A Neotenia

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Texto de consolidação A complexidade do ser humano versus inacabamento biológico Prematuridade e Neotenia Programa fechado e aberto “O Mickey Mouse que surgiu nos cinemas no fim dos anos 20 não era nem por sombras a personagem bem comportada familiar à maioria de nós hoje em dia. Era malévolo para dizer o mínimo, e exibia mesmo rasgos de crueldade. (…) Mickey tinha-se tornado virtualmente um símbolo nacional e, como tal, dele se esperava um comportamento exemplar em todas as ocasiões (…). “À medida que a personalidade de Mickey amoleceu, a sua aparência mudou. Muitos admiradores de Disney estão conscientes desta transformação, mas poucos (suspeito eu) reconheceram o tema coordenador por detrás de todas as alterações – de facto, não tenho a certeza de que os próprios desenhadores de Disney se dessem conta explicitamente do que estavam a fazer, já que as mudanças apareceram de maneira vacilante e calma. Em poucas palavras, o suave e inofensivo Mickey tornou-se progressivamente mais jovem de aparência. (Já que a idade cronológica de Mickey nunca se alterou – como muitas outras personagens da banda desenhada, ele permanece impermeável às devastações do tempo -, esta mudança na aparência, mantendo-se a idade constante, constitui uma verdadeira transformação evolutiva. A juvenilização progressiva como fenómeno evolutivo denomina-se neotenia. As características mudanças de forma durante o crescimento humano têm inspirado uma literatura biológica abundante. Já que a extremidade cefálica do embrião se diferencia primeiro e cresce mais depressa no útero do que a extremidade caudal (em linguagem técnica, trata-se de um gradiente ântero-posterior), um recém-nascido possui uma cabeça relativamente grande ligada a um corpo do tamanho médio, com pernas e pés diminutos. O gradiente é invertido durante o crescimento extra uterino, quando as pernas e os pés ultrapassam a extremidade cefálica. As cabeças continuam a crescer muito mais lentamente do que o resto do corpo, o que leva a que o seu tamanho relativo decresça.

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Texto de consolidação

A complexidade do ser humano versus inacabamento biológico Prematuridade e Neotenia Programa fechado e aberto

“O Mickey Mouse que surgiu nos cinemas no fim dos anos 20 não era nem por sombras a personagem bem comportada familiar à maioria de nós hoje em dia. Era malévolo para dizer o mínimo, e exibia mesmo rasgos de crueldade. (…) Mickey tinha-se tornado virtualmente um símbolo nacional e, como tal, dele se esperava um comportamento exemplar em todas as ocasiões (…).

“À medida que a personalidade de Mickey amoleceu, a sua aparência mudou. Muitos admiradores de Disney estão conscientes desta transformação, mas poucos (suspeito eu) reconheceram o tema coordenador por detrás de todas as alterações – de facto, não tenho a certeza de que os próprios desenhadores de Disney se dessem conta explicitamente do que estavam a fazer, já que as mudanças apareceram de maneira vacilante e calma.

Em poucas palavras, o suave e inofensivo Mickey tornou-se progressivamente mais jovem de aparência. (Já que a idade cronológica de Mickey nunca se alterou – como muitas outras personagens da banda desenhada, ele permanece impermeável às devastações do tempo -, esta mudança na aparência, mantendo-se a idade constante, constitui uma verdadeira transformação evolutiva. A juvenilização progressiva como fenómeno evolutivo denomina-se neotenia.

As características mudanças de forma durante o crescimento humano têm inspirado uma literatura biológica abundante. Já que a extremidade cefálica do embrião se diferencia primeiro e cresce mais depressa no útero do que a extremidade caudal (em linguagem técnica, trata-se de um gradiente ântero-posterior), um recém-nascido possui uma cabeça relativamente grande ligada a um corpo do tamanho médio, com pernas e pés diminutos.

O gradiente é invertido durante o crescimento extra uterino, quando as pernas e os pés ultrapassam a extremidade cefálica. As cabeças continuam a crescer muito mais lentamente do que o resto do corpo, o que leva a que o seu tamanho relativo decresça.

