A MULTIPLICAÇÃO COMBINATÓRIA NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA … · alunos público-alvo da Educação...

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Anais Eletrônicos 01 a 04 de março de 2016 Recife - Pernambuco 2016. Anais Eletrônicos do Encontro de Combinatória, Estatística e Probabilidade dos Anos Iniciais. Recife, Pernambuco, Brasil. ENCEPAI. A MULTIPLICAÇÃO COMBINATÓRIA NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA Vera Lucia Ferreira 1 UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Ana Maria Carneiro Abrahão 2 UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro RESUMO O texto que aqui apresentamos reflete parte de um estudo investigativo realizado por Vera, professora de Classe Especial e de Sala de Recursos, para uma monografia de conclusão do curso de Pedagogia. Com o objetivo de procurar entender como alunos com necessidades especiais podem compreender as diferentes ideias do campo multiplicativo e apresentar reflexões sobre alternativas possíveis para a ampliação da ação pedagógica de professores de alunos especiais incluídos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, Vera estudou um caso, um aluno da sua classe especial. Vergnaud e Vigostki fundamentaram a base teórica desse estudo. Essa investigação mostrou que a multiplicação combinatória teve um grande apelo reflexivo ao caso estudado. O aparato lúdico e manipulativo e as possibilidades de representações significativas proporcionadas pelas atividades de combinatória indicaram fortes indícios de favorecimento à memorização reflexiva de eventos de aprendizagem vivenciados em sala de aula. O ambiente de aprendizagem favorável associado às atividades desafiadoras e à afetividade presente na relação professor-aluno podem trazer contribuições pedagógicas na qualidade da aprendizagem matemática de alunos com necessidades especiais. Palavras chave: Multiplicação combinatória. Matemática inclusiva. Anos iniciais. Introdução Este trabalho traz parte de uma investigação desenvolvida em uma monografia de conclusão do curso de graduação em Pedagogia, na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo dessa pesquisa foi procurar entender como alunos com necessidades especiais compreendem as diferentes ideias do campo multiplicativo. O que aqui apresentamos tem foco na ideia de multiplicação combinatória, ideia que se evidenciou no processo de aprendizagem desenvolvido pelo aluno especial que chamaremos de João. Ao focar no raciocínio combinatório desenvolvido por 1 [email protected] 2 [email protected]

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Anais Eletrônicos

01 a 04 de março de 2016

Recife - Pernambuco

2016. Anais Eletrônicos do Encontro de Combinatória, Estatística e Probabilidade dos Anos Iniciais.

Recife, Pernambuco, Brasil. ENCEPAI.

A MULTIPLICAÇÃO COMBINATÓRIA NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Vera Lucia Ferreira1

UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Ana Maria Carneiro Abrahão2

UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO

O texto que aqui apresentamos reflete parte de um estudo investigativo realizado por Vera,

professora de Classe Especial e de Sala de Recursos, para uma monografia de conclusão do

curso de Pedagogia. Com o objetivo de procurar entender como alunos com necessidades

especiais podem compreender as diferentes ideias do campo multiplicativo e apresentar

reflexões sobre alternativas possíveis para a ampliação da ação pedagógica de professores de

alunos especiais incluídos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, Vera estudou um caso,

um aluno da sua classe especial. Vergnaud e Vigostki fundamentaram a base teórica desse

estudo. Essa investigação mostrou que a multiplicação combinatória teve um grande apelo

reflexivo ao caso estudado. O aparato lúdico e manipulativo e as possibilidades de

representações significativas proporcionadas pelas atividades de combinatória indicaram

fortes indícios de favorecimento à memorização reflexiva de eventos de aprendizagem

vivenciados em sala de aula. O ambiente de aprendizagem favorável associado às atividades

desafiadoras e à afetividade presente na relação professor-aluno podem trazer contribuições

pedagógicas na qualidade da aprendizagem matemática de alunos com necessidades especiais.

Palavras chave: Multiplicação combinatória. Matemática inclusiva. Anos iniciais.

