A Mulher Samaritana

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A BÍBLIA COMENTADA Jo 4 4-42 Pf. Mte. Eduardo Sales de Lima Jo 4:4-6 A Samaria dos Patriarcas E era necessário 1 a ele atravessar pela Samaria. Veio pois para uma cidade da Samaria chamada Sicar 2 próximo do campo que Jacó 3 deu a seu filho José. Ali estava o poço de Jacó, então Jesus, cansado da viagem sentou sobre 4 o poço, era por volta da hora sexta. Jo 4: 7-10 A Samaritana: Primeiro ato O Dom de Deus Veio uma mulher 5 da Samaria tirar água 6 . Jesus disse a ela: - Dá-me de beber 7 . Pois os seus discípulos tinham ido para a cidade afim de comprar comida. Disse-lhe a mulher Samaritana: - Como tu, sendo judeu, pede de beber a mim, que sou mulher Samaritana? 8 (pois os Judeus não se harmonizam com os Samaritanos) 9 . Respondeu-lhe Jesus e disse 1 Da vontade de Deus. Indica a perspectiva retórica do escritor (uma diatribe). 2 A utilização da cidade de Sicar (Antiga Siquem, capital do reino do Norte e local do templo de Gerezin). Com isso o autor prepara o cenário em que Jesus fará uma releitura da ideologia religiosa que separava Judeus e Samaritanos. Pode ser uma retomada da tradição de reintegração dos reinos do Sul e do Norte profetizada por Isaias (Is 7:8s). 3 A utilização de tradições é outro recurso da diatribe. A tradição da fonte de Jacó remonta uma lenda judaica em que Jacó fez brotar água do chão, não foi um poço cavado, mas um milagre. Retoma várias tradições do AT onde encontros de homens e mulheres estão relacionados a um poço (Gn 24). 4 “Sobre” remonta outra tradição que também vê Moi sés sentando sobre o poço. É possível que o autor também use esse recurso literário como uma diatribe para enfatizar a sobreposição da tradição de Cristo sobre a fonte, símbolo da tradição dos Patriarcas. 5 A utilização da mulher samaritana é relevante pois retoma a atitude libertadora de Cristo em relação a opressão das sociedades patriarcais. A utilização de uma mulher samaritana reforça a diatribe. 6 A situação de uma mulher ir tirar água ao meio dia (hora sexta) é inusitada, o que reforça o caráter literário do texto. Outro detalhe é que esse momento retoma o estilo do capítulo anterior, um encontro solitário de Jesus com uma pessoa representante de um grupo. 7 A pergunta de Jesus retoma a tradição do deserto (único correlato verbal), o que torna a pergunta retórica, ou seja, desde o início Jesus não está pedindo água, mas oferecendo. 8 A partir da Enunciação, entende-se que a pergunta da mulher era a pergunta dos destinatários do evangelho de João. Essa pergunta está carregada de ideologia religiosa opressora e discriminatória. A explicação da crise Samaritana com os Judeus é outro recurso usado que indica o desconhecimento da crise por parte dos destinatários. Assim é possível que o preconceito religioso dos destinatários tenha sido o pano de fundo da narrativa. 9 A citação entre parentes não desqualifica o texto, uma vez que a versão Nestle-Aland 27, considera o acréscimo plausível em vista de sua presença em manuscritos antigos.

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Page 1: A Mulher Samaritana

A BÍBLIA COMENTADA

Jo 4 4-42

Pf. Mte. Eduardo Sales de Lima

Jo 4:4-6 A Samaria dos Patriarcas

E era necessário1 a ele atravessar pela Samaria. Veio pois para uma cidade da Samaria

chamada Sicar2 próximo do campo que Jacó

3 deu a seu filho José. Ali estava o poço de

Jacó, então Jesus, cansado da viagem sentou sobre4 o poço, era por volta da hora sexta.

Jo 4: 7-10 A Samaritana: Primeiro ato – O Dom de Deus

Veio uma mulher5 da Samaria tirar água

6. Jesus disse a ela: - Dá-me de beber

7. Pois os

seus discípulos tinham ido para a cidade afim de comprar comida. Disse-lhe a mulher

Samaritana: - Como tu, sendo judeu, pede de beber a mim, que sou mulher Samaritana?8

(pois os Judeus não se harmonizam com os Samaritanos)9. Respondeu-lhe Jesus e disse