A adicionar a isto, durante o crescimento humano dá-se um conjunto de mudanças na própria cabeça. O cérebro cresce muito lentamente após os 3 anos de idade e o crânio bulboso do infante dá lugar à configuração mais longilínea e de testa mais baixa do adulto. Os olhos praticamente não crescem e o seu tamanho relativo decresce abruptamente. Mas a mandibula torna-se cada vez maior. As crianças, em comparação com os adultos, têm cabeças e olhos maiores, mandíbulas mais pequenas, crânio mais proeminente e bulboso e pernas e pés mais pequenos e gordos. Lamento ter de o dizer, mas as cabeças dos adultos são, no seu conjunto, mais simiescas.

Mickey, no entanto, atravessou este caminho ontogénico em sentido inverso, posto que assumiu uma aparência ainda mais acriançada à medida que se tornava o atraente e inofensivo anfitrião de um reino mágico.

Os desenhadores de Disney transformaram Mickey usando muitas vezes ardis sugestivos que mimetizam por caminhos diferentes as mudanças da própria natureza. (…) A cabeça cresceu, ficando relativamente mais larga e com traços mais juvenis. (…) O olho de Mickey

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cresceu de duas maneiras: primeiro, através de uma mudança evolutiva descontínua principal, em que todo o olho ancestral se tornou a pupila dos seus descendentes, e, em segundo lugar, devido a um posterior aumento gradual de tamanho. O melhoramento de Mickey no alargamento do crânio seguiu uma via interessante (…) a forma do círculo não podia ser alterada directamente para providenciar um crânio bulboso. Em vez disso, as orelhas de Mickey moveram-se para trás, aumentando a distância ao nariz e dando à testa uma forma arredondada em vez de inclinada. Apliquei o meu melhor par de compassos aos três estádios da filogenia oficial – a figura do início dos anos 30, de nariz fino e orelhas avançadas, a figura mais tardia e vulgar (1947) e o rato moderno. Medi assim três sinais de juvenilidade aduladora de Mickey: aumento do tamanho do olho em percentagem do comprimento da cabeça; aumento do tamanho da cabeça em percentagem do tamanho do corpo; e aumento da abóbada craniana, medido pelo deslocamento para trás da orelha da frente (distância da base do nariz até ao topo da orelha da frente em percentagem da distância da base do nariz até ao topo da orelha traseira).

Os leitores podem de facto perguntar agora o que é que um cientista, no mínimo marginalmente respeitável, tem estado a fazer com um rato destes. Mas tenho de facto dois pontos sérios a salientar. Devemos perguntar porque é que Disney escolheu mudar a sua personagem persistentemente na mesma direcção. Os símbolos nacionais não são alterados ao sabor de caprichos e os pesquisadores de mercado (os que trabalham para a indústria de bonecas) têm perdido uma grande quantidade de tempo a aprender quais os traços mais atractivos para as pessoas. Os biólogos também têm dispendido muitíssimo tempo no estudo de um assunto análogo numa variedade de animais.

Num dos seus mais famosos artigos, Konrad Lorenz argumenta que os seres humanos utilizam as diferenças características de forma entre bebés e adultos como importantes referências do comportamento. Ele acredita que os traços da juvenilidade desencadeiam «mecanismos inatos de libertação» para a afeição e cuidado nos humanos adultos. Quando vemos uma criatura viva com características de bebé, sentimos um surto automático de ternura desarmante. O valor adaptativo desta resposta não pode praticamente ser posto em questão, já que temos de cuidar dos nossos bebés. (…) Ora, a nossa reacção à características

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de bebé é na verdade inata e herdada directamente de primatas antepassados – como Lorenz argumenta –ou é simplesmente aprendida a partir da nossa experiência imediata com bebés e enxertada sobre uma predisposição evolutiva para ligar laços de afeição a certos sinais aprendidos. (…) Só afirmo que os traços de bebé tendem a desencadear fortes sentimentos de afeição nos humanos adultos, seja a sua base biológica a programação direta ou a capacidade de aprender e fixar sinais. (…) Lorenz enfatiza o poder que os traços juvenis exercem sobre nós e a qualidade abstracta da sua influência, (…) somos enganados por uma resposta desenvolvida em relação aos nossos bebés e transferimos esta reacção para o mesmo conjunto de características noutros animais. (…)

