A morte no candomble
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
A ESCUTA DO FILHO DE SANTO SOBRE A MORTE:
ENTRE O SILÊNCIO DO OCIDENTE MODERNO E A FALA DO CANDOMBLÉ
DALVA BARBOSA
BRASÍLIA/DF
2006
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
A ESCUTA DO FILHO DE SANTO SOBRE A MORTE:
ENTRE O SILÊNCIO DO OCIDENTE MODERNO E A FALA DO CANDOMBLÉ
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Psicologia, da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Dalva Barbosa
Orientadora: Profª. Dra. Marta Helena de Freitas
Co-Orientadora: Prafª. Dra. Ondina Pena Pereira
Brasília/DF – 2006
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Psicologia da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação da Professora
Doutora Marta Helena de Freitas.
Examinada e aprovada pela banca:
_____________________________________
Presidente
Professora Doutora Marta Helena de Freitas
Universidade Católica de Brasília
______________________________________
Vice-Presidente
Professora Doutora Ondina Pena Pereira
Universidade Católica de Brasília
_______________________________________
Professor Doutor José Bizerril
UNICEUB
_________________________________________
Professora Doutora Célia Carvalho de Moraes
Instituto de Gestalt Terapia de Brasília
Dedico esse trabalho à minha mãe,
Maria Santa, e à minha mãe de santo,
Verinha de Oxum – Oxum Omim Ladê.
Minhas duas mães que, caladas pela morte,
ainda falam através de minhas lembranças.
RESUMO
Esse trabalho buscou compreender como os fiéis do candomblé se relacionam
com a realidade da morte. O ponto inicial foi marcado pelo cruzamento das culturas
ocidental moderna e do candomblé na prática dos rituais de morte. Os principais
fundamentos teóricos foram trazidos de Philippe Ariès e Jean Baudrillard, para
compreensão da cultura ocidental moderna, e de Monique Augras e Reginaldo Prandi,
para compreensão do candomblé. Uma incursão pela representação da morte no
ocidente, da idade média aos dias de hoje, registrou as várias faces da morte ao longo
da história, até à perda dessa face, resultando em sua exclusão da vida moderna. A
assepsia da morte tutelada pela ciência médica e a rapidez dos ritos fúnebres foram o
contraponto para o entendimento do significado da morte para o candomblé e seus
complexos ritos de iniciação e morte.
Trouxemos para esse trabalho a visão da psicologia cultural, e por meio da
fenomenologia, buscamos compreender como o fiel do candomblé, sujeito do século
XXI, transita entre essas duas culturas, onde se situa e como significa vivências tão
discordantes. O suporte metodológico nos foi dado pelo estudo das obras de Monique
Augras e Mauro Martins Amatuzzi.
A pesquisa de campo desenvolveu-se ao longo de dois anos, no Axé Baraleji,
Terreiro localizado no entorno do Distrito Federal, sob o comando do Babalorixá Tito
de Omolu. Nesse período, ocorreu a morte da Ialaxé Verinha de Oxum, quando pudemos
observar seu ritual de axexê (ritual de morte), realizado por sete dias consecutivos.
Contamos ainda com a descrição do ritual de iniciação, vivenciado pela pesquisadora e,
por último, tivemos a valiosa contribuição das experiências de quatro filhos de santo,
com participação no culto entre oito e vinte anos, todos submetidos aos rituais de
iniciação e presentes ao ritual do axexê realizado nessa comunidade.
Desse encontro de vozes, podemos escutar que o iniciado do candomblé é
síntese, na medida em que agrega diferentes saberes e experiências e, antes de descartá-
las, como é regra no mundo moderno, acolhe-as a fim de compor um sistema de mundo
que lhe seja mais favorável. O candomblé é uma religião que, apesar de incrustada no
mundo moderno, preserva seus fundamentos e tradições, incluindo a face da morte,
onde ela não é ignorada, mas parte permanente do sistema de trocas da vida.
Palavras-chave: Candomblé, psicologia da religião e morte.
ABSTRACT
This paper aims to comprehend how the followers of “candomblé” deal with the reality
of death. The initial steps began by comparing the modern occidental cultures and the
“candomblé” in the practice of death rituals. The main theoretical fundaments to the modern
occidental cultures received the influence of Philippe Ariès and Jean Baudrillard. To the
“Candomblé” the contribution came from Monique Augras and Reginaldo Prandi.
An investigation of the representation of death in the West, from middle age until our
days, intended to register the several faces showed by death along human history, even the
loss of this face, ending up in its exclusion of modern life. The asepsis of death tutored by the
medical science and the fastness of funeral rituals were the counterpoint to the comprehension
of the meaning of death for “candomblé” and its complex rituals of initiation and death.
Services relied on the permanent system of symbolic exchanges based on this religion.
We brought to this issue the vision of psychology in its dimension of cultural product
and we searched to understand through the fenomenology how a believer of “candomblé”, a
person of the of the XXI century, walks between these two cultures side by side with so
different experiences and their meanings on this subject. The epistemological support was
found in the study of the work of Monique Augras and Mauro Martins Amatuzzi.
The research field was developed during two years at the “Axé Baraleji”, a place
located around of the Federal District under the command of “Babalorixá Tito de Omolu”.
During this period, the ‘Ialaxé Verinha de Oxum’ of that community died. This fact gave us the
opportunity to observe a death ritual which is called “axexé” that lasted seven consecutive
days.
We also had the description of an initiation ritual that was experienced by the
researcher. At last, we received the valuable contribution of four saint’s sons experiences.
Their participation time in the rituals varied between eight and twenty years. All of them
were submitted to the services of initiation and attended to the “axexê” ritual that took place
in that community.
From this encounter of voices, of living experiences in the rituals - rebirth (initiation)
and death (axexê’s ritual), we can come to the conclusion that the person that was initiated in
the “candomblé” practice is a synthesis since he accumulates different knowledge and
experiences and before descarting them, as a rule of modern world, he embraces them in order
to take part in a world system which is more favorable to him. The ‘Candomblé’ is a religion
that although it is inserted in the modern world, it preserves its fundaments and ancient
traditions, including the face of death where it is not ignored, but it takes part permanently in
the exchange lives system.
Word-keys: “Candomblé”, Psychology of religion and death
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................... 01
Capítulo 1 - Estudo Teórico
1.1. Psicologia e religião .................................................................................................... 06
1.2. A evolução (ou involução) da relação do indivíduo com a morte
no Ocidente .......................................................................................................................... 10
1.3.O Candomblé no Brasil ................................. ............................................................. 18
Capítulo 2 - Metodologia
2.1.Fenomenologia: a busca do mundo vivido ............................................................... 47
2.2. Tempo e espaço: o palco da pesquisa ....................................................................... 50
2.3. Os participantes: colaboradores da pesquisa ......................................................... 51
2.4. Instrumentos e Procedimentos ................. ....................................................... ....... 52
Capítulo 3 - Um olhar de dentro: o contato com o mundo vivido do
candomblé ............................................................................................................................ 56
3.1. O ritual do axexê – retorno as origens ..................................................................... 64
3.2. O ritual de iniciação – inserção em um mundo novo ........................................... 77
3.3. As vozes dos filhos de santo ..................................................................................... 90
Capítulo 4 - Discussão
4.1. A morte no candomblé .......................................................................................... 115
4.2. Iniciação – o eu abre caminho para o “outro” ................ ................................. 123
4.3. Tecendo os fios de várias vozes ....... ................................................................. 127
4.4. Candomblé e cultura ocidental moderna: separação possível? ... ................ 154
Capítulo 5 - Considerações Finais ............................................................................... 162
6. Glossário .................... .................................................................................................. 169
7. Referências Bibliográficas ...... ................................................................................ 174
8. Anexos
8.1. A fala dos participantes – Entrevistas semi-estruturadas ............................. 178
8.2. Termo de consentimento livre e esclarecido ................................................... 206
8.3. Solicitação de Autorização para realização da pesquisa... ............................ 207
INTRODUÇÃO
Falar sobre a morte é, ao contrário do que o tema possa sugerir, falar de vida ou
da forma como a vida é entendida pelo indivíduo e a sociedade em que ele se insere.
Sendo o destino inexorável de todo ser vivo e, dentre esses, de todo ser humano, a
morte se inscreve em cada um desde o nascimento; e quer se aceite e discuta o tema ou
se procure negá-lo em todas as suas formas de manifestação, a morte se faz presente e,
no futuro próximo ou distante, se apresentará a todos nós. Negá-la é perder a
oportunidade de buscar compreender a vida em todas as suas dimensões; ignorar o que
não podemos evitar é uma forma de empobrecer a existência.
Vivemos em uma cultura que denega a morte, banindo-a do cotidiano das
pessoas, banalizando-a, tratando-a com o distanciamento dos fatos que parecem só
atingir ao outro. Os rituais de morte foram reduzidos ao mínimo necessário para dar
conta rapidamente daquilo que precisa ser esquecido. Mas como esquecer daquilo que
fatalmente nos atingirá um dia, seja através da perda daqueles a quem amamos, seja no
momento de encarar nossa própria morte? O custo desse esforço há de ser alto para o
indivíduo e para seu grupo social. A vida sem a perspectiva da morte cobra esforços
gigantescos em termos de competitividade, da busca de enriquecimento material, da
manutenção da juventude a qualquer preço, da destruição dos recursos naturais em
nome do desenvolvimento e, por fim, do empobrecimento da vida emocional, onde a
expressão do ser se instala em um segundo plano da existência. Competindo,
enriquecendo, construindo, destruindo, correndo sempre, o indivíduo sequer se lembra
de que, no final dessa maratona, é a morte que está a sua espera.
A morte tem sido um dos assuntos mais negligenciados no contexto da vida
moderna e, no entanto, ela se apresenta de forma tão contundente nos dias atuais,
através da violência instalada nos grandes centros urbanos, que é de se questionar
como é possível ao ser humano tentar renegá-la e apegar-se à ilusão de que a morte é
2
um mal que só atinge ao outro. A despeito de todos os avanços tecnológicos na área da
saúde, de todas as condições criadas para o prolongamento da vida, de todas as regras
impostas ao indivíduo pelo capitalismo moderno, no qual o sucesso e a felicidade são
traduzidos em moeda corrente, pela transformação dos desejos em necessidades por
meio da publicidade, o homem não conseguiu livrar-se desta realidade incontestável;
mas buscou seus meios de minimizá-la, de afastá-la do seu dia-a-dia, de trancafiá-la nas
unidades de terapia intensiva dos hospitais. Ao mesmo tempo, paradoxalmente,
acompanha sua ação no mundo, imperiosa, por meio dos telejornais, e cria para si a
ilusão de que tudo está acontecendo “lá fora”, dentro da tela, na tinta impressa e nas
fotos dos jornais e revistas.
O silêncio da cultura ocidental moderna sobre a morte sufoca gritos individuais
e coletivos que podem ser ouvidos através das neuroses, do crescimento da violência e
de outras manifestações de adoecimento do corpo e da alma humana. O silêncio é um
veneno que entorpece aos poucos, que agrava o medo, que amplia a escuridão. Romper
esse silêncio é uma tentativa de trazer à luz o inevitável e escutar sua voz assustadora
para que ela se torne, se não familiar, ao menos mais suave.
Paralelamente à morte, abordaremos um outro tema, já há muito investigado
pela antropologia e que aos poucos vai despertando, também, o interesse da psicologia:
a religião mostra sua face e sua força na vida dos indivíduos e a psicologia não pode
mais negar-lhe a fala. Seja porque as igrejas estão se proliferando pelas cidades e
usando a mídia como canal de comunicação, multiplicando sua voz, seja porque a
religião parece desempenhar um papel de abrigo ao indivíduo perdido no mau tempo
do mundo moderno, ou seja porque a religião esteve presente desde sempre na vida do
ser humano. Sem ninguém que o escute e sem condições de buscar outros meios de
alívio para seu sofrimento, o indivíduo busca na religião um porto seguro para sua vida
e, quem sabe, para uma outra vida além dessa. Realidade ou ilusão, a religião promete
3
dar ao indivíduo algo que lhe falta, algo que a cultura ocidental moderna lhe está
negando.
Abrir os ouvidos a essa fala individual e coletiva, que vem do exterior dos
consultórios ou que se sente intimidada dentro deles, parece ser um dos caminhos da
psicologia na busca da compreensão desse ser que não quer mais sofrer calado ou, ao
menos, não quer mais sofrer sozinho.
Dentre as várias religiões, que compõem tão vasto universo de crenças,
abordaremos o candomblé, cujos rituais de morte parecem contrastar com a urgência
ocidental, tornando-se aqui objeto de estudo: explorar a especificidade do significado da
morte para os fiéis do candomblé através de seus rituais, uma vez que estes aparentam
ter uma relação com a morte diferente daquela estabelecida no ocidente moderno.
Entre os vários rituais do culto, evidenciar aqueles que representam experiências de
morte: o ritual de iniciação e o ritual do axexê (ritual de morte).
Ainda que a antropologia já tenha desde sempre se dedicado ao estudo de
comunidades religiosas, inclusive do candomblé, o estudo pelo olhar da psicologia
ainda é um campo pouco explorado, sendo oportuno ressaltarmos que as comunidades
religiosas do candomblé não são culturas exóticas, distantes geográfica e socialmente
de nosso ambiente moderno e dos grandes centros urbanos, mas são compostas por
uma vizinhança física e por cidadãos que nos são familiares, seja no ambiente de
trabalho, na escola, nas universidades, nas ruas. Embora nem sempre possamos
percebê-los, justamente por não se diferenciarem do indivíduo ocidental moderno em
sua vida cotidiana, os fiéis do candomblé são hoje pessoas de todas as classes sociais,
em contraponto à sua origem – formada por negros e pobres, oriundos do sistema
escravagista – de diversas raças e nível educacional, sexo e faixa etária. É um
microcosmo dentro do universo social como um todo. Daí que se torna instigante
buscarmos compreender como indivíduos inseridos no contexto ocidental moderno
convivem com tradições tão antigas, e de que forma significam experiências limites
4
como a morte, uma vez que toda a cultura moderna parece lhes transmitir mensagens
diversas das vivenciadas em sua religião.
Movidos pela busca da compreensão de como esse indivíduo se divide ou se
completa em culturas aparentemente tão distintas é que surgiu o objeto de estudo
desse trabalho: os rituais de morte no candomblé afetam o significado da morte para
esse indivíduo que, pertencente a uma religião que preserva tradições milenares,
também é produto da cultura ocidental moderna?
Como palco aonde a pesquisa se desenvolveu selecionamos o Axé Baraleji,
Terreiro da Sociedade Beneficente Religiosa Africana Ile Owo Omo Omolu (Casa dos
Filhos de Omolu), localizado no município de Santo Antônio do Descoberto, entorno do
Distrito Federal.
Tendo à frente o Babalorixá Tito de Omolu, o Axé Baraleji está no Distrito
Federal há 30 anos e conta, atualmente, com cerca de oitenta filhos de santo,
desenvolvendo regularmente todas as atividades religiosas ligadas aos Orixás, seguindo
a tradição dos candomblés de origem Ketu.
Para que pudessemos escutar esse indivíduo, ator da cultura ocidental moderna
e do candomblé, estruturamos o presente trabalho em cinco capítulos:
O Capítulo 1 traz a evolução dos estudos da psicologia sobre religiosidade e sua
necessidade de inserção dentro desse tema que, por vezes esquecido, ou relegado a um
pano de fundo da existência, esteve, desde sempre, presente na história da humanidade.
A relação do indivíduo com a morte é revisitada, desde a Idade Média até a
contemporaneidade, registrando-se as alterações ocorridas ao longo dos séculos, na
tentativa de compreender de que forma a morte deixou de fazer parte da natureza
humana, para se transformar em interdito.
O candomblé, religião brasileira, herança dos escravos negros do século XVI,
possui um sistema de crenças e fundamentos sofisticados onde se buscou penetrar,
5
procurando-se entender sua forma de organização social, sua compreensão do ser
humano e sua relação com as coisas da vida e da morte: sua visão de mundo. Aqui, nos
fixamos nos limites permitidos ao que é dado saber ao público externo, resguardando-
se, sempre, os segredos do culto, base de sua prática iniciática.
O Capítulo 2 descreve a metodologia utilizada para o desenvolvimento da
pesquisa, dentro dos pressupostos e da postura fenomenológica – de compreensão dos
fenômenos investigados. Indivíduo e grupo foram o foco de estudo, com o olhar da
psicologia em sua dimensão cultural.
O Capitulo 3 traz o estudo de campo, organizado em três momentos
vivenciados pelos participantes da pesquisa, relacionados, diretamente, com
experiências de renascimento (iniciação) e morte (ritual de axexê).
O Capítulo 4 coloca em diálogo esses três momentos vivenciais: observação de
um ritual de axexê e descrição de uma experiência de iniciação – pela pesquisadora; e a
voz dos participantes sobre suas vivências desses dois momentos de morte/vida, para
que, ao tecer esses fios, se possa escutar as convergências e divergências sobre o
entendimento da morte, por parte desses sujeitos que são, ao mesmo tempo, filhos da
modernidade e descendentes de orixás.
O Capítulo 5 busca referendar, à luz das teorias estudadas, o tecido que se
formou desse mosaico de vozes. Além disso, traz importantes pontos que se abriram ao
questionamento e que, por escaparem ao objeto de estudo, deixaram um fio, uma teia, a
ser tecida por outras mãos.
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CAPÍTULO 1 – ESTUDO TEÓRICO
1.1. Psicologia e religião
A história da psicologia, assim como da antropologia e da sociologia, teve seu
início vinculada à religião. Como uma das ciências oriundas da filosofia, a psicologia
acreditava ser de sua competência estudar campos complexos da existência humana,
inclusive a religião. No final do século XIX e início do século XX (1880-1910),
afloraram estudos relativos ao crescimento e ao sentimento religioso (Paiva, 1989).
Podemos encontrar registros mais antigos, de 1746, das primeiras tentativas de
compreensão psicológica do fenômeno religioso, por meio do americano Jonathan
Edwards e de David Hume, que, em meados do século XVIII, sustentavam a tese de
que a religião estende suas raízes no sentimento de medo, mas ao mesmo tempo de
esperança, uma vez que o homem primitivo buscaria conciliar suas necessidades com as
forças hostis da natureza, fora de seu controle.
O primeiro psicólogo a se debruçar sobre o tema da religião foi Granville
Stanley Hall, que deu início a seus estudos sobre conversão religiosa e adolescência, em
1881. Em 1899, Diller Sterbuck publicou o primeiro livro do gênero – “Psicologia da
Religião”, dando início ao estudo sistemático da psicologia da religião.
Mas há consenso entre os estudiosos da área em estabelecer William James
como pioneiro no campo da psicologia da religião, com a publicação, em 1902, de sua
obra clássica “The varieties of the religious experience”. Nessa obra, James examina longa e
variada série de escritos religiosos sob os aspectos de expressão moral e como
testemunho de patologia mental, criando categorias para a distinção entre experiência
religiosa saudável e doentia. James entendia que o misticismo era a expressão de
anseios pessoais profundos, buscando atingir um estágio de consciência transcendente
ao indivíduo, que ele caracterizou como união cósmica.
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Também citado como pioneiro, James Bisset Pratt, com obras publicadas em
1907 e 1922, inovou no estudo da psicologia da religião ao escrever sobre sua própria
experiência religiosa e, realizando pesquisas na Índia, procurou estudar o fenômeno
fora de seu próprio ambiente cultural.
Nas primeiras décadas do século XX, diversos outros autores, na maioria norte-
americanos, dedicaram-se ao estudo do tema, incluindo-se aqui o nome de Willhelm
Wundt, que, apesar de ser conhecido como o pai do paradigma da psicologia de
laboratório, dedicou três volumes de sua obra Volkerpsychologia ao estudo da religião e
mitologia.
A partir de 1920, entretanto, os estudos em torno da psicologia da religião
apresentaram um rápido declínio. Entre os motivos, podemos citar o fracasso da
psicologia em separar-se da teologia ao estudar o fenômeno religioso; o esforço que a
psicologia teve que empreender para ser reconhecida no campo científico; a dificuldade
de pesquisadores e sujeitos ao se deparar com o assunto; a subjetividade do fenômeno
religioso, dificultando sua abordagem empírica e objetiva; a influência do behaviorismo,
com a supremacia do estudo do comportamento observável e o nascimento da
psicanálise, que condenou a religião à ilusão da humanidade (Byrnes e Hallahmi,
1984/1989, em Freitas, 2003).
Ainda que a psicanálise tenha exercido enorme influência para o declínio do
estudo da psicologia da religião como exercício possível, é inegável que,
paradoxalmente, não deixou com que o tema desaparecesse do centro das discussões, já
que Freud dedicou, ao longo de seus estudos, quatorze obras ao assunto, sendo cinco
delas específicas sobre o tema: Totem e Tabu (1913), Psicologia de grupo e análise do ego
(1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o
Monoteísmo (1939).
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Não deixa de causar estranheza que, considerando a religião como ilusão, Freud
tenha dedicado 26 anos de estudo ao tema, e podemos concluir quão poderosa é essa
ilusão sobre a qual o próprio Freud não conseguiu silenciar.
Na esteira freudiana, ocorreu a depreciação do fenômeno religioso nos meios
acadêmicos e científicos e, inversamente, a tendência de reavaliação da própria
experiência religiosa e a produção, em torno do assunto, de Carl Jung, Alfred Adler e
Erich Fromm, dissidentes de Freud.
Jung sempre demonstrou interesse pelos fenômenos mitológicos, espirituais e
ocultos e desenvolveu o conceito de arquétipo, propondo-se a uma compreensão do
fenômeno religioso.
Adler também valorizou positivamente o fenômeno religioso, entendido como
afirmação do valor substancial da vida em todas as suas formas, e Fromm buscou
explicitar as características e perigos da inautenticidade do discurso religioso,
propondo-se a recuperar a religião como sentimento profundo da humanidade.
Na segunda metade do século XX, nas décadas de 60 e 70, proliferam-se
estudos sobre a natureza e o tipo de experiências religiosas com metodologias
qualitativas, sendo substituídos nas décadas seguintes pelo paradigma da mensuração,
com trabalhos relacionados à construção e aplicação de escalas de medida para
experimentação em grupos específicos de indivíduos, como forma de qualificar as
pesquisas no meio científico e acadêmico.
Mas, já na metade da década de 80, surgiram movimentos de estudiosos que
chamavam a atenção para a limitação que o paradigma da mensuração trazia para a
compreensão do fenômeno religioso, buscando, então, qualificar o conhecimento
psicológico da experiência religiosa, sem, no entanto, confundir os objetos de estudo da
psicologia e da teologia.
Para Ortiz (1986, p.27), a pluralidade das religiões no mundo moderno
desmente as previsões secularizadoras dos pensadores do século XIX, a ponto de não
9
se poder falar de um “retorno do sagrado” que, na verdade, nunca desapareceu. O
advento da sociedade moderna não significa, assim, o fim das religiões, mas seu fim
como forma de organizar a sociedade como um todo. A sociedade moderna coloca
espaços mais delimitados para a religião, mas não a elimina ou, resumindo, “a religião é
preservada enquanto forma de conhecimento do mundo”.
A sociedade moderna abriga todas as religiões, sendo essa pluralidade e
fragmentação frutos da dinâmica social que cinde o homem em cidadão e,
eventualmente, em ser religioso.
No Brasil, dentre os pesquisadores que têm se dedicado ao fenômeno religioso
no campo da psicologia, destacam-se Amatuzzi (Unicamp), Paiva (USP/SP), Augras
(PUC/Rio), Giovanetti e Mahfound (UFMG), Massimi (USP/Ribeirão Preto),
Ancona-Lopez (PUC/SP) e Freitas (UCB/Brasília), mas ainda predomina uma
tendência, no meio acadêmico, de se manter o estudo do fenômeno religioso numa
posição marginal. Para Freitas (2003, p.22),
A ausência de reflexão sobre o fenômeno religioso na vida humana é,
freqüentemente, acompanhada e, ao mesmo tempo, sustentada por um
desconhecimento ou alienação em relação à própria história da psicologia, suas
raízes na filosofia e respectivas vicissitudes decorrentes da tentativa desesperada em
tornar-se uma ciência exata, confiável e reconhecida a quaisquer custos, inclusive o
de deixar ao largo questões fundamentais ao próprio mundo da vida, dentre elas a
tendência humana à incessante busca de um sentido existencial.
A reflexão sobre o fenômeno religioso pela psicologia deve estender-se também
ao tema da morte, que tem sido banido da vida das pessoas no ocidente moderno, mas
que, nem por isso, se faz silenciar. É fonte de sofrimento constante e presente, ainda
que de forma fantasmática, na história escrita por todos durante a existência.
10
Acreditamos ser papel do psicólogo dar voz a todos os temas relacionados ao
humano, buscando escutar-lhe o significado, valorizar-lhe a fala, a fim de que possamos
minimizar a “sentença” de Baudrillard (2002): “tudo aquilo que nós banimos volta em
forma de assombração”.
1.2. A evolução (ou involução) da relação do indivíduo com a morte no Ocidente
A atitude do indivíduo ocidental frente à morte sofreu mudanças radicais ao
longo dos séculos, fazendo com que ela passasse de um fato inevitável, para um
acontecimento que deve ser mantido fora dos limites da vida cotidiana. Ariès (1975, pp.
35/36), diz que “a antiga atitude segundo a qual a morte é ao mesmo tempo familiar e
próxima, por um lado, e atenuada e indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à
nossa, segundo a qual a morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer seu
nome”. Assim, para o autor, a morte deixou de ser “domada” para transformar-se na
morte “selvagem”, aquela que não se pode dar conta e que se procura colocar distante
da realidade da vida ou, nas palavras de Baudrillard (1976, p.197), “a morte deixou de
ser a grande ceifeira para tornar-se a angústia da morte”.
Se durante milênios o homem foi o senhor de sua morte e das circunstâncias
em que ela ocorria, hoje não é mais dessa forma. Para Ariès (1975), o homem da Idade
Média sabia que ia morrer e era natural que tivesse conhecimento da proximidade de
sua morte, em uma época em que as doenças eram quase sempre mortais. Quando a
pessoa não se apercebia dos sinais da morte próxima, cabia aos outros advertirem-na.
Assim como o doente não devia ser privado de sua morte, também cabia a ele que a
presidisse. A pessoa prestes a morrer sabia como proceder, pois por diversas vezes
tinha presenciado a morte de outros. A morte era, então, uma cerimônia pública:
“investido de uma autoridade soberana pela proximidade da morte, sobretudo nos
séculos XVIII e XIX, o moribundo dava ordens e fazia recomendações” (p.234).
11
Nos dias atuais, não só o indivíduo deve ignorar a proximidade de sua morte,
mas também a solenidade pública dessa hora deve ser evitada. Hoje, deve-se morrer
sozinho e, se possível, ignorando a própria morte. Segundo o autor, essas mudanças
estão ligadas ao monopólio que a família assumiu no mundo moderno, alterando as
relações entre o doente e a família.
O doente da segunda fase da Idade Média e do Renascimento via na morte um
momento seu, uma oportunidade de ver sua individualidade reafirmada e, sendo dono
da própria morte, tinha, da mesma forma, sido dono da própria vida. Sua vida lhe
pertencera, sua morte lhe pertencia.
Antes do século XVII, existia uma desconfiança em relação à família e ao
cumprimento dos desejos do doente após sua morte, tendo o testamento surgido para
fazer com que sua vontade estivesse assegurada. Mas quando a afeição familiar se
sobrepôs à desconfiança, o testamento perdeu sua função moral e os últimos desejos do
morto passaram a ser sagrados para os demais membros da família. Continuando, o
autor diz que essa confiança na família “nascida nos séculos XVII e XVIII e
desenvolvida no século XIX tornou-se, no século XX, uma verdadeira alienação”
(p.238). Isso significa dizer que o doente perdeu o papel principal no ato de sua morte e
a família assumiu o direito de decidir o que ele deve ou não saber ou fazer em relação à
última etapa de sua vida. Não lhe é dado o direito de tomar conhecimento de seu estado
de saúde ou de se preparar para o encontro com a morte e, se o sabe, deverá tentar
fingir que não sabe. “Antigamente a morte era uma tragédia – muitas vezes cômica –
na qual se representava o papel daquele que vai morrer; hoje a morte é uma comédia –
muitas vezes dramática – onde se representa o papel daquele que não sabe que vai
morrer” (p.238).
A partir da segunda metade do século XIX, o homem deixou de ser o dono de
sua própria vida e, conseqüentemente, de sua própria morte. A família usurpou-lhe esse
papel. Mas não foi apenas a família que contribuiu de forma tão rápida e eficaz para
12
alterar a relação do doente com a morte. A medicina teve um papel fundamental nessa
mudança: no final do século XIX, a medicina substituiu a morte pela doença,
instaurando, assim, um novo poder – o poder do médico.
Hoje se morre cada vez mais nos hospitais e é importante que isso se dê de
forma asséptica e discreta, para que não se criem embaraços aos sobreviventes. A
ruptura da comunicação com aquele que vai morrer também é uma característica da
sociedade moderna: o doente é cercado no isolamento imposto pelos médicos e pela
família e, também ele deve fingir otimismo em relação a seu estado de saúde. O doente
moderno é privado de sua própria morte, primeiro, porque não se pode falar dela e,
segundo, porque as técnicas da medicina e as equipes médicas farão o impossível para
mantê-lo vivo. A morte só lhe será dada o mais tarde possível.
Como nos fala Ariès (1975, pp.298/2999), hoje “é difícil morrer”, pois “a
sociedade prolonga o maior tempo possível a vida dos doentes, mas não os ajuda a
morrer”. Quando não mais consegue mantê-los vivos, a sociedade renuncia a seus
doentes, porque eles passam a ser prova e testemunhas de sua derrota. Por isso, nas
unidades de terapia intensiva dos hospitais, longe de suas casas, os doentes morrem
solitários e sem dignidade, privados de seus direitos de se manifestar, de expressar
sofrimento pela morte próxima. Deixando de ter valor para a sociedade, aquele que vai
morrer, “passou a ser um marginal”. Baudrillard (1976, p.241) afirma que nos dias de
hoje a morte deixou de ser solene e circunstanciada, em família, transferindo-se para os
hospitais, sendo esses a extraterritorialidade da morte; o homem deixa a companhia
dos seus entes queridos antes de morrer e, segundo o autor, “é por outro lado disso que
ele morre”.
Para Kubler Ross (1969, p.14), o que mudou ao longo do tempo não foram as
necessidades do paciente, mas “nossa capacidade de satisfazê-las”, aumentando seu
sofrimento emocional.
13
Paralelamente ao poder retirado daquele que vai morrer sobre sua própria
morte, também se retirou dos sobreviventes o direito de chorar seus mortos. Segundo
Ariès (1975), a sociedade moderna, além de privar o homem de sua morte também
proíbe aos vivos de se comoverem com a morte do outro, “não lhes permite nem chorar
os que se vão, nem fingir chorá-los” (p.245). O luto, antes uma dor necessária e
legítima, foi banido de cena.
A morte mascarada
Foi a partir do século XIII que as manifestações de luto, antes mais ou menos
espontâneas ou impostas, conforme a época, ritualizaram-se, e acabaram por se
transformar, no século XX, em interdito.
Antigamente, o que se buscava com o cuidado do corpo do morto era uma
imagem que não visava tirar-lhe a condição de morto. Hoje, o que se busca é evitar a
sombra da morte no semblante do morto, preparando-o para que pareça “estar saudável
e dormindo”, conservando em seu corpo a ilusão da vida, mascarando a morte.
A cremação, cada vez mais utilizada no mundo moderno, principalmente na
Europa, visa, segundo Áriès (1975), duas razões: o meio mais radical de se livrar dos
mortos e a exclusão do culto dos cemitérios e a peregrinação aos túmulos.
Para Baudrillard (1976, p.173), nos dias de hoje “nada mais se prevê para os
mortos, nem no espaço físico nem no mental”; isso implica que com a modernidade os
mortos deixaram de existir, foram rejeitados. Ainda para o autor, “a morte é uma
delinqüência” e, por isso, não existe mais um lugar nem espaços destinados aos mortos.
Aliado a isso, a proibição do luto impõe duras penas aos sobreviventes,
forçados a ignorar a perda e impedidos de chorar por ela; a dor é substituída por
atividades constantes, doenças e neuroses.
14
Historicamente, as religiões sempre foram o refúgio que protegia o homem do
medo da morte, com a função de transcendê-la, mas, segundo Carlos Rodrigues (2004,
ed.130), “o que, em outros tempos, esperava-se da magia e da religião, atualmente se
espera da ciência”. Com isso, transferiu-se o culto ao espírito, com a busca da história,
das artes, da literatura, do saber, para o culto ao corpo, com a busca da eterna
juventude, da beleza aparente, da longevidade e, com a negação da morte, da ilusão da
imortalidade.
No trabalho de título Luto e Morte: uma pequena revisão bibliográfica, o autor,
Vilar (2000), cita Émile Durkheim (1966), que faz uma abordagem sociológica da
morte, evidenciando a importância da religião – numa visão funcional, na estabilidade e
harmonia social, ressaltando que, sendo a morte um elemento desestabilizador, marco
de uma ruptura, a religião representaria uma forma de reequilíbrio social, permitindo,
por meio dos ritos de passagem da alma e corpo do morto, uma forma de diferenciá-los
da condição dos vivos, dando a esses condições de retomar suas funções cotidianas. No
mesmo sentido, o antropólogo Lévi-Strauss (1982) sugere que o primeiro ponto a ser
considerado em relação à morte é a força que essa possui de abalar o cotidiano das
pessoas e do mundo, e que a religião busca integrar a morte na ordenação de sentido da
existência humana. A religião seria, então, com suas práticas e crenças, responsável por
legitimar a morte e permitir ao indivíduo continuar vivendo em sociedade, após a perda
de seus entes queridos. Ainda segundo Lévi-Strauss (1982), os “rituais mortuários são
providências concretas para a manutenção da realidade em face da morte”. O autor
segue destacando a importância dos rituais para aqueles que se confrontam com a
morte, como forma de “retomar/recomeçar suas realidades sustentando o diálogo
social”.
Para a psicóloga Júlia Kovács (2004, ed.130), essa constatação também se faz
notar na medida em que, hoje, os funerais são realizados às pressas, de forma mais
indolor possível, com os rituais reduzidos ao mínimo indispensável. Para a autora, isso
15
“desqualifica os rituais e tira um pouco do seu valor”. Em conseqüência, as pessoas não
conseguem mais realizar o processo do luto.
Segundo Koury (Villar 1996/2000), a situação do luto no Brasil não difere
muito dos demais países ocidentais, já que “a cumplicidade pela indiferença aparente,
como se a morte e a dor não existissem, parece ser a tônica moderna do processo de
luto no Brasil urbano”. Podemos trazer exemplos bastante atuais que corroboram com
o autor: no cemitério de Taguatinga, cidade do Distrito Federal, as capelas onde os
mortos são velados trazem placas que as identificam como “capela ouro”, “capela prata”
e “capela bronze”. Já não somos todos iguais perante a morte, a distinção sócio-
econômica foi estendida aos mortos.
No Rio Grande do Sul, na cidade de Novo Hamburgo, região metropolitana de
Porto Alegre, surge a prática de trancar a capela mortuária à noite, indo os familiares
dormir em casa, deixando para trás o morto e retornando na manhã seguinte para dar
continuidade ao velório. Aqui, a segurança contra possíveis assaltos é a justificativa
apresentada pelas famílias, embora o cemitério da cidade conte com a presença de
funcionários encarregados da segurança do local. A morte, e os mortos, foram
excluídos do mundo dos vivos, cuidando-se para que lhes afete o mínimo possível a
rotina.
O papel das religiões, no tocante à realidade da morte, é a transmissão da
mensagem de que ela não é o fim da existência e de que, de alguma maneira, segundo
diferentes doutrinas, a vida continua após a morte. No entanto, segundo Vilar (2000), o
senso comum aponta para outra realidade: a de que a morte representa o fim ou,
podemos acrescentar, pelo menos o fim para nossa forma de existência atual.
Evidentemente, essa é uma realidade difícil de ser confrontada por qualquer ser
humano e, embora a religião possa confortá-lo e tornar mais branda a perda de pessoas
amadas, dificilmente tornará mais fácil a aceitação da própria mortalidade.
16
Para Ballone (2002), a morte é um processo biológico natural e necessário,
sendo condição indispensável à preservação da espécie, permitindo que, por meio da
morte, a vida se alimente e se renove, sendo, portanto, “um artifício da natureza para
tornar possível a manutenção da vida”, mas que, apesar de ser um processo natural e de
a ciência ter evoluído tanto no prolongamento da vida, dificilmente as pessoas
entenderão que a morte possa representar apenas “uma vida que chegou naturalmente
ao fim, uma existência que simplesmente expirou”. O autor também acredita que o
exercício espiritual, ligado ou não à religião, facilita a aceitação da morte como
conseqüência da própria vida, e que é o culto ao ego que faz com que “a pessoa acredite
e aceite a morte dos bilhões de seres humanos no mundo, menos a sua própria”.
A cultura do ego, tão valorizada na sociedade atual, faz com que o homem
conjugue cada vez mais o verbo ter, na busca de status social, acúmulo de bens
materiais, juventude aparente e diversos valores relacionados ao estar aqui – nessa
vida, tornando, assim, a morte uma realidade inaceitável já que, na morte, nenhuma
dessas aquisições seguirá com o indivíduo. Segundo Ballone (2002), nesse cenário de
materialismo dominante “ficam irremediavelmente prejudicadas as iniciativas para o
autoconhecimento, primeira lição para aceitarmos com serenidade que um dia
deixaremos de existir”.
O psicanalista francês Charles Melman (2004) faz eco às constatações de
Ballone, dizendo que, hoje, o homem colocou “o prazer à frente do saber”, valorizando a
“estética em detrimento da ética”, e que, apesar de o homem ter conquistado tanta
liberdade, abriu mão do pensamento; e que “nunca se pensou tão pouco” quanto hoje,
tendo a mídia substituído os livros e os grandes escritores do passado, resultando, daí,
“um indivíduo manipulável e manipulado”; e que, para esse sujeito de prazer, a morte
perdeu também sua sacralidade, passando a ser mais um bem de consumo.
Recorremos, ainda, à psicanalista Judith Viorst (1988, pp.328/331), que traça
um percurso sobre como podemos, se não afastar, pelo menos minimizar o medo da
17
morte em nossas vidas, nessa cultura em que morrer, apesar de inevitável, deixou de
ser permitido. Para a autora, é saudável manter a morte como uma realidade, porque
sua negação empobrece a vida; porque é necessário um consumo de energia enorme
para que se possa manter a morte – e o seu temor – afastada da vida; porque o temor da
morte é substituído por outras fontes de ansiedade e porque, ainda que a
conscientização de nossa morte não a transforme em algo aceitável, pode enriquecer
nosso amor pela vida. Também, para a autora, a “imagem de imortalidade mais familiar
é a religiosa” e “a religião é o único contexto no qual podemos evocar imagens de
continuidade depois da morte”; mas, embora a morte traga o aniquilamento biológico e
psíquico, não precisa, necessariamente, significar o fim absoluto. É possível
imaginarmos a continuidade da existência por meio da natureza, na reintegração com a
terra, por exemplo; ou por meio de obras e trabalhos que sobrevirão às gerações
futuras, trazendo-lhes contribuições importantes; e podemos continuar vivendo através
de nossos filhos e netos, pela continuidade biológica.
Mas, seja qual for a imagem que fizermos para além da vida, é necessário viver
com um senso de transição, de que tudo o que somos e tudo o que amamos não
permanecerão para sempre:
O eu que criamos com tantos anos de esforço e sofrimento morrerá. E por mais
que nos apoiemos na idéia, na esperança, na certeza de que uma parte de nós
viverá para sempre, temos de reconhecer também que esse “eu” que respira, ama
e trabalha, que conhece a si mesmo, será obliterado para sempre... para todo o
sempre.
(Viorst,1988, p.331)
18
1.3. O candomblé no Brasil
Tendo convivido com o povo do candomblé durante vários anos, pudemos
observar as diferentes formas de relação que essas pessoas mantêm com as coisas da
vida, entrelaçando o cotidiano e o sagrado, tecendo teias entre as diferentes facetas da
vida social com os preceitos e tradições da religião. Uma vivência que parece fundir, e
até confundir, antes de excluir, dois mundos que se apresentam, às vezes, de forma tão
distinta e, até, contraditória.
Dessa forma e, antes de podermos avançar sobre o tema da morte no
candomblé, se faz necessário descrever como é a vida nessas comunidades, como se
organizam as relações pessoais no grupo e como a noção do sagrado permeia a relação
entre elas e suas vidas em geral.
Nos textos sobre o candomblé, aqui apresentados, utilizaremos a grafia da
língua portuguesa, na forma como os termos iorubas são transcritos, pois isso
simplifica a leitura e a escrita. Relacionaremos em glossário, páginas 174/178, todos os
termos iorubas utilizados, com sua tradução e o significado de alguns termos e
expressões que, embora já traduzidos, carecem de explicação.
O candomblé, religião de origem africana, desembarcou no Brasil no século XVI
sendo, segundo Verger (1981, p.22), “uma conseqüência imprevisível do tráfego de
escravos”. Esse tráfico, intenso por mais de três séculos, trouxe aproximadamente
3.600.000 pessoas como escravos para o País. Recebemos aqui cerca de 38% de todo o
movimento praticado entre a América e a África. A Bahia foi o estado que mais recebeu
escravos no Brasil, com 1.200.000 destes desembarcados em seu porto, com o Rio de
Janeiro ocupando a segunda posição (Berkenbrock, 1997, p.77). Vindos de diversas
partes da África, os primeiros escravos a desembarcar no Brasil foram os de origem
19
bantu, seguidos de grande contingente de daomeanos e iorubas. Fatores como a época
da chegada e o local de trabalho dos negros desembarcados, distribuídos em imenso
território geográfico, contribuíram para que algumas das culturas africanas não
sobrevivessem nesse solo. Como diz Berkenbrock (1977, p.80), “quanto mais cedo um
grupo foi trazido para o Brasil, tanto menor a chance de sua cultura ter tido
continuidade”, assim, os escravos bantu, primeiros a chegar e espalhados nas diversas
regiões para o cultivo agrícola, pouco puderam conservar de sua cultura. Para os
iorubas, chegados ao final dos tempos da escravidão e concentrados, principalmente,
nas cidades, foi possível conservar muitos dos elementos de sua cultura. Esses
elementos, que além das concepções religiosas agregam valores sociais, língua,
culinária, música e representações míticas, foram conservados a partir de nações
africanas diversas e não a partir de uma única matriz africana. No entanto, como alerta
Prandi (2005), as religiões afro-brasileiras, embora trazendo em sua origem a religião
de negros, a sociedade onde elas surgiram, ou ressurgiram, era a brasileira, estruturada
em outras instituições, principalmente a familiar, que firmada nas bases do catolicismo,
fez com que a religião africana se constituísse como religião de negros católicos,
separados de seus clãs e antepassados, tendo como conseqüência a perda de parte de
seus cultos, especialmente os ligados aos antepassados, e regras de comportamento e
convivência entre homens e mulheres que não puderam ser mantidos como eram na
grande família africana (p.143). Entre as principais perdas podemos destacar que os
iorubas tradicionais são polígamos, com famílias numerosas habitando residências
coletivas e cultuando orixás particulares para cada família, cidade e região.
Transportada para o Brasil, a religião precisou adaptar-se a novos modelos sociais,
sendo o desaparecimento das linhagens e ruptura das estruturas de parentesco a mais
importante delas, inaugurando aqui um novo conceito de linhagem: a família de sangue
ioruba foi substituída pela família mítico-espiritual, conhecida como família de santo
(Prandi, 2005, p.166).
20
Os fundamentos da religião são aquilo que restou da memória coletiva viva e
que faz referência a uma etnia africana, mas, segundo Prandi (2005), o candomblé não é
a reunião de afro-descendentes que cultivam uma origem e antepassados em comum e
sim uma religião dos orixás fundada no Brasil pelos velhos líderes dos primeiros
terreiros, onde os mitos de interesse religioso foram conservados, mas os costumes
adaptados e reinterpretados para poderem sobreviver como prática e elementos
religiosos no Brasil, porque o mito “deve fazer sentido não mais exclusivamente para o
negro e todo afro-descendente, mas também para o branco que adere à religião dos
orixás” (p.168/169).
O candomblé também despertou o interesse dos estudiosos e Augras (2000), em
seu texto “O Terreiro na Academia”, integrante do livro Faraimará – O caçador traz
alegria, Mãe Stella – 60 anos de iniciação, faz uma retrospectiva da inserção do
candomblé na academia, ilustrando que o primeiro estudo científico sobre o candomblé,
assim considerado no Brasil, data de 1900. De autoria de Nina Rodrigues, L’animisme
fetichiste dês nègres de Bahia, o livro, destinado à comunidade internacional, tratava da
variedade dos traços culturais existentes no Brasil. Em outra obra, Os africanos no
Brasil (1906/1907), o autor volta a tratar das tensões existentes entre o negro liberto e
sua difícil inserção na sociedade, ressaltando aqui a impressionante característica de
resistência desse povo às tentativas de catequese e às repressões policiais contra sua
religião de origem (Augras, 2000). Os textos de Nina Rodrigues, no entanto, atribuía o
“estado-de-santo”, no qual os negros eram “possuídos” pelo orixá, a um sonambulismo
provocado, com cisão e substituição da personalidade; os fenômenos eram observados
através do olhar psiquiátrico. Segundo Augras (1995), foi com a chegada de Herskovits
no Brasil, no início dos anos quarenta, que o “estado-de-santo” começou a ser visto
como um comportamento normal, por ser promovido e aprendido. Em 1950, Bastide
defende na Sorbone a tese intitulada As religiões africanas no Brasil, inaugurando um
novo olhar sobre os negros em nosso país, deixando de ver “o terreiro como simples
21
lugar de sobrevivência de cultos antigos” (Augras, 2000, p.51). A partir daí, estuda
diversos aspectos do candomblé, como seu funcionamento, sua estruturação em relação
à sociedade como um todo, estrutura econômica e análise dos aspectos psicológicos que
envolvem os iniciados na religião. Os estudos referentes aos negros no Brasil deixam,
então, o olhar de nação africana para trazê-los ao contexto da sociedade brasileira,
assumindo, da mesma forma, o estudo do candomblé como uma religião aqui instaurada
e legitimada por seus seguidores, já não só composta por negros, mas também de
brancos e de todos os extratos de classes sociais.