1 Da vontade de Deus. Indica a perspectiva retórica do escritor (uma diatribe).

2 A utilização da cidade de Sicar (Antiga Siquem, capital do reino do Norte e local do templo de Gerezin).

Com isso o autor prepara o cenário em que Jesus fará uma releitura da ideologia religiosa que separava Judeus e Samaritanos. Pode ser uma retomada da tradição de reintegração dos reinos do Sul e do Norte profetizada por Isaias (Is 7:8s). 3 A utilização de tradições é outro recurso da diatribe. A tradição da fonte de Jacó remonta uma lenda

judaica em que Jacó fez brotar água do chão, não foi um poço cavado, mas um milagre. Retoma várias tradições do AT onde encontros de homens e mulheres estão relacionados a um poço (Gn 24). 4 “Sobre” remonta outra tradição que também vê Moisés sentando sobre o poço. É possível que o autor

também use esse recurso literário como uma diatribe para enfatizar a sobreposição da tradição de Cristo sobre a fonte, símbolo da tradição dos Patriarcas. 5 A utilização da mulher samaritana é relevante pois retoma a atitude libertadora de Cristo em relação a

opressão das sociedades patriarcais. A utilização de uma mulher samaritana reforça a diatribe. 6 A situação de uma mulher ir tirar água ao meio dia (hora sexta) é inusitada, o que reforça o caráter

literário do texto. Outro detalhe é que esse momento retoma o estilo do capítulo anterior, um encontro solitário de Jesus com uma pessoa representante de um grupo. 7 A pergunta de Jesus retoma a tradição do deserto (único correlato verbal), o que torna a pergunta

retórica, ou seja, desde o início Jesus não está pedindo água, mas oferecendo. 8 A partir da Enunciação, entende-se que a pergunta da mulher era a pergunta dos destinatários do

evangelho de João. Essa pergunta está carregada de ideologia religiosa opressora e discriminatória. A explicação da crise Samaritana com os Judeus é outro recurso usado que indica o desconhecimento da crise por parte dos destinatários. Assim é possível que o preconceito religioso dos destinatários tenha sido o pano de fundo da narrativa. 9 A citação entre parentes não desqualifica o texto, uma vez que a versão Nestle-Aland 27, considera o

acréscimo plausível em vista de sua presença em manuscritos antigos.

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a ela: -Se conhecesse10

o dom de Deus11

e quem é o que te pede dá-me de beber, tu

pedirias e ele daria a água viva12

.

Jo 4:11-15 A Samaritana: Segundo ato – A superioridade da Palavra de Cristo

Respondeu-lhe a mulher: -Senhor, não tens balde, e o poço é fundo, onde pois tens a

água viva?13

Não és tu maior14

do que nosso pai Jacó, o qual nos deu15

o poço, e dele

mesmo bebeu e os filhos dele e o rebanho dele? Respondeu Jesus e disse a ela: -Todo

que beber desta água terá sede novamente, aquele, porém, que beber desta água que eu

der a ele, nunca mais terá sede16

, mas a água que eu der jorrará17

nele uma fonte de água

que brota dando vida definitiva18

. Disse-lhe a mulher: -Senhor, dá-me desta água19

, para

que não tenha sede, nem tenha que vir nesse mesmo lugar e pegar água.

Jo 4:16-26 A Samaritana: Terceiro ato – Superação da Ideologia Religiosa

Disse a ela: -Vai chama seu marido20

e vem cá. Respondeu a mulher e disse: -Não tenho

marido. Replicou-lhe Jesus: -Disseste bem, que não tens Marido21

; porque cinco

maridos22

tiveste, e o que agora tens não é seu marido; isto observaste com verdade.

10

O termo usado para conhecer possui um sentido maior, sentido de conhecimento íntimo, pessoal, que inclui aceitação. Esse termo também retoma a tradição de Oséias que entende a falta de conhecimento com aceitação de Deus o principal problema na queda do Reino do Norte em 722 a.D. 11

Existe uma fonte no targum que narra a fonte como dom de Deus. Assim, o escritor fez um jogo de palavras: a fonte não é o Dom de Deus, e sim Ele, por isso ela não conhecia. 12

Novamente a história é relacionada com a história de Nicodêmos. Retoma pelo menos duas tradições do Antigo Testamento: “água que sustenta o povo no deserto” que simboliza a manutenção da vida. E também a “água como lei”, como a instrução (tradução targumica de Is 12:3), um texto samaritano também reproduz essa identificação. Assim, o escritor propõe que Jesus tema a lei que pode dar vida. 13

A incompreensão da mulher retoma a estrutura do diálogo com Nicodêmos (Jo 3). 14

O escritor continua sua diatribe confrontando Jesus com os patriarcas. O fato de Jesus não ter balde condiciona a comparação: Você vai fazer um milagre como nosso Pai Jacó? Doar água viva? 15

O poço aparece na literatura como uma tradição de sustento, como a base vivencial da comunidade. 16

