácil de prever foi a maneira como Derrida pensa este invisível em
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] em sua relação com a fé ou a crença. Eu
gostaria, então, de demonstrar aqui porque uma interrogação tratando das origens do
desenho chegou inevitavelmente a uma interrogação sobre a invisibilidade e sobre a fé,
sobre uma certa crença cega, ligada sempre a uma ruptura com o visível, às ruínas e à
interrupção do autorretrato. Gostaria de sustentar que é uma certa fé que abre o espaço
não apenas da arte religiosa, mas – tese mais ambiciosa - da arte em geral. Enfim, na
esteira de Derrida em Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego], desejo colocar a
questão de saber se nunca se pode escrever simplesmente sobre arte enquanto crítico de
arte ou se se deve, como Derrida parece sugerir, daí se aproximar sempre a fim de
provar o invisível na arte e testemunhar sua própria cegueira (aveuglement).
Como o título sugere, Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] é mesmo uma
memória, escrita na primeira pessoa, ou antes nas duas primeiras pessoas - a do autor,
parece, Jacques Derrida, e uma outra que vem regularmente interrogar e interromper
esta primeira.5 Essa duas vozes vão nos propor dois olhares sobre o sujeito, dois pontos
de vista sobre a arte, mas sobretudo vão permitir a Derrida colocar em cena toda uma
série de relações entre o invisível e o visível, por exemplo, o tato e a visão, a mão e o
olho, a palavra e a visão, e enfim Derrida ele próprio, o filósofo ou escritor invisível de
palavras, e um irmão mais velho para o qual Derrida vai devotar uma espécie de inveja
pelos seus talentos de desenhista. Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] se tornará
não apenas uma memória, mas uma espécie de confissão - um catálogo de uma
exposição não exatamente como os outros e, portanto, dificilmente previsível.
Foi tendo em vista essa longa interrogação entre o visível e o invisível que
Derrida trouxe dos porões do Louvre desenhos e quadros que representam os temas da
cegueira ou do cegamento, tal como o Estudo do cego de Antoine Coypel, ou Cristo
curando os cegos de Zuccaro, ou Tobit devolvendo a visão ao seu pai de Rubens, de
5 Como esta segunda voz anuncia bem no início deste polilóguio ou diálogo, “ vós pareceis
reduzir a visão monocular das coisas” (MA 9).
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Bianchi ou de Rembrandt. Mas Derrida vai ainda mais longe, muito além da cegueira
como tema explícito ou conteúdo identificável do desenho, a fim de dar à invisibilidade
ou à cegueira no desenho um estatuto quase – transcendental, Derrida anuncia como
primeira hipótese no início do livro, “o desenho é cego, quando não o desenhista ou a
desenhista” (MA, 10). Propósito surpreendente “que vai contra o bom senso mesmo”,
pois se há escultores cegos, e numerosos escritores célebres que foram cegos, e mesmo
músico surdos, não há grandes desenhistas cegos. Com efeito, Derrida sustenta não
apenas que todo desenhista é cego, mas que “Enquanto tal e em seu próprio momento, a
operação do desenho teria alguma coisa a ver com a cegueira” (MA, 10). O desenhista é
pois sempre de alguma maneira um cego, o desenho provém sempre de uma operação
de cegamento e aquilo que o desenhista representa não é nada mais – ele também - que
um cego. Pois “um desenho de cego é um desenho de cego. Duplo genitivo” (MA,10). A
cegueira é, pois, ao mesmo tempo a fonte, se podemos dizer, de todo desenho, a
atividade de todo desenho, e o tema de todo desenho. Como compreender estas
hipóteses que parecem entrar em choque com o senso comum que teria como tendência
adiantar primeiramente que o desenho é produto da visão e não da cegueira, a obra de
um vidente e não de um cego e, em segundo lugar, que se o cego ou a cegueira pode
bem ser o tema de um desenho, não é um tema entre mil outros?
Derrida não é evidentemente surdo ou cego a esse senso comum; ele fala com
efeito de duas “lógicas”, mas também de dois grandes “paradoxos” concernentes ao
invisível como origem do desenho (MA,46), dois pensamentos paradoxais pois, “ um
pensamento transcendental e um pensamento sacrificial do desenho do cego” (MA, 96).