Pierre Verger, etnólogo francês apresentado ao candomblé por Bastide, não só
desenvolveu diversos ensaios literários e fotográficos a respeito da religião, como se
inseriu nela, tornando-se Babalaô em Daomé – África e Ogã, no Axé Opô Afonjá e no
Opô Aganju, em Salvador, BA. Verger (1981) dedicou-se ao estudo do candomblé no
período de 1949 a 1979 e, em 1976, foi reconhecido pela ciência e recebeu o título de
doutor em estudos africanos, concedido pela Sorbone, em Paris.
A partir dos anos 80, o candomblé passa a ser estudado por meio dos diversos
aspectos que compõem esse vasto território de vivências individuais e experiências
coletivas.
Em 1975, Yvonne Maggie trata, em sua tese de mestrado em antropologia
social, do estudo dos conflitos ocorridos em um terreiro de umbanda no Rio de Janeiro.
Seu trabalho, Guerra de Orixá – Um estudo de ritual e conflito já dirigia ao terreiro um
olhar mais específico, dentro de todo seu contexto.
Nessa mesma linha, de olhar um ponto dentro do todo, destacam-se os
trabalhos de Vivaldo da Costa Lima, com o estudo da hierarquia e poder no candomblé,
em 1966, e Roberto Motta, que, em 1980, analisa os terreiros como um conjunto da
sociedade brasileira ali representada.
Prandi (1991) aborda, em sua tese de livre-docência, Os Candomblés de São
Paulo, o impressionante crescimento dos terreiros de candomblé nessa cidade, com
22
pesquisa de campo envolvendo sessenta terreiros da região metropolitana, trabalhando
com a hipótese de que, “para merecer tanta adesão, o candomblé deve oferecer coisas
muito valiosas no mercado de bens simbólicos”, levando-o à conclusão de que o
candomblé é uma religião que não rejeita o mundo e nem pretende mudá-lo, pois,
vendo o mundo como ele é, enxergam-se nele os meios de ser feliz. O autor
complementa dizendo que “o candomblé afirma o mundo, valoriza-o e, ao propor meios
para lidar concretamente com os problemas, graças à utilização de recursos mágicos,
permite que cada indivíduo lute com armas simbólicas contra tudo aquilo que o
esmaga”, justificando-se, assim, a expansão do candomblé na maior metrópole da
América do Sul (Augras, 2000, p.56).
Augras (2000, p.56) diz que, se o candomblé é bom para resolver as demandas
dos indivíduos da sociedade, o terreiro não poderá mais ser descrito apenas como um
lugar de sobrevivência da religião e dos valores africanos, mas como um espaço de
reordenamento e redefinições que dizem respeito à sociedade brasileira como um todo,
sugerindo que o terreiro “poderá ser focalizado, pelos estudantes universitários, como
um recorte da sociedade mais ampla, onde se expressam questões reveladoras das
tensões comuns a todos os seus segmentos”. Num desses recortes, a autora faz
referência aos trabalhos de Patrícia Birman (1988/1995) e Maria Lina Leão Teixeira
(1993), que trataram em sua tese de doutorado e dissertação de mestrado,
respectivamente, das questões de gênero, dos papéis diferenciados atribuídos pela
sociedade com base na diferença dos sexos, investigando como o terreiro elabora essa
questão tão viva nos demais segmentos da sociedade. Augras (2000, p.57) enfatiza que
“em pesquisas desse tipo, as peculiaridades do candomblé deixam de ser tratadas como
sinais de especificidade étnica, já que, pelo contrário, são pontos de partida para
repensar a sociedade brasileira em seu conjunto” ou, como afirma Roberto Mota: “o
terreiro reflete a sociedade brasileira; o candomblé é o Brasil”.
23
E assim, mais uma vez, recorremos a Augras (1983, p.51) ao afirmar que um
longo caminho foi percorrido desde Nina Rodrigues, onde a estranheza acaba por
esclarecer o mundo dos valores do observador, em vez do mundo do observado, e que
“somente a visão de dentro para fora pode garantir a compreensão”.
É por essa especificidade que buscaremos olhar de dentro do terreiro, tentando
escutar-lhe o significado da morte e a forma como a morte do outro é vivenciada pelo
fiel do candomblé.
Para que possamos buscar compreender o significado da morte em uma religião
tão rica em rituais, na qual o simbólico se impõe em todas as atividades e manifestações
do culto, extrapolando os limites do terreiro, incorporando-se nas demais dimensões
sociais da vida do iniciado, necessário se faz, embora muitos estudiosos e pesquisadores
já se tenham dedicado a esses temas, lançarmos um rápido olhar sobre os diversos
aspectos que compreendem o universo do candomblé.
O Candomblé de nação Ketu
Embora existam outras formas de culto com tradições distintas ou aglutinação
de diversas tradições, no presente estudo manteremos o foco apenas na tradição de
origem Ketu, sobrevivente no Brasil, considerada pelos adeptos da religião como o
candomblé de raiz, que procura manter ao máximo as tradições vindas da África com
os escravos e por eles conservadas através de seus descendentes (Berkenbrock, 1997).
Vimos, com Prandi (2005), que essas tradições tiveram que ser adaptadas aos moldes
da sociedade brasileira e que muitas características originais se perderam nesse solo,
podendo-se dizer que a “raiz” encontra-se mais nos primeiros fundadores de terreiros
brasileiros do que na África antiga. De qualquer forma, e respeitando-se as demais
nações existentes no candomblé e nas outras formas de expressão dos cultos afro-
24
brasileiros, o terreiro escolhido para o desenvolvimento da pesquisa tem em sua origem
e forma de culto o candomblé de ketu, sendo essa a principal razão da concentração do
foco nessa nação específica.
A Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, é considerada, pelos estudiosos
e pela comunidade religiosa, como a casa de candomblé mais antiga em funcionamento
na Bahia, surgida na primeira metade do século XIX (Augras, 1983). A partir de uma
cisão entre seus membros, a Casa Branca deu origem a duas outras casas na Bahia, que
têm o status de casa-mãe – de ser origem de uma tradição – no candomblé: o Terreiro
do Gantois e o Axé Opô Afonjá (Verger, 1981). Os demais terreiros de candomblé de
origem Ketu existentes hoje no Brasil são um braço de uma dessas três casas originais
e, embora sejam casas isoladas e independentes, têm um núcleo teológico comum, no
qual se destaca o importante papel dos Orixás.
O candomblé – bem como as outras religiões afro-brasileiras – é uma religião
na qual as tradições são transmitidas oralmente. Não há nenhum texto que ganhe o
status de uma escritura sagrada. “A oralidade é um instrumento a serviço da estrutura
dinâmica da religião. A dinâmica do sistema recorre a um meio de comunicação que
deve se realizar constantemente. Cada palavra proferida é única. Nasce, preenche sua
função e desaparece.” (Santos, 1975, p.47). A palavra é importante tanto no nível
comunitário – quando ela é proferida por uma pessoa para alcançar uma outra, ou
muitas outras através das gerações, como no nível individual – como expressão de um
“processo de síntese no qual intervêm todos os elementos que constituem o indivíduo”.
Augras (1983) faz um importante complemento quando diz que, além da palavra, a
transmissão do saber iniciático faz-se por meio dos gestos, da dança, do canto, dos
atabaques, do ritmo e da emoção que o som exprime. O candomblé é uma religião que
se faz com música e dança. Prandi (2005, p.180) diz que candomblé “acorda-se
cantando, saúdam-se os vivos e os mortos cantando, passa-se pela iniciação sacerdotal
25
ao som de cantigas sagradas. Nada se faz sem cantar” e prossegue dizendo que “canta-
se para reafirmar a fé, porque cantar é celebração, é reiteração da identidade” (p.182)
Atualmente, no entanto, a oralidade, embora ainda conserve um papel
imprescindível na realização do culto e dos rituais, deixou de ser o único instrumento
de conhecimento da religião. Os iniciados mais jovens, geralmente com alto nível de
escolaridade, buscam avidamente os materiais escritos por sociólogos, antropólogos ou
etnólogos e, mais recentemente, por psicólogos e, principalmente, por iniciados
estudiosos de sua própria religião, com o objetivo de procurar conhecimentos que
julgam perdidos ou que acreditam estar-lhes sendo sonegados pelos adeptos mais
antigos da religião. Para Capone (2004, p.146), o candomblé passou a ser “o lugar de
uma procura incessante dos porquês da vida”, e os iniciados não se satisfazem mais
apenas com a experiência mística, com a vivência do orixá, querendo compreender,
buscando a expressão de uma racionalidade que não conseguem alcançar. A autora faz
uma crítica ao dizer que “passou-se assim da antiga transmissão oral, que era a base do
aprendizado no candomblé, para o estudo de um conjunto de obras “sagradas”, escritas,
em sua maioria, por antropólogos brancos” (Capone, 2004, p.299).
Sobre a oralidade, Augras (1983) afirma que nos rituais as palavras não podem
ser dissociadas dos gestos que os acompanham e que os textos escritos perderiam
assim sua força, seu significado, uma vez que estariam transformados em símbolos
abstratos, deslocados de seu contexto existencial.
De qualquer forma e, embora os iniciados tenham acesso a vários textos sobre
os rituais do culto e suas origens, a religião continua a ser aprendida na experiência e a
palavra proferida nos ritos ainda se afirma como sagrada. Por ser uma religião
constituída sob segredos, os estudiosos iniciados no culto não os revelam e os
estudiosos não-iniciados não têm acesso a eles.
A criação é, na cultura ioruba, a passagem da unidade para a pluraridade e, ao
mesmo tempo, a passagem do estático ao dinâmico. O candomblé tem diversas
26
divindades como modelo – os orixás, que se apresentam como representações
psicológicas.
A experiência religiosa não visa apenas ser uma parte da vida do indivíduo, mas
é uma experiência ligada intimamente ao ser humano e à busca do sentido da vida
como um todo. A realização do sentido da vida, para o candomblé, está na união ou
harmonia entre dois níveis da existência: Orum e Aiye. O destino do ser humano está,
pois, ligado a essa divisão. O próprio ser humano personifica essa divisão, pois se
encontra no nível do Aiye – da limitação, da materialidade – mas carrega em si algo do
Orum, da ilimitabilidade – um orixá (Lépine, 2000).
A busca da união e harmonia deve ser feita primeiramente, pois, em cada ser
humano. Assim, quando o candomblé apresenta como objetivo a busca da unidade ou
harmonia entre os dois níveis de existência na própria pessoa, e oferece um caminho
para esta busca, ele tem como ponto de partida uma determinada compreensão de
pessoa, por meio do seu orixá, para que essa harmonia possa se dar.
O Terreiro de Candomblé
Palco central das atividades ritualísticas do candomblé, o terreiro é o local onde
a comunidade se reúne. Os terreiros objetivam ser pequenas reconstruções de uma
África mítica no Brasil. São como ilhas africanas, isoladas em uma realidade estranha
ao Ocidente, onde todo o universo (Orum e Aiye) está reunido. Nesta ilha pode ser
retomado o relacionamento entre pessoas e orixás; ali os orixás podem ser invocados.
Ali pode ser trocado o axé e garantidas a dinâmica e a continuação da existência.
Os terreiros são unidades completas e fechadas. Existem diferenças entre os
terreiros africanos e os brasileiros – além das diferenças que surgiram pela perda de
elementos religiosos no Brasil. O terreiro brasileiro não é como na África, mas sim uma
reconstrução à forma brasileira. Uma diferença muito clara é o fato de que na África
27
cada terreiro, ou aldeia, dedica-se ao culto de apenas um orixá, enquanto que, no Brasil,
são cultuados diversos orixás em cada terreiro. Esse fato deve-se, provavelmente, à
separação dos negros escravos chegados ao Brasil que, depois de reunidos, formaram
uma gama variada de filhos de diversos orixás, passando assim a cultuá-los em
conjunto (Berkenbrock, 1997 e Verger, 1981). Deve-se também, como já vimos, à perda
das linhagens e dos laços sanguíneos deixados para trás pelos escravos, com a vinda
para o Brasil.
O terreiro é composto normalmente por casas ou diversos espaços, formando
uma unidade, surgindo daí sua designação, também, como casa ou roça de santo. Uma
primeira estrutura do culto é a existência de dois ambientes, que cumprem funções
diferentes: um é o espaço das pessoas, o espaço civilizado, da ordem. Nesse espaço,
encontram-se as construções destinadas ao uso particular e de culto. É o espaço
urbano, o espaço da civilização. Por outro lado, existe um espaço não destinado às
pessoas, um espaço que não é por elas freqüentado. É o espaço não civilizado, não
controlado, que carrega em si o mistério e o sagrado. Nesses espaços apenas as pessoas
iniciadas, da alta hierarquia da casa de santo, têm licença para entrar. Dessa forma, o
terreiro traz a representação da totalidade: o espaço habitado e o espaço não habitado,
o destinado às pessoas e o destinado ao sagrado, o conhecido e o desconhecido (Beniste,
2001).
Para que o terreiro cumpra sua função, deve receber axé. O axé é força, energia
transmissível, “é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável” (Santos,
1975, p.39). O axé é plantado no terreiro, geralmente no centro do barracão principal,
simbolizado por um grande mastro de madeira e assim transmitido a todos os outros
elementos que integram o terreiro. O axé, como força dinâmica, pode aumentar ou
diminuir. Assim, para Santos (1975, p.40), “quanto mais um terreiro é antigo e ativo,
quanto mais as sacerdotisas encarregadas das obrigações apresentam um grau de
28
iniciação elevada, tanto mais poderoso será o axé do terreiro. O conhecimento e o
desenvolvimento iniciático estão em função da absorção e da elaboração de axé”.
Dessa forma, cada vez que uma pessoa é iniciada, o potencial energético de toda
a comunidade é aumentado, o templo cresce, se fortalece, conferindo mais axé a seus
membros que, em troca, amplificam o potencial de energia sagrada do terreiro (Augras,
1983).
O culto – a devoção ao Orixá
O culto cumpre o papel central no relacionamento entre orixá e iniciado. Ele
possibilita o contato direto, no qual o fiel experiencia seu orixá pessoal com total
intimidade, colocando seu corpo à disposição do orixá, de modo que ambos encontram-
se unidos em um único corpo. O orixá é parte integrante do filho de santo e sua
manifestação se faz de dentro para fora, é uma energia que se manifesta, vinda do
interior (da cabeça - ori) do iniciado. Augras (1983) enfatiza que a cabeça é o ponto de
interseção onde se concentram as forças sagradas e a possibilidade de realização
pessoal. Complementamos sua afirmação trazendo a contribuição do pai de santo Tito
de Omolu, Babalorixá do Axé Baraleji, que diz que a manifestação do orixá deve ser
entendida como a presença de uma memória transcendental atuando a partir do
registro celular – memória genética, e não apenas através de ori – entendido como
consciência individualizada porque, se assim não fosse, a estrutura individual e sócio-
cultural do iniciado poderia impedir a manifestação do orixá; se essa memória não fosse
transcendente não conseguiria quebrar as defesas impostas pela consciência e pela
cultura atuantes no indivíduo.
O iniciado é tomado por seu orixá e, por meio do corpo de seu filho, o orixá tem
a possibilidade de participar do Aiye e assim desfrutar da companhia das pessoas. O
orixá está ali para lhe dar axé e vem ao Aiye, por meio do corpo de seu filho, para com
29
ele festejar e dançar. Este dar e receber mútuo conduz ambos os lados a mais vida. Pelo
axé, é patrocinada a dinâmica e a continuidade da vida. Os orixás são os mediadores e
os doadores dessa força.
Como se trata de um processo de dar e receber, os filhos também fazem sua
parte: realizam oferendas e colocam seu corpo à disposição para que os orixás venham à
terra. O culto, que reaviva todo o processo da existência, acontece através de vários
rituais. Cada iniciado tem uma obrigação perante seu orixá. Essa relação exige
determinados comportamentos, uma forma de vida condizente e a realização de
diversos ritos individuais de fundamental importância para o equilíbrio de sua vida
(Berkenbrock, 1997).
O Povo de Santo - Organização sócio-religiosa
Os terreiros no Brasil são uma tentativa de ligar os cultuadores dos orixás a
uma estrutura familiar aos moldes antigos (africanos). O terreiro funciona como uma
grande família, na qual o parentesco se compõe de duas vertentes: por um lado o
parentesco carnal e, por outro – de igual ou maior importância –, um parentesco
espiritual. O parentesco no terreiro é visto, principalmente, na base de critérios
religiosos. Isso tem como conseqüência que os membros de um terreiro, como também
os filhos de um determinado orixá, considerem-se irmãos. Esse parentesco espiritual
pode ter uma importância decisiva na vida de muitas pessoas e influenciar
enormemente o relacionamento entre elas. Filhos do mesmo orixá não deveriam casar-
se entre si, membros de uma mesma comunidade também não deveriam casar-se entre
si, pois são irmãos pelo critério religioso. Assim, para manter todos os membros na
mesma comunidade de santo, é possível à ialorixá ou ao babalorixá (mãe ou pai de
santo) determinar que um casal possa ser mantido na comunidade, tomando para si,
como filho, um dos membros do casal, e dando o outro como filho para uma das
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iniciadas do terreiro, já em condições, devido ao tempo de iniciação e cumprimento das
obrigações, de cumprir os ritos de iniciação. Essa segunda mãe de um terreiro,
chamada de mãe pequena, cumpre as funções de substituir a ialorixá/babalorixá em seus
impedimentos, como se mostra o caso. Assim como uma mãe ou pai de santo não deve
iniciar duas pessoas que formam um casal, também não deverá iniciar seus pais, irmãos,
maridos e filhos carnais, podendo os mesmos ser iniciados pelas mãos de outra pessoa
do mesmo terreiro, onde serão todos filhos de direito, mas não de fato, considerando-se
irmãos de axé, e não irmãos de santo, (Benistes, 2002). Com o passar do tempo e a
proliferação do número de terreiros espalhados pelo Brasil e pela disputa que se
estabelece entre as diversas casas de santo, na busca e manutenção do maior número de
filhos de santo possível, sinal de prestígio para a casa e o pai ou mãe de santo, os tabus
de parentesco foram enfraquecendo, deixando de ser um impedimento categórico.
Segundo Prandi (2005, p. 154), hoje em dia “praticamente todas as relações são
admitidas dentro de um mesmo grupo de culto”, sendo muitos os artifícios admitidos
para quebrar a interdição.
A família de um terreiro é organizada de forma rigorosamente hierárquica. A
composição de cada um na hierarquia é determinada pelos diferentes graus de iniciação,
bem como pelo tempo de presença no culto. O tempo de iniciação, antes contado pela
experiência e pelo aprendizado, passou a ser contado pelo calendário, um tempo que
realmente conta na aprendizagem do iniciado, e que acabou por se impor como fator de
ordenamento hierárquico do grupo. Classificado pelos antropólogos como peking order
– a ordem das bicadas, como pode ser observada nos galinheiros: a galinha mais forte
se estabelece como líder e bica todas as demais e não é bicada por nenhuma; uma outra
é bicada pela primeira e bica todas as outras; a terceira é bicada por essas duas e bica as
demais, até a última galinha que é bicada por todas as outras e não bica nenhuma. Esse
esquema é rigorosamente observado na hierarquia estabelecida no candomblé (Prandi,
2005).
31
Cada terreiro é conduzido por uma ialorixá ou babalorixá. Ela ou ele é a
autoridade máxima em um terreiro e sua autoridade não se limita ao campo da
espiritualidade ou dos rituais, extrapolando muitas vezes para os aspectos da vida
cotidiana dos filhos de santo. A palavra de uma ialorixá ou de um babalorixá é lei na
comunidade. Esses, por sua vez, devem obedecer apenas aos orixás, que são autoridades
espirituais. Isso traz prestígio ao dirigente de uma casa de candomblé, mas também
uma grande responsabilidade. A ialorixá ou babalorixá tem a responsabilidade maior
pelo processo de troca de axé e, com isso, a responsabilidade última pela harmonia e
equilíbrio da vida.
O cuidado do culto é a tarefa mais importante da ialorixá ou do babalorixá.
Também a grande tarefa de transmissão da tradição, dos conteúdos de fé e das práticas
religiosas faz parte da missão das pessoas que dirigem o terreiro.
Os outros níveis hierárquicos do Candomblé são: mãe-pequena, aquela que, no
caso de impossibilidade da ialorixá ou babalorixá, dirige os trabalhos do terreiro;
Axogun, o responsável pelos rituais sagrados de oferenda aos Orixás; Pegigan, o
responsável pelos altares dos Orixás; Alabê, o responsável pela música durante o culto;
Ekede, ajudante dos Orixás quando se encontram em terra, através do corpo de seus
filhos; Abasse ou Iabassê, a responsável pela preparação das comidas sagradas, entre
outros. Existem ainda os Iaôs, pessoas iniciadas e aptas a permitir, por meio de seus
corpos, a presença dos Orixás em terra, e os Abiãs, pessoas recém iniciadas no culto.
Todos têm uma função clara e estabelecida pelas regras do culto e iniciação, e todos são
importantes para a manutenção da casa de santo e para a continuidade da religião,
(Berkenbrock, 1997).
32
Os Orixás
Olorum (Deus) é a fonte única de todas as bênçãos, das chuvas, das boas
colheitas, da comida em abundância, da saúde, das vitórias, da paz no lar, mas todos
esses benefícios passam pelos orixás, intermediários estabelecidos pela vontade divina.
Olorum é a fonte de toda a vida; em Olorum, o senhor único do Orum, tudo teve o seu
início. A bondade de Olorum não alcança, porém, os seres humanos e o Aiye de uma
forma direta. Entre o Orum e o Aiye estão os orixás, como mediadores ou
administradores dos bens de Olorum.
No candomblé, a veneração ou adoração a Olorum não acontece de forma direta,
mas sim pela figura dos orixás. Seu nome é raríssimas vezes invocado no culto e ele
não é alvo primeiro de nenhuma ação ritual. Os orixás, estes sim, são o alvo e as figuras
centrais das ações do culto; eles são o eixo central em torno do qual gira a vida
religiosa no candomblé.
Tradicionalmente concebe-se que o lugar dos orixás é o Orum. O Orum não é
entendido, porém, como um local, mas como uma forma de existência. A forma de
existência dos orixás é, pois, a forma do Orum, do nível do não palpável, do intangível,
do nível espiritual. O local pode ser, portanto, em todo o lugar, pois em todo o lugar a
forma do Orum pode se fazer presente.
O Orum abrange o todo, assim, os orixás podem estar tanto num lugar
inalcançável quanto na natureza e, também, na cabeça de seus filhos. Na concepção
teológica do candomblé, os orixás são forças, energias, que controlam e regulam tanto
os conhecimentos cósmicos como os fenômenos naturais, e que determinam tanto a
vida social como a vida individual das pessoas. Os orixás fazem parte da família do
indivíduo, “são os remotos fundadores das linhagens cujas origens se perderam no
passado mítico. Em troca de oferendas, os orixás protegem, ajudam e dão identidade
aos seus descendentes humanos” (Prandi, 2005, p.73).
33
Os orixás são figuras divinizadas, que surgiram por meio de Olorum como os
primeiros ancestrais ou, em alguns casos, foram seres humanos que, por seus feitos na
terra, conquistaram a divinização, o status de orixá (Beniste, 1997). Nos primórdios do
tempo os orixás estavam intimamente ligados às forças da natureza, mas conforme a
vida do homem ia se tornando mais complexa na terra, os orixás foram se libertando do
mundo natural e se aproximando do mundo do trabalho, da cultura, das atividades
sociais. Assim, Iemanjá, rainha do mar, incorporou a proteção da maternidade e o
equilíbrio mental; Oxum é a dona das águas doces e governa a fertilidade humana e o
amor; Ogum, além de ser o senhor da guerra, é o responsável pela abertura de todos os
caminhos e ascensão social; Xangô, rei do trovão e dono da justiça, passa a ser o
regulador de todos os empregos e contratos; Oxossi, antes cultuado como o orixá da
caça, passou a zelar pela fartura dos alimentos e, mais recentemente, passou a ser o
guardião do meio ambiente, sendo hoje também conhecido como o orixá da ecologia; e
Omolu, visto no passado remoto como o senhor da varíola, passou a ser cultuado como
o responsável pelo controle de todas as doenças. O controle da natureza pelo homem,
com o desenvolvimento científico e tecnológico, foi desviando o homem da natureza e,
com isso, ampliando o campo de atuação dos orixás (Prandi, 2005).
Além de seus atributos ligados à natureza, cultura e sociedade, os orixás são
representações psicológicas na medida em que possuem características ambíguas, sendo
portadores de grandes qualidades e capacidades e, ao mesmo tempo, defeitos, que os
aproximam, assim, dos seres humanos. Por isso se diz no candomblé que cada filho de
orixá traz consigo as características desse pai. Essas características estão inscritas
tanto no corpo quanto na personalidade do indivíduo. Atributos físicos, características
que se referem à sexualidade, traços de caráter e a forma de comportamento social do
indivíduo são “herdados” desse pai ancestral, gerando sua linhagem e continuidade no
mundo do Aiye (Barros e Teixeira, 2000). Para o Babalorixá Tito de Omolu, o que o
filho do orixá herda é o temperamento do pai ancestral e seus atributos físicos, mas o
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caráter do indivíduo pode ser moldado e modificado culturalmente, o que confere com a
visão do candomblé de que o indivíduo é responsável pelo seu destino. Se tudo fosse
herdado desse pai ancestral, o filho de um determinado orixá estaria “condenado” a
viver num enredo pré-determinado. Essa afirmação parece coincidir também com a
noção de que o homem é produto da natureza e da cultura, simultaneamente.
Dentro dessa dinâmica, existem orixás intimamente ligados à morte e outros
que dela se afastam, porque suas origens e ligações com os elementos da natureza estão
mais ligadas à vida. Da mesma forma, seus descendentes no Aiye, os filhos de santo,
manterão a mesma proximidade, ou distanciamento, com as coisas ligadas à morte
(Santos, 1975).
Outro elemento de importância fundamental no culto é Exu, injustamente
sincretizado como o diabo cristão, uma vez que, para o candomblé, não existe essa
representação (Verger, 1981), já que e o bem e o mal estão contidos dentro de cada
indivíduo e, também, dentro de cada orixá. Exu é o elemento dinâmico de todos os
indivíduos e de todas as coisas existentes no Aiye. Como princípio dinâmico, ele
representa e transporta todas as “mensagens” do Aiye para o Orum e, sem ele, a vida
não se desenvolveria, pois Exu é o “princípio da existência diferenciada em
conseqüência de sua função de elemento dinâmico que o leva a propulsionar, a
desenvolver, a mobilizar, a crescer, a transformar, a comunicar” (Santos, 1975, p.130).
A autora ressalta que Exu é a primeira forma de existência individual e, portanto, o
filho, o progênito, e que ele “se identifica completamente com seu papel de filho. Como
tal, representa o passado, o presente e o futuro sem nenhuma contradição. Ele é o
princípio da vida de cada ser. É o ancião, o adulto, o adolescente e a criança. É o
primeiro nascido e o último a nascer. Representando o crescimento, simboliza também
a mudança” (p.165). Sendo o primeiro elemento procriado, ele contém em si a natureza
de cada ser e de cada objeto. Exu é o mensageiro, o que possibilita o contato entre o ser
humano e o orixá, entre o Aiye e o Orum. Nenhuma relação, nenhuma oferenda,
35
nenhum sacrifício, pode ser oferecido ao orixá sem a intermediação de Exu, e é por essa
razão que ele também representa um papel de destaque nos rituais do axexê, que
analisaremos nesse trabalho, sem o qual não seria possível operar os resultados que
dele a comunidade espera.
Entre as várias forças e dimensões de cada orixá, descreveremos aqui os que se
relacionam intimamente com a morte, como Oxalá, que simboliza o elemento
fundamental do começo dos tempos, massa de água e ar, que deu origem a todas as
formas de existência. Os vivos e os mortos, sendo os dois planos da existência, são
controlados por Oxalá (Santos, 1975). É o orixá do branco, representando a passagem,
a transformação de um plano de existência para o outro. Para o candomblé, o branco é
a cor da morte, do renascimento, e está presente em todos os rituais que os representa.
Oxalá é considerado o Orixá dos orixás, sendo o pai primordial de todos os orixás e,
conseqüentemente, de todos os seres vivos. É por isso que na sexta-feira, dia
consagrado a Oxalá, todos os membros do candomblé, independentemente de seu orixá
de origem, se vestem com sua cor, em homenagem ao grande Orixá do pano branco.
Nanã é um orixá feminino, também relacionado aos primórdios da criação. Está
associada à água, à lama e à morte. Os ancestrais e os mortos são considerados seus
filhos e é ela que recebe os mortos em seu seio – a terra, a lama (Santos, 1975).
Obaluiyê ou Omolu, filho de Nanã, quando se manifesta em seus iniciados é
completamente recoberto por uma vestimenta de palha da costa, ráfia africana, que até
hoje é importada da África por não existir no Brasil, e é tão importante no culto a
Omolu, considerada como sua vestimenta sagrada, que não admite substituição por
outros materiais acessíveis aqui (Santos, 1975). Esse material, chamado de iko, possui
grande significado ritual e está associado a todos os rituais ligados à morte e aos rituais
em que o sobrenatural se faz presente. “A presença do iko indica igualmente a
existência de alguma coisa que deve ficar oculta, de alguma coisa proibida que inspire
grande respeito e medo, alguma coisa secreta que só pode ser compartilhada pelos que
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foram especialmente iniciados” (Santos, 1975, pp.98/99). Omolu controla as epidemias,
as doenças de pele, os castigos infringidos ao indivíduo, sendo também o único capaz
de prevenir e manter esses males afastados. Segundo a autora, Omolu “oculta sob a ráfia
o mistério da morte e do renascimento, o mistério da gênese”.
Iansã é a senhora dos cemitérios e ao lado de Omolu servirá de guia aos espíritos
que acabaram de se desprender do corpo com destino ao Orum, indicando o caminho a
ser seguido por ele. Comanda a falange dos eguns (mortos), sendo considerada sua
rainha (Barcelos, 1992).
No lado oposto, nos orixás ligados às coisas da vida, Xangô, tem como função
assegurar a vida individualizada no Aiye e está relacionado a tudo o que é quente, como
o fogo, não estando, portanto, em ambientes onde o frio – o corpo frio, como a morte,
se faz presente. Xangô é o único orixá que se retira da cabeça de seus iniciados quando
eles estão prestes a morrer (Santos, 1975), é um orixá de força, movimento, ação,
estando, portanto, distante da inércia da morte. Outros orixás ligados à vida são
Ossain, senhor das folhas que curam, a força vital das plantas, presente em todos as
cerimônias ritualísticas do candomblé. É considerado o feiticeiro, o bruxo, o médico
entre os orixás, por conhecer o segredo das ervas capazes de operar a magia da cura
(Barcelos, 1992); Oxum, dona da maternidade e do parto, da fecundação. Segundo
Barcelos (1992, p.78), Exu entregou a regência da fecundação para Oxum e é ela “que
vai cuidar do embrião, do feto, até o nascimento”; ela é a responsável pela formação e
desenvolvimento da vida. Encontramos, ainda, Ogum, orixá do desenvolvimento, poder
do sangue que corre nas veias, considerado como o orixá da manutenção da vida; Ogum
também é a viagem, a estrada, a jornada, a empreitada e a luta do dia-a-dia.
Assim como as diferenças estão bem retratadas no panteão dos orixás, no
terreiro elas também se farão notar, através das características de cada iniciado, e as
funções de cada um, dentro da casa de santo e nos rituais, será marcada por essas
diferenças.
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O significado da vida no Candomblé
O candomblé é uma religião baseada na manutenção da vida, seja a vida pensada
como um todo ou a vida nos seus pequenos detalhes; o candomblé pensa a vida
concreta, do aqui e do agora. Quando pensa em manutenção, realização ou integração
da vida, não entende em primeiro lugar a “vida eterna” ou a vida na pós-morte. O que o
candomblé tem como objetivo é sempre a vida na concretude de sua existência atual,
porque, nas palavras de Prandi (2005), “o futuro está determinado pelo que o precede e
pode ser controlado pela ação no presente”. Sendo a repetição do que já se viveu,
conheceu e experimentou, não é futuro, pois, se “o futuro é aquilo que não foi
experimentado, ele não faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo
vivido, o tempo acumulado, acontecido. Mais que isso, o futuro é o simples retorno do
passado ao presente, logo, não existe” (p.31).
A religião do candomblé está ligada com as dificuldades humanas do dia-a-dia e
são essas dificuldades que os fiéis procuram resolver por meio da religião. O axé é a
dinâmica para o acontecimento atual da vida. A experiência religiosa, antes de afastar o
ser humano de seus afazeres diários, quer – pelo contrário – inserir as tarefas humanas
concretas no universo de seu significado religioso, quer levar cada pessoa a perceber a
pertinência religiosa da vida em todos os seus aspectos. Tudo o que acontece na vida,
para o candomblé, tem alguma relevância. Todo o contexto em que vive o ser humano
é importante do ponto de vista religioso. No ambiente, no meio ambiente, onde o ser
humano se encontra, pode ser sentida a presença dos orixás, suas forças podem ser
experimentadas. A procura da harmonia com o orixá é, concretamente, a procura de
harmonia nos relacionamentos, no local de trabalho, na família, consigo mesmo.
Nenhuma parte da vida, nenhum dado da realidade pode ser excluído, nenhuma
atividade humana pode ser relegada.
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Esta forma de pensar tem como conseqüência o fato de que tudo deve estar
envolvido na estrutura do dar e receber. Todas as atividades e acontecimentos ou
trazem harmonia, ou a perturbam. Nada é neutro. E toda perturbação da harmonia
exige atos de reparação. O sistema de dar-e-receber não conhece hiato, nem na vida
pessoal, nem na vida comunitária, nem na vida social, nem nos acontecimentos da
natureza (Berkenbrock, 1997). O relacionamento entre seres humanos e orixás é, nesse
sentido, algo prático, imediato, que se realiza no aqui e no agora. O candomblé entende
que o ser humano nasceu por merecimento e que está no mundo para buscar seu
desenvolvimento, realização e felicidade. Não há promessa de uma vida melhor, para
depois da morte; há o ensinamento e a busca de caminhos para que a vida possa ser
vivida de forma integrada e harmoniosa, em equilíbrio.
No candomblé o ser humano é compreendido como uma composição de variados
elementos: o primeiro elemento é o ara, isto é, um corpo que é parte da terra: na terra
teve sua origem e à terra volta após a morte; o segundo elemento é o emi, que é a
respiração - através dele, o ara (corpo) tem vida; além de ara e emi, cada pessoa tem o
seu ori, quer dizer, a inteligência e a consciência. O ser humano, no que tange à sua
existência no nível do Aiye, é, pois, composto desses três elementos: ara, emi e ori.
Cada ser humano carrega em si também algo do Orum, expresso quando se diz
que cada pessoa tem seu orixá, que é o portador do axé, pois o axé é força da dinâmica,
do vir a ser, da concretização da vida. A ausência do axé interrompe o processo de
integração da pessoa. É a força do axé que pode levar a pessoa em direção à verdadeira
harmonia. Sem axé, não há integração (Beniste, 1997).
A manutenção da vida, na compreensão do candomblé, não é algo espontâneo.
O ser humano é, em grande parte, responsável por essa manutenção. E vida é
entendida aqui tanto como vida pessoal quanto a vida em geral, que também necessita
de axé para desenvolver-se. A religião busca oferecer ao ser humano o caminho que
garante essa dinâmica. Com isso, o ser humano tem, na visão do candomblé, uma
39
grande responsabilidade. Ele não é visto apenas como indivíduo, mas como membro de
uma comunidade e, como tal, toma parte no todo do sistema. Ele não é entregue a si
mesmo, mas é parte de um todo. Para o candomblé, a integração de cada indivíduo só
pode ser alcançada por meio do caminho da comunidade. O processo de troca entre
Orum e Aiye só pode acontecer no caminho da experiência religiosa dentro da
comunidade. O ser humano encontra a sua integração e contribui para manutenção da
vida enquanto cumpre suas obrigações na comunidade, enquanto não se fecha em si
mesmo, mas está disposto e aberto ao dar, ao oferecer. Somente pela troca a vida pode
ser mantida. Nessa troca, os dois lados – seres humanos e orixás – precisam participar,
caso contrário não há troca. Não há nenhuma auto-realização ou autointegração. Cada
qual depende do sistema como um todo, e o sistema como um todo depende da
participação de cada um. O candomblé investe na realização e no desenvolvimento do
indivíduo, acreditando que um indivíduo melhor contribuirá para o desenvolvimento de
um grupo melhor.
O ritual de iniciação
Os ritos, segundo Turner (1969/1974), buscam reconciliar o visível e o
invisível, reconciliação essa que não admite atalho, na qual somente quando o caminho
do desconhecido para o conhecido for totalmente percorrido é que se poderá olhar para
trás e compreender e dar sentido à sua forma final. O ritual recria, assim, um espaço
onde a vida, ou algum aspecto dela, pode ser refeito para ser resignificado.
No candomblé, a feitura de santo representa, para o iniciado, essa resignificação,
uma nova vida e a construção de uma nova personalidade. Baudrillard (1976, p.179)
afirma que a iniciação é um tempo de operação simbólica, “não visa conjurar, nem
superar a morte, mas articulá-la socialmente”, de forma que o iniciado morre
“simbolicamente” a fim de renascer ou, no dizer de Monique Augras (1995, p.180), a
40
experiência de “fazer o santo” condensa todo um roteiro inciático, incluindo a vivência
da morte, na paradoxal associação de presença e ausência. Após essa morte simbólica o
iniciado ficará a cargo de seus “pais iniciáticos, que os instruem, os curam e os
formam”. A partir da iniciação, o filho de santo terá uma nova família - família de santo
- com um novo pai ou mãe de santo e os diversos irmãos de santo, já pertencentes a
essa família. Receberá um novo nome, e por ele será chamado e reconhecido, adquirirá
novos hábitos e selará um compromisso com seu orixá e seu pai ou mãe de santo
(Beniste, 2001). A iniciação se constitui, assim, em uma troca, uma morte dada e
recebida ou, recorrendo, ainda, a Baudrillard (1976, p.180), é necessário que o iniciado
“tenha feito o percurso da vida e da morte para entrar na realidade simbólica da troca”.
Na feitura de santo o percurso se dá no período de reclusão para que a troca se dê entre
o iniciado e seu orixá.
Segundo Verger (1981, p.44), “todos os seres humanos possuem, em potencial,
numerosas tendências e faculdades que ficam em estado de vigília”; a iniciação tem por
objetivo ressuscitar no iniciado aspectos dessa personalidade escondida, “aqueles
correspondentes à personalidade do ancestral divinizado”.
O iniciado obedecerá às etapas classificadas por Van Gennep (1978) como ritos
de passagem. Será temporariamente separado de sua vida social e do restante de seu
grupo religioso. Por ocasião da feitura de santo, caberá uma dura preparação com
reclusão média de 21 dias, o período liminar, onde ele será submetido a um treinamento
rigoroso e metódico, estudo de sensações e o aprendizado de como ordenar e controlar
as manifestações de seu orixá. Durante todo o período de recolhimento, a pessoa não
estará com sua consciência desperta, não terá contato com pessoas de seu mundo
habitual, mas apenas com as pessoas já iniciadas da casa de santo, que cuidarão dela
durante todo o tempo de recolhimento, e não poderá, em nenhuma hipótese, receber
notícias do mundo de fora.
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Podemos repetir com Turner (1969/1974, p.118) que o iniciado aqui se
apresenta em “uma condição oprimida, pelo espaço restrito em que está colocado, tanto
físico quanto de expressão, uniforme, para que seja moldado e dotado de novos
poderes” – o poder do orixá e, assim, capacitado a angariar um novo status dentro da
comunidade e da vida. O próprio nome do aposento sagrado onde o iniciado ficará
recluso durante todo esse período já nos fornece a confirmação de passagem: roncó, que
significa “caminho”. O processo da iniciação é, assim, o caminho que “permite a
interiorização e a mobilização de elementos simbólicos ou espirituais, individuais e
coletivos, que transformam o ser humano num verdadeiro altar vivo, no qual pode ser
invocada a presença do Orixá” (Santos, 1975, p.44) e, complementando com Augras
(1883, p.17), a iniciação fará com que o iniciado passe por um conjunto de ritos que o
levará “aos começos do mundo, às origens do ser”.
Como já dissemos, no candomblé tudo deve ser aprendido com os olhos e os
ouvidos. A observação é a porta do aprendizado, pois todo o conhecimento é
transmitido pela fala e, se “a palavra adquire tal poder de ação, é porque ela está
impregnada de axé, pronunciada com o hálito – veículo existencial – com a saliva, a
temperatura” (Santos, 1975, p.45). Embora já exista na literatura a descrição de alguns
dos ritos da iniciação, como no livro Orixás, (Verger, 1981), a experiência deverá ser
exclusivamente vivida e, pela intensidade dos rituais, os livros não poderão preparar o
iniciado para a relação que ali se estabelece com o seu orixá.
A iniciação é uma preparação, a sacralização da cabeça do iniciado para que ela
possa receber seu orixá. O orixá se manifesta para reforçar a vitalidade do seu filho e
essa energia se espalhará por toda a comunidade da casa de santo.
Durante o recolhimento o iniciado aprende as danças, as rezas, como se
comportar, o repertório de cantigas do seu orixá. Após esse período liminar, de
recolhimento, o iniciado, agora com status de Iaô, terá a festa de saída de barco – final
do período de reclusão, caracterizando-se a terceira etapa do processo ritual de Van
42
Gennep (1978), a reagregação. O nome barco expressa a essência do rito de passagem
que é a iniciação, significando encostar-se à outra margem da vida mística (Augras,
1983). Nessa festa pública, saída de barco, o Orixá apresentará o seu nome e é por esse
nome que o iniciado agora será chamado. Segundo Augras (1983, p.17), a
transformação à qual o iniciado foi submetido é tão grande que ele “tornou-se outro”.
Os nomes no candomblé são revestidos de grande significado, pois “todo nome possui
características próprias. A ninguém é dado um nome sem que haja razão para isso, e
todos eles, invariavelmente, exprimem alguma história – relacionada com
acontecimentos, atributos, caráter ou personalidade do orixá” (Beniste, 1997, p27).
Assim, o novo nome do iniciado fará referência, obrigatoriamente, ao seu Orixá ou às
coisas a ele ligadas.
Após esse período de reclusão, no dia seguinte à saída de barco, o iniciado passa
por um ritual – Panã, que significa “final do castigo”, quando o iaô vai recuperando sua
consciência e reaprendendo, com as outras pessoas do culto, os gestos e hábitos da vida
comum, imitando atividades simples como lavar, passar, cozinhar, lidar com dinheiro,
etc. (Verger, 1981). Mas o período de aprendizado e restrições ainda não acabou para o
iaô e, durante três meses, ele será submetido a diversas obrigações – só usar roupa
branca, ter a cabeça coberta, portar o kelê (colar) no pescoço, estar presente em todos os
rituais da casa de santo, dormir, sentar e fazer as refeições no chão, rezar duas vezes ao
dia, ao nascer e cair do sol – e proibições: não comer determinados alimentos, não ir a
lugares com grande aglomeração de pessoas, não gritar ou falar alto, não andar com a
cabeça erguida dentro da casa de santo, etc., porque agora o iniciado é depositário da
força divina e deve cuidar para que ela se mantenha intacta (Augras, 1983).
A partir da iniciação, ou feitura de santo, a pessoa não será mais a mesma, terá
uma vida dupla: dois nomes, duas famílias, duas casas, obrigações constantes a cumprir,
em sua vida cotidiana e em sua vida na casa de santo, e um juramento de aliança que
não mais poderá ser quebrado com seu orixá, aliança forjada entre o eu e o Outro em
43
mim. Essa relação pressupõe uma contínua troca, na qual o iniciado não está à mercê de
seu orixá, mas participa com ele, por meio dos ritos, de sua força sagrada ou como diz
Prandi (2005), “os ritos são sempre individuais, portanto a experiência de cada um não
pode ser transferida aos demais” (p.12).
A vida dupla, a que o iniciado estará então submetido, fará com que ele precise
integrar dois mundos que poderão entrar em conflito, quanto ao tempo de dedicação
aos rituais religiosos e à vida familiar, social, profissional, além do preconceito que
ainda pode ser verificado em relação às religiões afro-brasileiras. A depredação das
estátuas dos Orixás na prainha do Lago Paranoá, em Brasília, é apenas um exemplo de
que a religião ainda encontra resistências em sua forma de expressão.
De outro lado, precisará conviver com sua própria história, sua personalidade e
aprender a se relacionar com seu orixá, agora manifestado em determinados rituais e
seu Erê, que lhe deixará recados, pedidos e lhe parecerá um estranho, quanto aos seus
desejos e comportamentos, dos quais tomará conhecimento através das ekédis e dos
ogans que tomam conta dele quando manifestado. Capone (2004) diz que “a possessão
funciona como um multiplicador de identidade e não como um despojamento da
identidade em favor de um agente possuidor externo” e que disso resulta “uma
pluralidade de vozes: a identidade se define pela multiplicidade” (p.36).
Completados sete anos da feitura de santo, e cumpridas todas as obrigações daí
decorrentes no primeiro e terceiro anos de iniciação, o iaô torna-se ebomi (meu irmão
mais velho) e adquire o direito de ter seu próprio terreiro ou de tornar-se mãe ou pai
pequeno, “com a bênção e a autorização de seu pai ou mãe de santo” (Verger, 1981,
p.48).
44
O significado da morte no Candomblé
Prandi (2001, pp. 481/484), nos fala da passagem de uma história do
candomblé, onde podemos ler:
Quando morre um sacerdote de Ifá, dizem que seus apetrechos de adivinhação
devem ser deixados numa corrente de água. Quando morre um devoto de
Xangô, dizem que suas ferramentas devem ser despachadas. Quando morre um
devoto de Oxalá, dizem que sua parafernália deve ser enterrada. Mas quando
os seres humanos morrem a cabeça nunca é separada do corpo para o enterro.
Não. Lá está o Ori. Lá vai ele junto com o seu devoto morto. Somente o Ori
pode acompanhar para sempre seu devoto, a qualquer lugar. Pois o Ori é o
único que pode acompanhar seu devoto numa viagem sem volta além dos
mares...