Introdução

Este trabalho traz parte de uma investigação desenvolvida em uma monografia de conclusão

do curso de graduação em Pedagogia, na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo dessa pesquisa

foi procurar entender como alunos com necessidades especiais compreendem as diferentes

ideias do campo multiplicativo. O que aqui apresentamos tem foco na ideia de multiplicação

combinatória, ideia que se evidenciou no processo de aprendizagem desenvolvido pelo aluno

especial que chamaremos de João. Ao focar no raciocínio combinatório desenvolvido por

1 [email protected]

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João com a mediação de sua professora Vera, objetivamos apresentar reflexões sobre

alternativas possíveis para a aprendizagem da multiplicação e de ampliação da ação

pedagógica de professores de alunos especiais incluídos nos anos iniciais do Ensino

Fundamental. Essa proposta se justifica porque Vera, estudante, pesquisadora e também

coautora desse texto é professora de escola pública no Rio de Janeiro e atua junto à Classe

Especial3 e à Sala de Recursos4, fazendo adaptações para os alunos incluídos em turmas

comuns. Nas visitas periódicas que faz às turmas para observar o desenvolvimento dos seus

alunos da sala de recursos, ela tem observado a dificuldade dos professores de turma comum

para estimular os alunos incluídos a questionar problemas, a transformar um dado problema

em uma fonte de novos problemas, principalmente do campo multiplicativo, e a construir uma

via de ação e reflexão para a construção de conhecimento dos alunos especiais. Vera afirma

que com o curso de Pedagogia está aprendendo a articular teoria e prática, principalmente em

linguagem e em matemática e a as aulas de psicopedagogia têm educado seu olhar para as

dificuldades de aprendizagem presentes, sobretudo, nos alunos especiais. Isso tem chamado a

atenção dos professores das turmas que visita, e os mesmos têm lhe solicitado ajuda,

principalmente em matemática, onde os alunos apresentam maiores dificuldades. Em geral

conseguem aprender o campo aditivo, mas o mesmo não acontece com o campo

multiplicativo.

Desenvolvimento da pesquisa

A pesquisa desenvolvida por Vera se iniciou com um aprofundamento teórico e a

escolha da opção metodológica para investigar e analisar os dados colhidos no estudo. Em

seguida apresentaremos essas etapas da pesquisa de forma que o leitor possa acompanhar,

mesmo quer sucintamente, o caminhar da pesquisa.

Apoio teórico do estudo

3 Classe Especial é uma sala, em uma escola de ensino regular, em espaço físico e modulação adequada. Nesse

tipo de sala, o professor de educação especial usa métodos, técnicas e procedimentos didáticos e recursos

pedagógicos especializados e, quando necessário, equipamentos e materiais didáticos específicos, conforme

série/ ciclo/ etapa da educação básica que o aluno tenha acesso ao currículo de base nacional comum (BRASIL,

2001, p. 53).

4 Sala de Recursos: É um espaço físico denominado sala de recursos multifuncional. Portanto, é parte

integrante do projeto político pedagógico da escola. São atendidos, nas salas de recursos multifuncionais,

alunos público-alvo da Educação Especial, conforme estabelecido na Política Nacional de Educação Especial na

Perspectiva da Educação Inclusiva e no Decreto N.6.571/2008. (BRASIL, 2008)

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O apoio teórico da pesquisa partiu da busca por entendimento das ideias do campo

multiplicativo e das dificuldades que em geral os estudantes têm ao estudar multiplicação e

divisão. Para pensar sobre o processo de ensino e aprendizagem desse tema, tomamos por

referencia Vergnaud (1988, 2009) por seu desenvolvimento da teoria dos campos conceituais.

Em matemática, ele discute o campo aditivo e o campo multiplicativo como campos

conceituais formados por conjuntos de situações que requerem muitos conceitos de diferentes

naturezas. Vergnaud nos foi de grande referência nesse trabalho por sua teorização do campo

multiplicativo e por defender que se deve desenvolver os algoritmos da multiplicação e da

divisão ao mesmo tempo, como se fôssemos construir e desconstruir os problemas. Outro

autor referência para esse estudo foi Cunha (2013), por apontar a importância da afetividade

como um proeminente valor para a superação das dificuldades dos alunos especiais.

Apresenta também sobre a questão curricular, que deve ser funcional para a vida prática.

Envolvendo o tratamento conceitual e a questão da afetividade não poderíamos deixar de citar

Vigotski (2003) que discute intensamente a mediação entre a dificuldade, o raciocínio do

aluno e o papel do educador. Para refletirmos sobre o raciocínio combinatório tomamos Borba

(2010) por referencia, por suas reflexões sobre a aprendizagem da combinatória por alunos

dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Outros autores foram estudados na pesquisa, mas

para esse texto podemos nos prender a essas quatro principais contribuições teóricas.