Para esquematizar estes dois pensamentos ou paradoxos, podemos dizer que o
pensamento transcendental, tal como seu nome indica, é a condição do desenho, “a
condição de possibilidade invisível do desenho” (MA, 46). E então, enquanto tal, essa
condição não pode se figurar num desenho embora abra o espaço de todo desenho e de
todos os temas e objetos do desenho. A lógica transcendental é então aquilo que abre a
possibilidade de outra lógica ou pensamento, quer dizer, a possibilidade da lógica
sacrificial segundo a qual se representa no desenho qualquer coisa que suceda à visão,
seja a cegueira, a cura do cego ou a conversão do cego.
Derrida identifica três aspectos na primeira destas duas lógicas ou pensamentos,
“três espécies de impoder (impouvoir) que dão sua fonte quase-transcendental à
experiência do desenho” (MA, 48), três maneiras de pensar esta relação entre a
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visibilidade do desenho e sua origem ou sua condição transcendental e invisível. O
primeiro aspecto parte de uma constatação banal mas determinante, constatação que
salta aos olhos de quem quer que jamais tenha desenhado ou pintado: quando um
desenhista desenha ou um pintor pinta, ele não pode ver e desenhar ou ver e pintar no
mesmo momento. Ele deve observar e depois desenhar, ver e depois se fiar na memória
representando o objeto no retrato ou no desenho. “mesmo se o modelo está
presentemente em frente ao artista”, diz Derrida, “é preciso que o traço ocorra na noite”
(MA,50). Ou seja, para retomar o título de meu ensaio, mesmo o desenho que se faz em
pleno dia ou em plena luz deve continuar na noite do desenho; “o artista é obrigado a
atravessar uma espécie de cegueira, uma noite absoluta onde o objeto é sombrio no
invisível e onde o artista deve se fiar à memória mais que à percepção.” (MA, 53).
Uma vez que o desenho provém sempre de uma cegueira, os desenhos que
colocam em cena os cegos ou os não-videntes são espécies de alegorias do desenho ou
da origem do desenho. É porque Derrida se interessa tanto pela tradição que atribui a
origem do desenho a Dibutade, jovem que, para guardar a memória de seu amado traça
seu perfil sobre um rochedo, tradição que atribui, pois, a origem do desenho – e talvez
também do amor- não à presença do modelo que se quer recordar, mas à sua ausência,
ausência que é preciso sempre suprir com os traços. Derrida escreve, a propósito de
Dibutade enquanto alegoria desta lógica transcendental, é “como se ver fosse interdito
para desenhar, como se só se desenhasse com a condição de não ver” (MA,54). É pois
uma alegoria, uma história que mais uma vez “remete a origem da representação gráfica
à ausência ou a invisibilidade do modelo”. (MA,54).
O segundo aspecto desta lógica transcendental, a segunda razão pela qual a
operação do desenho está sempre relacionada à cegueira, é justamente o próprio traço.
Se a operação pela qual o traço se produz ocorre sempre na noite, este traço permanece,
uma vez traçado, ele próprio invisível; vemos a borda de um contorno, vemos a forma
ou a cor, mas não vemos jamais o próprio traço. Porque “nada pertence ao traço” (MA,
58), o traço não sendo “nem inteligível nem sensível” (MA,59), ele se subtrai ao que se
pode ver no desenho ou no quadro-desenho ou quadro que representa algo ainda se os
traços que o compõem não representam nada e não são vistos. Derrida fala, pois, do
“ocultamento” ou da “eclipse”, da “ inaparência diferencial do traço” (MA,58).
A terceira relação entre o invisível e o visível nesta lógica ou neste pensamento
transcendental, é o que Derrida apelida de a retórica do traço. Para o meu propósito
aqui, é o mais importante dos três aspectos. É a relação entre o desenho, digamos
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“visível”, daquilo que no desenho é visível, e as palavras invisíveis, a retórica que vem
invadir o campo do desenho ou da pintura, que vem - ao menos nos desenhos e quadros
representativos dos quais se trata aqui- “ se articular com a articulação” do desenho.
(MA,60). Derrida escreve, “a remoção da linha, o que a remove no momento em que se
puxa o traço” é “o que deixa a fala” (MA, 60), o que deixa ressoar as palavras no fundo
do desenho. O desenho visível é, pois, sempre assombrado por palavras invisíveis, pelo
rumor dessas sílabas [que] vem brotando nele.” (MA,44).