A teologia de João vem a tona com a comparação da água de Deus (vida eterna) e a água do mundo (tornará a ter sede). Note que a água que não dá vida vem dos patriarcas. No entendimento da lei, é uma releitura das tradições dos patriarcas (que os samaritanos se julgavam legítimos portadores) em razão da superação por Jesus. 17

Retoma uma fonte do antigo testamento que tem o sentido de fidelidade no relacionamento com Deus (Ez 36:25-27; Jr 2:13; Zc 14:8). Essa tradução se relaciona com a temática do conhecimento de Oséias, também retomada nesse texto. 18

Devido a uma preposição conclusiva a tradução da sentido de completo, definitivo. 19

Com a releitura do local e da água. 20

A ruptura do discurso pode ter sido usada como técnica retórica para produzir impacto no leitor. Retoma a tradição de Oséias (Os 2) onde o relacionamento com Deus é comparado ao conjugal. A intrepretação alegórica dessa perícope não está apenas na razão literária, mas na discursiva. Uma pergunta dessa índole (se fosse pessoal) produziria uma atitude de vergonha e não de fé e disposição à pregação. Não foi uma atitude crítica à mulher, mas à Samaria que ela representava. 21

Quem é o seu Baal? (Baal era usado para Senhor, e texto de Oséias como Marido). 22

Ao judeu era lícito ter no máximo três casamentos. O que já representa uma impossibilidade histórica. Deve-se ter em mente a condição de opressão da mulher, que depõe contra uma atitude crítica à

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Disse-lhe a mulher: -Senhor, reconheço23

que tu és profeta24

. Nossos pais25

neste

monte26

adoraram; porém os vossos dizem27

que em Jerusalém é o local onde se deve

adorar. Disse-lhe Jesus: -Mulher28

, podes crer-me, pois a hora vem29

quando nem neste

monte nem em Jerusalém adorareis ao pai. Vós adorais o que não conheceis; nós

adoramos30

o que conhecemos31

, porém32

a salvação33

vem dos judeus34

. Mas vem a

hora, e já é, em que os verdadeiros35

adoradores adorarão ao pai em espírito e verdade36

;

porque também o pai a tais procura que adorem a ele. Deus é espírito37

, e os seus

adoradores em espírito e verdade devem adora-lo. Disse-lhe a mulher: -Sei que o

messias38

vem, o chamado Cristo; quando vier aquele nos declarará todas as coisas.

Disse-lhe Jesus: Eu sou39

, o que falo contigo.

samaritana (Jesus aumentaria seu fardo? Ele não fez isso com ninguém em todo Novo Testamento). Assim uma interpretação possível seria a ponte com Oséias, onde o marido da Samaria era Baal. Os cinco maridos eram cinco divindades que adentraram a nação na invasão da Samaria (2Rs 17:24-41), e o sexto seria Javé, o verdadeiro marido, ao qual a Samaria não era fiel. 23

O termo grego para ‘vejo” é o mesmo utilizado para conhecimento pessoal com aceitação, por isso, melhor traduzido por “reconheço”. 24

Se o diálogo fosse sobre a mulher, ela identificaria Jesus com o preconceito judaico anti-samaritano, mas seu reconhecimento como profeta acontece por ele retomar a tradição de Oséias. 25

A Samaritana retoma a crise das tradições dos Pais como se fosse sua e critica Jesus como o profeta Oséias que era do Sul e profetizou no Norte. 26

Na história da Samaria o monte Gerezim ganhou relevo após o retorno do exílio, na negativa de participação dos samaritanos na construção do segundo templo pelos Judeus. Assim, diante dessa negativa, os Samaritanos construíram um templo em Gerezim como templo rival. Na tradição Samaritana, a história de Javé com o povo começou em Gerezim e foi adulterada pelos Judeus. 27

Retoma a tradição deuteronomista que centralizou o culto em Jerusalém e demonizou as tradições dos outros locais sagrados, inclusive Gerezim. 28

Recurso retórico usado pelo autor par chamar a atenção, deve-se ler: Samaria. 29

O escritor retoma a teologia apocaliptica judaica, evocando o juízo de Deus contra as velhas estruturas ideológicas opressoras (presente nos profetas) e a anunciação da instituição do novo tempo livre de ideologias religiosas. É a superação dos intercessores (Templo e Sacerdotes) e anúncio do relacionamento direto com Deus. 30

O sentido do verbo grego para adorar difere essencialmente do termo no português. O sentido é de “prostrar-se” e “render-se”, enquanto que “adorar” aproxima-se “admirar”. 31