E, mais além, em outra passagem:
“Ori resolveu não nascer de novo. Ori só nasce uma vez”.
Dessas duas passagens, podemos apreender a fala do candomblé sobre a vida no
aqui e agora. Se Ori é a representação da individualidade do ser humano, com toda a
construção de sua personalidade e de tudo aquilo que o constitui enquanto ser
diferenciado de seu Orixá, e se “Ori só nasce uma vez”, podemos inferir que, para o
Candomblé, nada resta do ser individualizado após a morte, nem existe caminho de
retorno individual, uma vez que “Ori é o único que pode acompanhar seu devoto numa
viagem sem volta além dos mares” (Prandi, 2001, p.481).
45
Para o povo de santo, a alma humana não é indivisível como na concepção
judaico-cristã, mas composta de diversas partes imateriais, sendo o orí aquela que
existe no presente, enquanto se vive no aqui e no agora. O orí é destruído juntamente
com o corpo material. O egun é a parte constituída da memória que a família do morto
passa a cultuar, e o orixá particular, considerado o antepassado remoto, “ínfima porção
do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o passado
mítico e o mundo total” (Parndi, 2005, p.37).
O orixá é o elo de união que tudo perpassa e perpetua para além da vida – não
do indivíduo, pois essa se esvai – mas da vida como um todo, do ancestral divinizado,
da dinâmica que não cessa. Esse é o objeto de culto do Candomblé: O orixá, portador
do axé, da energia necessária à manutenção da vida sobre a terra.
Cada ser humano que nasce traz consigo essa energia, esse orixá; daí que, para o
candomblé, todo indivíduo descende de um orixá, é dito seu filho. Cada filho de um
orixá carrega uma parte desse pai. É o ancestral divinizado, a grande energia se
dividindo entre sua descendência e, quando um filho dessa descendência morre essa
energia retorna à sua origem, é reintegrada pela grande energia primordial.
A morte está inscrita na trajetória da vida e, quando uma pessoa iniciada se vai,
é preciso reestruturar todas as relações dentro do sistema, assegurando, assim, a
correta distribuição da força sagrada (Augras, 1983).
Os vínculos do iniciado com o mundo do Aiye devem ser desfeitos e o rito
funerário visa desfazer esses laços de compromisso, liberando as partes espirituais que
compõem a pessoa e, simbolizando essa própria ruptura, os objetos sagrados do morto
são partidos, quebrados, desfeitos e despachados (Prandi, 2005).
O ritual do axexê, embora varie de terreiro para terreiro e hoje sejam dedicados
apenas às pessoas mais ilustres da comunidade de santo, segundo Prandi (2005, p. 61),
atende aos procedimentos básicos de inversão da iniciação, onde sempre está presente: “
1) música, canto e dança, 2) transe, com presença pelo menos de Iansã incorporada, 3)
46
sacrifício e oferendas variadas ao egun e a orixás ligados ritualmente ao morto, sendo
sempre e preliminarmente propiciado Exu, que levará o carrego e os antepassados
cultuados pelo grupo, 4) destruição dos objetos rituais do falecido (assentamentos,
colares, roupas, adereços, etc.), podendo parte permanecer com algum membro do
grupo como herança, 5) despacho dos objetos sagrados “desfeitos” juntamente com as
oferendas e objetos usados no decorrer da cerimônia, como os instrumentos musicais
próprios para a ocasião, esteiras, etc.”
Após essas providências, que se desenrolam durante a cerimônia do axexê, o
egun está livre para ir embora; da mesma forma o orixá ou orixás pessoais do iniciado
morto já não possuem mais os seus assentamentos, seus vínculos foram rompidos; o orí
partiu junto com seu dono e, portanto, nada mais pertence ao morto, nada mais o
prende ao terreiro.
Para Prandi (2005, p. 66), a feitura do orixá não faz sentido se não forem
realizados os rituais do axexê quando da morte do iniciado, porque “o ciclo
simplesmente não se fecha e a repetição mítica, tão fundamental no conceito de vida
segundo o pensamento africano, não pode se realizar”.
O axexê é, pois, o ritual que fecha a ligação estabelecida entre o orixá (potência
divina) e a sede da individualidade (iniciado). Com a morte, a junção desaparece. O axé
do iniciado falecido é reincorporado ao potencial coletivo, afirmando-se, assim, a função
despersonalizadora da morte (Augras, 1983).
47
CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA
2.1. Fenomenologia: a busca do mundo vivido
Recorrendo a Augras (1995), trouxemos, nesse trabalho, a visão da psicologia
em sua dimensão de produto cultural, buscando a especificidade do grupo observado
em relação à cultura em que se insere e o momento histórico dessa inserção.
No presente estudo, isso implicou buscarmos compreender o indivíduo
contemporâneo, ator do século XXI, sujeito a todas as influências do mundo moderno e
que, nele atuando também como sujeito influenciador, permite-se trazer ensinamentos
contidos na tradição milenar do candomblé e agregá-los em seu modo de vida
moderno, buscando operar um resgate do passado, tornando-o, assim, novamente
presente. Augras (2002, p.31) nos ensina que “o passado não é imutável, pois o
significado de um acontecimento se transforma juntamente com a história do indivíduo
(...) nessa perspectiva, não é o passado que determina o presente, nem este o futuro. Ao
contrário, é o sentido da trajetória do ser que modifica a significação do passado e do
presente”.
O antropólogo Herskovits, em 1948, cunhou o termo “enculturação”, para
definir a influência cultural da sociedade sobre o indivíduo, sugerindo com isso a
necessidade de um olhar da psicologia para a cultura, como forma de compreender
como essa influência adapta o indivíduo às normas da sociedade da qual ele faz parte e
como esse indivíduo desenvolve, assim, sua visão específica de mundo. Ainda segundo
Herskovits, esse processo de “enculturação”, ou socialização, como é mais usualmente
utilizado, não apenas conforma o indivíduo a uma conduta rígida segundo os modelos
culturais específicos, mas permite também que esse mesmo indivíduo opere mudanças
dentro do grupo social em que vive (Augras, 1995).
48
Na estrutura dinâmica entre indivíduo e sociedade, ou indivíduo e cultura, é
possível buscar compreender, e não explicar – como tão bem nos lembra Augras (1995)
– as formas pelas quais se dá a expressão e construção de um indivíduo ou um grupo
em uma determinada cultura, atendendo assim ao propósito da psicologia da cultura.
Para os fiéis do candomblé, a construção da realidade permite integrar não só
“aspectos contraditórios da realidade interna e externa” (Augras, 1995, p.22), como
também presentificar, atualizar, formas anteriores de significação do mundo.
E no universo do candomblé, onde presente e passado se fazem no aqui e agora,
a fenomenologia nos indicou o acesso mais apropriado para tentarmos compreender
como se dá essa junção, essa união de momentos históricos distintos que podem
apontar para um entendimento de como esse indivíduo se relaciona com o objeto desse
trabalho: a concretude da morte e seu inevitável encontro com ela no futuro.
Já aprendemos com Augras (1983, p.23) que o “único modo de aproximar-se da
realidade do outro é construir pelo diálogo, conjuntamente com esse outro, o
testemunho do encontro” e, ainda com a autora, concordamos que “o campo do sagrado
é um espaço peculiar da vivência humana” (p.77), que não pode conter pré-julgamentos,
que se manterá encoberto por qualquer tipo de preconceito, que se fará silenciar ao
menor indício de rotulação ou categorização.
Dessa forma, a fenomenologia nos permitiu mantermos o julgamento em
suspenso, entendendo que todo o enunciado do indivíduo é significativo, considerando
que o evento que ele relata é aquele que se investe de importância para ele, e não
outros, e que, por esse motivo, é esse relato que é carregado de valor, qualificando sua
vida (Augras, 1983).
Na prática fenomenológica, privilegia-se o encontro ao invés da interpretação,
tornando o outro parte do conhecimento que se espera construir; o pesquisador abre-se
ao diálogo, à troca, à possibilidade de reformulações e transmutações do saber (Augras,
1995). É necessário reconhecermos o objeto e atribuirmos-lhe valor e significado, e não
49
nos limitarmos apenas ao registro da realidade, uma vez que essa realidade não é dada
a priori, mas construída, modificada, resignificada.
Amatuzzi (2001) nos diz que a pesquisa fenomenológica é uma pesquisa de
natureza, porque ela pretende clarear o fenômeno, dar conta do que acontece, o que
significa dizer que, nessa pesquisa, o que procuramos foi compreender e não verificar
uma realidade. Buscamos o relato de uma experiência vivida, “não a estrutura de
pensamento subjacente revelada pelo uso de determinadas palavras, não desejo oculto e
camuflado pelo discurso”. Em uma análise fenomenológica, o que conta é a experiência
vivida e não a opinião da pessoa que relata. “Dizer a experiência. O vivido não é
necessariamente sabido de antemão. É no ato da relação pessoal, quando surge a
oportunidade de dizê-lo, que ele é acessado”. O autor enfatiza que o vivido é
surpreendido na relação e que, facilitada pelo pesquisador, a pessoa então o comunica.
É por essa razão que podemos dizer que a pesquisa fenomenológica não tem sujeitos
que fornecem dados ou informações, mas participantes, colaboradores pensando juntos
o assunto, pensando-o com a novidade da primeira vez. “Surpreender o vivido no
presente, quando a experiência da pessoa é pensada de repente e dita como pela
primeira vez, isto é o objetivo de uma entrevista fenomenológica” (pp.10/18). A
pesquisa fenomenológica é, nesse sentido, mobilizadora por que refaz o sujeito no
relato de sua experiência vivida.
Assim, no presente trabalho, guiamo-nos através do olhar da psicologia da
cultura e buscamos compreender os fenômenos com os pressupostos da pesquisa
fenomenológica.
50
2.2. Tempo e Espaço: o palco da pesquisa
Como já descrevemos anteriormente, o espaço definido como palco da pesquisa
foi o Axé Baraleji, Terreiro de Candomblé da Sociedade Beneficente Religiosa Africana
Ile Owom Omo Omolu, localizado na cidade de Santo Antônio do Descoberto, estado de
Goiás, distante 45 km de Brasília. O templo, de responsabilidade do Babalorixá Tito de
Omolu, desenvolve suas atividades religiosas no entorno do Distrito Federal há trinta
anos, sendo um templo oriundo do candomblé de nação Ketu.
A pesquisa desenvolveu-se ao longo de dois anos, quando foi possível trazer
para esse trabalho vivências de campo pela observação e participação da pesquisadora
que possui diversos anos de convivência com essa comunidade. O objeto de pesquisa
nasceu, justamente, da estranheza da pesquisadora ao se confrontar com realidades tão
distintas – o candomblé e a sociedade moderna – convivendo num mesmo tempo e em
espaços paradoxalmente tão próximos e tão distantes.
O tema da morte colocou-se com tal intensidade nessa estranheza e nessa
diferença que pareceu-nos imperativo dar-lhe voz.
Dessa forma, utilizando-nos da etnografia, buscamos apreender como a morte
se traduz em significado para a comunidade de santo do Axé Baraleji.
Necessário se faz aqui trazermos a questão da implicação da pesquisadora com o
grupo pesquisado. Sabemos que em pesquisas dessa natureza o pesquisador se vê, por
vezes, implicado, ainda que não faça parte do grupo como membro atuante,
reconhecido e que se reconhece como pertencente àquela comunidade. No presente
trabalho, a implicação da pesquisadora precisa ser vista de uma maneira particular, uma
vez que ela faz parte da comunidade, pertence a ela; daí que, no decorrer da pesquisa de
campo, foi preciso manter um maior rigor sobre si mesma, um permanente exercício de
proximidade/distanciamento, no sentido de que as suas impressões e vivências não se
mesclassem às impressões e vivências dos demais participantes da pesquisa, mas antes
51
pudessem se complementar na produção de um conhecimento construído e não apenas
transmitido pela pesquisadora, obrigando-a a ter sempre em mente o alerta de Bardier
(2001, p. 101), “implicar-me consiste sempre em reconhecer simultaneamente que eu
implico o outro e sou implicado pelo outro na situação interativa”.
Dessa forma, cabe salientar que a pesquisadora constituiu-se como um dos
participantes da pesquisa, agregando três formas de participação: enquanto
observadora do ritual de axexê; quando vivenciou a iniciação, através da “feitura de
santo”; e na condução das entrevistas com os demais participantes da pesquisa. Augras
(1983, p.17), diz que “a fenomenologia da religião coloca, de imediato, o problema do
conhecimento nos termos da experiência vivida. É legitimo, portanto, que se apóie no
modelo gerado pelo seu próprio objeto, isto é, o saber iniciático”. Embora a autora não
empregue esse recurso metodológico em suas pesquisas, admite-o como alternativa
possível e consonante com a perspectiva fenomenológica.
Ainda que pesquisadora mantenha uma convivência de mais de vinte anos com
o grupo pesquisado, em diferentes níveis de relação (quinze anos como observadora,
sete anos como abiã – integrante de menor nível hierárquico no culto e,
posteriormente, como iniciada no grau de iaô), é importante ressaltar que a experiência
de morte vivida na comunidade se deu pela primeira vez no decorrer da realização
dessa pesquisa, tendo sido tão inédita para a pesquisadora como para o restante do
grupo.
2.3. Os participantes: colaboradores da pesquisa
Entre os fiéis do Axé Baraleji, foram selecionados filhos de santo, homens e
mulheres, com idade entre 25 e 50 anos, iniciados na religião com o grau mínimo de
Iaô, o que lhes permitiu viver a experiência da separação/liminaridade/reagregação
(Van Gennep,1978), ou de renascimento/morte, na reclusão do roncó, e a posterior
52
reintegração ao grupo em um status diferenciado e capacitados, assim, a vivenciar com
maior intimidade a relação com o orixá. Além disso, todos os colaboradores da
pesquisa vivenciaram o ritual de axexê (ritual de morte), participando dos sete dias de
sua realização.
Os participantes, com nível de instrução superior, possibilitaram confrontar
com maior intensidade a realidade do mundo vivido do candomblé e as influências do
mundo moderno a que estão permanentemente expostos, permitindo surgir elementos
mais críticos na relação entre essas duas culturas pois, “ao descrever o mundo, o
homem retrata-se a si próprio (...) o mundo é criado pelo homem, através de um
conjunto de significados, que fazem do mundo a imagem do homem. Numa operação
inversa, a descrição do mundo pode ser tomada como ponto de partida para a descrição
do homem” (Augras, 2002, p.75/76).
A pesquisadora complementa o grupo participante, através da observação do
ritual do axexê e da vivência de sua iniciação como iaô.
2.4. Instrumentos e Procedimentos
2.4.1. Observação etnográfica:
A observação da pesquisadora da realização do ritual do axexê, realizado
por ocasião da morte da Ialaxé do terreiro pesquisado, foi um dos instrumentos da
pesquisa. A observação dos sete dias do ritual do axexê foi registrada pela pesquisadora
em um diário de campo, e as anotações apontadas imediatamente após o final de cada
dia, a fim de possibilitar uma transcrição, o mais fiel possível, do momento vivido
durante o ritual.
53
Além da observação e experiência vivida do ritual de axexê, a obrigação de
feitura de santo (iniciação), à qual a pesquisadora se submeteu, constituiu-se em
instrumento de observação e experiência vivida do ritual e, mais importante, de
inserção em um mundo de sensações e percepções só acessíveis aos iniciados no
candomblé. Esse ritual importou em sua reclusão, ou recolhimento, por dezesseis dias
dentro das dependências do terreiro e mais três meses de cumprimento de diversos
ritos e restrições e resultou em um relato que traz desde as motivações de sua inserção
na religião, suas dúvidas e questionamentos de permanência na casa de santo,
passando, finalmente, por sua iniciação, após mais de vinte anos de convivência com a
comunidade e suas conclusões sobre essa significativa experiência.
2.4.2. Entrevistas semi-estruturadas:
Foi realizada uma entrevista piloto com um dos filhos de santo do Axé Baraleji,
com o objetivo de verificarmos a pertinência do roteiro elaborado para as entrevistas
com os demais participantes. Essa entrevista-piloto possibilitou correções no roteiro da
entrevista semi-estruturada e a observação da postura da pesquisadora frente ao seu
participante piloto, buscando aperfeiçoar, amadurecer e apropriar-se de uma postura
fenomenológica na condução das demais entrevistas.
A entrevista-piloto permitiu que fizéssemos alguns ajustes para a condução das
demais entrevistas a fim de torná-las mais fluidas, evitando que a racionalidade pudesse
contaminar a vivência dos participantes transformando-as em um discurso bem
elaborado.
A escuta dos relatos dos participantes foi feita por meio de entrevistas semi-
estruturadas, duas realizadas fora do terreiro e outras duas realizadas dentro do
terreiro de santo; a impressão inicial de que, dentro da comunidade religiosa os
participantes não teriam a oportunidade de uma maior entrega, nem a disponibilidade
54
de tempo para o diálogo necessário com a pesquisadora, não se confirmou; nas duas
entrevistas realizadas dentro do terreiro os participantes se mostraram à vontade,
inclusive quanto ao tempo dispensado para a entrevista, e o restante da comunidade
tratou esse momento com respeito e distanciamento, como se ali se desenvolvesse um
ritual do qual não tinham sido chamados a participar.
O relato dos participantes apoiou-se em um fio condutor, com a chegada dos
participantes ao candomblé e os motivos que os levaram a cruzar as portas da religião;
um olhar sobre o curso de suas vidas, antes e após a chegada ao candomblé; como os
participantes estabelecem sua relação com as coisas da vida e da morte; e as vivências
de um ritual de axexê e de iniciação, experiências comuns a todos os participantes.
Após a realização das entrevistas semi-estruturadas procuramos obter, com os
participantes, a confirmação de que o que está dito pela pesquisadora pode ser por ele,
participante, reconhecido como experiência sua ou, no dizer de Amatuzzi (2001, p.19),
“se ele se reconhece no que o pesquisador lê do que ele diz”.
Seguimos com Amatuzzi (2001, pp. 21/22) na sistematização dos dados, em
quatro momentos distintos:
a) Ordenação ou clarificação do que foi dito no fluxo desordenado do encontro,
chegando-se à síntese da entrevista de cada um dos participantes. Essa
síntese foi mostrada ao participante a fim de obter sua confirmação do que
foi dito, para ver “até que ponto ele se reconhece no que eu digo dele”
(Amatuzzi, 2001).
b) Sistematização das sínteses das entrevistas, buscando-se chegar a uma
síntese coletiva. Segundo Amatuzzi (2001), esse é um “trabalho de separação
e de construção conceitual, que termina em uma estrutura geral do vivido”.
55
c) Discussão dos resultados. Momento em que se buscou abrir os resultados
obtidos ao diálogo com pesquisas e teorias já dadas, a fim de clarear a
pesquisa dando forma ao objeto pesquisado. Nesse momento, o encontro
entre os três instrumentos da pesquisa – observação do ritual de axexê,
vivência do ritual de iniciação e entrevistas semi-estruturadas - foram
tecidos em conjunto na busca de um núcleo comum dessas vivências em
pertinência ao tema da morte pesquisado.
d) Elaboração do relatório final.
56
CAPÍTULO 3 – UM OLHAR DE DENTRO: O CONTATO COM O MUNDO
VIVIDO DO CANDOMBLÉ.
A partir desse momento, no qual a pesquisadora entra em contato com o mundo
vivido pelos fiéis do candomblé e busca dar conta da compreensão do significado das
experiências de morte/vida pelos rituais de iniciação e, principalmente, de morte, os
textos serão registrados na primeira pessoa do singular, a fim de melhor retratar sua
relação de proximidade/distanciamento com o objeto pesquisado.
Durante o desenvolvimento desse trabalho, o Terreiro palco da pesquisa, Axé
Baraleji, experienciou a morte de sua Ialaxé, Verinha de Oxum – Oxum Omin Lade,
segunda pessoa em importância na hierarquia do Terreiro. A ela foram dedicados todos
os rituais de morte, conforme a tradição do candomblé.
Ainda no período de realização do trabalho, a pesquisadora submeteu-se ao
ritual de iniciação, cuja descrição compõe os instrumentos desse estudo.
A fala dos participantes da pesquisa, todos iniciados no candomblé, busca,
justamente, a compreensão de suas vivências nesses importantes momentos dentro da
comunidade de santo e de sua experiência individual: a iniciação (ritual de
renascimento) e o axexê (ritual de morte).
O texto a seguir descreve a vivência de todo o período transcorrido entre o
diagnóstico da doença da Ialaxé e sua morte, em dois anos de relacionamento dos filhos
de santo com a perspectiva da morte e, por fim, com sua concretude.
57
Quando sobre nossas cabeças,
O sol a pino, que revela todos os segredos,
Expulsar as sombras e o frio
E os tambores chamarem o Dono do Mundo,
O senhor que traz nas botas a poeira de todos os caminhos
E na bagagem, ossos de todas as refeições, pediremos:
Exu, pai que nos inventou únicos e diferentes de cada um,
Estamos prontos pra nos enxergarmos iguais a todo outro.
(Alexandre Dante)
O Axé Baraleji é um terreiro de candomblé localizado na cidade de Santo
Antônio do Descoberto, estado de Goiás, a 45 km de Brasília. De origem Ketu, sob a
liderança do Babalorixá Tito de Omolu, essa casa de santo segue as tradições do Axé
Opo Afonjá, de Salvador/BA, comandado pela mãe Stella de Oxossi, de quem Tito de
Omolu é filho de santo.
O Axé Baraleji é uma casa completa, com todos os espaços destinados ao
sagrado e ao urbano, e conta, atualmente, com oitenta filhos de santo. Entre seus filhos
estão pessoas de todas as raças e classes sociais. Entre os filhos com curso superior, a
casa conta com um médico, dois advogados, um economista, duas jornalistas, dois
publicitários, um fisioterapeuta, uma psicóloga, uma profissional de educação física e
três professores. São pessoas com formação em várias áreas do conhecimento, ligados
no Axé por um objetivo comum: o culto aos Orixás. Essa posição privilegiada na vida
social e profissional dessas pessoas não é, na casa de santo, garantia de privilégios.
Todos eles têm que passar pelos rituais de iniciação e respeitar a posição angariada
pelos demais por antiguidade no culto. É comum que essas pessoas, com formação
superior, sejam inferiores, hierarquicamente, a muitos outros filhos de santo sem
58
nenhuma formação acadêmica. Também é comum que muitas dessas pessoas, de idade
mais avançada, tomem a benção de outros, mais jovens na faixa etária, mas mais
“velhos de santo”.
Não é de admirar que tantas pessoas que ingressam nas casas de santo não se
adaptem. É preciso deixar do lado de fora do muro todas as posições e os papéis
desempenhados na vida social e se integrar na comunidade, com regras muito distintas
das praticadas lá fora. É uma prática de humildade, um abrir mão de confortos
conquistados, um aprendizado de um tipo diferente de relacionamento, no qual o que
vale é o tempo, contado em anos, de dedicação ao orixá.
Mas isso, obviamente, não é fácil e essas relações não se dão sem conflitos. Na
contramão dos filhos de santo com boas condições financeiras e bom nível educacional,
que têm que se submeterem aos “mais velhos de santo” – às vezes sem formação e de
nível social mais baixo – esses, por sua vez, se valem de sua “antiguidade” para dirigir
um tratamento hostil aos “privilegiados” no mundo “lá fora”, cabendo ao pai de santo
administrar esses conflitos e procurar manter a comunidade em harmonia. É comum
também observar que alguns filhos de santo “bem situados” recusam-se a ocupar a
posição inferior que às vezes lhe cabe, geralmente resultando em seu abandono da casa
de santo e outros que, investidos de altos cargos, não se furtam de utilizar sua posição
para exercer um poder, às vezes, tirânico. Segundo Prandi (2005), “as contendas
dentro dos terreiros e entre eles não somente são vividas, mas são apontadas como
inteiramente esperadas” (p.149), uma vez que o mundo é um território competitivo e
conflituoso. Para Capone (2004), os conflitos internos no candomblé, sempre
manifestados através de fuxicos, desempenham um papel de reordenador interno, como
mecanismo de reduzir as tensões e reorganizar as relações de poder dentro do grupo,
porque, segundo a autora, “contestar a legitimidade de outro permite afirmar sua
própria legitimidade. Em contrapartida, as acusações internas visando a pessoas que
ocupam posições hierárquicas distintas questionam a organização do terreiro”, e a
59
autora continua dizendo que com o fuxico-de-santo, como é conhecido pelos adeptos da
religião, “o grupo de culto reproduz a lógica interna da sociedade brasileira, altamente
hierarquizada e estratificada” (p.151/152).
Durante quinze anos freqüentei essa casa de santo como assistente,
comparecendo apenas nas festas de santo. Há sete anos, submeti-me ao primeiro ritual
de iniciação, com a realização de um bori (obrigação dada à cabeça), e assentamento dos
meus Orixás. Mais recentemente, fiz a obrigação de iaô, ou “fiz o santo”, como se diz no
candomblé. São no total, mais de vinte anos de observação e convívio com os membros
da casa, hoje, irmãos de santo.
Durante os anos de 2003 e 2004, a casa vivenciou a doença da Ialaxé Verinha de
Oxum, esposa do Babalorixá Tito de Omolu. Acometida por um câncer de rápida
progressão, ela veio a falecer, no final do ano de 2004.
Nesses dois anos, entre o diagnóstico da doença e seu falecimento, a casa como
um todo vivenciou o que Kübler Ross (1969), caracterizou como os cinco estágios do
processo diante da morte: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Alguns filhos de santo abandonaram o processo no caminho, deixando a casa. É
possível que esses filhos acreditassem que a religião poderia mantê-los afastados de
todo infortúnio, comuns à existência humana. Ancorados, não na compreensão da
totalidade da religião, mas buscando a garantia de que, pertencendo ao mundo do
orixá, tornavam-se inatingíveis pelas coisas da vida, não puderam suportar a perda da
fantasia de que, uma vez pertencendo a uma comunidade de santo, estariam protegidos
de todo mal. O mundo do candomblé, que opera com forças e rituais que fogem à
racionalidade, não raro transmite a seus adeptos a idéia de onipotência. Muitos são os
que buscam a religião como forma de solução de problemas onde todos os outros
recursos falharam e, acreditando nessa redoma de proteção, quando ela se trinca, os
questionamentos tendem a ressurgir.
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Os que permaneceram na casa de santo vivenciaram o estágio da negação,
quando se buscou acreditar que os primeiros sintomas estavam associados a outros
tipos de doenças, sem gravidade. Na confirmação do diagnóstico ainda se procurou
negar que esse tipo de mal poderia ser uma sentença de morte, uma vez que se tratava
de uma Ialaxé, e que isso seria superado. Acreditou-se mesmo que ela estava curada,
após um tratamento rigoroso em São Paulo. Ocorre que, apesar de jovem para morrer
– ela tinha apenas 53 anos – e ser discurso corrente no candomblé de que os iniciados
na religião têm vida longa, por viverem em harmonia física e espiritualmente, a família
carnal da Ialaxé trazia um longo histórico da doença, já tendo perdido vários de seus
membros para o câncer.
Morrer aos 53 anos pode ser considerado precoce, tanto na cultura ocidental
moderna, na qual a expectativa de vida em nosso país já rompeu a barreira dos 70 anos,
e mais ainda para o candomblé, onde, a princípio, espera-se vida longa para os iniciados
investidos de altos cargos.
Pais e mães de santo costumavam, facilmente, ultrapassar os 100 anos de vida,
resguardados em seus terreiros, vivendo harmonicamente com a natureza e sendo-lhes
dispensado todo o cuidado por parte da comunidade de santo. Nos dias de hoje, onde o
terreiro está integrado na sociedade como um todo e seus membros convivem em
ambos os espaços, não há mais a proteção e o isolamento dos tempos passados. Os
perigos modernos, como novas doenças, violência urbana e acidentes, alcançam o povo
de santo tanto quanto o cidadão moderno. O mundo moderno invadiu o candomblé e a
religião sofreu adaptações ao longo dos séculos; não é uma aldeia fechada em seus
princípios, mas uma ilha cercada pela modernidade e, embora os fiéis pratiquem rituais
muito antigos, são todos filhos de um mundo que insiste em transpor os muros do
terreiro.
Quando a doença se impôs como realidade, alguns filhos de santo deixaram a
casa. Quebrada a ilusão da infalibilidade, não puderam acompanhar e suportar o
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processo de perda. Caído o manto da proteção absoluta, a religião perdia, para esses, o
valor e o significado. Os demais procuravam ignorar a situação e viviam como se essa
fosse uma realidade que pudesse não se confirmar, na esperança de que viesse o
milagre. Mas ele não veio.
O estágio da raiva seguiu-se logo depois, quando uma irritação tomou conta do
grupo. Era nítida a falta de paciência de uns para com os outros e uma apreensão com o
que estava por vir. Nessa fase, a Ialaxé ainda freqüentava a casa e, com ela mesma
atravessando esses estágios, deixava transparecer em seu comportamento a expressão
dessa raiva, dirigida aos filhos de santo. Foi o momento em que mais alguns desses
filhos deixaram a casa. Aqui, parece ter falhado os laços de parentesco espiritual que o
candomblé pretende fortes.
Atravessamos o estágio da barganha na realização de diversas obrigações aos
orixás para que ela pudesse se recuperar. Esse estágio foi longo, tendo consumido
vários meses de luta e expectativa.
Na verdade, foi possível perceber que o estágio da barganha, da troca como se
costuma dizer no candomblé, teve início antes mesmo desse terceiro estágio. As trocas
permearam todas as fases do processo, atravessando a negação e a raiva e estendendo-
se até os estágios da depressão e aceitação.
Como o sistema de crenças do candomblé está ancorado no eterno movimento
da troca, do dar e receber, não causa espanto o fato das trocas estarem inseridas em
todos os momentos, já que para o candomblé assim é, desde sempre. A partir daí,
nenhum filho de santo deixou mais a casa, todos permaneceram unidos, numa batalha
que se mostrou, mais uma vez, perdida.
O quarto estágio afastou de nosso convívio a presença física da Ialaxé.
Debilitada, ela se recolheu em sua casa na cidade e deixou de freqüentar a casa de
santo. Mas, paralelamente à depressão que ela experimentava, vivenciamos uma
depressão coletiva, onde deixou de ser agradável participar dos rituais da casa. Caiu
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uma tristeza sobre o terreiro e esse sentimento pôde ser percebido, e vivido, por todos
aqueles que percorreram os estágios anteriores. É importante ressaltar que, embora a
maioria dos membros da casa tenha percorrido esse caminho, alguns ficaram fixados no
primeiro estágio, procurando negar a realidade, apesar de todas as evidências.
A aceitação chegou ao final de sua doença; sabíamos do pouco tempo que lhe
restava e passamos a aguardar o término de sua agonia, já esperando que viesse rápido,
para que ela, e na verdade o próprio grupo, deixasse de sofrer. Esse estágio traduziu-se
em uma suspensão do tempo para o grupo e teve duração de, aproximadamente, oito
meses. Comparecíamos aos rituais normais da casa e esperávamos. Embora as
atividades no Terreiro continuassem a ser realizadas, com o comparecimento mensal
dos filhos de santo para a realização do osé (limpeza das casas de santo), havia uma
expectativa silenciosa, como se nada mais, na casa de santo, pudesse se definir antes da
partida da Ialaxé. E assim foi, realmente, que as coisas transcorreram: um tempo de
espera, uma espera final.
A notícia da morte da Ialaxé nos chegou ao final da tarde de uma quinta-feira,
em seis de outubro de 2004.
A descrição desse período, entre o diagnóstico da doença e a morte da Ialaxé,
deve-se ao fato de ter julgado importante observar os estágios da morte, não pelo lado
da pessoa que a está vivenciando, mas pelo lado do outro, daquele que olha. Pelo que
pude observar, e vivenciar, o outro é atingido de forma violenta e, no caso de uma
comunidade unida por laços espirituais fortes, onde as relações são consideradas
familiares – a família de santo não difere muito de um núcleo familiar comum,
proporcionando a oportunidade de se verificar diversos comportamentos e reações
diante da realidade da morte.
Foi possível observar os filhos que preferiram negar a morte da mãe e,
recusando-se a vivenciar a perda, abandonaram a casa de santo. Aqueles que
permaneceram e participaram de todas as fases da doença, e aqueles que, em menor
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número, permaneceram na casa, retidos em uma ou outra fase entre os estágios da
negação e depressão. Conforme mencionado anteriormente, foi a expressão da vivência
coletiva dos cinco estágios da morte de Kübler Ross (1969).
É enriquecedor, aqui, trazer a vivência e os conflitos de um filho de santo em
especial, por traduzir de forma clara, e emocionante, a luta entre a cultura ocidental
moderna e a cultura milenar do candomblé. Esse filho de santo, iniciado na religião
desde a infância é, também, filho carnal da Ialaxé falecida. Para agravar sua batalha
entre duas culturas tão distintas, esse filho, formado em medicina, desempenhou um
duplo papel: lutar até às últimas forças contra a doença da mãe e, ao mesmo tempo,
buscar aceitar a morte como uma contingência natural da vida, segundo o candomblé.
Ninguém sofreu mais do que ele, embora ela tivesse outros parentes de sangue,
também integrantes da casa de santo. Ninguém negou mais, sentiu mais raiva, se
dedicou tanto às barganhas e se deprimiu tanto quanto ele.
Até à hora da morte dessa dupla mãe, ele desempenhou o papel que dele era
esperado pela cultura moderna, mas, quando ela se foi, ele se despiu desse papel e,
participando de todos os rituais, foi buscar a aceitação da morte na religião, porque essa
aceitação, no papel de médico, ele foi incapaz de praticar, até o momento final.
A Ialaxé permaneceu em casa até os últimos momentos de sua vida – em
contraposição à cultura moderna do afastamento do doente e seu isolamento nas
unidades de terapia intensiva – sendo conduzida ao hospital, após uma parada cardíaca
e vindo a falecer poucas horas depois. Após sua morte, foi levada de volta à casa e
deitada em sua cama. Ali permaneceu, como se dormisse, vestida com suas roupas de
Ialaxé, até o dia seguinte, quando foi velada à tarde, na capela do crematório.
Até onde se sabe, a cremação é uma prática recente incorporada pelo
candomblé. Em Brasília esse é o segundo caso do qual se tem notícia, sendo o primeiro
o do Babalorixá conhecido como Pai Paiva. No caso da Ialaxé Verinha de Oxum, foram
realizados determinados ritos para que a cremação fosse possível e suas cinzas foram
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depositadas na terra, como manda a tradição. A modernidade se faz mais uma vez
presente nessa antiga cultura, alterando-lhe o curso e a história.
O pai de santo saiu do hospital direto para o Terreiro, indo cumprir o primeiro
ritual: descer os assentamentos dos santos da Ialaxé e esvaziar as quartinhas com água.
De volta à casa na cidade, quando os assentamentos já estavam no chão e as quartinhas
vazias, o pai de santo realizou o segundo procedimento ritualístico, retirando da cabeça
da Ialaxé os fundamentos colocados por ocasião de sua feitura de santo, vinte e três
anos atrás.
Durante o velório, na capela do crematório, cantaram-se cantigas em ioruba e,
quando o sol se pôs, iniciou-se o ritual do Sirrum; o sol caía como se tivesse sido feito
para aquele momento, em que a Ialaxé também se despedia. O caixão foi carregado,
aberto, nos ombros de seis filhos de santo, todos homens. Os demais seguiram atrás,
como em procissão, vestidos de branco – a cor do luto no candomblé. Os quinhentos
metros que separavam a capela do local de cremação foram transpostos com uma
cantiga em ioruba, acompanhada por todos, e o ritmo dos passos eram marcados: três
passos para frente e um para trás. Esse ritual, levando a Ialaxé no seu último caminho,
representa o significado do caminho da vida. Caminhar e recuar, caminhar e recuar, até
os últimos passos da vida, representado pela morte.
3.1. O ritual do axexê – retorno às origens
A morte na sociedade moderna é vazia de sentido porque a coletividade não tem
mais participação nela; banalizou-se porque o indivíduo está banalizado, a célula
familiar está banalizada; deixou de ser luto e celebração coletiva, compartilhada. Cada
família enterra seus mortos.
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O candomblé não enxerga a morte dessa forma; toda a morte é social, coletiva,
devendo ser absorvida pelo grupo por meio de determinados ritos. Esses ritos são
permutados acima da cabeça do morto, “a morte é jogada e é conquistada
simbolicamente – o morto ganha aí o seu estatuto, e o grupo se enriquece com a
incorporação de um parceiro” (Baudrillard, 1976, p.221).
Foi dessa forma, para essa troca simbólica, que dois dias após a morte da Ialaxé,
reunimo-nos todos na casa de santo, para a continuidade dos rituais de morte. As
cinzas foram enterradas sob uma árvore sagrada do terreiro, cumprindo-se assim o seu
retorno à terra.
Os pertences pessoais da Ialaxé e seus assentamentos de santo foram dispostos
no chão do barracão, sendo determinado pelo jogo de búzios o destino desses
pertences. Os assentamentos de santos permaneceram na casa, por determinação do
jogo. Sendo a Ialaxé fundadora dessa casa de candomblé, ao lado do pai de santo,
ficaram para serem cuidados pela comunidade, não mais como assentamentos daquela
Ialaxé a quem pertenceram, mas como assentamentos de santos da casa. O
assentamento representando a cabeça da Ialaxé foi despachado, juntamente com outros
objetos de culto e de uso pessoal.
Após essa primeira cerimônia, foi marcada a continuidade dos rituais do axexê,
para dentro de dez dias, aguardando-se a chegada de uma Ebomi do Axé Opo Afanjá, e
de dois Ojés (sacerdotes do culto aos ancestrais), que viriam de Salvador para realizar o
restante do ritual: sete dias seguidos de celebração à Ialaxé falecida.
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O 1º dia de cerimônia
Antes do início do axexê, as Iabás preparam na cozinha as comidas que serão
utilizadas no ritual, para o Padê de Exu e para a Ialaxé falecida, que será homenageada.
Os Ojés realizam uma cerimônia secreta na casa dos Eguns. Ali não se sabe o que
se passa. Podemos apenas inferir pela literatura e por relatos que, nesse espaço, onde
poucas pessoas têm autorização para entrar, serão acumulados os materiais de todos os
dias das cerimônias e onde serão realizados os sacrifícios necessários, compondo o
carrego, sendo tudo despachado no último dia do axexê.
Após esses preparativos, inicia-se o primeiro dia do axexê, que começa
pontualmente às 21h. Todos os participantes, vestidos de branco e com os pés
descalços, entram no barracão de cerimônia e ficam sob esteiras no lado direito do
barracão. As pessoas pertencentes à família carnal da falecida são dispostas no lado
esquerdo do barracão, ficando separadas das demais. As roupas dos participantes
devem ser simples e as mulheres mantêm o peito coberto com o pano da costa, e a
cabeça com o ojá, durante toda a cerimônia. Sabe-se que essa providência busca uma
“camuflagem”: cobrindo os seios e os cabelos, as mulheres se passam por homens aos
olhos dos Eguns que virão participar da cerimônia.
No centro do barracão já estão dispostas as comidas que serão despachadas no
Padê de Exu, primeiro a ser homenageado, a quem se busca pedir licença para a
realização do ritual e garantir que ele levará ao Orum as oferendas e os pedidos em
relação à Ialaxé falecida.
Enquanto o ritual do Padê se desenvolve no centro do barracão, todos os
participantes, independentemente do cargo ou antigüidade na linha da casa, ficam com
os joelhos no chão e a cabeça apoiada sobre os pulsos, em sinal de respeito. Esse ritual
visa, além de pedir a licença e colaboração de Exu, convocar a força poderosa dos
ancestrais para participar do ritual.
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No axexê, os atabaques de couro, comuns nas demais cerimônias do culto, são
substituídos por cabaças e três Ogans da casa tocam as cantigas conduzidas pelo
responsável na realização do ritual.
Todos os participantes do primeiro dia do axexê estão obrigados a comparecer
nos seis dias subseqüentes, não sendo facultado a ninguém a ausência,
independentemente da posição no terreiro. O ritual do axexê é aberto ao público, não se
restringindo aos filhos da casa de santo, e essa regra de comparecimento também se
aplica às pessoas de fora, visitas, como são chamadas. Uma vez iniciado o ritual,
ninguém tem permissão para deixar o barracão, exceto os Ojés (sacerdotes no culto aos
ancestrais), até que a cerimônia da noite esteja concluída.
Após o despacho do Padê todos se levantam; no centro do barracão já está
colocada uma cabaça, com a parte superior aberta e uma vela acessa; essa cabaça
representa a Ialaxé falecida. Tem início, então, uma sessão de danças individuais, por
ordem de antigüidade na casa. Apenas os filhos de santo iniciados, os Iaôs e os filhos
com santo assentado participam da dança.
A dança começa com o filho de santo indo até à porta do barracão e tocando o
chão com sua cabeça, num gesto de homenagem a todos os ancestrais. Dirige-se ao
centro do barracão, onde está colocada a cabaça e a vela e toca o chão com sua cabeça,
numa saudação de respeito à Ialaxé falecida; com duas moedas – uma em cada mão
inicia a dança. Os demais participantes do ritual, agora independentemente da posição
que ocupam, podem ir até o iniciado que está dançando e colocar moedas em suas mãos.
O iniciado dança em volta da cabaça, recebendo as moedas dos demais participantes e,
quando os Ogans encerram sua cantiga, o iniciado deposita as moedas na cabaça e
retorna ao seu lugar na esteira. Um outro iniciado, por ordem de antigüidade, repete o
mesmo ritual de saudação aos ancestrais à porta do barracão, à cabaça no centro do
barracão, e inicia sua dança; segue-se novamente o movimento dos demais em depositar
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moedas em suas mãos e assim o ritual transcorre, até que o mais novo dos iniciados da
casa tenha realizado sua dança individual.
Têm início então uma nova parte do ritual onde dançam, em conjunto, os filhos
de santo que possuem santos iguais aos da Ialaxé falecida; no caso desse ritual, os filhos
de Oxum e Oxossi. Depois, após esse grupo ter retornado ao seu lugar, os filhos de
Omolu e Nanã - orixás ligados à morte, realizam, também, uma dança conjunta.
Por fim, as filhas de Iansã são chamadas ao centro do barracão. Nas cantigas
tocadas nesse momento, as filhas de Iansã viram nos seus santos e buscam, no cômodo
contíguo ao barracão, as comidas que já estavam preparadas e as depositam em volta da
cabaça, no centro do barracão; depois, vão se posicionar ao lado esquerdo da cabaça.
Após o fechamento desse primeiro ciclo, todos os demais dançam, em uma roda,
em volta da cabaça, voltando, depois, aos seus lugares e, de pé, assistem a uma parte do
ritual, proferida em ioruba, pelos dois Ojés, que, munidos de seus ixãs (espécie de vara
de madeira, utilizado para manter os Eguns à distância), dançam e conversam entre si.
Essa parte do ritual possui uma grande força e energia, no entanto, para a
grande maioria dos participantes parece ser ininteligível, uma vez que não se consegue
acompanhar a língua ioruba falada por eles. Faz parte do segredo do culto e, no
Candomblé, ninguém está apto a conhecer os segredos, até que se tenha iniciado dentro
daquela posição de hierarquia e iniciação que o capacita para tanto. Mesmo para esses,
muita coisa pode passar sem compreensão, uma vez que o culto aos mortos – Eguns –
depende de uma aprendizagem específica e não está ao alcance de todos, por fazer
distinção de sexo e do santo ao qual a pessoa tem origem. Como já foi dito
anteriormente, apenas homens e descendentes de orixás intimamente ligados à morte,
podem se iniciar no culto aos Eguns.
Encerrado esse ciclo, os Ojés e as filhas de santo incorporadas em Iansã
recolhem as comidas do chão, juntamente com a cabaça cheia de moedas e a vela, que é
agora apagada, e se retiram do barracão, levando esses elementos para a casa de Egun.
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O restante dos participantes aguarda, sentado nas esteiras, a volta do grupo
para o barracão. Em seu retorno, eles comunicam o que ouviram na casa de Egun; são
mensagens referentes a Ialaxé falecida, e essa comunicação é feita, mais uma vez, na
língua ioruba.
A última parte da cerimônia tem início com a roda de todos os participantes
formada no barracão. São entoadas cantigas para os orixás ligados à Ialaxé falecida,
Oxum e Oxossi, e para os demais orixás ligados à morte – Omolu, Nanã e Oxalá.
Enquanto cada pessoa passa pela porta de entrada do barracão, na roda de dança, faz
gestos de estar limpando, tirando de si as coisas ruins, e encerra-se, às 24horas,
pontualmente, o primeiro dia do ritual do axexê.
Nesse primeiro dia do axexê estava estampada na face dos participantes a tensão
pela inexperiência nesse tipo de ritual: não saber acompanhar as cantigas, não saber
como proceder no ritual, o temor de errar os procedimentos, o não saber, o mistério, o
desconhecimento do próximo passo.
Não sendo considerado, pelo povo do candomblé, um ritual triste, mas alegre,
pois visa celebrar os ancestrais e a Ialaxé falecida, o axexê é, para os participantes do
terreiro, uma tentativa de transformar um momento muito doloroso em algo natural,
uma vez que, para o candomblé, a morte é um processo da existência, considerado
normal, como o nascimento.
Mas aqui é possível sentir o conflito entre as culturas: indivíduos constituídos
na cultura ocidental moderna aprendendo a lidar com o saber ancestral: a morte não é
um evento que se deva chorar, mas, antes, celebrar. É dentro dessa dificuldade que os
parentes carnais da Ialaxé falecida e os filhos de santo da casa atravessam a noite.
Naquele primeiro dia do axexê, nós todos tateamos os minutos seguintes, atentos e
inseguros. Penso nessa Ialaxé, nossa mãe, de quem agora nos despedíamos. Penso que
um ritual assim é de difícil realização.
70
A maioria dos terreiros não tem condições de realizá-lo, por falta de
conhecimento de como o ritual se processa, por falta de sacerdotes especializados no
culto dos Eguns e no comando do ritual e, até, por falta de recursos financeiros.
Penso nesse primeiro dia do axexê, nessa mãe, que dedicou sua vida a ensinar e
conduzir seus filhos de santo e que nos brindava, ainda, com um presente: em sua
morte privilegiou-nos com o conhecimento e a participação num ritual tão complexo e
tão raro em nosso país.