Se o fenômeno visível está sempre no espaço e se a diferença faz parte de sua
apresentação no espaço, o fenômeno sonoro parece - e eu digo “ parece” porque este
não é senão um fantasma - ocupar em nós o tempo e parece dar acesso a um sentido
atemporal e sem diferença, um sentido verdadeiro e não mais uma simples
representação. Eis a tese derridiana de um fonocentrismo que determinou no ocidente
não apenas a metafísica ou as teoria linguísticas, mas, como veremos, a pintura. A
relação de dominação ou de hegemonia das palavras sobre a imagem, de um certo
invisível sobre o visível, “do dizer sobre o ver, da palavra sobre o desenho ou da
legenda sobre a inscrição” (MA, 60). Como veremos em um instante, Derrida vai ao
mesmo tempo analisar esta hegemonia e exibi-la, questioná-la e colocá-la em cena em
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] - quer dizer em seu texto, ele mesmo
invisível, que comenta os desenhos e os quadros. Ele fará isso repetindo, a fim de
deslocar uma luta entre o ver e o dizer, o desenho visível e a palavra invisível, luta que
terá começado desde sua infância em virtude da inveja que Derrida experimenta em
relação ao seu irmão, melhor desenhista que ele e, portanto, o filho querido de seus pais.
Mas antes de ver esta luta fraternal, a bem dizer fratricida, é preciso apresentar
brevemente a segunda lógica ou o segundo pensamento desta invisibilidade no desenho-
a lógica sacrificial.
Se, como vimos, o pensamento transcendental não se vê jamais ou não se
apresenta jamais no desenho, mas dele é a condição, a lógica ou o pensamento
sacrificial reflete esta impossibilidade, quer dizer “representa... este irrepresentável”
(MA, 46). O pensamento sacrificial é, pois, um pensamento de tudo “aquilo que
acontece aos olhos, a narrativa, o espetáculo ou a representação dos cegos” (MA,46).
Há então a condição transcendental de todo desenho e depois tudo aquilo que representa
ou que exibe esta condição, esta cegueira ou este cegamento na origem do desenho. Para
retomar uma oposição ao mesmo tempo clássica e expirada, o pensamento
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transcendental é um pensamento de conteúdo, dos temas ou do objeto. É este último,
como reflexo do primeiro, como representação de sua própria condição, que determinou
bem evidentemente a escolha dos desenhos que Derrida integra na exposição Memórias
de Cego- cenas de cegos ou de deficientes visuais, cenas de cabra cega ou de errância
com os olhos vendados, cortados, cegados, ou mergulhados na escuridão, ou então
levemente escondidos atrás destes suplementos da visão que são os óculos, os
monóculos ou os pince nez. A cegueira não pode, pois, ser um tema entre outros no
desenho ou na pintura. Cada vez que se representa um cego, é como se se representasse
a origem mesma do desenho, o invisível que é a condição de todo desenho.
Como para a lógica transcendental, há três aspectos da lógica sacrificial, três
espécies de violências que podem suceder à visão. Há primeiro o equívoco por trapaça
ou engano, o erro de Coypel, por exemplo, onde se vê o homem com seus olhos
vendados sujeito à errância ou à queda, ou então O cego enganado de Greuze, onde se
vê a esposa enganando com seu amante o marido cego; e depois há – e eis os irmãos que
esperamos desde o início - os desenhos que representam Isaac tomando Jacob por Esaú
e abençoando este primeiro por causa de seu ardil, Isaac não apenas tocando Jacob
pensando que é seu irmão, mas o abençoando com suas palavras, “nomeando” diz
Derrida, “um sucessor na noite” (MA, 97). Esta substituição de um filho no momento da
herança irá, pois, levantar, para Derrida a grande questão da eleição entre irmãos, do
eleito que é nomeado na noite.