Adorar o que não conhece (Sentido de Oséias) não se relacionam, mas os cristãos (o autor usa o verbo na primeira do plural – referência clara a fé da comunidade cristã, não a judaica e não a pessoa de Jesus) 32

Conjunção demonstrativa, o culto ao verdadeiro Deus é o Judaico. 33

O termo salvação na teologia joanina representa o confronto entre esse mundo desgraçado e o mundo cheio de graça que pertence a Deus. 34

Referência pós-ressurreição a Jesus como sendo o caminho da salvação. 35

Uso retórico, sentido de crítica às formas religiosas ideológicas de adoração mediada pelo templo. 36

O termo “espírito e verdade” é característico da teologia joanina, como oposição ao mundo mal. Também pode retomar a tradição dos profetas do “novo aeon” pelo Espírito. 37

Não está falando da essência de Deus, mas da não materialidade manipulável pelo templo e local. Pode-se entrar na presença de Deus em qualquer momento e local, pois Deus não está limitado a estruturas físicas. 38

Retoma a expectativa messiânica e abre para a afirmação da messianidade de Jesus. 39

Tradição do “Eu Sou” parte relevante no todo do livro, uma das principais afirmações de João.

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Jo 8: 27-38 Os discípulos: Quarto Ato – A Colheita Escatológica

E nisto vieram os discípulos dele, e se admiraram, pois falava com uma

mulher40

. Apesar de tudo ninguém disse: o que perguntas? O que falas com ela? Então,

deixou a mulher o cantaro e foi41

para a cidade e disse para as pessoas: Venham ver um

homem que me disse tudo quanto tenho feito. Acaso não será este o Cristo? Saíram da

cidade e vieram a Ele. Entretanto42

os discípulos diziam, Rabi, come. Mas respondeu a

eles: Eu tenho um alimento43

para comer que vós não sabeis. Então os discípulos diziam

uns aos outros: alguém trouxe comida para ele?44

Jesus disse a eles: Minha comida é

fazer a vontade daquele que me enviou e realizar sua obra. Vós não dizeis que ainda

faltam quatro meses para que chegue a colheita? Veja o que vos digo: Levante vossos

olhos e veja os campos porque já estão brancos para colheita45

. O que colhe recebe

salário e junta fruto para vida eterna, para que o que semeia se alegre junto ao que

planta. Mas nisto o dito é verdadeiro, pois um é o que semeia e outro é o que colhe46

. Eu

enviei vocês para colheita47

que não trabalhastes. Outros trabalharam e vós tem entrado

para o trabalho deles.

Jo 4: 39-42 – Último ato: O Reconhecimento de Cristo como Salvador

Mas, muitos dos samaritanos daquela cidade creram48

nele pela palavra que a

mulher testemunhou. “Disse-me tudo o que eu fiz”. Então, como vieram os samaritanos

a ele, pediram que permanecesse com eles, e permaneceu ali dois dias. E muitos mais

creram por meio da palavra dele. E diziam a mulher que já não acreditavam por meio da

sua palavra, pois eles tinham ouvido49

, e tinham visto que ele é verdadeiramente50

o

salvador do mundo.

40

O preconceito advindo do patriarcalismo é outra ênfase do texto que demostra a superação por parte de Jesus das travas sociais que oprimiam as mulheres. 41

A mulher tornou-se um discípulo, e diferente dos apóstolos, ela já foi para a colheita. O testemunho de Cristo cativou mais pessoas, isso porque não estava revelando pecados (se fosse as pessoas teriam fugido e não se aproximado). 42

A frase parece dar a entender que os discípulos queriam que Jesus não atendesse as pessoas e se retirasse para comer (atitude comum aos discípulos Mt 14). 43

Tradição do Antigo Testamento em que a lei é entendida como alimento (Sl 119:113; Pv 9:5). “Tenho um alimento que não conhecem” é a superação da lei pela compreensão da vontade do Pai. 44

Os discípulos são colocados na mesma posição que Nicodêmos e a Samaritana, não entenderam. 45

Teologia de João: Termo escatológico indicando a presença do “novo aeon” não era para esperar mais, pois o momento já havia iniciado. Uma parábola escatológica indicando a colheita para a vida eterna, resultado do trabalho. 46

A injustiça na semeadura está em Miquéias 6:15. 47

O escritor já entende a colheita como começada (Novo Aeon). 48

“Creram pela palavra” é estilo teológico de João que procurou vincular a salvação a necessidade de proclamação e confiança pelo testemunho. 49

“Tinham ouvido e visto” iniciação no comhecimento pessoal com aceitação. 50

“verdadeiramente” confronto possível com o imperador que se proclamava salvador do mundo.