2º dia de cerimônia
A cerimônia do segundo dia do axexê se desenrola exatamente como no
primeiro dia. Desaparece parte da tensão, os participantes estão colocados de uma
forma mais natural, pois já sabem como proceder. Talvez esperem por algo novo no
ritual, mas não acontece. Tudo se repete como no primeiro dia. Dá para antever que os
próximos dias se traduzirão em cansaço devido ao longo tempo de permanência de pé e
da seqüência do ritual que não se altera.
Começo a buscar o significado da repetição que ainda não alcanço. Sei que os
cinco primeiros dias ocorrem da mesma forma. Por quê? Por trás do significado
ritualístico começa a parecer que a perseverança e a repetição devem produzir nas
pessoas alguma coisa além do cansaço que talvez se instale no decorrer dos próximos
dias. A obrigação de comparecer durante todos os dias do ritual não deve cumprir a
função de apenas manter os membros presentes à cerimônia. Deve buscar operar um
efeito psicológico, que ainda não alcanço e, que, certamente, passará despercebido da
maioria dos participantes. Aguarda-se o terceiro dia, que, sei de antemão, deverá ser
rigorosamente igual aos primeiros.
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3º, 4º e 5º dias da cerimônia
No terceiro dia de ritual foram colocados no barracão murais com fotos da
Ialaxé falecida em diversos momentos de sua vida. Seu casamento, o nascimento e
aniversário dos filhos, sua trajetória na casa de santo. Vestida com suas roupas de
ração, que são vestimentas simples, destinadas ao uso diário na casa de santo, para os
afazeres comuns, como limpar, cozinhar, participar de obrigações internas. Vestida com
suas roupas de festa de santo, essas confeccionadas com esmero em tecidos finos e
adornadas com rendas e fitas. No mural, estava sua vida social e sua vida de povo de
santo, integradas, como integrada deve ser a vida para o povo do candomblé.
Todos continuaram comparecendo ao axexê e a cerimônia de cada dia tinha
início no horário marcado. Agora já se sabia as cantigas e era possível cantá-las; a
cerimônia passou a ficar mais organizada e bonita, pois os participantes não erravam
mais os passos, sabiam como proceder.
A partir do 4º dia, comecei a perceber o outro significado, por trás do
significado religioso do ritual. O significado que já buscava desde o segundo dia: com
apenas dezesseis dias do falecimento da Ialaxé, estávamos todos ali, diariamente
reunidos para homenageá-la. A reunião era o significado. O estar juntos, fazer alguma
coisa em relação ao fato acontecido, juntos. Ninguém estava isolado, em suas casas,
elaborando a dor, sozinho. Estávamos em companhia uns dos outros, repartindo,
dividindo, não só os procedimentos do ritual e as homenagens, mas estávamos
realizando a dor em comunidade. O processo do luto era realizado em conjunto.
A cada dia de ritual, podíamos sentir a energia do ambiente mais forte. Foi
possível, para alguns, ouvir cantigas e gritos vindos da rua, sentir cheiros de perfume
inundar o barracão, ver sombras e luzes cortar a noite lá fora. Os Ojés, a cada dia,
ficavam mais agitados, indo à rua por diversas vezes para afastar Eguns que queriam
participar do ritual. Soubemos depois que, no início de cada cerimônia, é feita uma
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invocação para que os ancestrais ligados àquela casa de santo venham participar do
ritual junto com a Ialaxé falecida, e que essa invocação acaba por atrair Eguns que não
deveriam estar presentes, sendo, portanto, necessário mantê-los afastados do ambiente.
6º dia de cerimônia
Fomos avisados de que, a partir da cerimônia do 6º dia, todos deveriam
permanecer no terreiro até o final do ritual do axexê. Significa dizer que não
poderíamos voltar à cidade para trabalhar, como estávamos fazendo desde o início das
cerimônias. A maioria dos filhos de santo da casa, assim como nos demais terreiros de
candomblé, trabalha, estuda, possui uma família, ou seja, uma vida social, fora da casa
de santo.
No ritual do axexê, que se estendeu por sete noites seguidas, a maior parte dos
filhos de santo chegava ao terreiro ao anoitecer, participava da cerimônia do dia e, ao
seu término, voltava à cidade para dormir e cumprir seu dia de trabalho, retornando à
casa de santo, novamente, ao final do dia. Mas, a partir do 6º dia, a despeito de
quaisquer compromissos profissionais ou sociais, tivemos que permanecer no terreiro.
A cerimônia do 6º dia teve início às 22h e estendeu-se até bem mais tarde do
que nos dias anteriores, tendo acabado às 4h30 da madrugada. A primeira parte do
ritual transcorreu como nos demais dias, com o Padê de Exu, as danças individuais em
frente à cabaça e as danças na roda.
A mudança ocorreu no ciclo dos Ojés. Foram trazidos ao centro do barracão
diversos pertences de culto e uso pessoal da Ialaxé falecida, já dispostos em peneiras de
palha e completamente cobertos com flores brancas, de forma que não podíamos ver o
que se ocultava abaixo das flores. Comidas e bebidas também faziam parte do material,
todo arrumado sobre um lençol branco estendido previamente no chão. Os animais que
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seriam sacrificados também foram trazidos para o centro do barracão. Os Ojés
cantaram, dançaram em volta de todos esses elementos e conversaram em ioruba, entre
si e com os Eguns. Foi um ritual longo e bonito.
Começava-se a perceber que se aproximava o momento da despedida final à
Ialaxé. Depois, tudo foi recolhido do chão e os Ojés se retiraram para a casa dos Eguns
para a realização dos sacrifícios e preparação final do carrego. Ficamos todos no
barracão, em silêncio; foi amarrado no pulso de cada um, uma fita de mariow, com o
objetivo de identificar-nos como filhos de santo da casa e manter os Eguns afastados.
Um dos Ojés trouxe um alguedá - vasilha de barro, contendo um preparado com
folhas, onde todos depositamos as fitas de mariow que trazíamos no pulso. Ele recolheu
a vasilha e a levou para compor o carrego. Alguns Ogans da casa foram selecionados
para acompanhar os Ojés até o local onde seria despachado o carrego. Saíram do
terreiro, em dois carros, e demoraram-se por 1h:30 nessa seqüência do ritual.
Esperamos em silêncio, sentados no chão do barracão, pela volta deles. Quando por fim
retornaram, deram as notícias em ioruba e, desta vez, traduziram-na para o português,
dizendo que tudo estava certo e que a Ialaxé já estava desligada das coisas do Aiye. E
com uma última dança na roda encerrou-se o 6ª dia de cerimônia.
7º dia de cerimônia
Com a cerimônia da véspera tendo terminado às 4h30 da madrugada e a
cerimônia do último dia com início marcado para as 7h30 da manhã, muitos filhos de
santo preferiram se manter acordados para a organização da cozinha e a preparação do
café da manhã, que faria parte do ritual.
No horário marcado, todos já estavam na varanda do barracão, aguardando o
início da cerimônia do último dia do axexê. Um dos Ojés colocou ao lado esquerdo da
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porta de entrada do barracão um alguedá – vasilha de barro, contendo um preparado
com folhas, e, ao lado direito, um pote de barro, contendo água e uma quartinha. Por
ordem de antigüidade, um a um pegou a quartinha com água, esvaziando seu conteúdo
na rua, em três movimentos, esquerda, direita e centro do portão. Retornou, passando a
quartinha para o próximo filho de santo e, antes de entrar no barracão, lavou os olhos
com o preparado de folhas colocado no alguedá. Os que iam encerrando esse ritual
aguardaram sentados, no chão do barracão, até que o mais novo filho de santo da casa
encerrasse sua participação. Fez-se uma roda no barracão e algumas cantigas foram
cantadas e dançadas. Seguimos, então, para o café da manhã coletivo.
A mesa já estava posta, cuidadosamente preparada, com café, leite, chocolate,
sucos, frutas, pães, biscoitos, geléias, frios, xícaras, pratos e talheres. Antes do início da
refeição, um prato com um pouco de cada uma das comidas foi servido e colocado
sobre a mesa, simbolizando a Ialaxé falecida.
Aqui é necessário abrir um parêntese para evidenciar a importância simbólica
desse ritual. Em uma casa de santo, apenas as pessoas com cargos e da alta hierarquia
têm permissão para sentar-se à mesa e utilizar talheres. Os demais filhos de santo,
mesmo iniciados como Iaôs, sentam-se no chão ou em bancos muito baixos e não se
utilizam de facas e garfos, apenas de colheres. O sentar no chão cumpre a tradição de
ficar sempre em uma posição mais abaixo dos demais membros, superiores na
hierarquia, e o comer com colher representa um direito adquirido pelos mais velhos de
santo e aqueles investidos de altos cargos na casa de santo, imprimindo uma marca da
hierarquia. Os filhos de santo mais jovens na casa, sem nenhuma iniciação ainda
realizada, chamados de Abiã, não se utilizam nem de colheres, devendo comer com as
mãos. A tradição de sentar no chão não ocorre apenas no momento das refeições, mas
em todos os momentos do terreiro. As cadeiras e os bancos altos só podem ser
utilizados pelos pais e mães de santo, Ebomis e pessoas de cargo na casa, como os Ogans
e as Ekedes e, naturalmente, pelas visitas.
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Por esse motivo, a refeição coletiva desse último dia do axexê se reveste de
importância simbólica. O pai de santo, representação máxima do poder da casa, senta-
se à cabeceira da mesa e participa da refeição com todos os demais membros do
terreiro, até o filho de santo mais novo. Ele deverá ser o primeiro a sentar e o último a
levantar. Como na mesa não cabem todos os membros da casa de uma só vez, e ficou
claro não ser essa a intenção do ritual, vão sentando os mais velhos, participando da
refeição e levantando após terem terminado, cedendo lugar aos demais. Enquanto essa
troca de lugares se dá, o pai de santo permanece sentado à mesa, esperando que todos
comam, e dividindo a refeição com todos.
Duas coisas me pareceram claras nesse ritual, que se repetiu uma vez mais na
hora do almoço: primeiro, a demonstração de igualdade frente à morte; a submissão do
pai de santo à humildade de repartir a mesa com todos os filhos, dos mais velhos e
investidos dos mais altos cargos no terreiro e, portanto, de direitos, aos mais jovens,
sem direito sequer ao uso de cadeiras ou de talheres. Naquelas refeições
compartilhadas, todos eram iguais, como o são perante a morte. Segundo, na troca de
lugares, os mais velhos cedendo lugar à mesa para os mais jovens de santo, o novo
assumindo o lugar do mais velho, na continuidade simbólica da vida.
No final da tarde, mais um ritual é cumprido. Realiza-se o Padê de Exu, faz-se a
roda de dança e, ao som das cabaças e cantigas, realiza-se o adeus final à Ialaxé. Em
seguida, é feito o sacudimento, lavar, varrer e limpar o barracão com folhas especiais
colhidas para esse ritual.
Está encerrado o ritual do axexê. A Ialaxé agora faz parte da ancestralidade da
casa de santo e será perpetuada na memória dos filhos dessa casa, porque o ritual do
axexê, no dizer do Babalorixá Tito de Omolu, “não dignifica apenas aquele que se foi, mas
visa também à permanência da dignidade daquele que se foi naqueles que ficam”.
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Um outro ritual está programado para o início do ano seguinte, quando o pai de
santo procederá a “retirada da mão” da Ialaxé da cabeça dos filhos de santo por ela
iniciados, substituindo o axé dessa mãe, pelo seu próprio axé, de forma que ele passa a
ser o seu substituto no Aiye para todos esses filhos.
O jogo de búzios determinou luto por um ano para o Terreiro, o que significa
que, durante esse período, apenas as obrigações internas serão realizadas, não havendo
festas de santo, nem obrigações de iniciação de novos Iaôs ou confirmação de cargos
para Ogans e Ekedis.
É um período importante no qual o luto será coletivo, compartilhado por todos
os filhos da casa, um tempo de se refazer, de retomar aos poucos as coisas da vida e,
principalmente, um tempo de reordenamento no terreiro. Uma importante posição
ficou vazia de presença e de significado.
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3.2. O ritual de iniciação – inserção em um mundo novo Após quinze anos de observação dos rituais abertos do candomblé, e de sete
anos de participação como filha de santo, no grau mínimo de abiã, a pesquisadora
submeteu-se ao ritual de iniciação, com a “feitura de santo”, tornando-se Iaô do Axé
Baraleji. O texto a seguir refere-se ao relato da pesquisadora sobre essa vivência:
Fiz santo no mês de janeiro de 2006. Mas uma experiência dessa magnitude, que teve
seu desfecho no dia 28 do primeiro mês desse ano em curso, não pode ser resumida ao relato
dessa vivência. Na verdade, essa data representa um marco, uma ruptura, uma morte, um
renascimento.
Cheguei ao candomblé em 1983, como quem procura respostas para uma dor, uma
perda. Tinha então atravessado a doença e morte de minha mãe, que na época estava com 48
anos; eu contava 22 anos quando ela morreu e 24 quando conheci o candomblé, levada pelas
mãos de um grande amigo. Durante esses dois anos que se passaram, entre sua morte e meu
encontro com o candomblé, procurei em outras religiões por minhas respostas, não pela morte de
minha mãe, mas pelo sentido da vida que então me tinha fugido.
Nascida e criada na religião católica, sem nunca ter tido contato com as religiões afro-
brasileiras, o candomblé era para mim um mundo estranho, mas me foi acolhedor na figura do
Pai de Santo Tito de Omolu e, mais tarde, por sua esposa, a Ialaxé Verinha de Oxum.
Fui me encantando com aquele mundo, descobrindo aos poucos as respostas buscadas,
muito devagar, como devagar são as descobertas no candomblé.
Muitos anos se passaram e por todos esses anos eu freqüentei o terreiro como assistente,
mas, ao fim dos primeiros quatro anos assentei meu Exu pessoal. No décimo quinto ano, no mês
de dezembro, durante a realização da festa das Iabás (santas mulheres), ao entregar um buquê
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de flores para Oxum de mãe Vera, “bolei” no santo pela primeira vez. Isso significa que, pela
primeira vez, sem que eu esperasse, meu santo se manifestou. Essa manifestação, o “bolar no
santo”, ocorre de forma brusca, perde-se o controle do corpo, cai-se no chão numa espécie de
desmaio e a consciência foge de repente; é o sinal de que o santo precisa ser feito e que a pessoa
deve passar pelo processo de iniciação para que o orixá possa se manifestar de forma adequada.
Na verdade, acreditava que isso jamais aconteceria; com tantos anos de freqüência às festas, sem
nenhum indício ou sensação de que isso viesse a ocorrer, julguei que minha participação na
religião se restringiria à assistência, ao estudo e à observação dos rituais abertos ao público e a
uma relação muito próxima de amizade com Pai Tito e Mãe Vera.
Mas como “bolei” no santo, Pai Tito consultou o jogo de búzios e foi aconselhado a
“assentar” meus santos. O que me faria iniciar na religião, mas com um grau de
comprometimento menor do que aquele a que seria submetida se realizasse a feitura do santo.
Tanto eu quanto o Pai de Santo julgávamos que os compromissos religiosos seriam por demais
pesados para mim. Psicóloga, publicitária, empresária, não haveria tempo para maior
dedicação à religião. A dura iniciação de iaô também nos parecia excessiva para meu agitado e
moderno modo de vida.
A obrigação de assentamento dos santos foi um ritual de cinco dias; recolhida ao roncó
e, com a consciência desperta, passei pelos rituais de assentamento de meus santos – Oxalufã,
Oxaguiã e Oxum. Essa obrigação fez com que meu santo principal - Oxalufã - deixasse de
“bolar” nas festas de santo e nas obrigações internas que, aos poucos, comecei a freqüentar. Mas
sabíamos que esse tempo seria contado, entre cinco e sete anos, no máximo. Vencido esse tempo,
Oxalufã voltaria a pedir sua feitura. Passaram-se cinco anos e voltei a “bolar” no santo. Mas
então, embora fosse meu desejo fazer o santo, eu já não encontrava os caminhos para me
submeter à feitura. O longo período de recolhimento e as restrições do período de kelê eram
fatores de impedimento pela vida profissional que para mim sempre foi muito intensa.
Dificuldades internas, como relações conflituosas dentro do grupo, disputas de poder entre
alguns filhos de santo e, por fim, a morte de mãe Vera, fazia com que cada vez mais eu buscasse
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um distanciamento emocional com a comunidade. Embora minha relação com meus Orixás
crescesse – jamais deixei de participar de um osé – estava buscando afrouxar os laços que me
prendiam às pessoas do terreiro. Decidi, após a morte de mãe Vera, que não faria mais meu
santo; continuaria a freqüentar o terreiro por ocasião dos osés, compromisso assumido por mim
quando do assentamento de meus Orixás, mas não avançaria mais na religião.
No período que se passou entre o assentamento de meus santos (1997) e o jogo de búzios
do ano de 2005, dois barcos de iaô foram feitos, no total de cinco iniciados e eu não estava entre
eles. Todo o dia seis de janeiro de cada ano que começa, o Pai de Santo joga os búzios para
saber como será o ano que se inicia e qual o odú que regerá os caminhos do terreiro e de cada
um dos membros da comunidade de santo. No dia seis de janeiro de 2005, ao jogar para
identificar o meu odú naquele ano, Oxalufã, mais uma vez pediu feitura e disse mais, que
nenhum barco de iaô sairia naquele terreiro sem que ele estivesse na frente, ou seja, nenhum
santo seria mais feito ali antes dele.
Mas eu me mantinha firme no meu propósito de não avançar mais, não por meus
santos, aos quais eu me ligava cada vez mais, mas pelas dificuldades internas de relacionamento
e por condutas e comportamentos dentro do grupo, com os quais eu, no momento, não
concordava.
Em outubro de 2005, comecei a adoecer. Estava exausta. Não tanto pelo volume de
trabalho e estudo, estava em um emprego que me permitia um melhor aproveitamento do tempo,
o que até me permitira iniciar o mestrado, mas estava exausta da vida, como se minhas forças
estivessem se esvaindo. Dois anos antes, desfiz uma sociedade de 17 anos, deixando para trás a
empresa que fundei, por desavenças internas com meu sócio. Isso me causou um profundo abalo
emocional, mas consegui me refazer, não sem marcas, não sem cansaço que, aliado ao esforço
para me reerguer, profissional e emocionalmente, ajudou a me conduzir ao colapso de outubro.
Comecei a emagrecer, tive problemas sérios de gastrite e foi diagnosticada uma pré-
diabetes. Iniciei o tratamento médico e comecei a pensar em refazer minha vida. Mudar
radicalmente, abandonar a profissão de publicitária, desempenhada há vinte e seis anos; estudar
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para um concurso público, acomodar-me em algum lugar onde as mudanças não pudessem mais
me afetar; desfiz um relacionamento afetivo, que mantinha com um membro da casa de santo e,
principalmente, decidi que, a partir de 2006, me afastaria definitivamente da comunidade de
santo. Só participaria dos osés, porque esse era o compromisso assumido por mim com meus
Orixás, e nada mais.
No final de 2005, foi marcada a feitura de santo de uma filha de Oxum e de uma
Ekedi, filha de Yemanjá, para o mês de janeiro de 2006. Por toda minha disposição de
distanciamento, que o Pai de Santo não ignorava, eu também não fazia parte desse próximo
barco. Mas como o vento sempre sopra e as mudanças sempre vêm, e como Oxalufã já havia dito
que nenhum santo seria feito mais naquele terreiro antes dele, não foi assim que as coisas
aconteceram.
No primeiro osé do ano, no dia 6 de janeiro, fui para o terreiro no final da tarde de
sexta-feira; acordei cedo no sábado, como é o costume, e fui para a casa de Oxalá para a
realização do osé. Estava sozinha, os outros dois filhos de Oxalá, que sempre participam
comigo do osé na casa de nosso Orixá, não estavam presentes nesse primeiro osé do ano. Entrei
chorando. Sentia-me triste e fraca. Cuidei da limpeza dos assentamentos e da casa muito
devagar; não tinha pressa de terminar. Devo ter ficado ali por umas três horas. Depois, lavei o
chão das varandas externas da frente e dos fundos da casa. Terminando, subi para a casa de
Exu. Eu estava muito revoltada, como já disse, com a atitude de alguns membros do grupo;
como estes eram mais velhos de santo do que eu, não me cabia questionar seus comportamentos.
Na casa de Exu, chorei mais uma vez, rezei aos pés do assentamento de meu Exu pessoal e
disse-lhe que ainda permanecia no terreiro porque jamais o deixaria para trás, assim como não
deixaria para trás os assentamentos de meu pai Oxalá e de minha mãe Oxum. Terminado o osé
na casa de Exu, desci para fechar a casa de Oxalá e, então, voltaria para minha casa na cidade.
A obrigação de osé se inicia na noite de sexta-feira, quando se dorme no terreiro, atravessa o
sábado, quando é realizada a limpeza das casas de santo e só termina no domingo pela manhã,
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após a reza coletiva. Mas, nesse final de semana eu estava decidida a interromper minha
participação no início da tarde do sábado.
Algumas pessoas sabiam de minha insatisfação, embora eu não a verbalizasse senão
para dois ou três irmãos de santo com quem tenho maior afinidade. Mas quando eu me dirigia
para fechar a casa de Oxalá, uma Ekedi me seguiu; estava empenhada em me convencer a
entrar nesse próximo barco de iaôs, para que eu fizesse meu santo. Conversamos por um longo
tempo, ela me mostrando as razões pelas quais eu deveria fazer o santo já, eu mostrando a ela
as razões pelas quais isso não era possível: faltava menos de uma semana para o início das
obrigações e os preparativos são muitos para tão curto espaço de tempo, tais como compra de
enxoval e organização das coisas da vida para esse período de ausência; eu teria que antecipar
férias já agendadas no trabalho; teria que colocar a empresa onde trabalhava a par de minha
condição de adepta do candomblé e preparar meu chefe e os colegas para o período que se
seguiria após minha feitura de santo – usar somente roupa branca por três meses e, uma vez que
teria o cabelo raspado, um lenço branco na cabeça também faria parte desse novo figurino.
Como minha função era a de gerente comercial, a empresa teria que aceitar que eu me
apresentasse assim diante de toda sua carteira de clientes, que envolvia pessoas do alto escalão
do governo federal; além disso, meu único filho estava se formando na universidade, em Porto
Alegre, no início do mês de fevereiro e, além da dificuldade de me apresentar diante de seus
colegas vestida de branco e sem cabelos, trazendo um lenço branco na cabeça, a data prevista
para a saída de obrigação desse barco era posterior à data de sua formatura. Eu não abriria
mão de participar da formatura de meu filho. Mas sem poder explicar exatamente como, eu fui
deixando me convencer, apesar das dificuldades que antevia, desde que fosse possível viajar para
Porto Alegre na data por mim já programada.
Enquanto nós conversávamos, na varanda da frente da casa de Oxalá, dois micos
acompanhavam atentamente a conversa, pendurados na árvore próxima à varanda. Olhos
arregalados, agarrados ao tronco da árvore, pareciam mesmo aguardar o desfecho de tão
importante embate. Quando percebemos, rimos dos dois, ali, imóveis. Decidimos ir falar com o
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Pai de Santo para ver se era possível realizar todas as obrigações a tempo de eu estar liberada
para a viagem que precisava fazer. Chegamos as duas em sua casa, que também fica dentro do
terreiro, e ele nos mandou sentar. Sentei-me no chão, como o costume, mas ele mandou que eu me
sentasse na cadeira, próximo a ele e a Ekedi. Ela disse que eu estava disposta a entrar no barco
programado e ele disse que estava feliz porque há muito meu santo já deveria ter sido feito, mas
que ele jamais me forçaria a uma decisão como essa. Pediu um calendário e passou a programar
as datas das obrigações, que são muitas, a fim de que todas pudessem ser realizadas dentro do
tempo que me era disponível. Concluiu que era possível, com uma pequena antecipação do início
de período de recolhimento, para que o término das obrigações se desse no dia 28 de janeiro, com
a festa de saída do barco e, no dia 29, os últimos rituais da obrigação de feitura. Sem que eu
tivesse programado ou me preparado para isso, estava marcada minha feitura de santo. Tinha
início o meu ritual de vida/morte/vida.
Começou, então, uma maratona para tratar dos preparativos do meu período de
recolhimento. Percebi de imediato que todos os caminhos estavam abertos. Recebi apoio total de
meu filho, que disse não se importar de me ter em sua formatura vestida completamente de
branco e com um lenço a esconder a cabeça raspada, a opinião dos outros não lhe dizia respeito;
meu chefe, surpreendentemente, não apresentou resistência, nem às minhas férias que teriam que
ser antecipadas e maiores do que o que eu tinha solicitado, nem ao período após a feitura,
quando eu teria que me apresentar de maneira pouco convencional. Isso me surpreendeu. Não
esperava por essa reação tão positiva e estava até preparada para pedir demissão caso houvesse
algum impedimento por parte da empresa. Não foi necessário. No mais, foi um corre-corre de
compras, duas malas brancas, que não encontrei nas lojas e ainda precisei mandá-las forrar,
tecidos para as roupas, lençóis, esteiras, baldes, bacias, roupas, sapatos e bolsa branca para o
período de kelê, agendar pagamentos de contas para o tempo de minha ausência, deixar meu
gato sob os cuidados de minha irmã. Como disse no início, os caminhos estavam abertos e nada
foi empecilho para os preparativos.
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Na quinta-feira, dia 12 de janeiro, cheguei ao terreiro no final da tarde. As duas
outras pessoas que fariam parte da obrigação de iniciação já estavam lá e, a partir daquele
momento, nós três só nos separaríamos no final do mês de janeiro. Difícil aprendizado de
convivência. Idades diferentes, gostos e hábitos distintos, estávamos agora ligadas vinte e quatro
horas por dia, sem direito à pausa, nem na hora do banho.
Nossas esteiras foram colocadas no sabagi – quarto contíguo ao roncó, e ali ficamos
tecendo os fios de contas que usaríamos no pescoço, fazendo as refeições, dormindo. O banheiro
também ficava no cômodo ao lado e era reservado apenas para o nosso uso. Na tarde de sexta-
feira, dia 13 de janeiro, foi realizada a primeira de uma série de obrigações que se seguiriam.
Era fora do terreiro, em um rio. Fomos despertas, voltamos tomadas pelos Erês, eu e minha
irmã de barco, agora chamada Dofonitinha de Oxum. A outra iniciada que compunha o barco
seria Ekedi e essas pessoas, de cargo como se diz, não “viram no santo”, ou seja, permanecem o
tempo todo conscientes. Quando voltamos dessa obrigação no rio e, já no sabagi, nos chamaram
de volta à consciência, nosso cabelo tinha sido raspado. Era a primeira perda. Confesso que
estava assustada e no sábado, quando acordei, tive uma crise de choro. O cabelo me fazia falta e
era o sinal de um caminho sem volta. As obrigações de iniciação tinham começado. Desesperada,
eu dizia que só não iria embora porque sabia da responsabilidade assumida, mas que meu desejo
era o de ir embora. Era um sentimento ambíguo, ao mesmo tempo em que estava arrependida,
queria e sabia que iria continuar. Os mais velhos acorreram tentando me acalmar, minha
Dofonitinha chorou também. O Pai de Santo veio me ver, dizendo que eu era uma psicóloga,
velha de terreiro, já tinha visto outras pessoas passarem pela iniciação e, por isso, não esperava
de mim uma reação como aquela. Ocorre que, agora, as coisas estavam acontecendo comigo e
estavam apenas começando. Por mais que eu tivesse lido toda a literatura disponível sobre a
iniciação e tivesse acompanhado outros barcos anteriores, existem segredos que só são revelados
para os iniciados, e outros dos quais nem nós mesmas teremos conhecimento, já que serão
vivenciados por nossos Orixás ou por nossos Erês. Difícil a perda de controle, deixar-se levar,
numa entrega total onde apenas a confiança no Pai de Santo e nos membros do grupo é capaz
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de nos permitir mergulhar nesse abismo do qual não poderemos dar conta depois, sequer teremos
todas as lembranças desse tempo de recolhimento, desse período de morte.
O que me permitiu assumir tão desafiadora experiência foi justamente a confiança que
tinha, e mantenho, na capacidade do Pai de Santo e na de um grupo de pessoas do terreiro com
as quais tenho afinidade. Além disso, reconheço a competência dessas pessoas no cuidados das
coisas relacionadas aos Orixás.
Todos esses anos de preparação e indefinição me haviam sido absolutamente
necessários. Não vejo como poderia me entregar, assim tão sem defesa, nas mãos de pessoas as
quais não conhecesse e confiasse. Os demais dias que passamos no sabagi foram para mim
intermináveis. Voltei a chorar mais vezes, tive uma desavença com a Ekedi, também recolhida, e
agradeci o fato de que uma vez recolhida ao roncó não estaria mais com minha consciência
desperta. Na noite de 18 de janeiro entramos para o roncó, onde três esteiras já estavam postas
no chão, cobertas com lençóis brancos, à nossa espera. A primeira obrigação seria a de Bori –
obrigação dada à cabeça do iniciado, da qual participei desperta. Já tinha passado por essa
experiência, sete anos atrás, quando do assentamento dos meus santos e participado de várias
outras, dada a outras pessoas e nada ali me era estranho. Essa obrigação visa fortalecer a
pessoa que a recebe. Cansada dos intermináveis dias de sabagi, essa obrigação me veio como
uma benção.
Do que se seguiu, a partir da noite seguinte, não posso dar conta. Sei apenas que
diversas obrigações são realizadas, quase que diariamente, para que o santo possa “ser feito”. O
terreiro fica em movimento constante, é preciso preparar as obrigações e participar delas, fazer
comida, acompanhar os iniciados recolhidos em tempo integral, alimentando-lhes,
acompanhando-lhes nos banhos diários, às 6 horas da manhã e às 6 horas da tarde, rezando
com eles após os banhos. É preciso ainda confeccionar as roupas com as quais a Ekedi e os
Orixás se apresentarão no dia da festa de saída do barco, e não são poucas; cada Orixá se
apresenta com três roupas distintas e elas são elaboradas com muito cuidado e esmero. Além
disso, sei que são realizados ensaios diários onde o Erê e o próprio Orixá manifestado são
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ensinados a dançar suas cantigas específicas e que passam por diversos testes para confirmar sua
manifestação no iniciado. Nada pode dar errado sob pena da iniciação ser interrompida. Nada
deu errado em nosso barco que se apresentou ao público na noite de 28 de janeiro, em uma festa
que reuniu mais de trezentas pessoas. Soube que as pessoas vêm de longe para ver uma saída de
Oxalufã, gente de diversos terreiros de Brasília, e até pessoas de outros estados vieram para
prestigiar nossa casa e ver a saída desse barco que tinha uma presença rara: meu Orixá –
Oxalufã. Por ser um Orixá muito velho, dificilmente ele é feito na cabeça de seus filhos. Sua
presença no barracão é impressionante. Todo vestido de branco, apoiado no Opaxorô – espécie
de cajado de prata, ele dança curvado pela idade, muito lentamente. Sobre sua cabeça, seis
membros da comunidade carregam um pano branco, uma espécie de tenda, chamada de Alá.
Além de ser raro nos terreiros, Oxalufã é o primeiro Orixá, considerado pai de todos os outros
Orixás, por isso o respeito e a veneração que lhe são dispensados. Contaram-me que foi uma
festa linda e que as pessoas se emocionaram com Oxalufã e Oxum dançando no barracão.
Meu grande amigo, que me levou para o candomblé mais de vinte anos atrás, estava lá.
Antes de me recolher eu lhe telefonei dizendo ser muito importante sua presença na festa de
saída de meu Orixá, já que ele era o responsável primeiro por meu ingresso no candomblé. E
nessa noite ele estava lá e me disseram que ele chorou quando Oxalufã entrou no barracão.
Essa festa foi também importante porque 2006 é um ano regido por Oxalufã, e eu
acabei sendo a primeira iaô a ser iniciada no Distrito Federal, nesse ano de 2006, feita para
Oxalufã, num ano regido por ele. Não foi coincidência, nem foi programado por mim ou pelo
Pai de Santo. Penso que, desde o início, tudo estava determinado por ele – meu Pai Oxalufã.
No dia posterior à festa de saída do barco, voltei à consciência na beira de um rio.
Abraçada à minha irmã de barco, Dofonitinha de Oxum, choramos muito. Vários membros do
terreiro, além do Pai de Santo, estavam ao nosso lado. Estranha sensação de voltar ao mundo,
senti-me muito fragilizada, indefesa mesmo. De volta ao terreiro outros rituais foram
realizados, uma espécie de reintegração à vida diária e, no final da tarde, fui levada para
minha casa por uma Ekedi mais velha do terreiro.
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A maioria das pessoas do terreiro, e que fizeram santo antes de mim, disseram que o
período de kelê foi o melhor tempo de suas vidas, outras não me disseram nada. Eu posso dizer
que foi um tempo de sentimentos novos e ambíguos. Talvez tivesse sido um tempo sagrado, se
fosse possível permanecer no terreiro durante os três meses do período do kelê, dedicando-me
apenas ao Orixá, como era em épocas que já se perderam no tempo. Mas, ser jogada no mundo
após tantos dias de recolhimento e afastamento da sociedade, por imposição mesmo da vida
moderna e do mercado de trabalho, não é uma boa experiência, nem simples, nem fácil.
Contribui para a dificuldade desse enfrentamento da realidade moderna o fato de que a
consciência não volta instantaneamente. A capacidade de reação fica muito reduzida, uma
carência se instala e é como se, realmente, eu tivesse nascido de novo. A rua assusta, o barulho
incomoda, a multidão é intolerável.
A reação das pessoas a essa minha mudança variou desde o apoio explícito – recebi
flores de uma colega na volta ao trabalho, até a tentativa de demonstrar naturalidade frente a
uma pessoa que sai de férias e de repente retorna vestida de branco dos pés à cabeça.
É impressionante como as pessoas tiram suas próprias conclusões e nos condenam a um
destino sem qualquer questionamento. Algumas me perguntaram abertamente como estava indo
o meu tratamento com a quimioterapia; outras, mais discretas, perguntaram a pessoas amigas se
eu estava com câncer. Para aquelas que me perguntaram diretamente, respondi que tinha feito
uma iniciação religiosa; para as mais curiosas, dei maiores detalhes. De várias pessoas, ouvi
dizer de minha coragem com a posição ocupada no mercado profissional, ser capaz de encarar
período tão longo de restrições e uma mudança tão radical de aparência.
Sentia-me, obviamente, diferente. Destacava-me nos lugares por onde andava. O lenço
branco, cobrindo a cabeça raspada, era a peça do vestuário que me transformava num ímã para
o olhar dos outros. Para a relação com o mundo à minha volta, essa marca foi a dificuldade
maior. E como se tudo fosse programado para me testar, foi a época em que mais reuniões de
trabalho precisei realizar, enfrentando públicos diversos e numerosos. Além da viagem para
Porto Alegre, para a formatura de meu filho, ainda precisei enfrentar uma viagem a São
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Paulo, dessa vez, a trabalho, em uma convenção que reuniu colegas de vários estados do País.
Um desses colegas comentou comigo: “você está toda de branco, mas não é essas coisas de
batuque, de macumba, é?”, limitei-me a responder com outra pergunta: “pois é, e se for?”.
Na época dessa viagem eu já havia retirado o lenço branco da cabeça. Com quarenta e
cinco dias, meu cabelo já crescido, o Pai de Santo consultou o jogo de búzios para saber se
poderia liberar a mim e a minha irmã, Dofonitinha, do uso do lenço na cabeça. Essa peça
realmente me incomodava, mas não pedi ao Pai de Santo para abreviar esse preceito; estava
disposta a levar até o fim essa imposição. Talvez ele tenha sentido que isso estava me pesando
demais, mas jamais teria consentido se não tivesse recebido autorização de meu Orixá e do
Orixá de minha irmã de barco. O que foi para nós duas um alívio, gerou uma crise no grupo
religioso. Alguns membros da casa nos acusaram de romper a tradição, de quebrar preceito, de
violar as regras e desejaram que pagássemos com sofrimento por aquilo que consideraram uma
transgressão. Não vejo dessa forma. Já vi muitas regras serem mudadas em nossa casa de santo
e em várias outras, e considero que o mal não está na forma como as coisas são feitas, mas na
intenção com que são praticadas. Cumpri meu kelê integralmente e apenas o lenço foi retirado,
por autorização de meu Orixá, dada através do jogo de búzios. Satisfaz-me a explicação dada
pelo Pai de Santo de que ele também estranhava o fato de meu Orixá estar sendo tão
condescendente comigo, mas que isso acontecia porque, embora meu santo tivesse sido feito
recentemente, estava assentado já havia sete anos e, durante todo esse tempo, eu mantive com ele
meu compromisso e dedicação.
Mas os membros do grupo, contrários a essa atitude, cobraram seu preço. Uma rede de
fofocas se instalou, nunca frontalmente, sempre com dissimulações; pela frente diziam apoiar a
liberação do uso do lenço; pelas costas, condenavam veementemente. As hostilidades vieram
mascaradas com a força da hierarquia. As mais velhas de santo, revoltadas com aquilo que
chamaram de regalia, fizeram valer os cargos ocupados para nos colocar em nosso lugar: de iaô,
de recém iniciadas que nada sabem e que devem apenas obedecer as suas ordens. Já vulneráveis
por todo o processo vivido no recolhimento e no enfrentamento do dia-a-dia fora do terreiro,
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vimos nossos finais de semana virar uma provação desnecessária. Não podíamos reagir às
ordens ou provocações. O candomblé é rígido no sentido de obediência à hierarquia; devíamos
apenas abaixar a cabeça; uma reação maior, como ocorreu no caso de minha irmã, implicou em
maior perseguição por parte desse grupo. Não reagi, não achei necessário, embora isso tenha me
magoado e aprofundado o abismo que me separava dessas pessoas em particular, sabia que esse
era um tempo contado no calendário e não vi necessidade de medir força ou buscar o espaço
ocupado por elas. Na verdade, penso que isso nada tem a ver com o Orixá. São disputas
mesquinhas de um poder que não busco. Mas foi assim, com muita dificuldade, que
atravessamos os três meses de kelê, que nos fez ir para o terreiro todos os finais de semana, treze
ao todo, chegando na sexta-feira, ao cair da tarde, e voltando para casa apenas no domingo.
Esse compromisso, por si só, não era ruim. Era o lugar onde me sentia mais integrada com o
momento que estava vivendo. Não fossem os problemas de relação com o grupo, teria sido um
bom tempo. Devo dizer que uma outra parte do grupo foi muito solidária, amiga, próxima,
compreensiva, num momento de transição como esse e foram essas pessoas que nos apoiaram e
nos ajudaram nessa longa travessia. Sou muito grata a elas.
Quanto a mim, sinto que sofri uma mudança radical. Durante esses três meses, minha
rotina foi completamente alterada e meu corpo não era meu, estava marcado. Não só pelas
roupas brancas usadas, mas pelos símbolos que se carrega no corpo. Uma espécie de colar de
contas no pescoço – o kelê propriamente dito, símbolo da ligação com o Orixá, que não pode ser
tirado, nem mostrado fora do terreiro, fica coberto por um tecido durante todo o tempo que se
está na rua; apenas em casa pode-se retirar o pano, mas nunca o colar, que está amarrado
próximo ao pescoço. Além disso, três tiras de palha da costa trançadas ficam permanentemente
junto ao corpo, uma na cintura e uma em cada braço. Não é permitido fazer depilação e o corpo
vai se transformando em algo estranho, pesado. Durante os três meses, dormi no chão, em uma
esteira colocada ao lado de minha cama. Também não pude sentar nas cadeiras e sofás de casa,
sentava no chão, inclusive para fazer as refeições, quando utilizava sempre um prato e uma
caneca de ágata e uma colher de plástico; nem garfos, nem facas, nem copos e pratos de vidro ou
89
de louça. Duas vezes ao dia, às 6 da manhã e ao final da tarde, quando chegava do trabalho,
rezava. Antes, um banho com água fria e depois, a reza. Uma seqüência de dezesseis rezas que
levava, em média, cinqüenta minutos. Não saí à noite durante todo esse período. Minha casa
era meu melhor refúgio. Também estava proibida de comer determinados alimentos, de
consumir bebida alcoólica e de praticar sexo.
Encerrado o período de kelê, no dia 29 de abril, ainda devo manter algumas restrições
pelo período de um ano para determinados alimentos e, embora todas as outras cores me estejam
liberadas, o preto está proibido. Renovei o guarda-roupa, dei de presente as roupas pretas que
usava quando ainda não era uma iaô. Minha capacidade de reação aos acontecimentos
externos, reduzida durante o período de kelê, foi se refazendo nos dias anteriores à sua retirada.
Uma semana antes do final desse período, recebi uma nova proposta de trabalho, que aceitei de
imediato. Estava viva de novo, com uma nova energia. As pessoas à minha volta notaram a
diferença, não apenas externa, uma postura mais firme, uma certeza no olhar, mas uma maior
autoconfiança, como a das pessoas que estão integradas com suas várias facetas, suas diversas
estórias. É assim que me sinto agora, integrada. Depositária de uma força divina – meu
Orixá, um aliado no percurso da vida.
90
3.3. As vozes dos filhos de santo
Anderson, Eduardo, Luciana e Fernando são filhos de santo do Axé Baraleji.
Cumpriram todos os ritos da iniciação e participaram do ritual de axexê da Ialaxé
Verinha de Oxum. A entrevista de cada um deles buscou dar voz a essas vivências
transformadoras, por sua intensidade e significado: como chegaram ao candomblé e de
que forma esse novo caminho afetou suas vidas; o entendimento que mantêm sobre a
morte e com os aspectos a ela relacionados; a vivência do ritual de axexê daquela que foi
a mãe de santo de todos eles, e a experiência da “feitura de santo”, caminho sem volta
para o iniciado no candomblé.
Anderson – o candomblé como destino marcado no corpo: Iaô – Filho de Oxalá,
sexo masculino, conta com 26 anos de idade, oito de participação no candomblé e seis
de iniciação na condição de iaô. É professor universitário e fisioterapeuta, com atuação
em Unidades de Terapia Intensiva.
Eduardo – o candomblé como o fim da busca por si mesmo: Ogan – Filho de
Oxóssi, do sexo masculino, conta com 41 anos de idade, doze de participação no
candomblé e seis anos de iniciação na condição de ogan. É economista e empresário.
Luciana – o candomblé como palco de certezas e dúvidas: Joye – Filha de Iapaoka,
sexo feminino, 36 anos de idade, vinte de participação no candomblé e sete de iniciação
na condição de Joye. É professora de Educação Física e está concluindo o curso de
Direito.
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Fernando – o candomblé como herança espiritual: Pai Pequeno, filho de Oxalá, sexo
masculino, 49 anos de idade; vinte anos de participação no candomblé e dezessete anos
de iniciação. Ocupa o cargo de Maé, responsável por auxiliar o pai de santo na
administração dos recursos mágicos do Axé Baraleji. É advogado e empresário.
3.3.1. O ingresso no candomblé
Anderson ingressou no candomblé como conseqüência de um caminho traçado
desde a infância. Não buscou a religião de forma específica, mas foi “encontrado” por ela.
Vítima de desmaios constantes desde os seis anos de idade, encontrou na umbanda, aos
nove anos, a solução para esse problema de saúde que a medicina não pode dar conta.
Até os dezessete anos permaneceu na umbanda e na doutrina kardecista. Conheceu o
candomblé por acaso, pois revela que tinha “muito preconceito ao candomblé”. Acredita
que não chegou ao candomblé nem pela dor, nem pelo amor, como é comum dizer-se na
religião. Ele alega ter chegado ao candomblé “num chamado, porque eu não fui atrás, ele
veio atrás de mim”. Segundo Anderson, uma série de coincidências fez com que,
independente de sua procura, ele chegasse ao candomblé, cumprindo um ciclo de
aprendizagem que lhe havia sido revelado quando ele ainda freqüentava a umbanda:
“isso as minhas entidades falavam, olha você vai ter a continuidade de um novo aprendizado,
dentro de uma nova escola, dentro da espiritualidade; e foi assim que eu cheguei à religião”.
Nesse contexto, Anderson foi conduzido ao candomblé por suas entidades de umbanda.
Eduardo atribui a simpatia pelo candomblé a uma “herança de família”. Filho de
pais que freqüentavam a umbanda conheceu vários terreiros desde criança. A partir da
adolescência procurou diversas outras religiões, ou como diz: “eu procurei vários
caminhos”; freqüentou as igrejas católica, protestante, messiânica, entre outras, e afirma
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não ter-se encontrado em “nenhum desses lugares”. Após vários anos sem freqüentar
nenhuma religião, chegou ao candomblé “por curiosidade”.
Pela diversidade de crenças que procurou, o candomblé parece ter sido mais
uma tentativa na busca desse encontro interior, um novo caminho. Começou a visitar o
terreiro de candomblé, freqüentar as festas e foi se integrando: “quando eu vi já estava
participando do culto, e me iniciei no candomblé”. Um longo percurso, com várias
tentativas na busca de um lugar onde pudesse se reconhecer como membro de uma
comunidade e ser reconhecido por ela, ou em suas palavras: “a busca do encontro comigo
mesmo se deu no candomblé”.
A umbanda é uma religião brasileira, nascida do candomblé, que congrega
diversas outras crenças como a espírita, a indígena, de caboclos; criado dentro da
umbanda, Eduardo traçou seu percurso como um círculo: conhecendo diversas
religiões, voltou ao começo de sua infância e um pouco mais atrás, na origem da
umbanda – se encontrou no candomblé.
Luciana conheceu o candomblé através de um amigo, Fernando, que hoje é Maé
do Axé Baraleji. De família kardecista, aos 16 anos, quando conheceu o candomblé, diz
ter ficado “muito encantada com todo o folclore, todo o místico que envolvia a arrumação, a
ornamentação de uma casa de candomblé”. Atribui sua entrada ao candomblé a esse
“encantamento” e a paixão imediata que sentiu pelo orixá Oxum, iniciando, assim, o
percurso de uma “longa estrada”. Luciana era Joye de Oxum, encarregada de cuidar das
coisas relacionadas a Oxum Omim Ladê, Orixá de Mãe Vera, Ialaxé falecida do Axé
Baraleji.