A segunda violência à qual o olho está submetido é o castigo. O cego é na
tradição judaico-cristã da qual se trata aqui, objeto do castigo – mas também - e é o
terceiro aspecto-objeto do sacrifício. Pois é o sacrifício dos olhos que torna possível, por
uma espécie de economia hiperbólica uma outra visão, uma visão interior e mais
iluminada. Derrida escreve, “nesta lógica do suplemento sacrificial, há sempre uma
recompensa da ruína, o lucro de um prejuízo, em suma, uma hipótese dos olhos e um
prêmio à cegueira” (MA111). Pensamos em Milton, por exemplo, a quem Derrida se
refere, que interpreta sua própria cegueira como um sacrifício por uma nobre causa
(MA,111). Sacrificando a visão, recebemos o dom de uma segunda vista, uma vez que
“a cegueira não faz senão iluminar os “olhos de dentro”” (MA,110). É, pois, sempre
pela violência que recebemos “a revelação que abre os olhos e faz passar da luz sensível
ou do lúmen natural à luz inteligível ou sobrenatural.” (MA,96).
Do engano ao castigo e enfim ao sacrifício, nós lidamos cada vez mais com uma
economia onde o cego não é mais aquele que é enganado, aquele que não vê o que os
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outros fazem ou veem, mas aquele que, por causa justamente de sua cegueira, se torna
“a melhor testemunha, uma testemunha eleita” (MA 106). A cegueira ou o cegamento é,
pois, a condição mesma desta luz interior, a condição de uma conversão da vista ou de
uma conversão simplesmente. Derrida escreve se referindo a um quadro de Caravaggio
que representa a conversão de São Paulo, “Cada vez que um castigo divino se abate
sobre a vista para significar o mistério de uma eleição, o cego se torna a testemunha da
fé” (MA 113). Já que Paulo foi o único a ver, já que a cegueira temporária ocorre nele e
em nenhum outro, ele se torna a melhor testemunha de um novo testamento que tem
como missão abrir os olhos dos outros.
Ora, esta teologia greco-judaico-cristã da luz, da revelação e da eleição não tem
nada de surpreendente; para aquele que segue Derrida nesta Paixão do desenho ou da
pintura, é uma trajetória bem conhecida, bastante clássica. Mas em Mémoires d’aveugle
[Memórias de Cego], Derrida faz mais que simplesmente seguir esta trajetória clássica
nos desenhos e nos quadros da tradição judaico- cristã. Ele segue esta história exibindo
a si mesmo, desenhando o seu próprio autorretrato. Pois Mémoires d’aveugle [Memórias
de Cego] é mesmo um autorretrato, tecido com as palavras ao invés de desenhado com
os traços.6 Há primeiramente a história da própria exposição no Louvre, brevemente
adiada, ele nos conta, em virtude de uma doença ocular em Derrida que paralisou seu
olho esquerdo justamente no momento da exposição. Impedido de fechar seu olho
esquerdo, a cegueira chegou desta vez aqui por um excesso de visão, pela privação de
um piscar de olhos, “este instante de cegueira que assegura à vista sua respiração”
(MA38). Com seu “olho esquerdo fixo e terrível de se ver num espelho”, Derrida
parece, ele nos deixa ouvir isso, um pouco à Fantin-Latour em alguns de seus
autorretratos, incluindo aquele escolhido por Derrida para a capa de Mémoires
d’aveugle [Memórias de Cego], um olho ciclópico nos fixando sem descanso seu olhar
enquanto que o outro sombreia na escuridão.
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] é um autorretrato de Derrida, e ele usa
como subtítulo, “ O autorretrato e outras ruínas”. Quase tudo o que nós dissemos do
desenho em geral se revela, pois, talvez ainda mais claramente no autorretrato. Quando
um artista tenta se desenhar, por exemplo, torna-se mais claro que ele não possa ao
mesmo tempo se ver e se desenhar enquanto se vê num espelho, que ele não possa se
desenhar enquanto desenha sem se olhar num espelho onde ele não está desenhando. O
6 Derrida diz com efeito que ele tece “ com as palavras em torno do desenho” (MA44).
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que é chamado um autorretrato é pois aprofundado pelo invisível e não se encontra
jamais num processo de identificação. A invisibilidade aprofunda a visibilidade assim
como a ruína mina o autorretrato que não pode jamais se apresentar como tal. A
inevitável cegueira entre o desenhista e seu objeto atinge aqui o próprio desenhista, no
interior mesmo de seu autorretrato. Derrida escreve, “O desejo de auto-apresentação não
se registra jamais e eis porque o simulacro tem lugar” (MA 121). A fim de se
representar, o artista mergulha na noite do retrato onde a visão deve ceder à memória e o
estatuto começa a tremer. Em revanche, e precisamente por causa da lógica
transcendental da cegueira, cada vez que o desenhista coloca um cego em cena, ou
descreve uma cena de cegueira, ele faz uma espécie de autorretrato. O autorretrato é
estritamente impossível mas, pela mesma lógica, os desenhos de cego são muitas
alegorias desta impossibilidade.