Ao fazer um levantamento da literatura brasileira encontramos alguns trabalhos

voltados para a aprendizagem dos números e do campo aditivo por alunos especiais, mas

poucos sobre a aprendizagem do campo multiplicativo. O trabalho mais recente e que nos

trouxe contribuições foi um texto de Magina, Santos e Merlini (2014), sobre o raciocínio de

estudantes do Ensino Fundamental na resolução de situações das estruturas multiplicativas,

mas o foco não era em alunos especiais. Entretanto, a leitura de Campos (2014) nos ajudou a

entender um pouco mais as dificuldades de apreensão do conhecimento por alunos incluídos,

autistas e deficientes intelectuais com dispersão de atenção que Vera encontrou nas suas

visitas às turmas regulares. A dificuldade que alunos especiais têm para lembrar o que não foi

consolidado torna praticamente impossível a aquisição da nova informação. Essa era uma

grande aflição presente em muitos professores diante do desafio em ajudar os alunos

especiais. Normalmente esses alunos, segundo Cunha (2013), não possuem compreensão

intuitiva e não conseguem entender conceitos numéricos simples. Para lembrar, falar e

recordar (evocação), se faz necessário que a leitura tenha significado para eles, caso contrário

o que viu não ficará armazenado. Por esse motivo, o raciocínio combinatório pode aparecer

como de extrema relevância. Como afirma Borba (2010) “este modo de pensar é útil no

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cotidiano – por estar presente em situações variadas como organizações de equipes, de

campeonatos esportivos, de cardápios etc. (p.3)” Vem assim, carregado de significado e pode

ser um fator facilitador da aprendizagem.

O raciocínio combinatório é aqui entendido como um modo de pensar

presente na análise de situações nas quais, dados determinados

conjuntos, deve-se agrupar os elementos dos mesmos, de modo a

atender critérios específicos (de escolha e/ou ordenação dos

elementos) e determinar-se – direta ou indiretamente – o número total

de agrupamentos possíveis. (BORBA, 2010, p.3)

Desenvolvimento metodológico da pesquisa

No desenvolvimento metodológico da pesquisa e para alcançar o objetivo de

investigar como um aluno especial pode aprender multiplicação e divisão, Vera decidiu fazer

o estudo de um caso que tivesse similaridades com os alunos incluídos nas turmas regulares.

Assim, selecionou João, um aluno da sua turma de classe especial que apresentava

dificuldades parecidas para aprender o campo multiplicativo com as que ela estava

identificando nos alunos incluídos nas turmas regulares. Como João aprenderia as operações

de multiplicação e de divisão e as ideias presentes no campo multiplicativo? Com isso,

poderíamos descobrir possibilidades para ajudar os alunos incluídos com dificuldades de

aprendizagem nesse mesmo campo. João, apesar de já estar familiarizado com números e com

o campo aditivo, ainda não havia sido transferido para o EJA – Educação de Jovens e

Adultos, caminho natural para os especiais que se alfabetizam e que já estão acima da idade

permitida para continuar no Ensino Fundamental diurno e regular. Vera decidiu investigar

como ele, João, aprenderia multiplicação e divisão.

Para tanto, após conseguir autorização da família para utilizar as produções feitas

pelo aluno, organizou uma sequencia didática que incluiu atividades desde o 2º. ano regular,

mas que acabou por incluir atividades até do caderno pedagógico do 1º. Bimestre do 6º. Ano.

O caderno pedagógico é um caderno de atividades fornecido pela prefeitura aos alunos da

rede municipal de ensino. A sequência pedagógica iniciou com as ideias de multiplicação

aditiva e com a orientação da professora Vera, João foi construindo o quadro multiplicativo

(Figura 1).

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Figura 1 – Quadro multiplicativo Figura 2 – Multiplicação combinatória

Fonte – Arquivo pessoal Fonte – Arquivo pessoal

Aos poucos ele foi percebendo a comutatividade na prática e observando o quadro

identificava no mesmo algumas regularidades. Trabalhou também a multiplicação retangular e

a multiplicação proporcional, mas a que João encontrou mais facilidade foi com a

multiplicação combinatória (Figura 2).