Em 1989, já casada com Fernando, começou a participar dos rituais do
candomblé e, em 1991, foi iniciada, dando seu primeiro borí. Para ela, a máxima de que
a pessoa chega ao candomblé pelo amor ou chega pela dor, não foi um imperativo:
“para mim, foi um outro caminho; eu acredito que eu me encaixe mais na questão do amor, do
93
que na questão da dor”. Acredita que por ser muito jovem à época, não pode atribuir seu
ingresso a problemas pessoais, já que não os tinha, e pensa ter sido envolvida por uma
energia que a deslumbrou desde o seu primeiro contato com o culto. Esse
encantamento parece ter se aliado às circunstâncias de sua vida afetiva que, casando
com um membro da comunidade de santo, passou também a fazer parte do terreiro, na
condição de iniciada.
Fernando nos diz ser descendente de africanos e considera que sua iniciação
começou ainda no ventre de sua mãe. Ele explica que seu avô materno, nascido no
Congo, veio para o Brasil, aportando na Bahia; sua mãe, nascida brasileira, trouxe a
herança genética espiritual de dar continuidade ao trabalho de seu avô, por ser a
primogênita. A mãe de Fernando, no entanto, não deu prosseguimento ao trabalho
religioso de seu avô e passou, segundo ele, a “ter ojeriza a todo o culto religioso,
principalmente de origem afro”. Como filho e neto primogênito, Fernando diz ter herdado
essa herança “genética espiritual” de seu avô, que por sua vez também a herdara de seus
ancestrais africanos. Quando Fernando contava 14 anos de idade, sua mãe apresentou
graves problemas de saúde, e ele a levou até um centro de umbanda. Com a intenção
inicial de ajudar a mãe, acabou por se envolver com a religião, e afirma que, desde
então, mantém estreita convivência com o mundo espiritual. Aos 18 anos, no Ceará,
conheceu outras vertentes da umbanda, como a quimbanda que é, segundo afirma, “uma
umbanda pesada que mexe com magia negra”.
Uma vez em Brasília, conheceu o kardecismo e durante seis anos permaneceu
nessa religião. Fernando diz que, findo esse período de seis anos, foi avisado por uma
“entidade” que sua missão na umbanda havia terminado, e que ele deveria buscar aquele
que seria o seu “verdadeiro caminho”. Nessa época, ao deixar o kardecismo, conta ter
acreditado que voltar às origens seria voltar para umbanda, mas como sua vida estava
em ordem e, profissionalmente, encontrava-se muito bem, decidiu abdicar da vida
94
espiritual:“eu simplesmente peguei todas as minhas coisas de santo da umbanda, os patuás, as
imagens, botei tudo numa caixa (...) falei que não precisava de nada daquilo e despachei tudo
no mar”.
Iniciou-se, então, um período de retrocesso em sua vida, que ele atribui a seu
descaso por sua “herança genética espiritual”. Ele conta que em seis meses perdeu todos
os bens materiais que possuía e também sua família, já que essa situação levou-o a
ruptura do casamento e ao afastamento de sua primeira filha. Fernando continua
dizendo que, no carnaval de 1986, começou a passar muito mal e “apagou” na quadra
comercial da 310 Sul, em Brasília, em frente a uma loja que vendia artigos de
candomblé, que era a loja de Tito de Omolu, hoje seu pai de santo.
Fernando afirma que foi levado até à loja de Tito de Omolu pelos orixás: “na
realidade, eu voltei à origem de meus ancestrais, que era o meu avô e aos seus ancestrais”. Ele
diz se enquadrar, dessa forma, na máxima do candomblé e entrou na religião pela porta
da dor: “então, o caminho religioso, é um dito que se tem principalmente dentro do candomblé,
ou você entra pelo amor ou pela dor e noventa e nove por cento das pessoas entram pela dor e
essas dores elas doem em vários lugares”.
3.3.2. A vida antes e depois do candomblé
Para Anderson, o ingresso no candomblé significou a continuidade de um
processo espiritual iniciado na infância. Paralelamente, seguiu o curso de sua vida.
Acredita que a religião foi importante, na medida em que o motivou a buscar novos
desafios, mas não a coloca como base para as conquistas da vida, dizendo que a atitude
da pessoa é fundamental para seu processo de crescimento.
Eduardo atribui um significado maior à religião. Considera que sua vida antes
de entrar para o candomblé era “vazia, sem objetivo, sem crença”. Confere à religião os
progressos feitos a partir de então. As mudanças positivas na vida profissional e o
95
retorno aos estudos, há vinte anos interrompidos, são conquistas que ele credita à
religião. Para ele, o candomblé foi o motor dessas mudanças. Diz que o incentivo
recebido, veio de um conjunto de forças, não só do Orixá, ou de uma pessoa, ou da
comunidade, mas desse conjunto que “te dá forças e faz com que você toque o barco pra
frente”.
Esse conjunto de forças, a que Eduardo se refere, confirma os fundamentos do
candomblé, de ser uma religião onde a participação em comunidade é condição para o
exercício do culto aos orixás. Para o candomblé, o todo depende da participação de cada
um, daí que não é possível para ele destacar um fator ou uma força principal, mas esse
conjunto que fez com que sua vida tivesse um impulso de crescimento. Esse
crescimento, “essa guinada em minha vida”, vem, assim, atestar o “encontro comigo mesmo”
buscado por ele desde a adolescência.
Luciana conheceu a religião católica através dos colégios onde estudou na
infância e adolescência. Mas alega não ter encontrado no catolicismo “um berço” que lhe
“aconchegasse”. A crença no Deus católico também não foi possível para Luciana, que
questionava sua bondade diante das injustiças sociais. Aos 12 anos começou a
freqüentar o kardecismo, seguindo os passos de seus pais. Ali permaneceu até os 15
anos, ainda sem acreditar nos fundamentos religiosos. Ela diz: “eu não tinha nenhuma
crença, não tinha nada que me fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou um Deus
que movimentasse o universo”.
Ela considera que, apesar de sua pouca idade quando do ingresso no
candomblé, sofreu uma grande mudança. Hoje, Luciana ainda acredita não existir esse
Deus que “tenha colocado as pessoas no mundo com o motivo delas definharem ou delas
prosperarem” e acha que as pessoas buscam uma solução para seus problemas, um
amparo, nessa imagem do Deus cristão que ela considera “cultural”.
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Para Luciana, o mundo é formado por energias e “a essência humana, que também
é energia, a alma que também seria uma forma de energia, vem pra um aprimoramento”.
Acreditando, agora, em um Deus “universal e único” e entendendo-o como “uma energia”,
sua entrada no candomblé significou uma mudança na forma de se relacionar com
Deus. Entrando para o candomblé ainda muito jovem, sua vida, a partir de então, ficou
ligada de forma muito intensa a essa religião.
Ao ingressar no candomblé, Fernando trouxe consigo uma história de vida
destruída; mas as coisas não se resolveram rapidamente para ele, porque, segundo
conta, sua história espiritual estava marcada por vários desacertos. Sua “origem
espiritual ancestral” lhe cobraria sete anos em sacrifícios, até que sua vida voltasse a se
ajustar. Considera que seu maior erro foi abdicar da vida espiritual em favor de uma
vida material confortável, faltando com a responsabilidade diante de sua ancestralidade,
e aceita o castigo, como forma de reparação a essa quebra de compromisso. Cumprido o
período de sete anos de “castigo”, ele diz ter aprendido um pouco mais sobre o
sacerdócio, a vida, o mundo e sobre os orixás. Passados 20 anos de seu ingresso no
candomblé, diz ser “prova viva” do poder dos orixás. Sobre esse poder ele diz: “cada vez
mais você vai recebendo, como num conta gotas, o axé que o orixá lhe dá, ele vai lhe dando a
conta gotas, força e poder individual para que você construa para você e para os seus”.
Fernando, hoje, é um empresário de sucesso e está casado novamente, tendo
reconstruído, também, sua vida afetiva; na vida espiritual, dentro do candomblé, segue
um caminho crescente no Axé Baraleji, casa de santo aonde foi iniciado. Com dezessete
anos de “santo feito”, participa ativamente de todas as atividades do culto, sendo “pai
pequeno” de vários filhos de santo, já tendo, inclusive, iniciado o seu primeiro iaô, o que
lhe confere o título de pai de santo, ou babalorixá.
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3.3.3. A relação com a morte
Para Anderson, que desde muito cedo aprendeu a conviver com perdas de
consciência, entidades espirituais, doutrinas kardecistas, a morte parece se apresentar
não com a face da grande ceifeira, mas com a face da morte domada. Acredita que essas
experiências da infância lhe trouxeram uma grande proximidade com a questão morte-
vida e, por “ver” e “conversar” com pessoas mortas, ele diz não poder encarar a morte
como um fim, vendo, por isso, continuidade após a morte. Anderson parece conservar
suas concepções de morte oriundas do kardecismo, diferentemente do candomblé que
não privilegia a continuidade após a morte, mas a vida no aqui e agora.
Acostumado a tratar a morte de forma tão próxima, Anderson reconhece a
dificuldade de viver de forma tão radical os dois extremos da cultura do candomblé e
da cultura ocidental moderna. Desde sempre, ele esteve inserido em religiões onde a
morte é tratada como um acontecimento esperado na vida; em contrapartida,
desempenha sua trajetória profissional nas unidades de terapia intensiva, local onde a
morte espreita vinte e quatro horas por dia, e onde todos parecem ignorar-lhe a
presença. Dividido entre dois mundos tão distintos, nesse momento, ele se reconhece
como ator da cultura ocidental: “a minha postura é me calar, me fechar, porque as pessoas ali
pensam diferente de mim (...) não existe espaço para você discutir sobre qualquer coisa ligada à
morte, ninguém vai discutir isso, morreu, morte clínica, pronto, acabou, então agora a família
vai sofrer e velar o morto, ponto.” A postura médica oficial dita as regras da cultura
ocidental dentro do ambiente de trabalho desse filho de santo que se cala porque,
naquele espaço, sua voz não pode ser ouvida. Seu papel está restrito ao sujeito da
modernidade, não há espaço de expressão, ali, para esse iaô de Oxalá, ponto.
Eduardo diz ter várias concepções sobre a morte: “tem aquela concepção que a
gente aprende desde criança, que a gente herda da sociedade; tem a concepção da casa de santo,
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que a gente vai aprendendo aos poucos”, apontando aqui a existência da diferença da
concepção recebida pela cultura ocidental, que lhe é dada desde a infância e a concepção
do candomblé, que precisa ser aprendida com o tempo e a vivência do culto.
Conforme a fala do candomblé – o filho herda as características do pai – ele se
apropria da característica do seu orixá principal, Oxóssi, de não temer a morte: “o meu
orixá de cabeça é um orixá que não teme a morte e, eu não sei se por esse motivo, eu também não
tenho medo da morte, a morte pra mim é uma passagem, só uma passagem, eu encaro ela com
muita naturalidade, não temo a morte, não tenho receio dela”.
Cita duas experiências de morte vividas na casa de santo, de uma iaô e da
própria mãe de santo, e faz uma distinção entre elas, pela forma como essas mortes se
deram: a primeira, de uma jovem que foi morta de forma trágica e brutal, assassinada
pelo namorado aos 22 anos de idade, e a mãe de santo, que morreu após dois anos de
luta contra o câncer, mas ao final diz ter encarado as duas mortes da mesma maneira:
“foi uma irmã de santo, que fez santo junto comigo e que veio a falecer de um crime bárbaro (...)
essa eu senti bastante a morte dela, mas encarei com naturalidade (...) depois de me
conscientizar que aquele era o caminho dela, que aquela era a missão dela, ela teria que passar
por aquilo ali, e foi daquele jeito que tinha que ser”.
Essa concepção da morte, como caminho, como destino inscrito na vida da
pessoa, parece vir de alguma outra concepção de morte, dentro das várias que ele diz
ter, e não da cultura ocidental ou do candomblé. Em relação à morte da mãe de santo,
ele a descreve como “uma morte mais demorada, uma doença que se estendeu por dois anos
até o falecimento, já era uma morte assim esperada (...) então eu encarei com naturalidade”.
A maneira de encarar da mesma forma duas mortes tão distintas, apesar do
sofrimento mais acentuado na primeira, parece demonstrar a aceitação da realidade da
morte. Eduardo ancora essa aceitação na concepção de que com a morte a pessoa “vai
para um outro plano” e acredita que “acumulando as experiências aqui vividas, a pessoa possa
ser útil em outra esfera, outra dimensão”.
99
Por ser Joye de Oxum, Luciana tinha uma relação muito estreita com a Ialaxé
falecida. Sua percepção da morte mudou a partir do acompanhamento da doença e
morte da Ialaxé. Ela acusa uma desconstrução de tudo àquilo que até então acreditava
ser a morte, e o próprio Deus: “o candomblé vê a morte como sendo início e fim (...) a morte
é um dos elementos mágicos que mais movimenta o rito do candomblé, porque é a única verdade
certa do ser humano, que é a passagem dele, de alguma forma, por esse aspecto chamado morte”.
Ela diz entender a morte no candomblé como “o inevitável por sermos matéria”, e como
uma das forças mais poderosas que já sentiu e vivenciou. Luciana fala da “inexplicável
sensação de desespero (...) do medo profundo” que a levou a questionar a morte como sendo
uma passagem boa, como acreditava anteriormente.
Luciana participou ativamente de todas as obrigações – ebós – que foram
realizados na tentativa de superação da doença da Ialaxé. A experiência que ela relata
aqui se deu na primeira de uma série de obrigações que se estenderam por quase dois
anos. Ela diz:
Então, aquele momento, aquele exato momento quando se iniciou a tentativa
mágica da manutenção da vida, foi que me mostrou o quanto era frágil à vida, o
quanto que a morte é extremamente mais forte, porque com todo o amor que se
dedicou aquele momento, com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz
necessário na tentativa de alguma ação de sucesso, a única sensação que eu
guardei foi de medo.
Por vir de uma família kardecista, ela ainda guarda os aprendizados de que o
homem é um ser em evolução, que vêm de outras experiências de vida, “não tem como
você nascer num berço Kardec e não ter esses valores dentro de você”, mas também já coloca
esses valores em questionamento. Ela diz ter ouvido de seu pai, que se encontra muito
100
doente – “minha filha, talvez Deus não exista” – e levanta que se ele que “é um profundo
estudioso da religião kardecista, se ele pode levantar esse aspecto de dúvida (...) me sinto
extremamente à vontade pra questionar a existência de um Deus”.
Luciana parece ter voltado ao início de sua adolescência, quando questionava a
existência de um ser superior, mas diz ter encontrado no candomblé respostas que a
fazem manter a crença na religião e continuar dedicando-se a ela. Ela se questiona:
Por que eu permaneço no candomblé? Eu tenho uma resposta muito forte, a nível
consciente, de todas as coisas que, principalmente, eu peço ao Orixá Oxum, no
sentido do meu caminho profissional, no sentido de antecipação de fatos da minha
vida pessoal, no sentido da proteção da minha família (...) dento do candomblé eu
tenho essa resposta, de alguma forma existe uma energia, seja ela dado o nome
que for, Oxum, Deus, Ifá que é o dono de todos os caminhos, seja qual for essa
forma de energia, ela me responde.
A morte da Ialaxé parece ter abalado às certezas de Luciana, aumentando sua
busca de racionalidade. Luciana é uma Joye, não “vira no santo”, o que faz com que ela
não experiencie a possessão pelo orixá, a perda do controle, os momentos de
inconsciência impostos pelo transe. Pode-se imaginar que, por isso, busque tantas
“provas” palpáveis na religião. Ela afirma:
Com certeza se o candomblé não tivesse em mim uma resposta positiva, de acreditar,
de manifestação, de realmente poder antecipar, de poder prever, de poder acertar,
com certeza, por mais amor que eu tivesse a Oxum, que é o Orixá que eu mais
cultuo, eu não ficaria aqui. Porque eu tenho a necessidade de ter a certeza daquilo
que eu faço.
101
Luciana julga que a experiência da morte da Ialaxé alterou sua forma de ver a
morte, marcando para ela o fim da “naturalidade da morte”, derrubando suas certezas
de que a morte era apenas uma boa passagem: “aquela estrutura que eu criei durante os
meus 36 anos (...) aquela estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra”.
Fernando diz ter duas visões sobre a morte: “a visão do candomblé e a minha, que
é visão do candomblé e mais um pouquinho”. Para o candomblé, segundo sua explicação, a
morte “é o momento onde a tua alma e o teu espírito, o teu orixá, o teu axé, o teu ori se
desprendem desse aiye, desse mundo”.
Ele fala sobre cada uma “dessas partes” que se desprendem do corpo físico, da
matéria, no momento da morte:
O espírito é a ancestralidade, ele já é existente (...) o espírito é uma existência
divina. A alma é a energia catalisadora que traz o equilíbrio entre o corpo e o
espírito, a própria vida é a alma; o orixá é um ancestral, mas não é um ancestral só
seu ou um ancestral só meu; um novo descendente, que tenha um caminho de orixá
com aquela ancestralidade, se aquele filho tiver ligação direta com aquele orixá, o
orixá pode voltar. O ori acaba e o axé se reincorpora na comunidade de santo.
No entendimento de Fernando, a morte, para o candomblé, é o desligamento
desses cinco componentes da existência humana. A continuidade para além da morte
não ocorre de forma automática, como em outras crenças, mas advém de “um
merecimento”; em suas palavras: “a morte nem sempre é uma continuidade, pra ter
continuidade tem que ter merecimento”.
Segundo Fernando, esse merecimento é sempre aqui, nesta vida, nesta
existência, de onde se pode lembrar da concepção de vida no “aqui e agora” professado
pelo candomblé.
102
Para Fernando, dentro do culto do candomblé, o conceito de “carma”, como
entendido pelo kardecismo, não se sustenta: “isso é uma filosofia religiosa ou um
fundamento religioso que para nós, do culto religioso do candomblé, ele não tem muito
fundamento; se nós estamos aqui pra pagar aquilo que não sabemos que temos pra pagar, então
aonde é que está a evolução?”
Quanto à sua visão particular de morte, Fernando enxerga um pouco além do
merecimento que o candomblé atribui; por todas as experiências espirituais que teve
em diversas outras religiões, anteriores à sua iniciação no candomblé, ele vê o retorno
do espírito como algo além do merecimento. Ele diz: “eu vejo o retorno como uma
necessidade real de evolução do espírito sempre para um mundo melhor (...) a morte é um novo
caminho, e não chamo um renascimento, é uma transformação (...) o que as pessoas chamam de
morte, para mim é o acúmulo de experiência do orí, do orixá, do espírito e da alma”.
3.3.4. A vivência de um ritual de axexê
Anderson considera que o ritual do axexê é complicado dentro do contexto da
sociedade moderna porque os filhos de santo cresceram dentro da mentalidade
ocidental, o que lhes dificulta o entendimento do ritual. Ele diz: “o ritual do axexê vem
antes das pessoas, ele é mais antigo do que nós, somos nós que não estamos inseridos nesse
contexto”.
Demonstra nesse relato a supremacia que a cultura ocidental tem adquirido
sobre as práticas milenares do candomblé. Ressalta a dificuldade de integração e
entendimento de um ritual muito antigo, que “vem antes das pessoas”.
Para o candomblé, esse ritual foi criado por Oiá (Iansã), que por ocasião da
morte de um grande caçador – chamado Odulocê – que a havia tomado como filha,
pensou em um modo de homenageá-lo; reuniu todos os instrumentos de caça de
Odulocê e enrolou-os num pano; preparou todas as iguarias de que ele mais gostava,
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dançou e cantou por sete dias e, com seu canto, fez com que se reunissem no local todos
os caçadores da terra; na sétima noite, acompanhada dos caçadores, Oiá entrou na mata
e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulocê. Olorum emocionou-
se com o gesto de Oiá e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orum.
Desde então, todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por Oiá. Antes,
porém, deve ser homenageado por seus entes queridos, em uma festa com cantos,
danças e comidas, tendo, assim, nascido o ritual do axexê (Prandi, 2001, pp. 310/311).
O axexê é, então, um ritual herdado dos orixás. Mas não é apenas isso que
dificulta o entendimento. Os filhos de santo do Brasil do século XXI são filhos da
modernidade, da pressa do dia-a-dia e, ainda que pratiquem sua religião de
ensinamentos tão antigos, estão muito mais sujeitos a participar dos rarefeitos rituais
modernos de morte do que dos longos rituais de morte do candomblé. Por maior que
seja a comunidade de santo, em maior número são as relações que essas pessoas têm em
sua vida comum e, assim, é natural que participem de um maior número de rituais
fúnebres modernos do que de rituais de axexê.
Apesar desse estranhamento e da dificuldade de viver um ritual tão longo como
o axexê, Anderson considera que o tempo ajuda na elaboração da perda: “eu concordo que
o tempo, o tempo sim ele ajuda, (...) o ritual do axexê, por ser mais prolongado ele te leva a
refletir, elaborar aquela perda, a buscar instrumentos de se reestruturar e de se apoiar
mutuamente”.
Eduardo também acredita que muitos fiéis não entendem a complexidade do
ritual de axexê: “algumas pessoas não tem uma bagagem cultural para entender o significado
de um ritual e faz por repetição, porque todo mundo fez”. Atribui essa dificuldade a vários
fatores, como o pouco tempo de participação na religião, à ignorância de algumas
pessoas que, apesar de vários anos freqüentando a casa de santo, não se interessam em
apreender o significado dos diversos ritos e até a incapacidade de “deixar a coisa fluir
104
naturalmente”, numa referência à recusa de uma maior entrega, em não abrir mão do
questionamento dos rituais, num apego à racionalidade.
Aqui, podemos perceber uma postura que vem sendo, atualmente, muito
observada nos terreiros, onde os filhos de santo não mais se satisfazem com a
experiência mística, querendo sempre entender, buscando a expressão de uma
racionalidade que não conseguem alcançar. Ao mesmo tempo em que Eduardo critica o
“apego à racionalidade” por parte de alguns membros do culto, critica também a “falta de
bagagem cultural para o entendimento dos rituais”, em uma contradição que parece mais
um choque de discurso entre o Eduardo – filho de santo e o Eduardo – sujeito do
século XXI.
Eduardo considera que o ritual do axexê cumpre a função de completar o ciclo
da pessoa na terra para que o “seu espírito parta em paz”. Acha que o ritual do axexê, para
os participantes, é um processo “longo e cansativo”. Aponta a diferença do ritual do axexê
em relação aos rituais fúnebres da sociedade moderna dizendo: “aqui fora os rituais
fúnebres são precedidos de um velório, que geralmente dura uma noite e no dia seguinte a pessoa
é sepultada, existe rituais de missa, orações que são feitas e no dia seguinte a pessoa é sepultada,
rapidamente”.
Acentua aqui a diferença existente entre a “pressa” da sociedade moderna em
sepultar seus mortos e a demora do ritual do axexê: “é um processo mais longo e muito
cansativo, não é um processo fácil não, é feito em cima de obrigações, onde participam todos os
filhos de santo da casa, pessoas de fora também participam, é um ritual aberto”. Ao
mencionar o “ritual aberto”, ele traz, aqui, a lembrança de que o axexê é um ritual
coletivo, compartilhado e, apesar de enfatizar a demora do ritual, acredita que a
participação de toda a comunidade tornou mais fácil “a aceitação da passagem dessa
pessoa”.
105
Assim como a morte perdeu o seu caráter “natural”, o ritual do axexê também
trouxe para Luciana dificuldades extremas. Ela se apega na tradição para justificar a
necessidade de sua participação no ritual: “eu acho que quando você abraça uma tradição
religiosa você abraça também tudo aquilo que envolve todos os momentos dela”. Mas afirma
que não tem como separar o sentimento que nutria pela pessoa da Ialaxé, do cargo que
a Ialaxé ocupava na comunidade; para ela era uma mesma coisa, um mesmo sentimento
dirigido à pessoa de Mãe Vera. Ainda assim, ela busca dar racionalidade ao ritual e
acha que “foi importante porque era uma homenagem, nós aprendemos culturalmente que o
axexê é uma última homenagem (...) esse é o rótulo do axexê”. E, então, ela se entrega
novamente ao sentimento, perguntando: “eu posso considerar que foi esse o rótulo do axexê
de minha mãe? Não, não posso”.
Luciana justifica sua afirmação ao lembrar que “existia uma dor muito grande pela
partida dela, no caminho que foi embora pela doença e não pela velhice, já há aí uma
interrupção, talvez, do que nós chamamos de natural” acreditando que esse foi o principal
motivo de impedimento para a vivência do ritual do axexê como seria o esperado.
Considera que o axexê foi para ela uma experiência boa e ruim ao mesmo tempo:
“boa no sentido de que nunca participei de um axexê de uma Ialorixá; já participei de axexê de
pessoas de menor hierarquia no candomblé”.
O aprendizado, o acúmulo de conhecimentos é valorizado por ela. Mas,
enquanto ser sensível, volta a se enredar em dificuldades, embora ainda tente se apegar
à racionalidade. Ela diz: “não tive a oportunidade de enxergar o axexê de minha mãe como
um axexê, aquele que a gente lê nos livros, uma homenagem, não tenho como transmitir essa
referência a ela porque a tristeza era muito grande.
Luciana acredita que a forte ligação afetiva que os membros da casa de santo
mantinham com a Ialaxé impediu a comunidade de vivenciar o ritual como ele é
fundamentado na tradição do candomblé, “uma homenagem”. Pensa que os sete dias
dedicados ao ritual do axexê trouxeram muito sofrimento às pessoas mais próximas à
106
Ialaxé e continua, dizendo: “eu entendo que aquele procedimento de sete dias só causava mais
sofrimento, que na verdade se desligar de uma pessoa, não existe magia pra isso”.
Ela considera que, por ser uma casa de santo relativamente nova, os filhos de
santo do Axé Baraleji não estão acostumados a conviver com a morte de seus membros
de culto. Para ela, no Axé Opo Afonjá, casa de candomblé centenária da Bahia, da qual o
Axé Baraleji descende, deve ser mais fácil conviver com a morte, e justifica:
No Axé Opo Ofonjá tem muito mais velhos do que novos, que se perde pela idade
um após o outro (...) a gente estava perdendo uma pessoa literalmente, a sensação
que eu tenho (...) foi de uma perda irreparável, como eu poderia estar feliz e alegre,
como eu poderia caracterizar o axexê uma festa de felicidade, muito difícil, foram
sete dias de axexê, foram sete dias de tortura.”
Apesar de todo o sofrimento ainda demonstrado em suas palavras, quase dois
anos após a morte da Ialaxé, Luciana reafirma que a despeito de toda a dor, o axexê é
uma tradição que precisa ser preservada: “a tradição é feita pra ser cumprida, então ela
deve ser cumprida”.
A dificuldade da vivência do ritual do axexê pode estar associada, segundo
Luciana, à falta de preparo da comunidade para a perda da Ialaxé, que partiu por doença
e não por velhice, como é o que se espera no candomblé: “não se preparou a casa pra
partida dela (...) algumas pessoas nem chegaram a se despedir dela com ela ainda viva, mesmo
que fosse um olhar, mesmo que fosse um abraço...”
Luciana se refere aqui aos últimos meses de vida da Ialaxé. Quando a doença se
mostrou irreversível, a Ialaxé se afastou do convívio da comunidade de santo; apesar de
ter morrido em casa, cercada de seus familiares consangüíneos, sua “família de santo”
foi excluída de seus últimos momentos de vida. Ela diz:
107
Eu, graças a Deus, tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos dos
meus irmãos não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado (...) tinha que
ter sido mais verdadeiro, mais exposto, talvez tivesse sido, pra nós filhos de santo,
melhor”.
Fernando conta que o ritual de axexê completo é de vinte e um dias, para o caso
de pessoas falecidas da alta hierarquia do candomblé, e justifica o ritual de sete dias de
axexê da Ialaxé:
O ritual que houve aqui, no caso da nossa mãe Vera, ali não foi uma morte, aquilo
foi um novo caminho, o nosso Pai de Santo, Tito de Omolu, ele fez um ritual
secreto antes para que não precisasse ficar vinte e um dias, então ele fez um ritual
secreto onde participaram três pessoas e se teve um ritual de no mínimo sete dias. O
ritual completo são vinte e um dias, na realidade esse ritual, mesma forma da
iniciação, é uma iniciação de um novo caminho do espírito e do novo caminho, que
aí é uma opção da pessoa depois que morre, da alma, que existe alguns segredos que
eu não vou poder contar.
No ritual do axexê, através do jogo de búzios, a alma se manifesta para escolher
o caminho que deseja seguir. Fernando continua:
É a alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou
não, há uma interferência do espírito em relação a isso; dependendo da decisão
dessa alma, se ela vai continuar, o ritual vai até os vinte e um dias, para que ela
fixe essa consciência e se torne um ser vivo, sem corpo. Esse ser vivo sem corpo,
dependendo do acúmulo de experiência dele, do propósito que ele queira existir, ele
pode levar um ano ou cem anos aprendendo ainda a ser um bom egun. Ele tem a
108
consciência da pessoa que viveu adquirindo novas experiências, normalmente esses
seres eles são utilizados num outro ritual que se chama egungun (...) nós, por
exemplo, dentro do nosso Ilê Axé nós temos o nosso lesse egun (culto dos eguns);
porque pro nosso pai de santo, pra ele é permitido e é uma coisa que não deve se
brincar nunca, você está mexendo aí sim, com mortos, o egun é um morto, o espírito
não.
Para Fernando, o ritual do axexê, necessário para todo o iniciado no candomblé
que falece, é doloroso para os filhos de santo por uma questão cultural, pois vivemos
em uma cultura cristã de mais de dois mil anos e, segundo afirma, isso pesa para o filho
de santo:
Mas a partir do momento em que o filho de orixá tem a consciência do que é um
axexê e do que ele representa, ele não é tão doloroso, pelo contrário, ele acaba lhe
trazendo conforto em saber que aquele que você ama, ou que você conviveu, ou que
você gosta está num processo claro, não doloroso, em que ele está indo para um
caminho em que ele, alma, espírito, optaram e que estão de forma consciente fazendo
aquilo que eles realmente querem e que sozinhos não poderiam, exatamente porque
eles estão presos a uma iniciação; eles estão presos à iniciação, porque eles ficaram
presos a uma ancestralidade que é um poder muito mais forte do que o próprio axé,
porque o axé é a concentração de poder da ancestralidade de vários orixás, de
vários caminhos, então você tem o conforto de saber que ele está indo para a opção
dele, a própria alma, e ao mesmo tempo você sabe, tem a certeza do descanso (...)
mas para nós é óbvio que é dolorido, é doloroso para nós que amamos a pessoa,
porque nós somos egoístas no nosso sentimento, gostaríamos de ter aquela pessoa
presente, não gostaríamos de perdê-la, mas é puro egoísmo, e também porque aquela
pessoa vai fazer falta realmente.
109
3.3.5. A experiência da iniciação
A iniciação de um iaô importa em um ritual complexo, que visa operar uma
transformação na vida da pessoa que a ele se submete. Consiste na perda de controle,
que afeta a consciência, e na dependência total das pessoas que passam a cuidar do novo
iniciado. Mas, para Anderson, a experiência foi apenas a continuidade de um caminho
há muito tempo traçado. Ele não considera a iniciação como um renascimento porque
“é difícil ter algum parâmetro, porque a gente não lembra de quando nasceu, então a gente
perdeu o referencial do que é nascer, (...) se renascer, se morrer para renascer é, não perder a sua
individualidade, mas acrescentar muitas outras coisas ao seu eu, eu realmente renasci”.
No que se refere a experimentar a figura do orixá e do erê, como “outros”
dentro do próprio corpo, ele acredita que o que há é uma integração, assim como a vida
dentro do terreiro e no mundo moderno também se dá por acréscimo. Ele diz:
A religião me ajuda a entender e compreender e a enfrentar a vida aqui fora de
uma maneira diferenciada, então ela me influencia aqui fora, ela me acrescenta
aqui fora; não são dois papéis que não estão no palco ao mesmo tempo, eles estão no
palco ao mesmo tempo, eles estão interpretando a mesma peça, que é a peça da vida,
só que são dois papéis, é o Iaô Dofono de Oxalá e o Anderson, filho, profissional,
professor, mas eles se integram.
A vivência da “tomada do orixá ou do erê” é sentida por ele como “ensaios de
morte” que fazem com que ele pense “tem algo além da minha consciência, do meu
controle”. Considera um “privilégio” vivenciar o orixá e o erê porque “eles me fazem ter
mais a certeza de que existe um outro plano, uma outra força, algo que é superior ao meu eu”.
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Eduardo ocupa a posição de Ogan, que é um cargo da alta hierarquia do
candomblé, concedido a adeptos do sexo masculino, que não “viram no santo”, ou seja,
não estão sujeitos a vivência da possessão pelo orixá. Passam pelas obrigações de
feitura de santo com a consciência desperta; alguns rituais, e as restrições a que se
submetem, são mais leves do que aquelas aplicadas aos iaôs (iniciados que são tomados
pelo orixá). Também gozam de direitos e possuem regalias dentro da casa de santo que
não são conferidas aos iaôs.
Define a experiência da iniciação como “integração”. Já tendo participado de
várias outras religiões, ele entende que o candomblé é diferente na medida em que, a
partir da iniciação, da dedicação ao orixá, à pessoa vai se integrando ao culto.
Ele acredita que o candomblé, em relação a outras religiões, é uma religião de
pouca cobrança: “não tem aquela cobrança de você ter que ir, você ter que fazer, você ter que
contribuir, não tem essa cobrança, é uma coisa bem natural, espontânea”.
No candomblé, as relações sempre se dão através de trocas, daí que não existe a
cobrança nesse movimento de dar e receber; se os dois lados envolvidos estiverem
participando com suas obrigações haverá a troca, se um dos lados não fizer a sua parte,
não haverá, também, a retribuição. Isso é válido para as relações entre filho de santo e
comunidade, o iniciado e seu orixá, enfim, para todas as relações dentro e fora da casa
de santo.
A condição de ogan, cargo ocupado por Eduardo na casa de santo, implica,
também, em uma menor cobrança por parte do grupo religioso, uma vez que, para as
pessoas de cargo, as regras são menos rígidas do que para os iniciados que “viram no
santo” – os iaôs. Além disso, eles não estão sujeitos à possessão do orixá e do erê que,
independente da vontade do iniciado, se manifesta e permanece presente por um tempo
sobre o qual o iaô não tem controle; embora isso não implique em uma cobrança, já que
é uma relação de troca, não pode ser considerado como espontâneo para o iaô.
111
Luciana é uma Joye, cargo do candomblé conferido a pessoa do sexo feminino
que passa a ter o compromisso de cuidar de determinado Orixá da casa de santo; além
disso, recebe, na iniciação, a sacralização da cabeça através da feitura de santo.
Como todas as pessoas de “cargo”, Luciana não “vira no santo” e como já há
muito tempo pertencia à casa de santo, com várias atribuições e responsabilidades,
encara a iniciação de uma forma racional. Acredita que, no caso das pessoas de cargo, o
que acontece é que “não tinham acesso ao sagrado e no momento da iniciação passam a ter
acesso ao sagrado, ou seja, dali começa uma nova vida dentro do sagrado” e, para as pessoas
que “viram no santo” a iniciação significa ter “a manifestação mais inteira do Orixá na sua
pessoa”.
No seu caso, ela diz não ter vivenciado nem uma coisa, nem outra: “eu fui
oborizada em 91, então quando eu me oborizei eu tenho a sensação de que eu passei a pertencer
a um novo caminho, no sentido de participar do sagrado de uma forma mais vivencial”. A
partir de seu primeiro ritual de borí passou a ter contato com o sagrado. Ela diz:
Desde o meu primeiro bori passei a entrar nos cômodos sagrados, a entender o que
era um assentamento, a entender como que acontecia a feitura de um iaô; quando eu
vim a fazer a minha feitura, há sete anos, eu já participava de tudo do sagrado; na
verdade, o sagrado é que estava pesando sobre os meus ombros, atrapalhando a
minha vida, no mundo digamos lá fora, na minha vida profissional, na minha vida
dos meus compromissos, financeiramente, ou seja, na verdade existia uma cobrança
do sagrado em torno da minha feitura; mas todos os atos que pertenciam ao
sagrado, eu Luciana, antes de ser Tojú, já participava.
Tojú é o nome sagrado que Luciana recebeu no momento de sua iniciação como
Joye.
112
Houve uma inversão nas regras do candomblé no caso de Luciana. Ela recebeu
as atribuições de uma iniciada antes da iniciação. Dez anos antes de sua iniciação ela já
participava de rituais sagrados e vedados aos não iniciados.
Luciana diz que o período de reclusão no roncó, e as obrigações de iniciação a
que foi submetida, não se converteram em dificuldade para ela, pois já pertencia ao
terreiro há mais de uma década. O retorno ao mundo “real”, com as restrições impostas
pelo período de kelê, no entanto, foi o grande desafio de sua iniciação.
O período de kelê imposto às pessoas de cargo é muito mais curto do que aquele
imposto aos iaôs, pessoas que “viram no santo”. Aos iaôs é imposto um período de três
meses de kelê, enquanto as pessoas de cargo cumprem o kelê em um período de vinte e
um dias. Mesmo assim, Luciana sentiu o impacto dessa imposição, com a obrigação de
transitar no mundo moderno com o corpo marcado pelos ritos da iniciação. Apesar do
conflito vivenciado pelo pertencimento a duas culturas que se fazem, às vezes, tão
distintas, Luciana é intransigente na defesa da manutenção das tradições do candomblé,
a despeito de qualquer dificuldade ou de toda dor que isso possa implicar.
Fernando diz que a iniciação dentro do candomblé foi para ele “uma nova
experiência, um renascimento”. Por já ter acumulado experiências de iniciação dentro da
umbanda e do kardecismo, diz que essas iniciações se deram de formas diferentes:
A sensação é diferente, a forma de incorporação é diferente, a forma como acontece
depois é diferente; são energias bastante diferenciadas; depois que você é iniciado
existe um processo; vou fazer uma analogia com a criança: você para andar,
primeiro você tem que aprender a engatinhar; porque você aprende a engatinhar?
Pra que você comece a iniciar um equilíbrio sobre o seu próprio corpo, depois você
começa a andar meio desequilibrado, aí começa a andar e mesmo andando você
precisa sempre dos pais, pra você não bater na quina da mesa, etc., etc., (...) você
113
quando inicia essa iniciação ela tem que objetivo? Fazer uma comunicação mais
estreita da sua pessoa, do seu eu, do seu espírito com a sua origem ancestral (...)
então você vai buscar aquele orixá que é o seu ancestral divino (...) ele passa a
reviver dentro de você, você recebe todos esses axés que levam de quatorze a trinta e
dois dias esses rituais sagrados (...) na iniciação, por muitas vezes, você fica vinte e
um ou trinta dias inconsciente. Me lembro que quando eu fui feito eu entrei para a
iniciação e quando acordei tinha a guerra do Golfo, tinha havido uma maxi
valorização do dólar, confisco da poupança pelo Governo Collor, a moeda tinha
mudado, o mundo estava de cabeça pra baixo e eu não participei de nada disso; e
onde eu estava? Você só sabe como é emprestar o seu corpo para o orixá quando você
volta.
Fernando é categórico ao dizer que a iniciação é um processo de integração:
Primeiro, porque o orixá ele para poder interagir com você, lhe tomar, você precisa
ter se doado primeiro, ter trazido ele da sua origem por opção, e ele está dentro de
você, então na realidade é sempre uma integração porque ele já está dentro de você,
nós somos um único ser, e ele está dentro, então ele simplesmente aflora (...) no meu
modo de ver, para mim é uma dádiva, servir o orixá, emprestar o corpo para mim
sempre foi muito prazeroso, mesmo que por muitas vezes eu fique cansado, porque o
orixá às vezes fica horas, duas, três, quatro, cinco, dez, doze, vinte e quatro horas
no ar e como ele precisa da sua energia também, às vezes você acorda desgastado,
mas é por pouco tempo, logo depois essa tua energia vem em dobro, ou triplicado
porque ele lhe reabastece, então ele lhe agradece e diz usei a sua, agora tome a sua e
mais a minha e mais um pouco e você fica muito forte para o mundo.
114
Sobre a integração do mundo do candomblé com o mundo para além dos muros
do terreiro, Fernando diz:
É um grande equívoco das pessoas que se predispõem a entrar no caminho do
sacerdócio do orixá fazerem essa separação entre o mundo dentro de uma roça de
santo, do axé e o mundo lá fora; é um grande equívoco que elas cometem, porque o
fato de você atingir a maioridade, sair de casa, morar sozinho, ter a sua vida
independente não quer dizer que seus pais deixaram de ser seus pais e que você
deixou de amá-los.
Aqui, Fernando traz os ensinamentos do candomblé: a vida deve se dar de
forma integrada, onde a religião não é apenas parte da vida do indivíduo, mas uma
experiência intimamente ligada ao ser humano, na busca de um sentido para a vida
como um todo.
115
CAPÍTULO 4 – DISCUSSÃO
A escuta que vem de dentro do terreiro
Percorridos três momentos empíricos – observação do ritual de axexê, vivência
da iniciação e entrevistas com membros do grupo pesquisado – a discussão foi
organizada em quatro etapas, a fim de clarificar cada momento e possibilitar a abertura
de um diálogo entre eles: 1) a morte no candomblé, compreendendo a doença e morte
da Ialaxé, e o impacto dessa perda na comunidade de santo; 2) o ritual de iniciação, com
a descrição da vivência da “feitura de santo” pela pesquisadora; 3) a voz dos
participantes sobre morte e iniciação e 4) o encontro do candomblé e do ocidente
moderno, à luz das teorias estudadas.
4.1. A morte no candomblé
O ritual do axexê foi o desfecho do acompanhamento coletivo da doença e morte
da Ialaxé do Axé Baraleji, terreiro palco de realização da pesquisa. Após dois anos de
observação desse processo, muitos aspectos podem ser ressaltados, tanto por sua
proximidade, quanto por seu afastamento das práticas comuns ao mundo ocidental
moderno. A primeira diferença a ser apontada está relacionada com a estrutura do
candomblé em geral e diz respeito à hierarquia que é marcada pelos anos de freqüência
ao culto e pelo grau de iniciação de cada membro na comunidade. A posição é dada
pelo tempo e por aquilo que a pessoa se torna, o que ela vem a ser dentro da casa de
santo. No mundo ocidental moderno, a diferença é marcada pelo ter, acumular – bens,
riqueza, consumo. Essa cisão entre os dois mundos, ocidental moderno e do
candomblé, é fonte de conflitos dentro do grupo religioso. A adaptação, quando ocorre,
é resultado de muita renúncia por parte daqueles que “têm”, que possuem no mundo
116
moderno, mas não “são” o equivalente no mundo do candomblé. Para Prandi (2005),
esses conflitos dentro do terreiro são esperados já que refletem a competitividade
existente no mundo como um todo. O que chama a atenção aqui é o que essa hierarquia
significa para aquele que se inicia na religião: uma mudança de atitude e de visão de
mundo radical, pelo menos enquanto estiver entre os limites geográficos do terreiro.
4.1.1. Doença e morte da Ialaxé
Após o diagnóstico da doença da Ialaxé, todos os recursos mágicos foram
utilizados no sentido de “trocar” sua doença por energia vital. Paralelamente, foram
tentados os recursos da medicina. O que chamou atenção nesse processo, e que se
distancia do costume ocidental moderno, foi que ela permaneceu em casa até os
momentos finais, tendo sido levada ao hospital após uma parada cardíaca. Uma vez
constatada sua morte, seu corpo retornou para casa e ali atravessou anoite, deitada na
cama que lhe pertencera. Ressalte-se que a casa fica na cidade e não no terreiro de
santo sendo, portanto, um local que pertence, geograficamente, ao mundo moderno.
Vários amigos e filhos de santo se dirigiram até a casa para vê-la e prestar
solidariedade à família, mas o que causou estranheza, para o padrão moderno de
distanciamento da morte, foi que após determinada hora, quando as visitas já se haviam
retirado, fechou-se a casa e os membros da família foram dormir em outros quartos da
casa. Apenas o filho médico ficou aos pés da cama da mãe morta, como se ainda
cuidasse dela. Essa cena contradiz o contexto moderno, que teria deixado o corpo no
hospital até a manhã seguinte para, então, ser velado. O próprio comportamento dos
familiares que foram dormir não pode ser visto como o hábito moderno, praticado hoje
em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, de deixar o corpo do morto sozinho
na capela do cemitério e ir para casa dormir. Havia naturalidade no gesto, o corpo
estava na casa, havia presença ali, era como se a mãe e esposa, simplesmente dormisse.
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Contrasta com o hábito moderno que, além de tentar ignorar aquele que morre,
também retira dos sobreviventes o direito de chorar por ele. Como nos diz Ariès (1975,
p.245), a sociedade moderna “não lhes permite nem chorar os que se vão, nem fingir
chorá-los”. O que se viu nessa família adepta do candomblé foi a subversão dessa
ordem: a família não apenas se deu o direito de chorar seu ente morto, como ainda
dormiu sob o mesmo teto que ele, acolhendo a presença da morte.
Se a atitude frente aos momentos finais de vida da Ialaxé e sua transferência
para casa após a morte contrastam com o que impõe o costume atual, podemos
observar um momento em que essa comunidade de santo tomou de empréstimo um
hábito moderno – a cremação.
Segundo Ariès (1975), a cremação vem sendo cada vez mais utilizada no mundo
moderno e visa, segundo o autor, duas razões: o meio mais radical de se livrar dos
mortos e a exclusão do culto aos cemitérios e a peregrinação aos túmulos.
Para o candomblé, o corpo dos mortos deve retornar à terra, à natureza. Nanã,
orixá feminino associado à lama e à morte, considera seus filhos aqueles que morrem e
é ela que os recebe em seu seio – a terra, a lama (Santos, 1975). Embora os membros
do candomblé devam enterrar seus mortos, parecem não guardar o hábito de cultuar
seus túmulos, como se algo ainda permanecesse ali, uma vez que tudo que lhe
pertenceu em vida deve ser despachado para que ele rompa sua ligação com esse
mundo, passando a ser lembrado como um ancestral, sem vínculos com o aiye (terra).
No caso da Ialaxé, parece-nos que a contradição foi resolvida com o enterro de
suas cinzas sob uma árvore sagrada do terreiro de santo, tendo seu corpo cumprido,
assim, o retorno à terra. Não podemos deixar de observar, no entanto, que houve uma
mudança na tradição, com a apropriação de um costume em franco crescimento no
mundo ocidental moderno.
Um outro ritual realizado ainda na capela merece registro por marcar uma
diferença entre as duas culturas – ocidental moderna e candomblé: o ritual do Sirrum.