Por causa dessa identidade sonhada, mas impossível, sempre fantasmática, entre
o desenhista e o modelo, é preciso palavras provenientes do exterior do retrato para
afirmá-lo como autorretrato. Em outros termos, é preciso um efeito de assinatura para
identificar o autorretrato. Pois, escreve Derrida, “ É apenas por hipótese que nós o
imaginaríamos se desenhando diante de um espelho, e pois, prestes a fazer o
autorretrato do desenhista.” (MA 64). Para identificar um autorretrato, é preciso um
signatário que assina e que diz “ este sou eu”. O título do autorretrato “ depende sempre
do efeito jurídico do título, este acontecimento verbal que não pertence ao interior,
somente à sua borda parergonal” (MA, 68). Eis mais uma vez a hegemonia da fala, a
autoridade justamente de sua palavra sobre a visão.
Mesmo se é, portanto, somente por hipótese que se pode e se deve ler Mémoires
d’Aveugle [Memórias de Cego] como uma espécie de autorretrato de Jacques Derrida,
mesmo se é preciso um efeito de assinatura para religar uma das duas vozes à pessoa de
Jacques Derrida, há nesse texto, neste testemunho, muitos elementos autobiográficos
dos dias precedentes à exposição em que Derrida sofre desta doença ocular desde a sua
infância na Argélia. Há, pois, um sonho que coloca em cena o tema dos filhos e dos
cegos, a relação pai e filhos, e inevitavelmente aquele de Derrida e de seus filhos;
encontramos aí também uma lembrança de seu pai em Alger, uma referência ao avô, a
lembrança de um fracasso miserável quando ele tenta um dia desenhar sua mãe em seu
leito de hospital (MA, 44). Quase toda a família está lá, o pai, a mãe, o avô, os filhos,
mas sobretudo o irmão, o irmão mais velho que foi na infância melhor desenhista que
ele e cujos desenhos suscitaram repetidamente os elogios de seus pais. Tendo sofrido,
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diz ele, por ver os desenhos de seu irmão “expostos permanentemente, religiosamente
emoldurados nas paredes de todos os cômodos” (MA, 43), Derrida se vinga , de alguma
forma, com a exposição no Louvre, a exposição não de seus desenhos, claro, mas de
suas palavras sobre o desenho. Derrida coloca em cena esta rivalidade entre seu irmão e
ele como um duelo entre a visibilidade do desenho e a invisibilidade das palavras.
Acreditando ser de algum modo o irmão eleito precisamente porque ele não pode nem
desenhar nem mesmo, diz ele, olhar um desenho, eleito pela extrema cegueira da qual
sofre, ele terá “convertido” - e é sua palavra – “ sua enfermidade em signo de eleição
secreta.” (MA, 100). Eleito (Élu) como seu nome secreto, Éli, já nos deixa compreender
isso, ele sai assim, diz ele, de “uma noite em que eu seria de alguma forma eleito” (MA
43). Ele terá usado de astúcia com as palavras a fim de receber, como Jacob, a benção
de um certo Isaac, como seu primeiro nome público ou visível, Jacques - nome que
começa com Ja-cob e termina como Is-aac - nós o deixamos também ouvir (MA, 100).
Se seu irmão conheceu os primeiros sucessos na família com os desenhos, é porque
Jacques, o mais novo, estava para receber a ordem de sua eleição por uma arte do
invisível em vez do visível: “fui chamado por um outro traço”, diz ele, esta grafia de
palavras invisíveis, este acordo do tempo e da voz que se chama verbo- ou escritura”
(MA, 44).
Derrida se inscreve, pois, numa longa tradição no Ocidente, de Homero a
Milton, Joyce e Borges, onde a cegueira torna possível uma visão ou dá uma nova força.