Sempre que se iniciava o estudo de uma ideia do campo multiplicativo, João utilizava

material manipulável. Em outros momentos utilizava desenhos. João adora desenhar. Na

multiplicação combinatória ele mesmo criou os desenhos e ia fazendo as correspondências, as

combinações. Essa foi a atividade que o aluno mais gostou. Vera levou as peças recortadas

em cartolinas coloridas. Ele então formou os pares, depois partiu para o desenho, sua maior

habilidade e para as contas armadas. Vera sempre pedia para que o aluno concluísse com as

continhas referentes às atividades. Mas Vera ficou surpresa que na atividade de combinatória

ele realizou a conta sem a sua ajuda. Depois de trabalhar com materiais concretos, Vera

utilizou folhinhas de atividades complementares e por fim, os cadernos pedagógicos, do 2º. ao

6º. ano. Os cadernos apresentavam atividades mais complexas, variadas e em outros contextos

de problemas, como é o caso do problema das bicicletas (Figura 3). João iniciou com

atividades de multiplicação aditiva presentes no caderno do 2º. ano e caminhou até as

atividades de multiplicação presentes no caderno do 1º. Bimestre do 6º. ano.

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Figura 3 – O problema das bicicletas

Fonte – Arquivo pessoal

Apesar de João ter gostado muito da multiplicação combinatória, somente depois do

trabalho com o concreto é que percebeu que poderia resolver o problema aplicando a

operação de multiplicação. Antes ele fazia os desenhos, os pares e contava. Como no

problema do sanduíche (Figura 4) e no problema das agendas (Figura 5). João achou esse

problema das agendas “muito chato”. A descoberta de que poderia resolver o problema com

um algoritmo de multiplicação foi uma percepção dele, como podemos observar na Figura 5,

onde ele marca os sanduiches com 3, os sucos com 2 e as sobremesas com 2 e depois efetua

sozinho a multiplicação (Figura 6). Aqui já não precisou fazer os desenhos para resolver o

problema.

Figura 4 – Problema do sanduiche Figura 5 – Problema das agendas

Fonte – Arquivo pessoal Fonte – Arquivo pessoal

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Figura 6 – Utilizando o algoritmo da multiplicação

Fonte – Arquivo pessoal

No processo de desenvolver o raciocínio multiplicativo por meio da combinatória,

Vera aproveitou para explorar a divisão como operação inversa da multiplicação. João não

encontrou dificuldade para entender a divisão combinatória. Primeiramente ele resolveu por

desenhos, mas depois utilizou o algoritmo como podemos observar na Figura 7.

Figura 7 – O algoritmo da divisão

Fonte – Arquivo pessoal

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A ideia de trabalhar multiplicação e divisão simultaneamente partiu da leitura de

Vergnaud (1988). Os alunos podem aprender com mais facilidade se buscam cada vez mais

evidenciar as relações existentes entre as operações, mesmo antes da sistematização de seus

algoritmos. Assim, podem avançar de forma autônoma na resolução de problemas.

Análise de resultados

Ao analisar os resultados desse estudo, chama a atenção o fato de o aluno ter gostado

de trabalhar com a ideia da multiplicação combinatória. Isso pode ter acontecido pelo fato

lúdico de essa ideia explorar as diferentes representações, desenhos, cores e o ato de

combinar, juntar e compor um objeto com outros. Ou seja, o brincar com as combinações

pode ter levado o estudante a compreender as diferentes maneiras em que é possível combinar

objetos, independentes da quantidade, usando o critério de agrupa-los pelo princípio das

características comuns associadas às situações-problemas.

Na combinatória é viabilizado o levantamento de todas as possíveis

relações de uma situação e a análise – pela combinação de

procedimentos de experimentação e de análise lógica – da validade

das possibilidades. Desse modo, o raciocínio combinatório – como

um dos componentes do pensamento formal – possui um caráter

fundamentalmente hipotético-dedutivo, sendo, portanto, base de

raciocínio científico, no qual é possível isolar variáveis, manter

algumas constantes e variar outras. Sendo o raciocínio combinatório

alcançado mais plenamente em estágios avançados de

desenvolvimento cognitivo, não se deve desconsiderar que a gênese

desta forma de pensamento pode iniciar-se antes do alcance do

período do pensamento operacional formal. Também é preciso

considerar que o raciocínio combinatório pode desenvolver-se por

meio de uma interação entre maturação cognitiva e experiências

sociais – tantos as ocorridas fora da escola quanto as que se vivenciam

em contextos escolares. (BORBA, 2010, p.4)