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Nesse ritual, onde o corpo foi levado da capela até o local da cremação por cerca de
quinhentos metros, com o caixão aberto, as pessoas seguiram em procissão entoando
uma cantiga em ioruba e com os passos contados, três passos para frente, um passo
para trás. Esse ritual, segundo nos explicou o Babalorixá Tito de Omolú, representa o
percurso da vida: caminhar e recuar, caminhar e recuar, até os últimos passos da vida,
representado pela morte. A cultura ocidental moderna se esforça para ignorar esse
percurso. Banindo a morte da cena da vida, investe alto na cultura do ego e o resultado
disso, segundo Melman (2004), é o homem moderno que coloca o prazer à frente do
saber, valoriza a estética em detrimento da ética e que, abrindo mão do pensamento,
tornou-se “um indivíduo manipulável e manipulado”. Sendo sujeito de prazer, o homem
moderno usurpou a sacralidade da morte e transformou-a em mais um bem de
consumo. Não há lugar para a morte no caminho da vida moderna.
Apesar da mudança na tradição, vista na cremação do corpo da Ialaxé, podemos
constatar diferenças significativas na forma como a morte foi tratada e encarada por
essa comunidade: a permanência da Ialaxé em casa até os seus últimos momentos de
vida – a recusa da família em isolar o seu doente; o retorno do corpo para casa – a
morte domesticada e o ritual do Sirrum que, ao contrário da rapidez dos rituais
modernos, levou o caixão aberto e vagarosamente até o seu destino final – a exposição
da morte.
4.1.2. Ritual do Axexê – um passado remoto subvertendo a urgência dos rituais
de morte do ocidente moderno
O ritual do axexê da Ialaxé foi realizado dentro da tradição professada pelo
candomblé, passando por todos os ritos de desconstrução da feitura de santo, a
inversão dos procedimentos básicos da iniciação, de que nos fala Prandi (2005): 1)
música, canto e dança; 2) transe, com presença de pelo menos Iansã incorporada; 3)
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sacrifício e oferendas variadas ao egun e a orixás ligados ritualmente ao morto, sendo
sempre Exu o primeiro a receber as oferendas; 4) destruição dos objetos rituais do
falecido; 5) despacho dos objetos sagrados “desfeitos” juntamente com as oferendas e
objetos usados durante a cerimônia.
Dois procedimentos ritualísticos aconteceram logo após a morte da Ialaxé,
dando início à inversão da iniciação. Seus assentamentos de santo foram colocados no
chão e as quartinhas com água esvaziadas, em sinal de que ali não existia mais vida.
Em seguida, o pai de santo retirou da cabeça da Ialaxé os fundamentos colocados
durante sua feitura de santo, vinte e três anos atrás, em sinal de que ali não havia mais
orixá.
Dois dias após a morte da Ialaxé, a comunidade de santo, reunida no terreiro,
deu início ao ritual do axexê; um ciclo de sete noites de cerimônias em homenagem a
Ialaxé.
O contraste em relação aos rituais fúnebres do mundo moderno é muito intenso
aqui; seja pelo tempo dedicado às cerimônias, seja pela contínua lembrança da morte e
da vivência do processo de luto. É sabido que, para o candomblé, esse deve ser um
ritual de alegria. Entretanto, embora não tenha se visto manifestações de tristeza ou de
desespero por parte dos participantes, tão pouco se viu expressões de alegria. O que
pareceu foi que todos ali estavam vivenciando um momento novo, com apreensão por
aquilo que não conheciam.
O ritual do axexê é raro nos dias de hoje e só é realizado em todas as suas etapas
para pessoas da alta hierarquia das casas de santo. Só pode ser realizado por sacerdotes
especializados no culto dos eguns (mortos), que cobram por esse serviço não estando,
assim, acessível a todos os terreiros. No caso de iniciados com menor grau de
hierarquia na comunidade, o ritual, embora sempre aconteça, é reduzido à quebra dos
assentamentos e ao despacho de todos os pertences do iniciado morto. Parece que o
120
ritual do axexê vai perdendo força em função de duas estrelas do mundo moderno:
tempo e dinheiro.
Tempo porque os filhos de santo mantêm uma vida social, familiar e
profissional fora da casa de santo e participar de um ritual durante sete noites
consecutivas exige certo esforço e negociação com aspectos e afazeres da “vida
moderna”.
Dinheiro, porque é preciso pagar pelos serviços dos ojés (sacerdotes
especializados no culto dos eguns). Esse valor pode incluir, ainda, despesas com
passagens aéreas, hospedagem, além das comidas para as oferendas e alimentação das
pessoas que participam do ritual durante o período de sete dias.
Ainda que o ritual não conserve nos dias de hoje sua função original, de
celebração, pode-se observar que o tempo dedicado ao ritual, assim como sua repetição,
dia após dia, pode permitir aos participantes um momento de elaboração da perda, um
tempo de dedicação a essa perda e uma oportunidade de estar junto ao grupo,
realizando um luto compartilhado.
Em uma das últimas cerimônias do ritual, o café da manhã e almoço coletivos, a
morte subverte a hierarquia. Iguala o pai de santo aos demais membros da comunidade,
quando ele divide a mesa e a refeição com todos, buscando mostrar que o novo deve
ocupar o lugar do mais velho, sempre, para que possa haver a continuidade da vida
como um todo. Essa idéia não cabe no mundo ocidental moderno onde a
individualidade se impõe como a principal forma de existência e onde a morte não tem
mais lugar.
Insistindo em ignorar os ditames do mundo moderno, o ritual do axexê é um
lócus onde a morte ainda se apresenta com toda a sua força e soberania.
121
4.1.3. O impacto da morte na comunidade de santo
No período dos dois anos pesquisados, o diagnóstico da doença da Ialaxé alterou
a vida da comunidade, que passou a nortear suas atividades religiosas em função dessa
nova realidade. Pudemos ver o comportamento do grupo através dos cinco estágios do
processo da morte descritos por Kübler Ross (1969) – negação, raiva, barganha,
depressão e aceitação. O estágio da barganha esteve presente do início até o final, se
sobrepondo aos demais. Pode-se compreender essa atitude lembrando que ela está
descrita nos fundamentos do candomblé, no sistema de dar e receber, na compreensão
de que tudo se dá pelo princípio da troca, de que os acontecimentos geram harmonia ou
perturbação, e que toda perturbação da harmonia exige atos de reparação – obrigações
de troca. O próprio ritual do axexê está fundamentado no princípio da troca: obrigações
para o morto, para que ele possa romper as barreiras do mundo do aiye (terra) e para
que o grupo religioso possa se reestruturar social e magicamente após essa partida.
Uma das conseqüências mais visíveis no processo da doença e morte da Ialaxé, foi a de
que a casa de santo sofreu a perda de grande parte de seus membros. Houve uma
ruptura na ordem até então estabelecida e a concepção do candomblé frente à morte –
um ciclo que se fecha – mostrou-se frágil para essas pessoas que se retiraram do
terreiro. Podemos observar ainda que, para o filho da Ialaxé, médico e iniciado no
candomblé, a luta travada e perdida contra a doença da mãe mostrou, também, nesse
caso, a força da cultura ocidental moderna sobre o candomblé. Alguns meses após a
morte da Ialaxé, ele deixou o terreiro, abandonando ali todos os seus assentamentos de
santo. Uma outra filha de santo, nora da Ialaxé, também deixou o terreiro, meses após a
morte da Ialaxé, mas para ela os assentamentos de santo guardavam um significado
maior, uma vez que ela os levou consigo. O que ficou bastante evidente no caso dessa
iniciada, ao vê-la ir embora com seus assentamentos e todos os seus pertences, é que ela
122
estava rompendo com o grupo, com aquele grupo específico, mas que seus orixás
conservavam para ela ainda um grande valor.
No que diz respeito ao grupo como um organismo que se nutria e crescia até a
doença da Ialaxé, podemos constatar que sua morte abalou os alicerces da comunidade,
de uma forma que nos leva a questionar se faltou a essa comunidade a preparação “real”
para essa perda, com sua imediata substituição, como é o costume no candomblé. Seu
lugar de segunda pessoa na hierarquia da casa e o papel de mãe que desempenhava com
rigor, não foi preenchido. O ritual do axexê visa, também, cumprir essa função. Além
de desfazer os laços de compromisso do morto com as coisas do aiye, incluindo a
comunidade de santo, o ritual do axexê busca, segundo Augras (1983), reestruturar
todas as relações dentro do sistema e assegurar a correta distribuição da força sagrada.
No presente caso, passados quase dois anos da morte da Ialaxé, a comunidade ainda
luta para reestruturar suas relações. Parece-nos que, no que tange ao coletivo, o ritual
do axexê não pôde cumprir sua função.
123
4.2. Iniciação – o eu abre caminho para o “outro”
Para traçarmos um diálogo entre o pensamento do mundo ocidental moderno e
a condição do filho de santo, sujeito à possessão do orixá, utilizamos uma interlocução
entre textos do livro A Troca Impossível, de Baudrillard (2002), e a vivência daquele que
se deixou tocar pela experiência de uma entrega de onde a razão temporariamente se
ausenta.
Antigamente, o homem não estava fadado a não ser o que é. Deus e Satã brigavam
em cima de sua cabeça. Antigamente, éramos importantes o bastante para que
alguém brigasse por nossas almas. Hoje, nossa salvação compete a nós. Não estando
mais inscrito em uma ordem que lhe é superior, mas vítima de sua própria vontade,
intimado a ser o que quer e querer o que é, o indivíduo moderno acaba por detestar
a si mesmo e por afundar no esgotamento de suas possibilidades – nova forma de
servidão voluntária. (pp. 53/55).
De forma geral, o indivíduo não procura o candomblé porque quer, mas busca
na religião algo que lhe falta. Seja a cura para um sofrimento, do corpo ou da alma, ou o
preenchimento de um vazio que a razão não pôde atender. O candomblé não é um
caminho de fácil escolha, é uma religião prescrita, ainda cercada de preconceito e de
ignorância sobre seus fundamentos. Apesar de ser hoje aceita nos meios intelectuais,
artísticos e acadêmicos, é vista, pela grande maioria da população, como uma religião
atrasada, que pratica rituais inadmissíveis na concepção da modernidade e da razão;
não raro é vinculado à prática do mal e o mágico é visto como feitiçaria. Sabemos que
esses resíduos foram deixados pela tentativa de submissão dos negros escravos à
religião católica. Mas a opinião dominante ainda é a do século XIX, mesmo que velada,
porque hoje não é “politicamente correto” discriminar pessoas ou crenças.
124
Seja como for, a servidão para o iniciado no candomblé não é voluntária, mas,
antes, imposta por uma necessidade não satisfeita pelos recursos disponíveis no mundo
moderno. E ainda que ele encontre no orixá seu caminho de expressão de ser,
individualizado enquanto se reparte com esse Outro e passe a admiti-lo como condição
de sua existência, ainda assim, permanecerá escravo desse Outro sendo dele, também,
Senhor. Um caminho sem retorno. O iniciado, uma vez filho de orixá, ainda que opere
uma ruptura com a comunidade e suas obrigações para com ela e para com esse Outro,
será sempre um filho de orixá, faltoso, em dívida e dividido.
Para o indivíduo, abraçar a condição de iniciado no candomblé implica em uma
grande responsabilidade, em compromissos com a comunidade, consigo mesmo e com
seus orixás. E como no candomblé nada é dado de ante mão, mas vivido e aprendido no
decorrer dessas vivências, implica, também, em um constante descobrir, um
descortinar o novo, um mergulho no desconhecido que o iniciado admite na busca de
algo que lhe transcenda, porque é isso que está lhe faltando. Baudrillard (2002) atesta
essa falta: “Na ausência de potências transcendentes que cuidem de nós e no desígnio perpétuo
de produzir provas de nossa existência, somos forçados a nos tornar fractais para nós mesmos.
Privado do destino, o indivíduo moderno o substitui por uma experiência fatal consigo mesmo”
(p.55).
Podemos reconhecer no candomblé as potências transcendentes – os orixás –
mas que dependem do indivíduo para que, também, numa experiência fatal consigo
mesmo, possa dar vazão a essa potência. Fatal porque precisa romper as barreiras de
seu próprio preconceito e de sua consciência; fatal porque é uma entrega no escuro, um
vôo cego, uma ausência de si mesmo; fatal porque priva o indivíduo, não do destino,
mas do controle.
A iniciação no candomblé implica a permissão da apropriação da individualidade
por uma alteridade radical – o orixá – para que, só a partir daí, seja possível a
constituição do ser enquanto sujeito completo. Essa apropriação não tem lugar no
125
mundo moderno onde, segundo Baudrillard (2002) “a vida individual está colocada sob o
signo moral de uma apropriação de si, portanto de uma degeneração de toda alteridade
radical” (p.51).
Ao iniciado do candomblé, a exigência que se faz é a de que abra mão de sua
consciência, de sua autonomia, e deixe seu corpo à disposição de um Outro que ele
vivencia, mas não sabe dar conta, nem de seus atos, nem de sua voz. É o orixá que
dança seu corpo, é o erê que diz sua fala e altera sua voz. O eu se ausenta para um lugar
impossível de ser alcançado; não há consciência, o tempo se anula.
Na descrição que o iniciado faz após ter sido tomado por seu orixá, ou por seu
erê, há uma suspensão do tempo; as horas parecem não ter passado, o tempo deixou de
contar naquela troca entre o sujeito e o orixá. Quando retorna, o iniciado experimenta
uma sensação de leveza, de estar limpo; tendo voltado de um lugar do qual não pode
dar conta, tendo vivido essa metamorfose, o iniciado renasce a cada manifestação do
orixá. Recorremos a Baudrillard (2002) para apontar a diferença entre essas duas
culturas, já que, para o mundo moderno, “a exigência da consciência é a de cada vez mais
autonomia, mais liberdade. É por isso que quebramos o pacto simbólico e o ciclo das
metamorfoses” (p.51). Nesse sentido, o iniciado parece abrir mão de todos os
pressupostos modernos para entregar-se, sem controle, à vivência do seu orixá.
Baudrillard (2000) diz que “atualmente é ilegal não querer ser livre ou renunciar a
própria vontade” (p.57). O iniciado no candomblé está inscrito nessa ilegalidade, porque
renuncia à própria vontade, à própria consciência.
Ainda segundo o autor, o indivíduo moderno, “sem alteridade interior, consagrou-
se a uma identidade sem fim. Identificação do indivíduo, do sujeito, da nação, da raça.
Identificação do mundo, tornado técnica e absolutamente real – tornado o que é” (Baudrillard
(2000, p.58). O filho do orixá se torna o que é em combinação com o Outro que lhe
toma e de quem herda características e traços que não são seus, ou o são por herança, já
126
que desse Outro ele descende. E é com esse Outro dentro de si que ele se identifica,
tornando-se o que não é, diferente de todos os outros.
Baudrillar (2002) pergunta: “O que é um escravo sem mestre? É aquele que devorou
seu mestre e o interiorizou, a ponto de se tornar seu próprio mestre. Não o matou para se tornar
o mestre (isso é a Revolução), absorveu-o permanecendo escravo, mais servo do que servo: servo
de si mesmo” (p.61). Segundo o autor, na sociedade antiga os limites eram bem
demarcados: o mestre e o escravo, o senhor e o servo, o capital e o assalariado, sendo
possível determinar quem é um e quem é o outro, mas, agora, o mestre desapareceu,
restando apenas os servos e a servidão. Servidão de si mesmo.
Não é dessa forma que se dá a relação entre o iniciado e o orixá. Ambos se
alternam na posição de mestre e escravo. O orixá é mestre enquanto prescreve ao
iniciado determinados ritos, comportamentos, proibições; quando se exterioriza e toma
seu corpo e dele se utiliza para dançar e conviver com o mundo do aqui e do agora.
Mas é escravo porque depende do iniciado para se manifestar, para que esse cuide e
preserve os seus rituais e obrigações, sem os quais não poderia se fazer presente.
Eterna troca, constante dar e receber, sem o qual nem um, nem outro, poderia vir a ser
inteiro.
Apreendemos dessa interlocução, entre o candomblé e os textos de Baudrillard
(2000), que o candomblé é um espaço onde indivíduos modernos se tornam sujeitos
através da renúncia de uma liberdade hoje imposta, mas que, paradoxalmente, não
renunciam a ela por escolha, mas por uma imposição que vem de dentro de si mesmo,
da falta, do Outro que insiste em se manifestar; imposição da liberdade do Outro – esse
“Outro em mim”.
127
4.3. Tecendo os fios de várias vozes
Contamos, para esse tear de vozes, com a participação de quatro filhos de santo,
que trouxeram suas vivências dentro dos diversos rituais do culto e com a voz da
pesquisadora que, integrante da comunidade de santo, descreveu o ritual do axexê da
Ialaxé Verinha de Oxum e sua vivência, desde a chegada ao candomblé até sua iniciação
como iaô. Através do cruzamento destas vozes buscaremos tecer os pontos de
convergência, apontando também os divergentes, a fim de obtermos um tecido que nos
permita compreender como esses filhos de santo, sujeitos da modernidade, costuram
suas trajetórias entre as tradições de uma religião milenar e as urgências da vida
ocidental moderna.
4.3.1. A porta de entrada – o ingresso no candomblé
Com exceção da pesquisadora, os demais participantes da pesquisa tiveram,
antes do ingresso no candomblé, uma participação ativa na umbanda ou no kardecismo.
Anderson e Fernando foram, inclusive, iniciados nestas duas religiões. Nenhum dos
participantes nasceu, portanto, no berço do candomblé.
É comum dizer-se no candomblé que se chega até ele pela dor ou pelo amor e
três dos participantes fizeram referência a essa citação; a pesquisadora, apesar de não
fazer referência clara a esse ditame, admitiu sua chegada à religião pela dor. Apenas um
dos participantes não fez essa citação, nem admitiu sua chegada por qualquer desses
caminhos, caracterizando-a como uma busca, busca de si mesmo, que chegou ao fim ao
conhecer o candomblé.
Eduardo, filho de pais umbandistas, conheceu e participou de várias religiões,
mas diz que “a busca do encontro comigo mesmo se deu no candomblé”. Chegou ao
128
candomblé “por curiosidade” e passou a freqüentar e a se integrar ao culto, “quando eu vi
já estava participando do culto do candomblé (...) como nós dizemos, eu fiz o santo”.
Luciana, filha de pais kardecistas, foi levada ao candomblé por um amigo, que
mais tarde se tornou seu esposo; muito jovem, parece não ter feito, na época, uma
escolha pela religião em si, mas pelo caminho que o esposo já seguia.
A pesquisadora, nascida católica, procurou outras religiões sem se fixar em
nenhuma delas; chegou ao candomblé, também guiada por um amigo, mas levada por
uma dor, pela perda de sua mãe e do significado da vida.
Anderson, embora sustente que não chegou ao candomblé pela dor ou pelo
amor, foi inserido no mundo espiritual desde a infância e pelo caminho da dor, doença
física, marcada no corpo. Freqüentou a umbanda e o kardecismo durante anos, sendo
avisado por “entidades espirituais” de que um novo caminho de aprendizado deveria ser
seguido por ele. Sua chegada ao candomblé se deu através de uma série de
coincidências e ele diz que, uma vez que não o procurou, foi “encontrado” por ele e
afirma que tinha, antes de sua chegada, “muito preconceito ao candomblé”.
O caminho de Fernando é semelhante ao de Anderson; descendente de um
sacerdote africano diz-se herdeiro espiritual do avô e por isso, seu destino, desde
sempre, estava traçado para o sacerdócio dos orixás. No entanto, também afirma o
preconceito e diz que sua concepção sobre o candomblé não era muito boa e que “não
passava pela minha cabeça entrar para o culto religioso nagô, ioruba, que é uma das origens do
candomblé”. Mas apesar de conhecer diversas religiões e de ser iniciado na umbanda e
no kardecismo, assim como Anderson, também recebeu o aviso de que deveria começar
um novo caminho espiritual. Também, como Anderson, não buscou esse caminho e foi
após um período de muita dor e de muitas perdas materiais e afetivas que foi levado ao
candomblé pelos orixás, como fala: “fui levado até ele (o pai de santo Tito de Omolu) pelos
orixás (...) como eu não encontrei o caminho (os orixás) fizeram com que eu encontrasse”.
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Destes cinco caminhos, três deles foram iniciados pelos passos da dor:
Fernando, Anderson e a pesquisadora sofreram no corpo ou na alma as dores que os
fizeram alcançar a porta de entrada do candomblé. Eduardo procurou por esse
caminho e após abrir e fechar as portas de várias religiões e crenças encontrou no
candomblé o seu porto de chegada. Luciana chegou pelo amor, o amor ao esposo aliado
ao “encantamento” pelas coisas do candomblé e o “amor ao orixá Oxum” fizeram com que
ela cruzasse as portas da religião.
Com uma participação entre oito e vinte e três anos no candomblé, os
participantes da pesquisa parecem ter encontrado na religião uma forma de lidar com
seus problemas mais urgentes, sejam as repostas que buscavam (Eduardo, Luciana e a
pesquisadora) ou o aplacamento de suas dores mais agudas (Fernando e Anderson),
confirmando o dizer de Prandi (1991, pg. 214) de que “o candomblé afirma o mundo,
valorizando-o e, ao propor meios para lidar concretamente com os problemas, graças à
utilização de recursos mágicos, permite que cada indivíduo lute com armas simbólicas
contra tudo aquilo que o esmaga”, concluindo que o candomblé é uma religião que, por
não rejeitar o mundo ou pretender mudá-lo, mas vendo-o como ele é, possibilita às
pessoas enxergarem, no mundo possível, os meios de ser feliz.
4.3.2. Um recomeço – a vida a partir do candomblé
A partir do ingresso no candomblé, Eduardo, Fernando e Luciana reconhecem
uma mudança profunda em suas vidas. Anderson acredita que apenas continuou a
trilhar os caminhos já escolhidos anteriormente, dando continuidade a “um processo
espiritual iniciado na infância” e o seguimento do curso já traçado em sua vida acadêmica
e profissional; ele diz não saber se teve influência direta da religião em suas conquistas
por acreditar que a responsabilidade pessoal é fundamental para o atingimento das
metas individuais. Anderson diz:
130
Eu acho que a religião pode ser um instrumento, ou não, depende muito da postura
da pessoa, depende muito do que ela faz por ela mesma, antes da religião; a religião
acho que é um adendo, algo mais e não a base para isso.
Anderson está de acordo, aqui, com o livre arbítrio professado pelo candomblé
ao afirmar que a manutenção da vida não é algo espontâneo e que o ser humano é, em
grande parte, responsável por essa manutenção. Cabe a ele, portanto, desempenhar seu
papel no mundo da vida.
Eduardo acredita que as mudanças positivas ocorridas em sua vida estão
diretamente relacionadas à sua entrada no candomblé:
A minha vida profissional mudou completamente (...) a força, o empurrão que eu
precisava para minha carreira ir em frente (...) inclusive os meus estudos que
estavam paralisados há vinte anos (...) eu tive o incentivo de retomar meus estudos.
Ele atribui seu crescimento a um conjunto de forças, não apenas ao orixá, a
uma pessoa em particular ou ao grupo como um todo, mas desse conjunto de fatores.
Vai de encontro ao ensinamento do candomblé que diz que o filho de santo não é visto
apenas como indivíduo, mas como membro de uma comunidade e como tal toma parte
no todo do sistema; ele não é entregue a si mesmo, mas é parte de um todo, esse
conjunto de forças a que Eduardo se refere.
Luciana, por ter ingressado no candomblé ainda muito jovem, contava apenas
16 anos, não aponta mudanças significativas em sua vida concreta, mas diz ter sofrido
uma grande mudança quanto a sua forma de se relacionar com Deus: “eu não tinha
131
nenhuma crença, não tinha nada que me fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou
um Deus que movimentasse o universo”.
Após seu ingresso no candomblé e a convivência com o culto, ela diz, hoje,
acreditar em um Deus “universal e único”.
Para Fernando, o ingresso no candomblé parece ter se dado como única
alternativa de vida devido à herança espiritual que ele diz ter recebido do avô e que, da
mesma forma, transmitiu à sua filha primogênita, hoje também iniciada no candomblé.
Para ele, a vida fora do culto não tinha possibilidade de se desenvolver. Antes de
chegar à religião, perdeu tudo o que tinha, bens materiais, família, saúde; ele diz:
“cheguei literalmente a passar fome, eu saí de uma casa no Lago Sul pra morar num barraco na
Ceilândia”.
Por ter abandonado toda forma de vivência espiritual, quando se encontrava
em um período próspero, Fernando diz que, mesmo iniciado no candomblé, precisou
esperar sete anos até que sua vida voltasse ao equilíbrio e que isso lhe foi avisado e
atribuído por ele a um castigo:
O erro que eu cometi foi que eu fiz isso (abandonar a espiritualidade) por bens
materiais (....) achei que isso já bastava em minha vida, esqueci exatamente da
minha hereditariedade, do meu compromisso com a ancestralidade, e aí, sim, foi um
castigo por que eu não tive visão e não assumi o meu compromisso com essa
ancestralidade, eu os abandonei de fato (...) abandonei porque achei que o mundo
material pra mim era o que valia, então houve esse castigo durante sete anos.
Ele acredita que esses anos de “castigo” foi um período importante de
aprendizado e que a partir daí sua vida tomou um novo rumo:
132
Você vai aprendendo a amar os orixás (...) a partir do momento que você começa a
seguir o caminho da fé, da crença e atitude, porque não basta ter fé e crença e não
tomar atitudes, dentro e fora da comunidade, cada vez mais você vai recebendo,
como num conta gotas o axé que o orixá lhe dá, poder individual para que você
construa para você e para os seus, e é fato, são vinte anos na verdade que eu comecei,
me iniciei e eu sou uma prova viva disso.
Ao reconhecer o candomblé como único destino possível, Fernando aceitou o
castigo imposto por sua “transgressão”, significando, assim, todo o período de
sofrimento anterior.
Fernando ocupa hoje posição de destaque na hierarquia do Axé Baraleji: é pai
pequeno (aquele que substitui o pai de santo em seus impedimentos) de vários filhos de
santo, já iniciou o seu primeiro iaô (tornando-se, nesse caso, pai de santo) e segue
trajetória ascendente em sua vida pessoal.
Excetuando-se o caso de Luciana, que entrou no candomblé muito jovem, os
demais participantes, Eduardo, Anderson e Fernando, reconhecem e enfatizam a
necessidade da participação ativa do indivíduo em seu processo de desenvolvimento.
Nada virá sem esforço, sem responsabilidade, sem “atitude”. Afirmam-se assim os
fundamentos do candomblé, desde o sistema de trocas – dar e receber – e em grupo,
porque o processo de troca entre o Orum e o Ayie só pode acontecer no caminho da
experiência religiosa e dentro da comunidade, sendo o indivíduo, em grande parte,
responsável por essa dinâmica, essa troca que não cessa. O ser humano encontra assim
a sua integração e contribui para a manutenção da vida enquanto cumpre suas
obrigações na comunidade, enquanto não se fecha em si mesmo, mas está disposto e
aberto ao dar, ao oferecer.
133
Pode-se apontar aqui uma importante divergência com os princípios da
sociedade ocidental moderna, onde a individualidade é valorizada acima de qualquer
interesse coletivo e onde a cultura do ego privilegia os verbos “ter” e “adquirir” em
detrimento dos verbos “dar” e “receber”; no ocidente moderno, o sistema de trocas foi
abolido, vigorando a supremacia da moeda na compra do prazer imediato, juventude
aparente, status social e acúmulo de bens, num cenário que Ballone (2002) define como
o de materialismo dominante.
Isso fica claro, no caso de Fernando, que renunciou à vida espiritual em
virtude de uma carreira profissional ascendente, que lhe garantia o fácil acesso aos bens
materiais, onde a troca do “ter” pelo “ser”, veio de uma forma imposta: com a perda de
todos esses bens, mais outros, como o casamento e a companhia da filha. Maneira
radical de trazê-lo de volta ao caminho espiritual.
Mas é possível perceber que, mesmo para Fernando, os bens foram
restituídos. Após um longo tempo de castigo, tempo em que se dedicou “a ser” para o
orixá, ele conseguiu retomar o caminho de crescimento, reativando o sistema de trocas.
Seja como for, parece ser necessário ao fiel do candomblé, deixar de priorizar
o “sentido do ter” para entregar-se a uma vivência mais aberta ao “sentido do ser”. A
própria hierarquia do terreiro de santo determina essa necessidade: quanto mais o fiel
passou por ritos de iniciação, adquirindo status de “ser” dentro da comunidade, mais ele
se destacará dos demais, não importa o quanto eles acumulem de bens ou riqueza
material.
134
4.3.3. As várias faces da morte na voz dos filhos de santo
Fernando é o iniciado com maior experiência, vivência e estudo de diferentes
religiões e diz ter duas visões a respeito da morte:
A visão do candomblé e a minha que é a visão do candomblé e mais um pouquinho.
Para o candomblé a morte é o momento onde tua alma e o teu espírito, o teu orixá,
o teu axé, o teu ori se desprendem desse aiye, desse mundo.
Segundo Fernando, além do corpo físico, o ser humano possui uma alma, que é
a energia vital, equilíbrio entre o corpo e o espírito, que se desfaz com a morte
(podendo se transformar em egun, no caso do candomblé); o espírito, que é uma
existência divina, vindo de outros mundos, de outras existências que retorna para o
orum com a morte e pode voltar para esse mundo em uma outra existência, ir para
outros mundos ou permanecer estagnado; para o candomblé, o retorno de um espírito a
uma nova vida só é possível através de merecimento; merecimento que pode conduzi-
lo, inclusive, a formas de existência mais elevadas. Ainda segundo a doutrina do
candomblé, não há retorno do espírito para pagamento de dívidas ou cumprimento de
carma, como professado pela doutrina kardecista. Fernando pergunta:
Como se acreditamos em um ser, Deus, Olorum, Olodumare, não importa o nome,
que nos dá a condição de viver, de ter a oportunidade de crescer e melhorar, mas que
nos coloca num estado de inconsciência daquilo que por um acaso fizemos, esse
Deus, ele está punindo a quem? (...) Ele está punindo um espírito? Você sabe quem
é seu espírito? Eu não sei quem é o meu, ninguém sabe. Então, não pode existir
carma no sentido de punição, porque você não tem consciência daquilo que você fez
de errado, então como é que você vai consertar aquilo que você não sabe?
135
Além da alma e do espírito, segundo o candomblé, o ser humano possui o ori,
que é a inteligência, a consciência, é toda a forma de existência individualizada que se
desfaz com a morte; o orixá do filho de santo iniciado é um ancestral divino, que poderá
retornar ou não: “o orixá não é um ancestral só seu ou um ancestral só meu; um novo
descendente que tenha um caminho de orixá, se aquele filho tiver ligação direta com aquele
orixá, o orixá pode voltar”.
O axé, parte que também compõe os filhos de santo iniciados no candomblé, é
reincorporado na comunidade de santo, e o ara – o corpo se desintegra, se desfaz.
Fernando conclui:
Então a morte, dentro do candomblé, ela é o desligamento dessas cinco existências
desse mundo (alma, espírito, ori, orixá e axé), ou se dissipam ou a alma vira
egun e o espírito volta para esse mundo (...) por merecimento ou volta para o
mundo de outro orum. Daí que dentro do culto, do pensamento, do fundamento do
candomblé a morte nem sempre é uma continuidade, para ter continuidade tem que
ter merecimento.
Para Fernando, no entanto, o entendimento é de que o retorno do espírito
cumpre algo além do que o merecimento:
Como uma necessidade real de evolução do espírito sempre para um mundo melhor
(...) para mim a morte é um novo caminho, e não chamo um renascimento, é uma
transformação, uma metamorfose (...) as coisas que acontecem que alguns chamam
de desgraça, eu vejo como aprendizado, eu vejo isso como transformação da vida, ou
da morte de uma existência para a transformação de uma nova vida, eu enxergo
isso como fazendo parte do que vai ser o que as pessoas chamam de morte, mas que,
para mim, é o acúmulo de experiência do orí, do orixá, do espírito e da alma.
136
O discurso de Fernando afirma a concepção de morte do candomblé ao mesmo
tempo em que a nega, quando diz que, em sua visão particular da morte a evolução do
espírito é sempre necessária, não se dando apenas por merecimento. Fernando afirma
que, para o candomblé, a morte não é, necessariamente, uma continuidade, mas que,
para ele o espírito, necessariamente, precisa evoluir. Nesse acréscimo que ele faz à
concepção de morte de sua religião, parece existir um desejo de que a continuidade seja
algo palpável, real, afastando, dessa forma, a visão da morte como fim e passando a
enxergá-la como um destino mais aceitável.
Anderson e Eduardo, da mesma forma, vêem a morte como o início de um novo
caminho. Anderson diz: “eu sempre encarei a morte não como um fim, eu sempre vi
continuidade na morte”.
E Eduardo: “a morte para mim é uma passagem, só uma passagem”.
Poderíamos apontar aqui, nessa contradição entre a concepção de morte do
candomblé e a dos três participantes, uma divisão, uma cisão de vários saberes, mas, o
que nos parece é que se opera o contrário: uma junção de diversas experiências, uma
integração de vivências, resultando disso não um ser dividido, mas um indivíduo que,
agregando, consegue fazer uma síntese que lhe proporciona uma forma mais
confortável de lidar com a morte.
Além das concepções sobre a morte, adquiridas ao longo do percurso traçado
em várias religiões, os participantes ainda trazem o aprendizado legado pelo mundo
moderno, onde ecoa o silêncio da morte.
Eduardo aponta que, além da concepção de morte que aos poucos vai
assimilando dentro do candomblé, traz consigo também a concepção aprendida na
137
infância, herdada da sociedade, revelando-se aqui ator do mundo moderno, com o
acúmulo de diferentes saberes e com conteúdos nem sempre convergentes.
Anderson incorpora de forma mais aguda essa divergência de saberes e
vivências. Inserido no mundo espiritual desde a infância, passando por iniciações na
umbanda, kardecismo e agora no candomblé, trabalha como fisioterapeuta em unidades
de terapia intensiva de hospitais de Brasília. Para quem desde criança aprendeu a tratar
a morte e os mortos como realidades próximas, estar num lugar onde a morte é
constantemente negada obriga-lhe a calar a voz:
Desde a minha infância eu sempre lidei com situações de morte, eu via pessoas
mortas que conversavam comigo (...) no meu trabalho não existe espaço para você
discutir sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso, morreu,
morte clínica, pronto, acabou, então agora a família vai sofrer e velar o morto,
ponto.
Embora reconheça o abismo entre sua concepção e sua maneira de lidar com a
morte e aquela praticada no seu ambiente profissional, Anderson não aprofunda a
diferença entre os dois pólos; assim como para Fernando e Eduardo, a idéia, e a certeza
até, de uma continuidade para além da vida, seja em que plano de existência for, fecha a
possibilidade de qualquer questionamento.
Luciana é a voz dissonante do discurso recorrente de Eduardo, Fernando e
Anderson. Para ela, a vivência da doença e morte da Ialaxé Verinha de Oxum alterou de
maneira profunda a forma de se relacionar com a morte, ela diz:
Eu entendo a morte no candomblé como sendo o inevitável por sermos matéria,
como sendo uma das forças que eu já pude sentir, vivenciar (...) da forma mais
138
poderosa entre todas as coisas que eu já participei (...) e, realmente é inexplicável a
sensação de desespero, que pelo menos me envolveu quando participei, do medo
profundo, que me levou também a questionar alguns valores, como sendo a morte
uma coisa boa, como sendo a morte uma passagem boa, se no momento que eu
vivenciei essa manifestação energética, da sensação desse caminho da Ialorixá Vera,
ter transmitido a mim tanto medo, tanto desespero.
Luciana refere-se à realização da primeira de uma série de obrigações que se
seguiram na luta pela manutenção da vida da Ialaxé. Essa obrigação contou apenas com
a presença da Ialaxé, do Pai de Santo, do filho da Ialaxé, médico e iniciado no
candomblé e da própria Luciana. Ela continua:
Aquele exato momento quando se iniciou a tentativa mágica da manutenção da
vida, foi que me mostrou o quanto era frágil a vida, o quanto que a morte é
extremamente mais forte, porque com todo o amor que se dedicou aquele momento,
com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz necessário na tentativa de
alguma ação de sucesso, a única sensação que eu guardei foi de medo.
Nem o amor, o conhecimento, a magia, nada foi capaz de superar a força com
que a morte se apresentou à Luciana naquele momento onde ela parece ter se deparado
com a realidade da morte, a impotência que a levou de novo, como no início da
adolescência, a questionar a existência de Deus. Referindo-se ao seu pai carnal, doente
em fase de cuidados paliativos, ela diz que embora sendo um grande estudioso do
kardecismo ele vem, ultimamente, questionando a existência de Deus e se apropria da
dúvida do pai: “se ele pode levantar esse aspecto de dúvida (...) me sinto extremamente à
vontade pra questionar a existência de um Deus”.
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Luciana denuncia a descontrução de tudo o que acreditava em relação à morte:
“aquela estrutura que eu criei durante os meus 36 anos, fui criando no meu aprendizado, aquela
estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra”.
A vivência de um ritual, forte, pela descrição e pelos efeitos causados em
Luciana, uma única vivência, foi capaz de destruir o seu aprendizado de 36 anos, foi
capaz de arrasar toda a racionalidade acumulada em relação à morte, transformando-a
em um ser que duvida:
A sensação da vivência de poder entrar em contato com a morte me deixou uma
dúvida se realmente existe uma passagem, se realmente, como ninguém voltou pra
contar, se realmente existe um aprimoramento em outro prisma, essa é uma dúvida
que eu, Luciana, tenho, dúvida de que seja uma coisa boa a passagem.
Algo falhou para Luciana nos diversos ritos que se cumpriram em favor da vida
da Ialaxé, e ela deixou de tratar a morte com a “naturalidade” anterior, a certeza que
tinha de que um dia iria reencarnar, que continuaria um aprendizado, desapareceu; a
morte, para ela, voltou a se revestir de mistério e medo. Mas ela ainda busca refúgio na
racionalidade para diminuir a ansiedade e afirma estar “estudando muito” como forma de
se preparar para as próximas perdas que terá que enfrentar, sendo a de seu pai carnal a
mais próxima e provável, mantendo a crença de que os livros e o conhecimento
poderão desvendar-lhe os segredos do enfrentamento da morte.
Ao se referir à “naturalidade” da morte, Luciana se afasta da filosofia do
candomblé e traz a concepção do ocidente moderno sobre a morte. Baudrillard (1976,
pp. 218/219) define a morte “natural” como a morte “normal, porque acontece ao final
da vida”, tendo seu conceito surgido no seio da ciência “dentro da possibilidade de
ampliação dos limites da vida”. O autor adverte que “a morte natural é a morte
colocada sob a jurisdição da ciência e que tem a vocação de ser exterminada pela ciência
140
(...) toda pessoa, porém, tem o direito a uma morte natural e, ao mesmo tempo, o dever
dela”. Essa é a sentença em vigor no mundo moderno.
O candomblé é uma religião que valoriza a vida no aqui e agora, na existência
atual de cada ser humano. A morte permeia o culto do candomblé de forma subliminar,
seja pelas trocas realizadas nas obrigações para os orixás, seja pelas novas posições que
as pessoas vão conquistando dentro da casa de santo, sempre através de rituais de
iniciação, seja pelos estágios da vida pessoal que se dão através de finais e recomeços
constantes; no candomblé nada é estático, tudo acontece dentro de um dinamismo que
ressalta e valoriza as mudanças.
A morte é tratada de forma direta apenas nos terreiros dedicados
exclusivamente ao culto dos eguns (mortos). Nos demais terreiros de candomblé,
dedicados ao culto dos orixás, é a vida no aqui e agora que se apresenta soberana. Isso
não implica em falta de compromisso com a conduta individual e coletiva, mesmo fora
dos limites do terreiro, que é ditada por normas rígidas através da tradição e dos
códigos morais estabelecidos.
Vimos através das vivências relatadas pelos participantes da pesquisa que cada
um traz e conserva concepções de morte anteriores ao seu ingresso no candomblé.
Podemos supor que o candomblé acolhe tantas idéias divergentes sobre a morte, sem se
contrapor a elas, justamente por valorizar a existência atual de cada indivíduo que
compõe a comunidade de santo; assim como respeita as diferenças individuais e até as
valoriza, atribuindo-as muitas vezes às características herdadas dos orixás, o Axé
Baraleji parece não priorizar, para os seus adeptos, uma idéia única sobre a morte. O
candomblé possui seus fundamentos e ensinamentos sobre a morte, mas isso parece não
ser um impedimento para que cada filho de santo carregue sua concepção particular,
herdada na maioria das vezes do kardecismo e adaptada ao candomblé, uma vez que
não enxergam a existência como um carma a ser cumprido, mas uma continuidade,
uma evolução necessária ou um retorno conquistado por merecimento.
141
Dessa forma, podemos perceber que os filhos de santo não se restringem à
concepção da morte ditada por sua própria religião. Mas vimos, também, que isso não
parece se constituir em problema, uma vez que os participantes conseguem fundir
diversos saberes sobre a morte em uma síntese que lhes satisfaz.
4.3.4. Sobre o saber e o vivido – o ritual do axexê
A falta de ensinamento sobre a concepção de morte no candomblé e sobre os
ritos que se desenvolvem durante o axexê dificultou o entendimento e a vivência desse
ritual por parte dos filhos de santo. É certo que o candomblé diz que tudo deve ser
aprendido com os olhos e os ouvidos, mas também nos parece correto afirmar que, para
os participantes da pesquisa, sujeitos da modernidade, atuantes e instruídos na cultura
ocidental moderna, a ausência do saber sobre a concepção de morte em sua religião não
lhes permitiu a introjeção do sentido do ritual do axexê; ao contrário, permitiu que os
conceitos do ocidente moderno se sobressaíssem e corrompessem este antigo ritual.
Como experiência pessoal, Eduardo e Anderson atribuem algum benefício; benefício
esse veementemente negado por Luciana, mas como experiência coletiva eles são
unânimes em afirmar que não puderam compreender o ritual como uma experiência
benéfica. Na verdade, o que nos parece é que o entendimento mantido por Fernando
acerca da concepção de morte no candomblé e do ritual do axexê, escapa aos demais
participantes e eles não puderam enxergar no ritual nada mais do que o cumprimento
doloroso de uma tradição.
Anderson diz:
Na verdade o ritual do axexê é um ritual de celebração, não um ritual de
sofrimento, de perda, de desespero (...) só que a gente não tem essa concepção, a gente
142
não foi crido para entender isso, então é doloroso, eu acho que muitas vezes é
estender a dor das pessoas (...) que não estão preparadas para o ritual do axexê.
Eduardo acredita que a participação de todos no ritual tornou mais fácil a
aceitação da morte da Ialaxé, mas acha que o ritual é um processo “longo e cansativo” e
Luciana foi categórica ao afirmar que “foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura”.
Parece ter faltado aos participantes da pesquisa o entendimento de Fernando
de que o axexê é um ritual onde a alma faz uma opção de partir ou de se transformar em
egun, sendo essa uma escolha da pessoa falecida transmitida através do jogo de búzios.
Ele fala: “é a alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou não
(...) então você tem o conforto de saber que a alma está indo para opção dela”.
Mas Fernando também admite que o ritual do axexê é doloroso para os filhos
de santo pela herança que receberam da cultura cristã. Além disso, diz não desconhecer
a dor da perda de uma pessoa amada e a certeza da falta que aquela pessoa fará ao
grupo.
Luciana acrescenta que o fato da morte da Ialaxé ter se dado pela doença e não
por velhice, como é comum no candomblé, agravou a não aceitação de sua morte e
acredita que a comunidade não foi preparada nem para a morte da Ialaxé, nem para o
ritual do axexê. Ela diz: “faltou preparação pra morte (...) faltou preparação pra aquele rito
que iria se cumprir, não se tinha idéia que seria tão sofrido, não se tinha idéia de que ia ser tão
difícil”.
Luciana conhecia o ritual do axexê descrito nos livros, assim como para
Anderson e Eduardo também não era desconhecido o fundamento do rito, ainda que
superficialmente, como afirmaram ser “uma homenagem e uma celebração”.
143
Mas Luciana diz:
Por mais que quiséssemos homenageá-la, por mais que quiséssemos fazer do axexê
uma festa alegre todo mundo carregava uma dor muito grande; eu não estava
pronta pra vivenciar aquilo, não estava (...) não teve aquilo que a gente estuda nos
livros, aquilo que é transmitido pelos mais velhos, a festa de despedida de uma
pessoa importante, teve o sofrimento e a dor daquilo que se desfaz de uma pessoa
que era extremamente importante, como mãe e não somente como Ialorixá.
Mais uma vez, nos deparamos aqui com a ausência de uma voz, de um
ensinamento, de um norte para que os filhos de santo pudessem se preparar para as
novas experiências que seriam vividas: a doença e morte da Ialaxé, o ritual do axexê e a
falta, não preenchida, do papel da Ialaxé na comunidade de santo.
Resta o questionamento a respeito da validade do ensinamento apenas através
da vivência dos rituais, uma vez que, podendo o saber também ser aprendido através
dos ouvidos, questões fundamentais como a morte não devesse ser mais explorada e
discutida dentro do culto.
O candomblé não é uma ilha transposta da África, mas uma religião brasileira
nascida da tradição africana. As casas de santo, embora mantenham uma matriz comum
e, geralmente, sejam um braço de alguma casa mais antiga e tradicional, são núcleos
independentes e por vezes recentes, como é o caso do Axé Baraleji e das demais casas de
santo de Brasília. Os filhos de santo, em sua grande maioria, não nasceram no berço do
candomblé e chegaram à religião trazendo uma bagagem religiosa e cultural que lhes
dificulta o entendimento dos rituais; por mais que um ritual não busque ser
compreendido para cumprir sua função, um ritual como o do axexê se torna mais
complexo por ter um equivalente e um comparativo nas diversas religiões
anteriormente praticadas pelos adeptos do candomblé; a cultura ocidental moderna
144
também dita conceitos radicalmente opostos aos do candomblé no que diz respeito aos
ritos e a realidade da morte.
Parece não ter sido possível para esses sujeitos da modernidade, mosaicos de
aprendizados em diversos cultos, vivenciarem o ritual do axexê despidos de suas
experiências anteriores; talvez lhes facilitasse a vivência o conhecimento dos
fundamentos do ritual e o preparo para o enfrentamento da doença e morte da Ialaxé.
Apesar de ser um culto vivenciado em comunidade, fica a impressão de que,
nesse caso, cada um teve que se haver apenas com sua bagagem cultural e seu preparo
emocional.