Mas ele o faz, pode-se bem suspeitar, sem subscrevê-la completamente, a fim de
justamente jogar com esta tradição, de interrogá-la e de interrompê-la, de cegá-la, de
alguma forma, localizando seu ponto cego - ponto cego, parece-me, que concerne a esta
solidariedade na tradição entre a luz e a palavra interior, concernente a esta conversão
da vista e da palavra. “ Não há autorretrato sem confissões na cultura cristã” (MA, 119),
diz Derrida que ao mesmo tempo afirma esta cultura repetindo-a- confessando, por
exemplo, seus desejos de fratricida- e tenta encontrar em que esta tradição é cega. Em
vez de seguir simplesmente Agostinho nas Confissões que “conjura as tentações da vista
e chama esta conversão da luz à luz, de fora para dentro” (MA119), Derrida quer
produzir uma conversão nesta conversão privilegiando não o autorretrato, mas aquilo
que interrompe esta identidade de si consigo mesmo, as ruínas ou o hetero-retrato de
todo autorretrato, privilegiando não a luz interior mais que a exterior, mas a cegueira na
origem do desenho e da fé que precede toda revelação e toda luz.
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Mas é com efeito a fé que anima mais que tudo esta exposição e este livro
intitulado Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego], uma vez que deve ser pensada sem
luz e sem revelação, uma fé que condiciona toda revelação e, portanto, toda religião.
Vimos como a origem do desenho está sempre ligada à cegueira, como o invisível é a
condição transcendental de todo desenho. Escutemos agora como este invisível está
sempre ligado a um ato de fé, à gratidão e à benção. Derrida escreve, “o que guia o
ponto gráfico, a caneta, o lápis ou o estilete?), é a observação respeitosa de um
comando, o reconhecimento antes do conhecimento, a gratidão de receber antes de ver,
a benção antes do saber” (MA, 35). Ou ainda, “a fidelidade da fé importa mais que a
representação que ela ordena e, portanto, precede o movimento. E a fé, em seu próprio
tempo, é cega “ (MA, 36).
Vemos um pouco melhor a trajetória que Derrida segue e interrompe em
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego]. Derrida inscreve em sua exposição alguns
grandes cegos da Grécia antiga, tal como Homero, assim como algumas cenas de
cegueira, tal como aquela de Ulisses que atinge o olho de Polifemo. Mas ele se volta
sobretudo, e mais e mais no livro e na exposição, para os cegos do Antigo e Novo
Testamento e sobretudo deste último.7 Pois se a filosofia grega e a tradição bíblica terão
todas as duas priorizado a luz, é sobretudo na tradição cristã que nós vemos esta
partição da vista e da luz entre uma visão carnal e uma visão espiritual, esta
internalização da luz após a conversão, enfim, este apocalipse da visão num
desvelamento total. Derrida diz do quadro de Jan Provost no Louvre que tem o título
Alegoria sagrada, “ revelação ou exposição, desvelamento que torna visível, verdade da
verdade: a luz que se mostra. Este é um apocalipse da pintura- como pintura cristã”
(MA, 123).
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] é um livro que tem em vista desde o
começo esta apoteose ou este apocalipse da pintura que revela a luz, mas também que
dá lugar a uma cegueira a mais. Pois é no fim do livro, apenas depois de ter falado de
apocalipse como desvelamento total, que Derrida relembra outra atividade dos olhos,
aquela que é frequentemente, sempre nesta mesma tradição, mais essencial que ver ou
olhar, quer dizer, chorar, borrar, cobrir com véu a vista com as lágrimas a fim de dar
acesso a uma luz ou a uma visão interior. Segundo esta tradição ainda judaico- cristã, ou
antes cristã, as lágrimas são a essência do olho porque são elas que convertem a visão
7 Há, pois, uma trajetória que conduz basicamente da cegueira de Tobit e Isaac ao Cristo curando
os cegos e à cegueira e à conversão de São Paulo.
A noite do desenho: fé e saber em Memórias de Cego de Jacques Derrida
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em prece, o olho que é uma voz que reza, um discurso da verdade em um gesto de
apelo, e o constativo em performativo; são elas que, como diz Derrida com as palavras
de Agostinho, fazem a verdade ao invés de a revelar.8 Eis porque Derrida escreve, “ Um
desenho cristão deveria ser um hino, um louvor, uma prece, um olho que implora, um
olho com as mãos juntas.” (MA, 123). E eis a última subordinação do ver ao dizer, da
visão à palavra, do desenho ao Verbo.