As possibilidades de aprendizagem, mesmo por alunos com comprometimento

neurológico e com sérias dificuldades cognitivas, são surpreendentes quando se estabelecem

entre professor e aluno um clima de confiança e uma mediação reflexiva. Vera esperava que

pela sua explicação para a combinação de 2 saias com 3 blusas, João daria como resposta

2X3, mas ficou surpresa quando ele me apresentou a resolução 3X2. Ela lhe perguntou: Mas

porque você não fez 2X3? E ele lhe disse: Ué! Mas não dá a mesma coisa? Vera então

confirmou que realmente combinar blusas com saias seria o mesmo que combinar saias com

blusas. Logo isso poderia ser expresso por 2X3 = 3X2 e seria uma sentença verdadeira. Vera

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aproveitou o momento para fortalecer a tradicional frase: “A ordem dos fatores não altera o

produto”.

Em geral, alunos como João não lembram no dia seguinte o que estudaram no dia

anterior. Entretanto a aprendizagem com a combinatória lhe ficou registrada na memória. O

processo de multiplicar utilizando a combinatória o levou a transferir esse conhecimento para

a sua vida real. Isso porque passados uns dias ele chegou contando a seguinte história:

“Professora, em casa descobri que somente posso fazer 6 combinações de roupa porque, sem

contar a bermuda da escola, eu só tenho 2 bermudas e 3 camisas no armário”!

A análise de situações e de esquemas mostram que o processo de

conceptualização acontece nas mais simples formas de atividades

(mesmo sem uso da linguagem): a razão é que nenhuma ação pode ser

eficiente sem a identificação de alguns objetos e suas propriedades.

Mesmo os mais complexos conceitos, para ganhar sentido e

operacionalidade, precisam ser contextualizados e exemplificados em

situações. Assim, a partir do ponto de vista de desenvolvimento, um

conceito é um conjunto: um conjunto de situações, um conjunto de

invariantes operacionais (combinados em esquemas) e um conjunto de

representações linguísticas e simbólicas. (VERGNAUD, 2009, p.94)

Pudemos observar que João fazia a multiplicação combinatória por contagem. Como

ilustramos na Figura 4, após desenhar e fazer os pares, ele contava quantos pares havia feito.

O fato de ele ter superado essa fase em alguma outra atividade e ter utilizado o algoritmo

como ilustrado na Figura 5 não quer dizer que ele não voltará a fazer a contagem em outros

momentos posteriores. Mesmo assim, ele terá avançado no seu raciocínio combinatório.

A combinatória é conhecida como a arte de contar, pois nas situações

combinatórias são enumeradas maneiras possíveis de combinar dados

e objetos. Dessa forma, a combinatória se constitui num ramo da

matemática que estuda técnicas de contagem - direta e implícita de

agrupamentos possíveis, a partir de elementos dados, que satisfaçam a

determinadas condições. (BORBA, 2010, p.4)

.

O ensino, para Vygotsky (2002), deve se antecipar ao que o aluno ainda não sabe e

nem é capaz de aprender sozinho, porque, na relação entre aprendizado e desenvolvimento, o

primeiro vem antes. Saber identificar o que a criança consegue fazer sozinha e o que ela está

perto de conseguir fazer sozinha é fundamental no trabalho de mediação do professor. Jamais

o professor deve privilegiar a pedagogia da negação, ou seja aquela que o professor não

reconhece no aluno as capacidades cognitivas, as quais convém mobilizar para favorecer a

melhor interação com o meio onde ele vive. Mobilizar situações de aprendizagem que tenham

raízes nas experiências vividas pelo estudante pode mobilizar o seu raciocínio. Como

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complementa Cunha (2013), é papel da escola e do docente propiciar uma práxis inclusiva,

desenvolver um olhar pedagógico sobre a diversidade discente, contemplando distintas

necessidades educacionais especiais e escolhendo procedimentos metodológicos que deem

autonomia ao estudante, e contribuam para que o aluno possa ser o construtor de suas próprias

ideias.