Foi dito pela pesquisadora que, no que tange ao coletivo, o ritual do axexê
parece não ter cumprido sua função de reordenamento das relações sociais, uma vez
que, passados quase dois anos da morte da Ialaxé, a comunidade ainda luta para
reestruturar suas relações. Parece-nos que, individualmente, o ritual do axexê também
não pôde acrescentar muito além do sentido de cumprimento de uma tradição.
4.3.5. Uma força para transpor limites – a iniciação
Existe uma diferença marcante entre as experiências de iniciação e vivência em
relação ao orixá de Fernando, Anderson e a pesquisadora e as experiências de Eduardo
e Luciana. Os três primeiros estão sujeitos à possessão pelo orixá, o que lhes possibilita
uma gama de sensações às quais Eduardo e Luciana não têm acesso, mas se fosse
possível resumir em uma palavra a fala de todos eles, ela seria “integração”.
Anderson fala da iniciação: “é uma sensação de renascimento no contexto de uma
nova vida, eu não deixei de ser eu mesmo, me acrescentaram coisas”;
145
Ele afirma que experimentar a figura do orixá e do erê como “outros” dentro do
próprio corpo é uma forma de integração, assim como a vida dentro e fora do terreiro
também se dá por acréscimo. Anderson continua:
Para mim, é um privilégio vivenciar o orixá e o erê porque eles trazem muitas
vezes conhecimentos que eu não conheço (...) é uma manifestação que eu não sei
definir ou como fazer para que seja mais ou menos intensa, simplesmente
acontece, como se fosse uma morte curta, temporária.
A pesquisadora descreve sua iniciação como a integração de suas várias facetas,
suas várias estórias e complementa: “é assim que me sinto agora, integrada. Depositária de
uma força divina – meu Orixá, um aliado no percurso da vida”.
Podemos confirmar suas palavras em Agraus (1983), que descreve a “fixação”
do orixá na cabeça do iniciado como uma metamorfose e não uma duplicação. A autora
diz que o “orixá é vivenciado como Outro soberano, que se apossa do filho na hora e no
modo que quiser” (p.245).
Fernando considera sua iniciação no candomblé como “uma nova experiência, um
renascimento”. Sobre essa experiência, da possessão pelo orixá, ele diz:
Você só sabe como é emprestar seu corpo para o orixá, quando você volta, isso
quer dizer que enquanto você está emprestando você simplesmente não é, nada (...)
na realidade ser tomado pelo orixá é sempre uma integração porque ele já está
dentro de você, nós somos um único ser, e ele está dentro, então ele simplesmente
aflora.
146
Podemos escutar, na falas desses iniciados, a plena aceitação do orixá (o outro),
resultando na integração do indivíduo, ou como nos diz Augras (1983, p. 260): “o
reconhecimento da alteridade é condição indispensável para estabelecer a unidade do
ser”.
Em relação à vivência da religião e a atuação no mundo “lá fora”, Fernando
considera que elas também devem se dar de forma integrada:
Lá fora, o mundo é apenas o seu mundo, mas que você tem que transportar a tua
essência de orixá e sentir sempre a presença do orixá dentro de você, primeiro
porque ele está dentro de você (...) não tem como tentar fazer essa separação,
achar que você lá fora não tem compromisso com o orixá (...) porque lá fora é que
você tem que se comportar melhor do que dentro do axé, porque aqui dentro é fácil
(...) se você abandonar o orixá aqui dentro como é que você vai poder cobrar dele
que ele te acompanhe e te ajude lá fora, ele tem que estar contigo lá fora, você tem
que sentí-lo, venerá-lo, chamá-lo, se comportar, ser disciplinado (...) não é uma
vida fácil ser filho de orixá porque você tem uma série de preceitos que você tem
que cumprir (...) mas ele vai te dar muito mais do que aquilo que as vezes você até
acha que merecia, mas você ganha, tudo é questão de comportamento e atitude (...)
porque o orixá ele está instalado dentro de você na consciência, pode enganar todo
mundo menos tua própria consciência.
E, mais uma vez, lembramos Augras (1983, p.289): “o duplo e a metamorfose
não são aspectos antagônicos do ser: é preciso desdobrar-se para transformar-se.
Tornar-se outro, diferente em tudo e no entanto idêntico, restabelecer a duplicidade
fundamental, que doravante é síntese”.
147
Eduardo não está sujeito à possessão pelo orixá, mas também define a
experiência de iniciação como integração: “eu não sou um figurante, eu sou uma pessoa
integrada, então tudo na minha vida muda a partir desse momento e dessa integração”.
Luciana, assim como Eduardo, não está sujeita à possessão pelo orixá e, bem
antes de sua “feitura” como joye, já participava de todas as obrigações do culto,
geralmente vetadas a filhos de santos ainda não iniciados. Esse fato fez com que ela não
visse sua iniciação como a garantia de um novo status ou o acesso a espaços sagrados
que antes já lhe eram permitidos. Ela fala de sua iniciação:
Na verdade foi fazer um acerto de contas, mas pra mim, Luciana, não houve
essa experiência – de mudança de patamar, de mudança de status – a única
mudança que eu posso dizer é que pesou mais a responsabilidade, porque antes eu
tinha o direito de errar, agora eu tenho o dever de acertar (...) pra mim mudou só
nesse sentido, mas em relação, começa uma nova vida a partir de agora pra mim
era indiferente, eu já era uma ekedi, já fazia tudo que uma ekedi fazia.
É preciso olhar para essa inversão no processo de iniciação de Luciana,
questionando se não poderia vir daí sua dificuldade de lidar com os rituais que
envolveram a doença e morte da Ialaxé. Não houve, para Luciana, a conquista do
sagrado, através da iniciação; ela “ganhou” o sagrado, para só depois se submeter à
iniciação. A diferença brutal na sua forma de reação ao ritual do axexê, em relação aos
demais participantes, e toda a desconstrução que operou sobre suas concepções de
morte e da existência de um Deus, nos fazem levantar a hipótese de que, até então,
Luciana não teria “vivido” os rituais dos quais participou, mas “aprendido” os rituais.
Recorremos a Augras (1983, p. 16), para fundamentar nossa hipótese: “o conhecimento
dos mitos, dos símbolos, dos ritos é gradual, e a aprendizagem do significado não se
148
opera ao nível da explicação intelectual. O saber iniciático adquire-se pela vivência. O
conhecimento experimenta-se, não vem de fora”.
Vimos, ainda, que Luciana busca constantemente o apoio na racionalidade, e
que os rituais realizados em torno da Ialaxé produziram, nela, a quebra de toda certeza
anterior. É possível que Luciana tenha se deparado aqui, pela primeira vez, com a
vivência de um ritual sem a primazia da razão, sendo para ela realmente o novo, o
desconhecido.
Luciana fala da importância de sua preparação anterior, na experiência de
reclusão no roncó, durante sua iniciação. Preparação esta, que lhe faltou no ritual do
axexê:
Eu acho que os dez anos que eu passei na roça me preparam pra isso (...) eu era
extremamente feliz no momento da minha obrigação... eu não tinha essa sensação
de reclusão. Até porque eu recolhi com dois iaôs e o tempo todo eu participei da
obrigação deles, quando a obrigação não pertencia aos três, pertencia só a eles eu
participava da obrigação, então eu não tive essa sensação de reclusão, porque na
verdade eu acho que eu estava pronta para entrar no roncó.
Seguindo nossa hipótese anterior, podemos dizer que Luciana estava “pronta
para entrar no roncó”, porque já tinha participado da iniciação de vários filhos de santo,
o que lhe dava saber, por antecipação, tudo o que ocorreria no roncó; “saber” que lhe
faltou para a vivência, inédita, do ritual de axexê.
Para a pesquisadora, o tempo de convivência e participação no culto foi
importante para lhe dar segurança e confiança na realização de sua iniciação, mas
afirma que nada havia lhe preparado para o momento a ser vivido no roncó:
149
Ocorre que, agora, as coisas estavam acontecendo comigo (...) por mais que eu
tivesse lido toda a literatura disponível sobre a iniciação e tivesse acompanhado
outros barcos anteriores, existem segredos que só são revelados para os iniciados, e
outros dos quais nem nós teremos conhecimento, já que serão vivenciados por
nossos Orixás ou por nossos Erês. Difícil a perda de controle, deixar-se levar,
numa entrega total onde apenas a confiança no Pai de Santo e nos membros do
grupo é capaz de nos permitir mergulhar nesse abismo do qual não poderemos
dar conta depois, sequer teremos todas as lembranças desse tempo de recolhimento,
desse período de morte (...) todos esses anos de preparação e indefinição me
haviam sido absolutamente necessários. Não vejo como poderia me entregar,
assim tão sem defesa, nas mãos de pessoas as quais não conhecesse e confiasse.
Uma diferença fundamental que marca as vivências da pesquisadora e de
Luciana é a experiência da possessão pelo orixá. Outra é o conhecimento anterior que
Luciana possuía de todos os procedimentos rituais. Além disso, já vimos que os rituais
a que são submetidas as pessoas de cargo são mais brandos do que aqueles aplicados
aos iaôs – iniciados que “viram no santo”.
Luciana traz um tema não abordado por nenhum dos demais participantes –
Anderson, Eduardo e Fernando – mas que também foi assunto de destaque no relato da
pesquisadora sobre sua vivência de iniciação: o preceito do kelê, período em que
diversas restrições são impostas ao iniciado. Luciana diz:
O kelê foi muito mais difícil pra mim do que o estado dentro do ronco porque eu
tive que trabalhar e nos primeiros dias posteriores que vieram da minha saída
pro mundo eu era extremamente assustada, eu tinha medo da árvore, eu tinha
medo de tudo, eu estava extremamente fragilizada, eu tinha medo da rua e não
150
gostava de estar na rua à noite, não gostava de me expor na rua, eu sentia a
necessidade de estar num ambiente tranqüilo, num ambiente como se fosse o roncó,
que na verdade seria minha casa, eu tinha essa necessidade.
Para as pessoas de cargo, como Luciana, o período de kelê é mais curto do que o
imposto aos iaôs, iniciados que “viram no santo”. Ainda assim, Luciana sentiu o impacto
dessa imposição:
Além do que é o estereótipo de estar de cabeça raspada, de estar de ojá, de estar
com uma outra vestimenta, de não poder sentar no alto, de não poder adentrar em
alguns recintos, estas abnegações não fazem parte do mundo real, então elas te
tornam fragilizada, essa fragilidade ela vem do kelê, então o tempo máximo que
eu podia passar dentro da minha casa eu passava.
Fica bastante evidente o conflito das culturas do candomblé e do ocidente
moderno na fala de Luciana sobre a dificuldade de enfrentar o mundo profissional e a
diferença de acompanhar o período de kelê de um iniciado e a sua própria vivência,
ressaltando mais uma vez a oposição entre o saber e a experiência vivida:
O kelê faz parte do mundo da roça, não faz parte do mundo que eu trabalho,
então quer dizer deveria ser tudo mesclado, mas não é, necessariamente não é
(...) eu já tinha acompanhado o kelê do Fernando mas é diferente você ver
alguém vivenciar três meses de kelê, não era o resguardo do sexo, resguardo do
álcool, que eu nem bebo, não era o resguardo em si que me pesava, mas eu ter
que estar no mundo que me pesava, senti a dificuldade pela compreensão
cultural das pessoas sobre aquilo.
Mais uma vez, fica evidente o impacto do vivido sobre Luciana.
151
A pesquisadora também aponta dificuldades em relação ao período e as
restrições impostas pelo kelê:
A maioria das pessoas do terreiro, e que fizeram santo antes de mim, disseram
que o período de kelê foi o melhor tempo de suas vidas, outras não me disseram
nada. Eu posso dizer que foi um tempo de sentimentos novos e ambíguos. Talvez
tivesse sido um tempo sagrado, se fosse possível permanecer no terreiro durante os
três meses do período do kelê, dedicando-me apenas ao Orixá, como era em épocas
que já se perderam no tempo. Mas, ser jogada no mundo após tantos dias de
recolhimento e afastamento da sociedade, por imposição mesmo da vida moderna
e do mercado de trabalho, não é uma boa experiência, nem simples, nem fácil (...)
sentia-me, obviamente, diferente. Destacava-me nos lugares por onde andava. O
lenço branco, cobrindo a cabeça raspada, era a peça do vestuário que me
transformava num ímã para o olhar dos outros. Para a relação com o mundo à
minha volta, essa marca foi a dificuldade maior (...) durante esses três meses,
minha rotina foi completamente alterada e meu corpo não era meu, estava
marcado. Não só pelas roupas brancas usadas, mas pelos símbolos que se carrega
no corpo (...) Não saí à noite durante todo esse período. Minha casa era meu
melhor refúgio.
E também se refere à fragilidade que parece acometer os recém iniciados:
Contribui para a dificuldade do enfrentamento da realidade moderna o fato de
que a consciência não volta instantaneamente. A capacidade de reação fica muito
reduzida, uma carência se instala e é como se, realmente, eu tivesse nascido de
novo. A rua assusta, o barulho incomoda, a multidão é intolerável.
152
Fica evidente, no caso de Luciana e da pesquisadora, a força com que a cultura
ocidental moderna atinge as pessoas em suas diferenças. Apesar de valorizar e
reafirmar a individualidade como marca da modernidade, essa individualidade parece
destinada a seguir um determinado padrão. Como afirma Baudrillard (2000), o homem
moderno “consagrou-se a uma identidade sem fim. Identificação do indivíduo, do sujeito, da
nação, da raça. Identificação do mundo, tornado técnica e absolutamente real – tornado o que é”
(p.58).
Os fundamentos do candomblé não pertencem à modernidade, estão antes
ligados ao passado, às religiões antigas e suas práticas não são entendidas pelo
indivíduo moderno. Suas restrições e imposições são inaceitáveis para a razão ocidental
e os filhos de santo, quando destacados da multidão através das marcas gravadas no
corpo – roupa inteiramente branca, lenço cobrindo a cabeça raspada, uma forma
contida de comportamento – são imediatamente identificados como um ser estranho,
marcado por uma diferença de difícil compreensão.
Luciana reconhece toda essa dificuldade, mas é intransigente na defesa da
manutenção das tradições do candomblé, a despeito de toda dor que isso possa implicar
aos filhos de santo. Ela diz:
Eu acho que a tradição ela é necessária, pra todas as formas de comunidades
existentes, eu acredito que a tradição é que faz com que a repetição do mesmo ato
se torne uma coisa tão forte que se torne uma regra, que as pessoas façam aquilo
numa naturalidade tão forte que se torne uma cultura ... por ter realmente
abraçado com amor o candomblé e mais ainda a minha casa eu faço questão de
repetir os mesmos atos, uma para que eu não esqueça, duas pra que eu possa
transmiti-lo da mesma forma com a qual aprendi e tendo a certeza de que
mesmo repetindo várias vezes eu irei ensinar diferente do que quem me ensinou,
ou seja, em algum momento já vai se perder alguma coisa, então a tradição é para
153
que não se percam legados, pra que as pessoas possam entender que os atos, mesmo
que de forma inconsciente durante certo momento eles fazem parte de um todo
maior (...) e porque se uma vez feito ele funcionou esse ato tem que ser repetido
sempre da mesma forma (...) toda vez que nós quebramos uma tradição por
acharmos que o tempo evoluiu e nós também temos que evoluir nós diminuímos a
nossa força, porque se perde alguma coisa; então quando eu quebro aquele ato,
pela conveniência da atualidade, da modernidade, eu perdi alguma coisa, por isso
a tradição tem que ser cumprida, mesmo que me doa, mesmo que eu não queira
participar, já que eu me imbuí na questão de ser uma sacerdotisa, de manter a
minha religião, de vê-la crescer, de ver a minha casa crescer, de ver o meu axé se
perpetuar, de ver essa religião, que trás às vezes tantos entraves, tantas nuances
mal formuladas culturalmente no mundo exterior, que elas possam ser cada vez
mais elucidadas, se tornarem cada vez mais brandas de uma forma que o
candomblé possa ser visto com bons olhos, que você possa dizer – sou do
candomblé – de uma forma natural, que nós sabemos, que no mundo que nós
vivemos não é natural, que todo mundo se refugia no mágico, mas ninguém tem
coragem de dizer que se refugia no mágico, é mais fácil dizer que é católico, mais
aceito dizer que é católico, ou então que é espírita; então é por esse motivo,
tradição, que eu cumpro ato pela tradição, que se eu não cumprir aquele ato da
tradição os que vierem posteriores a mim não cumprirão e em algum momento o
axexê vai acabar, por exemplo.
Nessa fala, Luciana enfatiza a dificuldade imposta aos adeptos do candomblé,
sujeitos da modernidade, e reafirma a necessidade da manutenção da tradição como
forma de preservar o culto, ameaçado constantemente pelas mudanças praticadas nos
rituais, pelo preconceito que ainda lhe dirigem e pelas facilidades e seduções oferecidas
pelo mundo moderno.
154
4.4. Candomblé e cultura ocidental moderna – separação possível?
O candomblé é uma religião de origem africana, trazida ao Brasil pelos negros
vindos da África nos tempos da escravidão. Por diversos motivos precisou adaptar-se a
nova realidade aqui encontrada: o impedimento da prática da religião africana durante
a escravidão obrigou os escravos a criarem um sincretismo dos orixás com os santos
católicos como forma de manter seus cultos; a distribuição dos escravos pelo solo
brasileiro, muitas vezes com a separação das famílias originais, e mesmo com a ruptura
dos laços familiares deixados na África, fez com que a religião perdesse, aqui, sua
característica de grupo consangüíneo. De lá para cá o candomblé transformou-se em
uma religião brasileira lutando para preservar e, por vezes, recuperar suas origens
africanas.
Segundo Prandi (2005), o candomblé não é uma reunião de afro-descendentes
que cultivam uma origem e antepassados em comum, mas uma religião dos orixás
fundada no Brasil pelos líderes dos primeiros terreiros aqui constituídos, onde os mitos
religiosos foram conservados, mas os costumes tiveram que ser adaptados e
reinterpretados para sobreviver nessas terras porque, segundo o autor, o mito “deve
fazer sentido não mais para o negro e todo afro-descendente, mas também para o branco que
adere à religião dos orixás” (p.168/169).
É sob a luz dessas adaptações e reinterpretações que é preciso olhar para o
candomblé e, no nosso caso, para a comunidade pesquisada. Não é possível manter um
véu de romantismo, que muitas vezes é tentador, buscando enxergar na religião apenas
os traços de um passado remoto e intocado pelas mudanças do tempo. Mais honesto é
reconhecer que, a despeito de todas as dificuldades que essa religião encontrou para
sobreviver, das perdas e mudanças que teve que empreender, desde sua chegada ao
Brasil até os dias de hoje, ela ainda se encontra viva e crescente, acolhendo pessoas de
todos os matizes, oferecendo-lhes um espaço onde elas possam construir um sistema de
mundo que lhes seja mais favorável.
155
O Brasil conta hoje com três casas de santo consideradas como berço da
tradição do candomblé de origem Ketu no Brasil: a Casa Branca do Engenho Velho, o
Gantois e Ilê Axé Opô Afonjá, todas localizadas em Salvador, na Bahia. As demais casas
de santo do Brasil, de tradição Ketu, são braços de uma dessas três casas originais.
O Axé Baraleji, terreiro palco de nossa pesquisa, está ligado ao Ilê Axé Opô
Afonjá. O Ilê Axé Opô Afonjá foi fundado em 1910, contanto hoje com 96 anos de
existência. Embora o babalorixá Tito de Omolu tenha sido iniciado no candomblé há 52
anos, o Axé Baraleji possui apenas 35 anos de fundação em Brasília.
O que queremos ressaltar com isso é que, embora o candomblé seja uma
religião de raízes muito antigas, os filhos de santo do Axé Baraleji, e dos demais
terreiros do país, nasceram em berço influenciado pela cultura ocidental moderna.
Pudemos perceber, no decorrer de nossa pesquisa, que três dos cinco
participantes, incluindo-se aí a pesquisadora, chegaram ao candomblé não por escolha,
mas por um destino imposto pela dor. É importante destacar que esses três iniciados
“viram no santo” e lembramos Baudrillard (2002) ao dizer que o mundo moderno exige
do indivíduo e da consciência “cada vez mais autonomia, mais liberdade”, sendo
justamente dessa autonomia e dessa liberdade que aquele que experencia a vivência do
orixá tem que abrir mão. Aqui podemos apontar uma importante divergência entre o
ocidente moderno e o candomblé; enquanto o primeiro impõe a liberdade ao indivíduo,
o outro lhe exige a renúncia e os filhos de santo, nascidos na modernidade, renunciam a
essa liberdade imposta, não por escolha, como vimos, mas também por uma imposição;
imposição que vem de dentro de si mesmo, do orixá.
Após essa renúncia, essa entrega total, a sensação descrita pelos participantes é
de “integração” e a aptidão para a possessão pelo orixá é considerada por eles como um
“privilégio”.
Os outros dois participantes não “viram no santo” e foram iniciados para
desempenhar cargos específicos dentro do culto, compondo a alta hierarquia do grupo.
156
No caso desses dois participantes, a porta de entrada para o candomblé não se deu pela
dor, podendo-se dizer que houve uma escolha, uma opção pela religião. Fica aqui em
aberto uma questão: o candomblé se impõe ao filho de santo, sujeito à possessão pelo
orixá e se apresenta como uma escolha para aqueles que não estão sujeitos a essa
possessão?
Seja como for, todos os participantes assumiram o candomblé como sua
religião e, a despeito de todas as dificuldades, seja a de conciliar as atividades da casa de
santo com suas agendas profissionais, acadêmicas e familiares, seja pelo preconceito
ainda enfrentado em relação à religião; seja pelos preceitos e impedimentos a que estão
sujeitos em determinados períodos de suas vidas e mesmo ao longo delas; seja pelo
processo de doença e morte da Ialaxé que operou uma fissura na ordenação do terreiro,
todos estão dispostos a lutar pela manutenção de sua casa de santo e de sua religião.
Mas todos são, também, produto do ocidente moderno e quando entraram no
candomblé, adultos, formados, levaram consigo uma bagagem cultural e religiosa que
ecoa entre os muros do terreiro.
Como conseqüência mais visível desse processo podemos destacar a
necessidade que os filhos de santo têm de entender, de compreender os rituais. Essa
necessidade não é exclusividade dos filhos de santo do Axé Baraleji. Parece-nos antes
uma necessidade imposta pela condição dos filhos de santo da atualidade, filhos da
modernidade, e não há mais como ser diferente; não adianta encobrir uma realidade
para preservar uma fantasia: os adeptos do candomblé não pertencem à África mítica,
nasceram aqui, são brasileiros.
Ainda que a força da palavra seja um recurso mágico utilizado pelo candomblé
ontem, hoje e sempre, a oralidade deixou de ser o único meio de conhecimento da
religião. Existe extenso material escrito por estudiosos, iniciados ou não, que dão conta
de descrever e retratar até momentos sagrados do culto. Embora alguns autores
157
questionem a validade desses registros alegando, como Capone (2004), que “passou-se
da antiga transmissão oral, que era a base do aprendizado no candomblé, para o estudo de um
conjunto de obras “sagradas”, escritas, em sua maioria, por antropólogos brancos” (p.299), esse
fato reflete uma realidade da qual não é mais possível fugir.
Pensamos que o desafio que hoje se coloca para os sacerdotes de santo é como
preservar a sacralidade dos rituais, permitindo aos filhos de santo um entendimento
daquilo que se realiza no ato. Mas é possível, também, apontar diferenças nessa
necessidade de entendimento. No caso da iniciação de um iaô, como ficou patente na
descrição feita pela pesquisadora, toda a literatura disponível e os anos de convivência
com a religião não foram capazes de prepará-la para o que estava por vir, porque essas
são experiências muito particulares, únicas, e existem determinados segredos que os
iniciados, mesmo os estudiosos, não revelam e aos quais os estudiosos não iniciados não
têm acesso. Diversos outros rituais encontram-se nessa categoria, onde o vivido
dispensa a necessidade de compreensão, prescinde dela.
Mas o ritual do axexê, onde a necessidade de compreensão pelos participantes
se mostrou de forma tão contundente em nossa pesquisa, talvez merecesse uma forma
diferenciada de abordagem dentro da comunidade de santo. Primeiro, porque existe um
equivalente para o ritual no mundo moderno e isso, por si só, já interfere na vivência
do ritual. Segundo, porque a comunidade não estava preparada para o enfrentamento
da morte de sua Ialaxé e os participantes se sentiram perdidos duplamente: perdidos
pela falta prematura da Ialaxé e perdidos em um ritual ao qual não puderam se
entregar, porque estabeleceram uma linha de comparação com os ritos fúnebres
modernos. Com exceção de Fernando, os participantes sentiram-se privados do
entendimento do axexê, privados da compreensão da concepção de morte no candomblé
e, por isso, não conseguiram enxergar no ritual nada além do que o cumprimento
doloroso de uma tradição, refletido quase que tragicamente nas palavras da
participante Luciana: “foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura”.
158
A literatura está repleta de textos sobre o ritual do axexê e os participantes não
a desconheciam. Santos (1975), em Os Nagô e a Morte e Prandi (2005), em Segredos
Guardados, entre outros, fazem uma descrição detalhada do ritual. No entanto, o que
nos parece é que faltou cumplicidade entre o grupo para permitir uma conexão entre o
saber e o momento vivido; até porque o saber do candomblé diz que os sacerdotes
morrem de velhice e a Ialaxé morreu de doença aos 53 anos de idade. Contradição que
talvez merecesse ser levantada dentro do grupo para poder ser mais bem aceita pela
comunidade de santo. Além disso, por ser uma comunidade nova, com apenas 35 anos
de fundação, os filhos de santo do Axé Baraleji não estão acostumados a conviver com
irmãos de santo em idade avançada e, também por isso, a morte não é uma constante
nessa comunidade, como é o caso de casas mais antigas como o Ilê Axé Opô Afonjá. De
qualquer forma, os filhos de santo dos dias de hoje estão mais sujeitos a morrerem por
doença ou acidente do que jamais estiveram os fundadores da religião e a morte por
velhice, embora seja o caminho mais aceitável e desejável, dificilmente poderá ser visto
ou prometido como único destino a um filho de santo.
Outro aspecto a ser ressaltado, que nos pareceu de extrema importância, diz
respeito às várias concepções de morte apresentadas pelos participantes da pesquisa.
Mesmo para Fernando, que fez uma explanação didática sobre a concepção da morte no
candomblé, ela possui um acréscimo; o que nos leva a constatar que a concepção do
candomblé sobre a morte não é compartilhada pelos filhos de santo, sendo, em alguns
casos, até desconhecida por eles. A falta desse entendimento e desse compartilhamento
de concepção de morte pelo grupo talvez possa ter sido uma das causas do abandono de
alguns filhos de santo, quando do início do processo de doença da Ialaxé e, quando de
sua morte, de outros membros da comunidade, assim como do filho e da nora da Ialaxé,
também membros do culto.
O candomblé é uma religião baseada na manutenção da vida, na concretude da
existência atual, no aqui e no agora. Enquanto outras religiões prometem a retribuição
159
das dificuldades da vida em um outro plano ou existência, o candomblé apresenta as
formas de lidar com essas dificuldades e obter a retribuição agora.
O ocidente moderno coloca à disposição do indivíduo tudo o quanto o dinheiro
pode comprar, mas o custo emocional de tanta oferta acaba por se traduzir em falta, e o
candomblé coloca à disposição dos seus adeptos os meios para o preenchimento dessa
falta.
Mas aqui uma questão não fecha: embora o candomblé resgate esses sujeitos da
modernidade e lhes forneça instrumentos para construir uma vida de forma mais
integrada, a morte se apresenta, ao menos na situação vivida pela comunidade de santo
pesquisada, como a morte negada. E a morte negada, sabemos, é herança da cultura
ocidental moderna. Como acomodar aqui essas contradições?
I) A partir do diagnóstico da doença da Ialaxé, toda a comunidade se empenhou
nas obrigações que visavam à manutenção de sua vida; esse processo estendeu-se por
mais de um ano. Constatada a irreversibilidade do processo, a Ialaxé deixou de
freqüentar o terreiro de santo e recolheu-se em sua casa, na cidade. Ali permaneceu até
o momento de sua morte. O comportamento da família da Ialaxé difere da postura
ocidental moderna, que é a de isolar seus doentes nas unidades de terapia intensiva dos
hospitais para que morram afastados dos demais. No entanto, se a família da Ialaxé,
toda ela integrante da comunidade de santo, manteve a convivência com seu doente até
o momento final, não possibilitou a mesma oportunidade aos demais membros do
grupo religioso, intitulado e que assim se pretende, família de santo. Para os membros
da comunidade, e para os participantes da pesquisa, a casa da Ialaxé cumpriu o papel de
unidade de terapia intensiva, onde o acesso lhes foi negado. Luciana foi clara em
relação a isso:
Eu graças a Deus tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos
dos meus irmãos não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado; ela
160
não foi preparada pra ir embora: você está indo embora, então se despeça
daqueles que estão em torno de você ... tinha que ter sido mais verdadeiro, mais
exposto, talvez tivesse sido, pra nós, filhos de santo, melhor. Eu não sei o que
seria pra ela, se ela realmente preferia não se despedir, mas se é que é dado a um
sacerdote o direito de não se despedir, quando você entra no mundo do
sacerdócio você também vai ter que aceitar a tradição daquilo que for imposto.
Embora a família consangüínea da Ialaxé tenha tido uma postura diferente
àquela praticada na sociedade moderna impôs, aos demais filhos de santo, a distância
ocidental moderna frente à morte; embrião para as dificuldades que se seguiriam no
cumprimento do rito do axexê.
II) Se a Ialaxé foi mantida isolada dos filhos de santo durante os meses finais de
sua doença – a doença negada, a partir do momento de sua morte, ocorreu o contrário e
tiveram início os longos ritos do axexê, agora com a convocação e a participação de
toda a comunidade de santo – a morte exposta. A partir desse momento tudo contrasta
com os hábitos modernos em relação aos ritos fúnebres. A Ialaxé atravessa a noite em
sua cama, como se dormisse; o ritual do sirrum com o caixão sendo levado, aberto, até o
forno crematório; os sete dias de obrigações e rituais que se sucederam.
Podemos acomodar aqui uma das contradições levantadas anteriormente. O
ritual do axexê não pôde cumprir suas funções para o grupo pesquisado porque parece
ter havido uma subversão dos costumes e dos fundamentos do candomblé. O grupo se
desfez enquanto família de santo nos meses finais da doença da Ialaxé. Obrigados a se
manterem afastados da Ialaxé nesse importante período de convivência e preparação,
quando convocados, os filhos de santo não puderam vivenciar o ritual como seria o
esperado. Havia um abismo entre esses dois momentos: enquanto filhos de santo foram
161
obrigados a desempenhar o papel de sujeitos da modernidade, quando do afastamento
imposto da convivência da Ialaxé e, no momento de sua morte, quando reconvocados ao
papel de filhos de santo, não puderam mais se despir da pele de sujeitos da
modernidade. Por isso o axexê não pôde cumprir seu papel de reestruturação das
relações sociais dentro do grupo, com a imediata substituição das funções
anteriormente desempenhadas pela Ialaxé, por que as relações já haviam sofrido uma
ruptura que era anterior à sua morte, daí a falta de cumplicidade no grupo para a
vivência do ritual do axexê.
Pode-se então questionar se realmente faltou ao grupo o entendimento do
ritual tão reclamado pelos participantes. O que parece ter sobrado foi a imposição de
posturas praticadas pelo ocidente moderno quando o que os filhos de santo esperavam
era, justamente, o contrário: a intimidade com o grupo religioso na prática do
candomblé.
A escuta dos filhos de santo em relação à morte denuncia que, nesse caso, foi-
lhes sonegado o direito à vivência plena da religião, que é sempre coletiva, e reforçados
comportamentos comuns ao ocidente moderno, estranhos ao candomblé, o que
contribuiu para que as experiências religiosas anteriores de cada um ganhassem mais
força, gerando um discurso individual sobre a morte e obscurecendo a fala de sua
própria religião sobre esse aspecto fundamental da vida. Para os participantes da
pesquisa, no momento do enfrentamento da morte da Ialaxé, sobrou ocidente moderno,
faltou candomblé.
162
CAPÍTULO 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS O pano de fundo sobre o qual se desenvolveu nossa pesquisa aborda dois temas
ainda marginais na psicologia: morte e religião. O primeiro vem ganhando espaços
maiores, principalmente quando relacionado à velhice e a pacientes em cuidados
paliativos. O segundo é ainda encoberto de preconceitos como se do humano não
fizesse parte a dor do desamparo de saber-se entregue apenas aos seus próprios
cuidados.
Ao juntarem-se os dois temas, trilham-se os caminhos da incerteza, porque
nem um nem outro oferecem qualquer resposta definitiva a questionamentos; mas
também aqui estamos de acordo com o humano, sempre palco de dúvidas e de
experiências originais. Augras (2002) diz que o homem é natureza, história e
existência. E é a existência que lhe confere a especificidade do humano: atribuindo
significado à natureza e à história e modificando-as. Sendo “suporte da natureza e autor
da história, o homem fundamenta-se na consciência de si e do mundo” (p.20).
Ao pesquisarmos indivíduos inseridos em um grupo religioso, buscamos
compreender como eles significam suas experiências de “ser no mundo”, pertencendo a
duas culturas que se afastam e se aproximam ao longo de suas histórias. Atores do
ocidente moderno, com a realidade imposta pelo poder do consumo: consumo de
riquezas materiais, da beleza, juventude, consumo da informação, consumo de si
mesmo, consumo de todos. Nessa roda de tantas engrenagens e armadilhas, a morte
precisou ser extirpada para não frear o movimento de consumo. Depois, a morte
passou, ela mesma, através dos rituais fúnebres modernos, a objeto de consumo. As
grandes tragédias que provocam mortes coletivas, como as vitimadas por ataques
terroristas ou acidentes aéreos, também essas, se tornaram objeto de consumo através
da cobertura sensacionalista da mídia.
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Baudrillard (1976) diz que a morte foi banida da ordem simbólica, e que a
proposição onde a vida e a morte se permutam, “é uma verdade interdita para sempre à
ciência”. O autor resume a idéia moderna de morte, dizendo que ela “é regida por um
sistema de representações totalmente diferente: o da máquina e do funcionamento.
Uma máquina funciona ou não funciona. Assim, a máquina biológica está morta ou
viva” (pp. 212/215).
Enquanto a morte está ocorrendo fora dos domínios do lar, o homem moderno
consegue bani-la da própria vida. É somente quando ela o atinge, na intimidade da
família, que ele se depara com sua realidade e com sua solidão. Porque, nesse momento,
o mundo moderno não o acolhe, antes se afasta para não contaminar-se com tamanha
impossibilidade. Vimos, com Áries (1975), que a sociedade moderna já não permite
mais que se chore o ente morto, é preciso, antes, realizar os rituais rapidamente e
retomar o curso da vida. Retomar o curso da vida para onde? Para qual encontro final,
se não com a própria morte? Não há resposta para essas questões no mundo moderno,
porque nele não há lugar para a morte.
Anderson, participante de nossa pesquisa e profissional da área de saúde, com
atuação em unidades de terapia intensiva, resumiu de forma singular a maneira como a
morte é tratada no ocidente moderno: “não existe espaço para você discutir sobre
qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso; morreu, morte clínica, pronto,
acabou. Então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto”. Ele consegue
agregar, nessa fala, todas as formas de acobertamento que o mundo moderno impõe
sobre a morte.
“Não existe espaço para discutir sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém
vai discutir isso”: a morte foi banida da cena da vida.
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“Morreu, morte clínica, pronto, acabou”: o ser humano é visto como a idéia da
máquina, descrita por Baudrillard – ou funciona, ou não funciona; o homem é reduzido
à sua forma biológica, despido de significado enquanto ser humano.
“Então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto”: a morte é sempre a
morte do outro. Cabe à família, ao outro, sofrer, velar e enterrar seu morto. Ele já não
pertence mais ao mundo, nem a dor da família diz respeito ao resto da sociedade.
O significado da morte na cultura ocidental moderna, atestada pela leitura de
diversos autores, pôde ser confirmado nessa vivência de Anderson: a morte deixou de
existir para o sujeito moderno, o que se impõe hoje é o silêncio da morte.
Guiados por esse silêncio, chegamos aos fiéis do candomblé, que nos abriram
sua voz e sua alma, contando suas histórias, deixando transparecer suas dificuldades e
questionamentos. A morte fala no candomblé, e para essa comunidade de santo falou
alto pela morte da Ialaxé do Terreiro, mãe de santo de todos os participantes. Não
encontramos um discurso único sobre a morte; nem ao menos encontramos um
discurso puro, orientado pelos fundamentos do candomblé. O que se viu foi uma
costura de saberes, de vivências em diversas religiões, de crença numa continuidade
que o candomblé não privilegia. O que se pôde apreender aqui foi que a morte não é
ignorada; ela está presente nos rituais do culto e na fala dos participantes, onde a
certeza da continuidade traz conforto e paz, ou essa incerteza se apresenta como uma
dor ainda a ser acomodada, no caso de uma de nossas participantes.
No candomblé, a morte faz parte do sistema de trocas da vida, está presente. O
fiel do candomblé se veste de branco às sextas-feiras, dia consagrado a Oxalá, orixá que
dá a vida e a morte. O leigo acredita que é uma homenagem à paz. Não é. O branco,
para o candomblé, é a cor da morte e o iniciado se veste semanalmente com sua cor, em
sinal de respeito.
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Os rituais de morte do candomblé superam os rituais modernos em tempo e
significado. São longos e sofisticados e buscam, além de dar caminho ao espírito do
morto, trazer ensinamentos àqueles que ficam: o ritual do sirrum, caminhar e recuar na
estrada da vida até o encontro final com a morte; a quebra dos pertences do morto para
não só desliga-lo das coisas desse mundo, mas também mostrar aos outros essa
ruptura; o ritual do axexê, a morte compartilhada, revisitada por sete dias consecutivos,
buscando reordenar as relações sociais dentro da comunidade; a refeição coletiva, o
mais velho cedendo lugar ao mais novo, na ininterrupta renovação da vida.
Se o ritual do axexê da Ialaxé do Axé Baraleji não pôde cumprir sua função
coletiva para o grupo pesquisado, tão pouco se mostrou vazio de significado e
aprendizado para nossos participantes. Todos eles ressaltaram a importância do ritual
e pareceram gratos por terem tido a oportunidade de vivenciar um ritual tão complexo
e raro nos dias atuais.
Além dos aspectos relacionados à morte, vimos que os fiéis do candomblé
desempenham seu papel no mundo moderno, atendendo a todas as atribuições e
exigências da contemporaneidade, desenvolvendo suas atividades profissionais,
acadêmicas e sociais. Ao mesmo tempo, compõem uma casa de santo, com pais, mães,
irmãos e uma hierarquia rígida que destoa das normas modernas. Na vivência da
religião decretam a “morte do ter”, imposição do ocidente moderno, e acolhem a
vivência do “ser” para o orixá.
Isso não significa abrir mão de conquistas materiais, pelo contrário: o fiel do
candomblé busca o crescimento em todos os níveis da vida, mas implica em uma
mudança de atitude. No mundo do candomblé as regras de poder do ocidente moderno
são quebradas e substituídas por outras, impostas pelos orixás.
166
Essa imposição, no entanto, não se traduz em dificuldade para nossos
participantes. Antes lhes significa a vida, permitindo a construção de um sistema de
mundo mais favorável do aquele que conheciam até então. E se o candomblé atravessa
os séculos conquistando adeptos é porque, como nos diz Prandi (1991),“deve oferecer
coisas muito valiosas no mercado de bens simbólicos”.
Vimos como foi possível para Fernando dar sentido aos seus sofrimentos para,
a partir daí, reconstruir uma vida plena e integrada. Como Eduardo foi capaz de
retomar projetos abandonados há décadas, por ser reconhecido, e se reconhecer
membro de uma comunidade. Vimos como Anderson, profissional com atuação em
unidades de terapia intensiva, calado pelo silêncio médico frente à morte, consegue dar
expressão às suas próprias concepções de morte e como Luciana, assaltada pela dúvida
após a morte da Ialaxé da casa, ainda preserva os valores mais caros da tradição do
candomblé.
Sujeitos da modernidade questionam o saber que se aprende no vivido,
reivindicando ensinamentos formais acerca dos rituais religiosos. Mas o próprio grupo
nos deu a confirmação de que essa exigência não se sustenta em relação às práticas
ritualísticas e ao saber iniciático. Luciana, participante que foi a voz dissonante do
grupo frente à realidade da morte, “conheceu” diversos rituais do culto antes de
“vivencia-los”, inclusive o de iniciação. Se isso não causou prejuízo ao seu desempenho
dentro da casa de santo, cobrou um custo alto de Luciana na experiência do vivido com
que se deparou nos rituais de morte da Ialaxé.
Filhos de santo do candomblé, convivem com os orixás de forma integrada. E
buscam também integrar suas várias vivências, seus diversos papéis, formando uma
síntese capaz de lhes assegurar uma vida melhor.
Por todas as falas e experiências desses indivíduos que, ora se aproximam, ora
se afastam, aprendemos que o candomblé é uma religião de convergência: não exclui
167
saberes, não exclui posições ou pontos de vista, acolhendo em seu berço todas as
possibilidades do humano.
Outras questões se apresentaram no decorrer da pesquisa. Por escaparem ao
nosso objeto de estudo, ficam registradas, até que um novo momento possa lhes dar a
voz: ainda dentro dessa comunidade poderia ser aberto o diálogo com filhos de santo de
outro extrato social e nível educacional diferente dos participantes da pesquisa, para
escutar-lhes as diferenças ou ampliar as convergências a respeito dessa vivência de
morte e do ritual de axexê, que para o grupo pesquisado impôs o cumprimento doloroso
de uma tradição.
A relação de poder imposta por uma hierarquia rígida determinada pelo tempo
de culto entra em conflito com as regras do mundo moderno, onde o poder econômico
se impõe, e essa luta é travada dentro do terreiro, quase sempre de forma velada. Nessa
batalha estão bastante claros os opostos das duas culturas: candomblé x ocidente
moderno; interessante seria poder observar e tentar compreender como se desenrola
esse embate nas comunidades de santo.
O fato de três participantes da pesquisa, que “viram no santo”, terem
ingressado no candomblé pela porta da dor e, os demais, não sujeitos à possessão pelo
orixá, afirmarem terem entrado pelo amor ou pela curiosidade, nos levou a levantar a
hipótese que fica aqui carente de resposta: o ingresso e permanência na religião é uma
imposição para os filhos de santo sujeitos à possessão pelo orixá, e uma escolha para
aquelas pessoas que não estão sujeitas a essa possessão?
As conseqüências da imposição do kelê foram retratadas como de extrema
dificuldade para as participantes do sexo feminino, enquanto os participantes do sexo
masculino sequer mencionaram esse importante período da obrigação de iniciação; esse
poderia ser o ponto de abertura para um estudo das questões de gênero no candomblé.
Poder-se-ia, ainda, traçar um ponto de intersecção entre a tradição da oralidade
no candomblé e a necessidade de conhecimento alegada por esses filhos de santo, atores
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do século XXI, buscando identificar até onde essa necessidade é legítima ou fruto do
hábito moderno do consumo de informação.
Questões acerca da mudança de algumas tradições do candomblé, como a
inserção do hábito moderno da cremação, por exemplo, poderiam ser bastante
exploradas, a fim de compreendermos até onde a cultura ocidental moderna pode
avançar sobre a cultura do candomblé sem desfigurar-lhe ou ameaçar-lhe a existência.
E, por último, levados pelas diferentes motivações de chegada à religião e
diferentes formas de lidar com a morte observada, os participantes da pesquisa
deixaram em aberto a possibilidade de um estudo através do enfoque psicodinâmico,
que não foi por nós explorado, uma vez que nossa pesquisa objetivou olhar para o tema
da morte sob o viés da psicologia, mas focada em sua dimensão cultural.
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6.GLOSSÁRIO
Abassê – Pessoa responsável pela preparação das comidas rituais e pela cozinha de um
terreiro.
Abiã – aspirante; literalmente, o que vai nascer.
Adoxu – iniciado que recebeu o oxu, sacralização da cabeça através da feitura do orixá.
Aiye – terra, mundo dos homens; a existência física e palpável.
Alabê – título que designa o chefe da orquestra dos atabaques encarregado de entoar
os cânticos das distintas divindades.
Alguedá – prato fundo de barro.
Ara – corpo.
Assentamento de santo – o mesmo que assento, altar do orixá. Objetos ou elementos
da natureza (pedra, árvore, etc.) cuja substância e configuração abrigam a força
dinâmica de uma divindade. Consagrados, são depositados em recintos apropriados de
uma casa-de-santo. A centralidade do conjunto é dada por um otá, pedra-fetiche do
orixá.
Assentar o santo – preparar o corpo da inicianda para servir de moradia ao orixá.
Axé – força sagrada dos orixás; força vital que move o mundo.
Axé Baraleji – nome da casa de santo comandada pelo Babalorixá Tito de Omolú,
localizada em Santo Antônio do Descoberto, entorno do DF.
Axé Opô Afonjá – Ilê Axé Opô Afonjá: nome de uma das casas de santo mais antigas e
ainda existentes no Brasil, em Salvador, e origem de tradição do candomblé Ketu.
Axexê – rito fúnebre em que os assentos dos orixás do morto são quebrados e
despachados juntamente com o despacho de seu espírito ou egum.
Axogum – iniciado masculino, encarregado do sacrifício ritual de animais.
Babalaô – sacerdote do oráculo de ifá, adivinho.
Babalorixá – pai de santo; autoridade máxima de um terreiro e dirigente do culto no
candomblé.
Barco – termo que designa o grupo dos que se iniciam em conjunto. Suas dimensões
são variáveis. Há barcos de mais de vinte iniciandos e "barcos-de-um-só". Através do
barco se consegue a primeira hierarquização dos seus membros na carreira iniciática.
Como unidade de iniciação gera obrigações e precedências imperativas entre os irmãos-
de-barco ou irmãos-de-esteira.
Barracão – salão em que se fazem as cerimônias de dança pública dos orixás.
170
Bolar no santo – declaração em público do orixá que quer a iniciação de seu filho. A
outra forma dele dizer que seu filho deve ser iniciado é através do jogo de búzios.