Segundo esta tradição Derrida está lendo, “as lágrimas revelariam o próprio do
olho, 'a essência do olho', que seria, ela, 'o próprio do homem'”(MA, 128). E, entretanto,
esta experiência das lágrimas que seria o próprio do homem permanece nesta tradição,
Derrida o observa, como algo da mulher. É a experiência daquela que chora que revela o
próprio do homem em geral, quer dizer do homem e da mulher, o próprio do homem
com relação aos outros animais. Por isso Derrida cita - e cita em inglês - ao final de
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego], o poeta Andrew Marvel, que adianta que se
muitos outros animais podem ver, “only human eyes can weep”, isto é, que somente os
olhos humanos podem chorar. As lágrimas, a experiência da conversão, da visão
interior, da prece, mas também da morte e do luto, tudo isso seria próprio do homem,
algo que o homem não reparte com outras espécies ou outros animais. Eis o preconceito
enorme de um certo discurso antropo-teológico que Derrida passou grande tempo
questionando e criticando em seus últimos livros9. Mémoires d’aveugle [Memórias de
Cego] termina com um pequeno toque que recoloca em questão todos estes privilégios
do homem numa certa cultura greco- cristã. Para Derrida, nada seria menos evidente, e
nada demonstraria melhor a cegueira da filosofia, nada testemunharia melhor uma certa
crença filosófica que não se justifica ao final nem pela razão nem pela fé elementar que
dá crédito a uma tal crença. Nada seria, pois, menos claro, e Mémoires d’aveugle
[Memórias de Cego] se apresenta como um testemunho deste fato e desta fé sempre
cega que está na origem de toda diferença, de toda identificação, breve, de toda
revelação e toda luz.
8 Derrida introduz estes temas desde o começo do livro, mesmo que ele só trate deles em detalhe
no final. Ele fala, pois, de um cego de Coypel que caminha em frente com “ um gesto que oscila no vazio
entre preensão , apreensão, a prece e o apelo. “(MA, 12). Mas é sobretudo quando ele se volta para
Agostinho no final do livro que ele insiste sobre as lágrimas que se tornam a verdade e que são o próprio
do homem.
9 Ver, por exemplo, L’animal donc je suis. [O animal que logo sou]. Edição por Marie Louise
Mallet. Paris: Éditions Galilée, 2006 e A Besta e o Soberano, volumeI, 2001-2002, édition por Michel
Lisse, Marie-Louise Mallet e Ginette Michaud. Paris: Éditions Galilée, 2008.
NASS, M. Ensaios Filosóficos, Volume XI – Julho/2015
Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego] é antes de tudo um testemunho não da
verdade de tal ou tal religião, mas da fé que torna possível toda palavra enquanto
testemunho. Num texto escrito quatro anos depois de Mémoires d’aveugle [Memórias
de Cego], intitulado Foi et Savoir [“ Fé e Saber”], Derrida sustenta que uma fé
elementar é a condição de todo testemunho e de toda memória. Cada vez que falamos,
mesmo para contar anedotas ou lembranças as mais banais - a inveja por um irmão, a
história de uma doença ocular que ameaçou uma exposição- é como se disséssemos
sempre, “ Creia naquilo que eu digo como se crê num milagre”.10 Não há aqui, é preciso
enfatizar, nada de místico ou de mistificante. Pois é preciso sempre, Derrida volta a isso
sem cessar, avaliar, criticar e questionar aquilo que se diz, aquilo que se revela no
espaço público e à luz do dia. Mas no que concerne a esta abertura àquilo que se diz, à
esta abertura de um mundo ou simplesmente do mundo, esta condição transcendental,
esse ponto cego que o outro é e deve permanecer para mim, é preciso confiar e acreditar
como se crê num milagre. É preciso, então, jamais abandonar o saber, mas é preciso
saber que uma certa fé é sempre a condição de todo saber. Para citar as últimas palavras
de Mémoires d’aveugle [Memórias de Cego], palavras que hesitam entre um ceticismo
bem desperto e uma fé absoluta e cega, “Eu não sei, é preciso crer...”
10 Foi et Savoir [Fé e Saber], Paris: Éditions du Seuil, 1996, 97. Fé e saber, NT.