Conclusões

Algumas implicações pedagógicas podem ser obtidas desse estudo. Percebemos que

foi necessário realizar várias atividades do mesmo processo até que realmente houvesse a

internalização da aprendizagem. Por muitas vezes no dia seguinte João havia esquecido o que

fora aprendido no dia anterior, então novamente Vera fazia explicações e o deixava

livremente para ele encontrar as soluções e chegar a seu novo entendimento. Vera também

percebeu que nos momentos que ele passava por alguma alteração emocional (problemas

familiares ou afetivos) ele se desinteressava do aprendizado. Na verdade a passagem da

aquisição do conhecimento para o desenvolvimento do mesmo não é um processo simples.

Como afirma Cunha (2013), em primeiro lugar, o processo pelo qual de fato ocorre o domínio

de conhecimento, capacidades ou hábitos específicos, não se produz de repente, pelo

contrário, passa por uma série de etapas cujo caráter depende da complexidade do conteúdo

que tem de ser dominado e da receptividade do estudante. Por esse motivo a condição da

afetividade interfere muito no processo de assimilação do deficiente intelectual. Muitas vezes

somos obrigados a recomeçar as orientações das mesmas atividades e fazer as mediações

necessárias, para que quando ele vença a problemática psicológica (o problema afetivo) ele

prossiga na aprendizagem e resolva perfeitamente as atividades apresentadas.

Um recurso importante para fortalecer a multiplicação sem que a mesma se tornasse

apenas uma memorização estilo decoreba da tabuada, foi realizar atividades com o Material

Dourado. A construção dos fatos básicos de forma reflexiva até 5, utilizando a comutatividade

e o preenchimento do quadro multiplicativo foi de grande auxílio para João. Ele ia

preenchendo o quadro. Primeiramente a partir da multiplicação aditiva de 2 e 3. O quadro era

dele, refletia sua identidade. Depois fomos construindo paulatinamente o restante. Todo o

processo com alunos especiais tem que ser cauteloso e baseado na sua própria investigação na

busca de significados e respostas.

Outra conclusão pertinente e que confirma orientações teóricas foi a percepção de

que para o aluno especial chegar ao processo de multiplicação combinatória utilizando o

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algoritmo é necessário que ele tenha obtido o processo de contagem, porque de início ele irá

contar, somar e só depois desses conceitos consolidados e trabalhados irá utilizar do

raciocínio multiplicativo combinatório.

Propomos que um aspecto essencial do aprendizado é o fato de ele criar a zona de

desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta vários processos internos de

desenvolvimento que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas e

seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses

processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança.

(VIGOTSKI, 2002, pp.117-118).

Vale ressaltar a importância do trabalho lúdico e manipulativo com alunos que

apresentam dificuldades de aprendizagem. Aproveitar recortes de encartes de lojas para

formar conjuntos de camisas com bermudas ou tipos de meias para tênis de cores diferentes

foi de grande auxílio cognitivo. Aproveitar a capacidade individual de cada aluno, no caso do

João, a aptidão para desenhar e representar as combinações possíveis também trouxe

contribuições para o processo de aprendizagem. Interferir e mediar para que o aluno

construísse uma tabela de combinações de tipo de pães com tipos de recheios com no máximo

dois ou três, para não ficar difícil e ele se estressar também foi positivo. Conduzir o aluno

para que ele percebesse que era capaz de descobrir sozinho que poderia resolver pela

multiplicação permitiu a concluir a caminhada proposta e finalizar com as multiplicações.

Permitiu ainda refletir sobre a divisão como operação inversa da multiplicação combinatória.

Esse estudo possibilitou ainda que nós educadores aprendamos que os especiais

encontram maior facilidade de aprender construindo, percebendo o cálculo pelo material

concreto e pelos materiais manipulativos. Mostrou-se evidente que existem possibilidades dos

especiais desenvolverem a ideia do raciocínio combinatório desde que lhes sejam oferecidas

atividades desafiadoras, não impossíveis e nem tampouco demasiadamente elementares,

obedecendo alguns critérios, já descritos, para o desenvolvimento do processo de

aprendizagem pedagógica da matemática.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Nacional de Educação Matemática. Salvador. 2010, pp.1-16

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A Multiplicação Combinatória na Educação Inclusiva Encontro de Combinatória, Estatística e Probabilidade dos Anos Iniciais

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BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.

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CUNHA, Antonio Eugênio. Práticas pedagógicas para inclusão e diversidade- 3ª Ed. Rio

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VERGNAUD, G. Multiplicative structures. In Hiebert, H. and Behr, M. (Eds.) Research

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