No importante livro Expression of the Emotions in Man and Animals, publicado em 1872, Charles Darwin traçou a base evolutiva de muitos gestos comuns a acções originalmente adaptativas dos animais, mais tarde interiorizadas como símbolos nos seres humanos, com o que defendeu a continuidade evolutiva da emoção, e não apenas da forma. Grunhimos e levantamos o lábio superior quando em ira feroz, para expormos os nossos não existentes dentes caninos de luta. O nosso gesto de aversão repete as acções faciais associadas com o acto altamente adaptativo de vomitar nas circunstâncias necessárias. Darwin concluiu, com muita aflição de numerosos vitorianos seus contemporâneos, que, «na humanidade, algumas expressões, tais como o eriçar do cabelo sob a influência do terror extremo ou o descobrir dos dentes sob a da raiva furiosa, não podem praticamente ser entendidas excepto com base na crença de que o homem alguma vez existiu numa condição muito mais baixa e animalesca».

Em qualquer caso, as características abstractas da infância humana despertam em nós poderosas respostas emocionais, mesmo quando ocorrem noutros animais. O caminho evolutivo de Mickey Mouse na rota do seu próprio crescimento invertido reflecte a descoberta inconsciente deste princípio biológico por Disney e os seus desenhadores.(…)

Como comentário biológico secundário e sério à odisseia de Mickey nos meandros da forma observo que o seu caminho para a juventude eterna repete em epítome a nossa história evolutiva. Porque os seres humanos são neoténicos. Nós desenvolvemo-nos retendo no estado adulto os traços juvenis originais dos nossos antepassados. Os nossos antecessores australopitecíneos, tal como Mickey em Steamboat Willie (1928), tinham mandibulas prognatas e crânios de abóbada baixa.

Os nossos crânios embrionários pouco diferem dos dos chimpanzés. E seguimos o mesmo caminho de mudança de forma durante o crescimento: decréscimo relativo da abóbada craniana, já que os cérebros crescem muito mais lentamente do que os corpos após o nascimento e aumento contínuo relativo da mandíbula. Mas, enquanto os chimpanzés acentuam essas mudanças, produzindo um adulto impressionantemente diferente de um bebé na forma, nós prosseguimos muito mais lentamente ao longo do mesmo caminho e nunca vamos tão longe. Assim, como adultos, retemos traços juvenis. Sem dúvida, mudamos o suficiente para produzir uma diferença notável entre bebé e adulto mas a alteração é muito mais pequena do que a que experimentam os chimpanzés e outros primatas.

Foi um abrandamento marcado das taxas de desenvolvimento que desencadeou a nossa neotenia. Os primatas são de desenvolvimento lento mas nós acentuámos essa tendência a um grau não igualado por qualquer outro mamífero. As características morfológicas da juventude eterna têm-nos servido bem. O nosso cérebro aumentado é, pelo menos em parte, resultante da extensão a idades mais tardias das taxas de crescimento rápido pré-natal. Em todos os mamíferos o cérebro cresce rapidamente no útero, mas com frequência muito pouco

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após o nascimento, enquanto nós efetuamos uma extensão dessa fase fetal para a vida pós natal. Somos sobretudo animais que aprendem e a nossa infância prolongada permite a transferência de cultura através da educação. Muitos animais manifestam flexibilidade e capacidade de jogo na infância, mas seguem padrões rigidamente programados uma vez adultos. Lorenz escreve no mesmo artigo já citado: «A característica que é tão vital para a peculiaridade humana do verdadeiro homem – a de permanecer sempre num estado de desenvolvimento – é quase de certeza um dom que devemos à natureza neoténica da humanidade.»

Em suma, nós, tal como Mickey, nunca crescemos, embora, ai de nós, envelheçamos de facto. As melhores felicidades para ti, Mickey, no teu próximo meio século. Possamos nós manter-nos tão jovens como tu, mas tornar-nos um pouco mais ajuizados.

Texto adaptado de “O polegar do Panda” de Stephen Jay Gould

Prof. Manuela do Carmo Santos