“Bolar", ou "cair no santo", é indício da necessidade da futura iniciação. Geralmente
acontece quando a pessoa participa de um "toque de atabaque" e o orixá a incorpora,
ainda no estado denominado de "bruto". A pessoa passa por um desmaio ou perda dos
sentidos. Nesse momento o orixá se faz presente. Por não ter sido devidamente feito,
não há reações, tais como, andar ou algum tipo de comunicação, mesmo através de
simples atos como de balançar a cabeça respondendo as perguntas feitas.
Bori – obrigação dada à cabeça; primeiro rito de iniciação no candomblé.
Cabaça – fruto do cabaceiro. Sua carcaça é freqüentemente utilizada nos cultos afro-
brasileiros como utensílio ou instrumento musical.
Carrego – herança de obrigação religiosa de outra pessoa; obrigação religiosa em
geral.
Dofona (o) – hierarquia de um mesmo barco de iniciados; designação para o primeiro
ou mais velho iniciado de um barco.
Dofonitinha (o) – hierarquia de um mesmo barco de iniciados; designação para o
segundo iniciado de um barco.
Ebomi – iniciado no candomblé que já atingiu a senioridade, literalmente, meu irmão
mais velho; Pessoa veterana no culto; título adquirido após a obrigação de sete anos.
Egun – espírito de morto, antepassado.
Egungun – o mesmo que egun.
Ekede – cargo honorífico circunscrito às mulheres que servem os orixás sem,
entretanto, serem por eles possuídos. É o equivalente feminino de ogã.
Emi – vida, sopro vital.
Erê – espírito infantil que acompanha o orixá do iniciado. Termo que caracteriza um
estágio de transe atribuído a um espírito-criança.
Exu – orixá mensageiro, dono das encruzilhadas e guardião da porta de entrada da
casa; sempre o primeiro a ser homenageado.
Fazer o santo – iniciação ou processo em que os duplos sobrenaturais dos elementos
psíquicos da pessoa são fixados em um objeto simbólico e sua contraparte é fixada na
cabeça do iniciado.
Gantois – terreiro fundado em Salvador, Bahia, em 1849; localizado no Bairro da
Federação.
Ialaxé – titulo honorifico geralmente ostentado pela própria mãe-de-santo,
significando "mãe-do-axé" ou "zeladora-do-axé".
Ialorixá – mãe de santo; autoridade máxima do terreiro, do sexo feminino.
171
Iansã – orixá dos raios, dos ventos e das tempestades.
Iaô – primeiro grau da carreira iniciática dos que entram em transe de orixá; termo
que designa o noviço após a fase ritual da reclusão iniciatória. Em iorubá significa
"esposa mais jovem".
Iapaoka – orixá feminino, considerada mãe de oxossi.
Iyabá – qualquer orixá feminino.
Iemanjá – orixá dona das águas, senhora do mar; mãe dos orixás.
Ifá – orixá do oráculo.
Iku – a morte.
Ilê – casa.
Ilê axé – casa de santo; casa sagrada.
Ilê Owow Omo Omolú – literalmente, casa dos filhos de Omolú; terreiro de
candomblé localizado em Santo Antônio do Descoberto, entorno do Distrito Federal.
Maé – ajudante do pai de santo na administração dos recursos mágicos. Segunda
pessoa na hierarquia do Axé Baraleji.
Irmã de barco – irmã de esteira; pessoas que se iniciaram em conjunto.
Ixã – vara de madeira utilizada para manter os eguns (espírito dos mortos) à distância.
Jogo de búzios – oráculo do candomblé.
Joye – ekede que recebeu o adoxu.
Kelê – colar de contas que as iniciandas trazem no pescoço; sinal de sujeição.
Ketu – subdivisão da nação dos nagôs; é a maior e a mais popular "nação" do
candomblé, religião afro-brasileira.
Lesse Egun – culto dos eguns, culto dos mortos.
Lesse Orixá – culto dos orixás.
Mãe Pequena – auxiliar do pai ou mãe de santo, segunda na hierarquia.
Mariow – folha nova da palmeira de dendê; usa-se geralmente desfiada.
Nanã – orixá do fundo dos lagos, dona da lama.
Odu – signos do oráculo iorubano, formados de mitos que dão indicações sobre a
origem e o destino do consulente. Odus são divindades enviadas por Orunmilá para
ajudar os homens.
Ogã – cargo sacerdotal masculino do candomblé; cargo superior, mestre.
Ogum – orixá da metalurgia, da agricultura e da guerra.
Ojá – pano branco que as filhas de santo usam na cabeça, como um lenço.
Ojé – sacerdote do culto dos mortos.
Oloducê – grande caçador dos tempos míticos.
Olorum – literalmente, dono do céu, dono do Orum.
172
Omolú – orixá das pestes, da varíola, das doenças contagiosas.
Opaxorô – longo bastão de prata usado por Oxalufã. Cajado.
Opô Aganjú – Ilê Axé Opo Aganjú; terreiro de candomblé localizado em Salvador, BA.
Ori – cabeça, destino.
Orixá – divindade, deus do panteão ioruba.
Orum – céu, mundo sobrenatural, mundo dos orixás.
Orunmila – orixá do oráculo.
Osé – semana, limpeza semanal dos assentamentos de santo. Em alguns terreiros a
limpeza é realizada mensalmente.
Ossaim – orixá das folhas; orixá que cura com as ervas.
Oxaguiã – Oxalá jovem.
Oxalá – o mais poderoso dos orixás no candomblé brasileiro; orixá da origem e da
criação.
Oxalufã – Oxalá velho.
Oxum – orixá das águas doces, do ouro, da beleza e da vaidade.
Oxum Omim Ladê – nome do orixá da mãe de santo do terreiro Axé Baraleji, Verinha
de Oxum.
Oxossi – orixá da caça.
Padê de Exu – oferenda destinada a Exu composta de farofa de farinha de mandioca
com dendê, água ou aguardente.
Panã – a festa da quitanda dos iaôs; literalmente, final do castigo.
Palha da Costa – tipo de palha proveniente da Costa da África, com que se designa a
região sudanesa da África Ocidental (Golfo da Guiné). Usa-se trançada em diferentes
artefatos litúrgicos.
Pai de Santo – babalorixá; autoridade máxima de um terreiro e dirigente do culto no
candomblé.
Pai Pequeno – auxiliar do pai ou mãe de santo, segundo na hierarquia.
Pegigã – responsável pela conservação dos altares dos orixás.
Quartinha – vasilha de cerâmica ou barro, onde se coloca água diante do altar do
orixá; espécie de pequeno vaso com tampa.
Roncó – literalmente, caminho; nome do quarto onde o iniciado permanece sem o
contato do mundo profano até o término da sua iniciação.
Roupa de ração – roupas simples para uso durante as obrigações e permanência no
terreiro.
Sabagi – quarto contíguo ao roncó, ante-sala.
Sirrum – rito fúnebre nas nações de candomblé jejes.
173
Terreiro (casa de santo) – local de culto, designa também a comunidade de
candomblé.
Tojú – nome sagrado da Joye Luciana.
Xangô – orixá do trovão e da justiça.
174
7. REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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178
8. ANEXOS
8.1. Íntegra da fala dos Participantes – Entrevista semi-estruturada
Participante 1: Anderson
Sexo masculino, 26 anos. Professor Universitário e Fisioterapeuta.
Oito anos de participação no candomblé. Seis anos de iniciação. É filho de Oxalá,
Iaô do Axé Baraleji.
Quando eu era criança, com mais ou menos uns seis anos de idade, numa viagem de família, no
Espírito Santo, minha irmã passou mal na praia, no mar, dentro da água, ela ficou
desacordada e a gente a resgatou, salvou ela, e na mesma madrugada, na madrugada desse dia,
eu vim a ter uma crise convulsiva sem febre, sem nada. Quando voltamos a Brasília, fomos
fazer exames e não se diagnosticou nenhuma doença, mas mesmo assim a gente continuou
fazendo tratamento como se fossemos epilépticos, os dois. Minha irmã teve essa crise uma única
vez e eu, quando a gente voltou pra Brasília, eu continuei tendo várias crises sucessivas. Fiz o
tratamento medicamentoso com anticonvulsivante, essas medicações pra crise convulsiva, só que
não controlou. Um tio meu que era espírita, que freqüentou muito tempo o Alan Kardec e a
umbanda, convenceu os meus pais a me levarem para tomar um passe num centro umbandista e
assim eu fui; isso devia já ter uns nove anos de idade. Quando eu entrei na casa eu apaguei, eu
apaguei, eu realmente não lembro o que aconteceu e parece que eu tive uma crise e dessa crise
uma entidade se manifestou, um espírito dizendo se chamar pai Tomas, que era um preto velho
e ele deu algumas orientações a respeito do que estava acontecendo comigo. Nesse momento, eu
tive uma crise, como eu tinha rotineiramente em casa, e na rua também, e ele se manifestou e deu
o nome dele e contou toda uma estória do que estava acontecendo comigo: que era uma questão
espiritual, que tinha que ser trabalhada, que tinha que ser cuidada e que minha irmã não tinha
mais tido porque na verdade era algo ruim que tinha na nossa família, que a gente tinha
herdado, e que tinha vindo para minha irmã, só que, como eu também tinha uma mediunidade
aflorada, meu orixá pegou essa responsabilidade pra ele e tirou das costas da minha família.
Então, ele pegou toda essa carga negativa que havia da nossa descendência e trouxe para ele
como uma responsabilidade espiritual, isso foi o que essa entidade disse quando eu tinha nove
anos de idade, e que eu deveria buscar alguma orientação espiritual pra dar uma continuidade
a esse caminho, e assim foi feito. Eu continuei nesse centro, mas também freqüentei o Alan
Kardec. Fiz alguns estudos no Alan Kardec, cursos da doutrina kardecista e continuei na
179
umbanda; na umbanda eu fiz a educação mediúnica, onde trabalhei muitos anos com as
entidades da umbanda. Em um determinado momento na umbanda, eu me tornei o pai pequeno
dessa casa que eu freqüentava, isso com dezessete anos de idade. Era, então, a segunda pessoa
responsável pela casa, só que minhas entidades me orientaram que meu tempo ali estava se
extinguindo e que iria ter outros caminhos que eu iria ter que trilhar, só que eu não sabia que
outros caminhos, porque eu nunca tinha pisado num terreiro de candomblé, nunca tive o
interesse de ir a um terreiro de candomblé, nunca tinha ido nem tinha sido convidado, muito
pelo contrário, eu tinha muito preconceito ao candomblé. Mas minhas entidades falaram que eu
iria acabar saindo dessa casa, e foi o que realmente aconteceu: eu me desliguei dessa casa. Então,
eu continuei trabalhando com as minhas entidades, só que não busquei lugar nenhum, não
busquei outra casa, não busquei outro centro, não busquei nada, continuei trabalhando e
atendendo as pessoas que vinham, e aí ocorre o seguinte, estava fazendo o curso de fisioterapia
na época, minha graduação, e surgiu uma oportunidade de eu fazer um estágio em Salvador,
num dos hospitais de maior referência dentro de uma área que eu gosto, que é a área que eu
estou atuando hoje em dia, que é de terapia intensiva. Fiquei mais ou menos um mês e meio em
Salvador, um mês no hospital e tirei mais quinze dias pra passar férias. No meu período de
férias em Salvador, eu fui ao Pelourinho e perguntei se havia alguma casa de umbanda que eu
pudesse conhecer; eles falaram que de umbanda não, mas que havia uma casa de candomblé que
é uma referência no Brasil, o Ilê Axé Opo Afonjá. Lá, eu conheci mãe Stela. Ela jogou os búzios
e me disse: “você caminhou de Brasília a Salvador, Oxossi te trouxe de Brasília a Salvador pra
que você encontrasse o seu caminho”. Aquilo me bateu muito forte porque era realmente o que as
entidades com as quais eu trabalhei durante muitos anos me falavam, que eu não iria buscar,
que iria aparecer para mim alguém, alguma situação que iria me fazer dar continuidade a
minha. Como eu morava em Brasília, ela recomendou que eu buscasse duas pessoas em Brasília
– Railda de Oxum ou Tito do Omolú, que é o meu atual pai de santo. E assim, eu voltei pra
Brasília, só que eu não procurei ninguém, eu não fui atrás nem de Tito do Omolú e muito
menos de Railda de Oxum. Só que ocorreu o seguinte, eu continuava freqüentando o centro
kardecista, que é a fraternidade Alan Kardec em Taguatinga, e tinha a mocidade jovem, que é
um grupo jovem que se reunia aos domingos e a gente saiu num domingo qualquer e fomos todo
mundo pra um rodízio de pizza; isso já tinha se passado pelo menos uns seis meses de eu tendo
retornado de Salvador, e nesse rodízio de pizza conheci várias pessoas, e uma delas era filho
carnal de pai Tito do Omolú. Conversamos um pouco e surgiu o papo de religião, e ele
comentou que ele era de candomblé, que ele era filho de um pai de santo daqui de Brasília, que
se chamava Tito do Omolú. Quando ele falou que o nome do pai dele era Tito do Omolú, eu
estava em pé, simplesmente sentei na cadeira e fiquei calado, comecei a rir, eu não falei
absolutamente nada. Mas nessa hora realmente me deu um estalo, eu pensei: gente, eu não fui a
180
Salvador correr atrás disso, eu voltei a Brasília e não corri atrás disso, a coisa mais uma vez
está batendo na minha porta, falando pra eu procurar, pra eu seguir, então eu vou conhecer.
Então, eu fiz amizade com esse rapaz e um dia ele me convidou um dia pra ir à casa de santo.
Conheci Pai Tito e ele falou pra eu marcar um jogo de búzios, só que eu nunca marquei esse
jogo, e aí eu comecei a bolar no santo, e foi quando eu vim a saber o que era bolar no santo,
experiência que eu já tinha desde os meus seis anos de idade. Numa sexta-feira, ao amanhecer
do dia, ele fez um jogo pra mim, e disse que eu era filho de Oxalá, e me falou um pouco desse
orixá, me falou um pouco sobre o que representava o candomblé, falamos um pouco sobre a
religião e começou a ter essa afinidade. Então, normalmente, a gente fala que ou chega pela dor,
ou chega pelo amor; eu acho que não cheguei nem pela dor, nem pelo amor; eu digo que eu fui
encontrado pelo candomblé; eu não estava sofrendo, não estava com doença, não tinha nada; eu
cheguei meio que num chamado, porque eu não fui atrás, ele veio atrás de mim, dentro de um
contexto que já havia me sido dito, isso as minhas entidades falavam: olha você vai ter a
continuidade de um novo aprendizado, dentro de uma nova escola, dentro da espiritualidade, e
foi assim que eu realmente cheguei à religião.
Eu me formei, melhorei de emprego, estou trabalhando, continuo trabalhando, continuo
estudando, eu acho que continuou a lei natural do que eu buscava, independente do candomblé,
eu continuei fazendo meu curso de graduação, terminei, já trabalhava na época, continuei
trabalhando e as coisas foram se encaminhando, dentro do que eu fui buscando também, eu não
sei se, necessariamente, a religião me influenciou, porque eu nunca coloquei a religião como
ferramenta pra abrir portas pra minha vida; eu acho que se abriram que bom, mas eu não as
utilizei como ferramentas para isso, diretamente não. Eu acho que influenciam, mesmo porque
meu estado de espírito me motiva a buscar novos horizontes, mas não necessariamente; eu acho
que a religião pode ser um instrumento, ou não, depende muito da postura da pessoa, depende
muito do que ela faz por ela mesma, antes da religião; a religião, eu acho que é um adendo, algo
a mais, e não a base pra isso, e para mim foi, também, dar seguimento a um processo espiritual
iniciado na infância.
A morte, pra mim, ela nunca foi algo que me assustasse, nem antes, nem durante, nem depois do
axexê de mãe Vera. Nunca foi algo que me assustasse. Desde a minha infância eu sempre lidei
com situações de morte. Eu via pessoas mortas que conversavam comigo. Era minha tia que
morria, e que antes de morrer ela veio e apareceu pra mim, e conversou comigo; minha avó que
morreu, e eu a via dentro de casa, e conversava com ela; isso quando eu era criança, e
conversava com ela normalmente, quando ia dormir ela ficava no meu quarto, ela me colocava
pra dormir, então, eu tive, acho que pela minha infância, na época eu achava muito esquisito,
181
muito estranho, mas eu tinha uma presença muito grande de pessoas que já morreram dentro da
minha vida, eu via, eu conversava, eu me assustava, elas me assustavam, eu chorava, eu
pressentia, então, isso, acho que me trouxe uma proximidade com a questão vida e morte muito
grande. Assim, nunca me foi um problema, então, eu sempre encarei a morte não como fim, eu
sempre vi continuidade na morte, porque eu vi pessoas mortas que conversaram comigo.
É um pouco complicado, porque a nossa cultura, a cultura ocidental, ela não é como a cultura
oriental, em que isso é na verdade natural, a morte é algo natural pra eles e muitas vezes até
motivo de celebração. Para nós, é exatamente o contrário, é motivo de tristeza, é o fim, é a
perda, que a pessoa quer extirpar aquele momento da vida dela o mais rápido possível, pra que
ela sofra o mínimo possível. Então, eu vejo isso quase todos os dias, eu vejo com certa tristeza,
porque eu acho que é muito mais saudável você entender a morte como algo natural, e sofrer
menos com isso, do que a postura ocidental, de você ter a morte como uma coisa sofrida, ou como
um fim. Eu vejo como uma coisa triste, eu acho que as pessoas poderiam, não pensar como eu
penso, mas, talvez, buscar menos a questão materialista da coisa, e mais a questão espiritual da
vida. Eu acho que seria mais fácil viver, eu acho que seria mais feliz viver, mais agradável
viver, do que a visão ocidental da morte como o fim de tudo.
A minha postura é me calar, me fechar, porque as pessoas ali pensam diferente de mim, então eu,
dentro do serviço em si, da prática da coisa, no meu trabalho, não existe espaço pra você discutir
sobre qualquer coisa ligada à morte, ninguém vai discutir isso, morreu, morte clínica, pronto,
acabou, então, agora, a família vai sofrer e velar o morto, ponto.
O ritual de axexê do candomblé, eu acho muito complicado dentro do contexto da nossa
sociedade, porque os próprios filhos de santo não têm, não cresceram dentro de uma mentalidade
que os favorecesse a entender o ritual. E o tempo, que muitas vezes nós mesmos passamos dentro
da casa de candomblé, não nos favorece, também, a muitas vezes compreender a amplitude que
esse ritual quer nos passar ou deveria nos passar. Então, é um choque, é um choque, porque se
nós tivéssemos essa criação, essa bagagem, eu acho que seria muito bom, porque, na verdade, o
ritual do axexê é um ritual de celebração, não um ritual de sofrimento, de perda, de desespero. É
um ritual de partida, mas de partida pra um outro mundo, e que existe uma continuidade, que
são os oruns, e que aquele espírito é eterno, só que agora num outro plano. Mas a gente não tem
essa concepção, a gente não foi criado pra entender isso, então é doloroso, eu acho que, muitas
vezes, é estender a dor das pessoas. O problema não é o ritual do axexê; o problema são as
pessoas, que não estão preparadas para o ritual do axexê. O ritual do axexê vem antes das
pessoas, ele é mais antigo do que nós, somos nós que não estamos inseridos nesse contexto. Esse
182
axexê da mãe Vera, eu não gostei; esse em específico eu não gostei porque, não pela minha pessoa
em si, somente, mas pelo contexto em que ele aconteceu, a maneira com que ele foi feito, as
pessoas, o sofrimento das pessoas que estavam ali inseridas, e é o que eu falei, foi realmente o
choque, as pessoas que estavam participando daquele axexê não estavam preparadas pra aquele
tipo de ritual, então, eu acabei sofrendo.
Mas eu concordo que o tempo, o tempo, sim, ele ajuda, então eu acho que o ritual do axexê, por
ser mais prolongado, ele te leva a refletir, elaborar aquela perda, a buscar instrumentos de se
reestruturar e de se apoiar mutuamente, porque na verdade não é o ritual do funeral, que daqui
a pouco terminou o funeral, enterrou o caixão, e vai todo mundo pra casa, não; lá, na verdade, é:
terminou o ritual daquele dia, amanhã se continua, então, aquela pessoa que realmente está
sofrendo mais perda, ela vai ter o amigo, vai ter o irmão, vai ter o pai, vai ter todo um contexto
em volta que, realmente, vai lhe dar apoio. Agora, saber se, realmente, esse apoio foi eficaz nessa
situação, eu não posso afirmar.
No meu caso operou uma diferença porque, realmente, durante o ritual do axexê, eu pude pensar
no tempo que eu conheci a mãe Vera, do tempo da partida dela, todo esse período, e filtrar as
boas lembranças, e aquilo que me fazia bem em pensar em mãe Vera. Talvez, se fosse só o
momento do caixão e do cemitério e ir embora, eu não pararia pra pensar em tudo isso, em todas
as coisas que eu pensei; nesse sentido, o ritual me ajudou em muita coisa, a refletir sobre “n”
coisas que eu vivi junto com ela.
É difícil ter algum parâmetro porque a gente não lembra de quando a gente nasceu; então, a
gente perdeu o referencial do que é nascer. Eu não tenho meu referencial do que é nascer, você
não sabe o que é nascer, ou sente, ou lembra do que é nascer, a gente não lembra; então, na
verdade, a iniciação é uma sensação de renascimento no contexto de uma nova vida: eu não
deixei de ser eu mesmo, me acrescentaram coisas, então se renascer, se morrer para renascer é,
não perder a sua individualidade, mas acrescentar muitas outras coisas ao seu eu, eu realmente
renasci, e isso foi muito bom pra mim, me trouxe muito aprendizado.
Eu acho que se integra, acho que se integra, a minha postura aqui fora não é a minha postura
lá dentro, mas a religião me ajuda a entender, a compreender e a enfrentar a vida aqui fora de
uma maneira diferenciada, então, ela me influencia aqui fora, ela me acrescenta aqui fora, não
são dois papéis que não estão no palco ao mesmo tempo, eles estão no palco ao mesmo tempo, eles
estão interpretando a mesma peça, que é a peça da vida, só que são dois papéis: é o iaô Dofono
Anderson e o Anderson filho, profissional, professor, mas elas, elas interagem, elas interagem.
183
No meu caso eu acho que é muito boa, porque eu acho que eu me relaciono bem com essas outras
personalidades, digamos assim, porque elas trabalham e eu trabalho pra elas de maneira
construtiva, então, na verdade eu não as atrapalho e elas não me atrapalham, a gente se soma,
num ideal único.
Existem momentos em que eu estou nessa situação em que eu, realmente, não consigo me
lembrar, então, é uma experiência de morte, que eu já tinha na umbanda, também: são ensaios
de morte; esse tipo de situação vai fazer com que a pessoa fale: “tem algo além da minha
consciência, do meu controle; então, existe algum poder, alguma força, algum sei lá o que, que
consegue me tomar e me dominar em um ponto, ou seja na visão, ou seja na audição, ou seja no
corpo físico, na movimentação ou seja em tudo, para mim isso é um privilégio, vivenciar o orixá
e o erê, porque eles trazem muitas vezes conhecimentos que eu não conheço, elas trazem
informações que eu não conheço, então, eles me fazem ter mais a certeza de que existe um outro
plano, uma outra força, algo que é superior ao meu eu, e que nesse estado de transe isso se aflora,
é uma manifestação que eu não sei definir ou como fazer para que seja mais ou menos intensa,
simplesmente acontece, como uma morte curta, uma morte temporária.
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Participante 2: Eduardo
Sexo masculino, 41 anos. Empresário e economista.
Doze anos de participação no candomblé. Seis anos de iniciação. É filho de
Oxossi, Ogãn do Axé Baraleji.
Eu acredito que, essa simpatia pelo candomblé, posso atribuir a uma herança de família.
Quando criança, freqüentei muitos terreiros, muitas casas de santo, não no candomblé, mas de
umbanda, através de meu pai, minha mãe. Participava dos rituais, gostava. Mas durante
minha adolescência, eu procurei vários caminhos, na igreja católica, na igreja protestante,
messiânica, e não me encontrei em nenhum desses lugares. Participei, freqüentei, inclusive até a
igreja mórmon, e não me encontrei em nenhum desses lugares. Mesmo depois de eu ter
participado de vários cultos, vários rituais, várias iniciações dentro de cada um desses
segmentos, eu não me encontrei e, com o passar dos anos eu fiquei sem freqüentar nenhuma casa
religiosa. E, então, eu tive a oportunidade de conhecer o candomblé. Por curiosidade, eu fui
numa casa de candomblé, comecei a visitar, participar das festas, e fui me integrando. Quando
eu vi, já estava participando do culto e me iniciei no candomblé, como nós dizemos, eu fiz
santo.
Minha vida, antes de entrar para o candomblé, eu posso resumir dizendo que era uma vida
vazia, sem objetivo, sem crença; mas depois que entrei para o candomblé, aconteceu essa guinada
em minha vida, mudou completamente. A minha vida profissional mudou completamente, houve
um progresso muito grande profissional na minha vida depois que eu entrei paro o candomblé.
Eu, com certeza, afirmo que essas mudanças positivas que ocorreram na minha vida foram em
virtude dos conhecimentos, na crença, que me fizeram progredir, isso eu tenho certeza absoluta.
Minha vida, antes do candomblé, era uma vida comum, pacata, trabalhar, ir pra casa, de casa
pro trabalho e só. Eu tinha objetivos de vencer na vida, mas a força, o empurrão que eu
precisava para minha carreira ir para frente, a busca do encontro comigo mesmo se deu no
candomblé. Inclusive os meus estudos, que estavam paralisados, há vinte anos que eu não
estudava, depois de eu me iniciar no candomblé eu tive o apoio, eu tive o incentivo de retomar os
meus estudos e hoje eu estou concluindo minha graduação. Esse incentivo, eu posso dizer que
vem um pouco das pessoas, um pouco do orixá; é uma mistura, pouco de cada, não é
especificamente só do orixá, ou só de uma pessoa, só da comunidade, é um pouco de tudo, um
conjunto que te dá essa força, e faz com que você toque o barco pra frente. Minha vida agora é
completamente diferente; o candomblé,em relação a outras religiões, e eu conheço várias outras
religiões, ele te cobra muito pouco, ele te deixa bem à vontade, e por amor ao orixá, você se
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dedica; você deixa fluir a sua integração com o orixá, você começa a se integrar, sentir falta
daquilo ali, e não tem aquela cobrança de você tem que ir, você tem que fazer, você tem que
contribuir, não tem essa cobrança, é uma coisa bem natural, espontânea.
Eu me considero uma pessoa integrada com o Orixá, eu não sou um figurante, eu sou uma
pessoa integrada, então tudo na minha vida muda a partir desse momento e desse encontro
comigo mesmo, dessa integração, tudo depende daquilo, a crença está em primeiro lugar, e essa
crença me leva pra frente.
Eu tenho várias concepções sobre a morte, várias concepções; tem aquela concepção que a gente
aprende desde criança, que a gente herda da sociedade; tem a concepção da casa de santo, que a
gente vai aprendendo aos poucos. Poucas pessoas têm a oportunidade de conviver com uma
morte dentro de uma casa de santo, é uma coisa rara. Geralmente, as pessoas de santo vivem
mais, são pessoas já bem velhas, morrem de velhice, são raras as pessoas que tem a oportunidade
de participar, de conviver com a morte de um membro da casa de santo. Eu tive essa
oportunidade, de conviver com duas pessoas, com uma Ialorixá e com uma Iaô. Tive essa
experiência, da morte de duas pessoas da mesma comunidade; foram duas mortes distintas: foi
uma irmã de santo, que fez santo junto comigo, e que veio a falecer de um crime bárbaro, essa
eu senti bastante a morte dela, mas encarei com naturalidade, acreditando que era o caminho
dela morrer desse jeito, então, eu aceitei com mais naturalidade, depois de me conscientizar que
aquele era o caminho dela, que aquele era a missão dela, ela teria que passar por aquilo, e foi
daquele jeito, que tinha que ser. Já a morte da nossa Ialorixá foi uma morte mais demorada,
uma doença que se estendeu por dois anos até o falecimento, já era uma morte esperada; não foi
igual à outra, que foi uma fatalidade; então, eu encarei com naturalidade, era uma doença
genética, de família, ela teve vários familiares que morreram dessa doença. Passamos dois anos
tentando todos os recursos possíveis pra prolongar a vida dela, mas já era sabido que não tinha
jeito de evitar, devido à gravidade da doença, então, encarei com naturalidade, também. Eu não
sei se porque o meu orixá de cabeça é um orixá que não teme a morte, e eu não sei se por esse
motivo eu, também, não tenho medo da morte, a morte pra mim é uma passagem, é só uma
passagem, eu encaro ela com muita naturalidade, e vejo como uma passagem; não temo a morte,
não tenho receio dela... Acredito que quando a pessoa morre ela vai para um outro plano e
acumulando as experiências aqui vividas, ela possa ser útil em outra esfera, outra dimensão.
A questão da participação no ritual do axexê, eu acho que tem dois casos: pessoas que recém
chegaram, que ainda não estão integradas na sociedade, e tem pessoas mais antigas que, não sei
se por causa da ignorância, não deixam a coisa fluir naturalmente, fazem do ritual uma
repetição, aprende por repetição e por participação, então, eu acredito que algumas pessoas não
186
tem uma bagagem cultural pra entender o significado de um ritual e faz por repetição, porque
todo mundo fez. Se você perguntar: porque é feito desse jeito? Eles não sabem responder. Ah,
não sei, todo mundo faz, sempre fez desse jeito; e têm aqueles mais curiosos, que são mais
instruídos, e que procuram saber o porquê que tão fazendo aquilo ali pra poder aprender o
significado; eu acho que a partir do momento em que você entende o significado das coisas você
começa a integrar a comunidade como um todo.
Os rituais fúnebres da sociedade moderna são diferentes do candomblé. No candomblé é
completamente diferente, é um ritual muito longo, de acordo com o cargo que a pessoa falecida
ocupava. Aqui fora, os rituais fúnebres, são precedidos de um velório, que geralmente dura uma
noite, e no dia seguinte a pessoa é sepultada, existe rituais de missa, orações que são feitas, e no
dia seguinte a pessoa é sepultada, rapidamente. No candomblé, além do ritual de sepultamento
ou cremação, existem os rituais religiosos que nós denominamos de axexê, para que o seu
espírito parta em paz. No axexê, os bens materiais da pessoa falecida, são destinados, através do
jogo de búzios, é dado destino a essas coisas materiais que essa pessoa usou quando viva: roupas,
jóias, os bens materiais em geral.É um processo mais longo e muito cansativo, não é um
processo fácil não, é feito em cima de obrigações, onde participam todos os filhos de santo da
casa, pessoas de fora também participam, é um ritual aberto...
Pra mim, essa experiência, essa vivência desse ritual fúnebre, foi um ritual em que, com a
participação de toda a comunidade, ficou mais fácil a aceitação da passagem dessa pessoa desse
mundo para outro mundo. Esse ritual é muito longo, mas com a participação de toda a
comunidade, eu acho que se tornou mais fácil a aceitação da passagem dessa pessoa e para mim,
com certeza, se tornou mais fácil.
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Participante 3: Luciana
Sexo feminino, 36 anos. Professora de Educação Física e estudante de Direito.
Vinte anos de participação no candomblé. Sete anos de iniciação. É filha de
Iapaoka, Joye do Axé Baraleji.
Eu vim conhecer uma casa de candomblé através de um amigo, o Fernando, que hoje é Maé
dessa casa. Vim numa festa de Xangô, exatamente em 1986, eu tinha 16 anos e fiquei muito
encantada. Claro que, com 16 anos, com a base que eu tinha kardecista, que minha mãe carnal e
meu pai carnal são kardec, eu fiquei muito encantada com todo o folclore, todo o místico que
envolvia a arrumação, a ornamentação de uma casa de candomblé. O Axé Baraleji não é hoje a
estrutura que era em1986, o barracão ainda estava em construção, foi uma das fogueiras
maiores que eu vi serem construídas nessa casa pra festa de Xangô, e aquilo tudo me encantou
muito, então na verdade foi esse encantamento pela vestimenta do orixá, uma relação muito
profunda que eu senti em relação ao orixá Oxum, de mãe Vera, Ialorixá da casa do Axé
Baraleji, que me trouxe ao mundo do candomblé. Então a minha chegada no candomblé veio
dessa forma, sendo que minha mãe, meu pai, eles eram clientes, na verdade, do Tito, Pai Tito,
que eu conhecia de uma forma muito informal na casa de Taguatinga. Então, eu entrei a
primeira vez numa casa de candomblé como uma visita, como todas as pessoas entram, através
de amigos, e fui me envolvendo com os preparativos, com as coisas que pertencem ao mundo da
festa do candomblé e quando foi em 1989, aí eu já estava casada com o Fernando, já pertencia
de alguma forma, como uma visita, mas já participava de todo o ritual que precede o ato do
candomblé. E só em 90, depois da feitura do Fernando, foi que eu fui iniciada, em 91, então,
quer dizer, meu ingresso na casa de candomblé foi como uma visita, a minha paixão foi por esse
orixá, amor ao orixá Oxum, por Omim Ladê, que é a santa de Mãe Vera, e daí pra frente foi
uma longa estrada.
A tradição diz que as pessoas vêm por amor, porque já conheciam o candomblé e se instalam
numa casa de santo, para mim foi um outro; eu acredito que eu me encaixe mais na questão do
amor, do que na questão da dor; eu era uma jovem, não tinha problemas pessoais que me
trouxessem, me levassem pro candomblé, não bolava no santo, ou seja, não passava mal, digamos
assim, na rua ou em outros lugares pra que eu procurasse uma ajuda espiritual no sentido de
harmonizar as energias; não por problemas financeiros, eu era uma estudante, mas sim por ter
ficado deslumbrada realmente com aquela energia que envolveu aquele momento no candomblé.
Eu freqüentava o kardec, que é uma coisa bastante diferente do rito do candomblé, mas que
procura de alguma forma obter uma estrutura em relação a ajudar as pessoas, em relação a
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propiciar uma estabilidade emocional, financeira, espiritual, tanto como o candomblé, mas ele
mexe com energias diferentes do candomblé. Na verdade, houve uma grande mudança quando
entrei para o candomblé, porque eu era kardec pelos passos da minha mãe e do meu pai, mas dos
12 anos de idade aos 15 anos de idade eu não tinha nenhuma crença, não tinha nada que me
fizesse acreditar que na verdade existia uma força ou um Deus que movimentasse o universo.
Fui batizada, fiz primeira comunhão por que estudei todo um período num colégio católico,
então quer dizer, você se acostuma com aqueles atos, com aquela tradição, mas não encontrei no
catolicismo um berço que me aconchegasse, não consegui acreditar na pureza das atitudes
daquelas pessoas, nem naquele Deus, que acredito, hoje, ser universal e único, que aquelas pessoas
naquele momento cultuavam, fosse bom. Dos 12 até os 15 anos, que é o período que precede a
minha entrada no candomblé, eu fui extremamente revoltada com as coisas que pertencem ao
mundo material, no sentido de ver a pobreza, como que um Deus cria a pobreza, como que um
Deus deixa as crianças morrerem por falta de atendimento, por não terem condições de serem
tratadas, como é que ele cria a miséria, quer dizer, são coisas que eram muito conturbadas na
minha cabeça.
Nesse período, talvez pela falta de maturidade, eu não acreditava de forma alguma que existia
uma força que você deveria reverenciar, ou que você deveria agradecer, ou que você deveria
pedir ajuda; eu achava que as pessoas conseguiam as coisas porque batalhavam por elas. À
medida que eu fui adentrando no candomblé eu fui conhecendo um mundo energético, digamos
assim, eu entendo o candomblé como uma energia, como a materialização da energia, como o
culto que mais mexe com as formas energéticas que elas emanam literalmente da natureza; esse
Deus passou a existir de uma forma energética como se ele pudesse ser uma energia cósmica e
que ele pudesse, de alguma forma, favorecer o andamento das coisas, até porque eu não tinha
nessa época, nesse primeiro período que eu entrei pro candomblé, eu não conseguia vislumbrar
um Deus no candomblé, na verdade eu conseguia entender que existia uma energia que me
atraia de alguma forma, que me tirava daquele status de não acreditar em absolutamente nada.
Hoje, eu até acredito que exista uma forma de energia no cosmo e que as pessoas denominam de
Deus.
Hoje eu ainda continuo achando que essa adoração que os evangélicos tem, que o católico tem,
em relação a um Deus ela é cultural, no sentido de que as pessoas buscam uma solução pro seus
problemas, buscam um amparo pro seus problemas, mas eu não acredito que exista um Deus que
tenha colocado as pessoas no mundo com o motivo delas definharem ou delas prosperarem, eu
não acredito nessa imagem cultural que as pessoas tem, eu acredito que o mundo é formado por
energias, as pessoas lamentavelmente nascem e morrem, de pessoas mais ricas ou mais pobres,
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elas vem pra um aprendizado pessoal. Eu acredito muito que a essência humana, que também é
energia, a alma que também seria uma forma de energia ela vem pra um aprimoramento.
Na verdade, o candomblé vê a morte como sendo início e fim; ele vê o odu iku que rege a
manifestação da morte como sendo início e fim, o odu mais poderoso. A morte é um dos
elementos mágicos que mais movimenta o rito do candomblé, porque é a única verdade certa do
ser humano, que é a passagem dele, de alguma forma, por esse aspecto chamado morte. Eu
entendo a morte no candomblé como sendo o inevitável, por sermos matéria, como sendo uma
das forças que eu já pude sentir, vivenciar, principalmente com a morte da Ialorixá da casa, da
forma mais poderosa entre as manifestações de todas as coisas que eu já participei ao longo de
pelo menos aí uns 16 anos, e, realmente, é inexplicável a sensação de desespero, que pelo menos
me envolveu quando participei, do medo profundo, que me levou também a questionar alguns
valores, como sendo a morte uma coisa boa, como sendo a morte uma passagem boa, se no
momento que eu vivenciei essa manifestação energética, da sensação desse caminho da Ialorixá
Vera, ter transmitido a mim tanto medo, tanto desespero, no sentido da participação dos ebós
que envolveram a pessoa dela, então pra mim, como sentimento, a morte é uma das coisas mais
fortes que existem na natureza, é como se ela pudesse ser materializada de alguma forma, não
sei como, fosse uma abertura num momento da vida de cada pessoa, que tirasse dela aquela
energia e, lamentavelmente, a experiência que se guardou em mim, que hoje me faz me
perguntar muito, porque que as pessoas tem tanto medo de morrer, talvez, de alguma forma
carreguem isso dentro da sua própria matéria, porque que elas sentem tanto medo, porque
realmente é uma situação desesperadora. Então, aquele momento, aquele exato momento quando
se iniciou a tentativa mágica da manutenção da vida, foi que me mostrou o quanto é frágil a
vida, o quanto que a morte é extremamente mais forte, porque com todo o amor que se dedicou
aquele momento, com toda a magia, com todo o conhecimento que se faz necessário na tentativa
de alguma ação de sucesso, a única sensação que eu guardei foi de medo.
Eu ainda guardo a concepção do kardecismo, de certa forma quando você é filha de pais kardec,
você não tem como não guardar esses fatos da vida ser um aprendizado, que nós somos um ser
em evolução, que nós viemos de outras experiências de vida, da história da humanidade que
sucessivamente esses fatos irão acontecer em algum espaço e tempo futuro. Não tem como você
nascer num berço kardec e não ter esses valores dentro de você, mas hoje como eu vivencio talvez,
a próxima perda que eu venha a ter seja a do meu pai carnal, por fatores de doença e por ele ser
um homem Kardec, por eu conversar com ele e ele também dizer: “minha filha, talvez Deus não
exista”, ele que é um profundo estudioso da religião kardecista, se ele pode levantar esse aspecto
de dúvida, eu que ainda não vive a metade de vida dele e não tenho o conhecimento que ele
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abarcou ao longo dos anos de estudo, me sinto extremamente à vontade pra questionar a
existência de um Deus.
Porque que eu permaneço no candomblé? Eu tenho uma resposta muito forte, a nível consciente,
de todas as coisas que, principalmente, eu peço ao Orixá Oxum, no sentido do meu caminho
profissional, no sentido de antecipação de fatos da minha vida pessoal, no sentido da proteção
da minha família, no sentido de alguma forma fica muito confuso na minha cabeça, mas que
consegue em sonho, ou em intuição, me adiantar fatos como se eu pudesse resolver as coisas no
anterior dos fatos acontecerem, na verdade eu tenho alguns fundamentos muito confusos, e após
a partida de mãe Vera esses fundamentos dentro de mim se tornaram mais conturbados porque é
como se de alguma forma, Orixá Oxum que eu cultuo pudesse estar mais próximo da minha
pessoa, não sei explicar muito bem... mas dentro do candomblé eu tenho essa resposta, de alguma
forma existe uma energia, seja ela dado o nome que for, Oxum, Deus, Ifá que é o dono de todos
os caminhos, seja qual for essa forma de energia, ela me responde.
Com certeza, se o candomblé não tivesse em mim uma resposta positiva, de acreditar, de
manifestação, de realmente poder antecipar, de poder prever, de poder acertar, com certeza, por
mais amor que eu tivesse a Oxum, que é o Orixá que eu mais cultuo, eu não ficaria aqui.
Porque eu tenho a necessidade de ter a certeza daquilo que eu faço.
Minha relação com a morte mudou depois da partida de Mãe Vera. Mudou, porque eu sempre
me preparei no sentido de que um dia eu vou reencarnar, a matéria Luciana, a matéria Toju,
vai desaparecer e até então eu tinha um pólo de que eu passaria para uma outra dimensão e ali
eu continuaria um aprendizado, mas isso era uma sensação que eu tinha boa em relação a uma
passagem, a sensação da vivência de poder entrar em contato com a morte me deixou uma
dúvida se realmente existe uma passagem, se realmente, como ninguém voltou pra contar, se
realmente existe um aprimoramento em um outro prisma, essa é uma dúvida que eu, Luciana,
tenho; dúvida de que seja uma coisa boa a passagem.. Se fosse uma passagem, porque o medo,
porque a sensação de desespero, eu sabia que aquela senhora, no momento daquele ato mágico
não ia morrer, era uma sensação presente em mim, a ponto de eu perder os movimentos, a ponto
de eu ter uma respiração ofegante, a ponto de eu entrar em sudorese, reações orgânicas do meu
organismo, por uma sensação de uma energia desconhecida, que trouxe a minha energia pessoal
medo; aquela estrutura que eu criei, durante os meus 36 anos, fui criando no meu aprendizado,
aquela estrutura de ser uma coisa boa a passagem, caiu por terra. Eu estou estudando muito pra
que eu possa compreender um pouco mais, me preparar um pouco melhor até pra perder aquele
que com certeza, ou talvez não, mas pela lei natural vou perder ...
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Eu acho que quando você abraça uma tradição religiosa, você abraça, também, tudo aquilo que
envolve todos os momentos dela; todos os momentos que envolvem o candomblé são totalmente
mágicos, tanto na hora do nascimento de um iaô, quanto na hora quando o iaô parte. A
sensação da morte da Ialorixá, da qual em vida eu fui Ekedi, da santa a qual eu fui
consagrada, ela se mistura muito, porque não tem como separar. Então, o axexê foi importante?
Foi importante porque era uma homenagem, nós aprendemos culturalmente que o axexê é uma
última homenagem, que todas aquelas pessoas com quem aquele determinado sacerdote conviveu,
você tem o direito de se despedir dele, de uma forma alegre porque ele viveu tudo, ele presenciou
tudo que ele poderia presenciar; esse é o rótulo do axexê; eu posso considerar que foi esse o rótulo
do axexê de minha mãe? Não, não posso. Não pude vivenciar isso dessa forma, porque existia
uma dor muito grande pela partida dela, no caminho que foi embora pela doença e não pela
velhice, já há aí uma interrupção, talvez do que nós chamamos de natural.
Na questão do axexê em si, pra mim foi uma experiência boa e ruim ao mesmo tempo. Boa no
sentido de que nunca participei de um axexê de uma Ialorixá; já participei de axexê de pessoas
de menor hierarquia do candomblé... Mas no axexê de Mãe Vera, por mais que quiséssemos
homenageá-la, por mais que quiséssemos fazer do axexê uma festa alegre todo mundo carregava
uma dor muito grande. Todo o momento que a gente remexia nas fotos, que a gente ia pegar
nas roupas, eu mesmo me repisei milhões de vezes, eu chorei demais durante todo o momento,
então quer dizer, eu estava pronta pra vivenciar aquilo, não estava... Eu acho que não faz
sentido eu prestar uma homenagem num momento que eu não tenho condição de prestar essa
homenagem. Aquele momento de sofrimento, por isso estou narrando esse fato pra que você
entenda como eu entendo, que aquele procedimento de sete dias, só causava mais sofrimento, que
na verdade se desligar de uma pessoa, não existe magia pra isso, só mesmo a vivência de cada
um, a experiência de cada um, o que cada um entende como precisar da pessoa, como vida, como
conhecimento, como ensinamento, passagem, aquilo que cada possui que vai fazer o sofrimento
maior ou menor, então na verdade as pessoas ali tinham enfoques diferentes, até porque nós
como entidades de candomblé somos muito novos, provavelmente os próximos, tomara que
demore bastante, mas os próximos serão talvez diferentes pra cada um, mas esse o axexê não
teve aquilo que a gente estuda nos livros, aquilo que é transmitido pelos mais velhos, a festa de
despedida de uma pessoa importante, teve a do sofrimento e a dor daquilo que se desfaz de uma
pessoa que era extremamente importante, como mãe e não como somente Ialorixá,
Nós não moramos numa ilha africana, então, por exemplo, pra uma casa centenária como o Axé
Opo Afonjá que tem muito mais velhos do que os novos, que se perde pela idade um após o outro,
aquilo seja uma grande despedida, a pessoa viveu 90 anos, bravo, vamos homenageá-la de todas
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as formas possíveis, não, a gente estava perdendo uma pessoa literalmente, a sensação que eu
tenho quase certeza pra todos aqueles que viveram com ela muito tempo foi de uma perda
irreparável, como eu poderia estar feliz e alegre, como eu poderia caracterizar o axexê uma
festa de felicidade? Muito difícil, foram sete dias de axexê, foram sete dias de tortura, você não
tinha a escolha de não participar, então, pra mim, foi uma tortura. Como que aquilo pode ser
caracterizado como uma festa de despedida ou uma festa de alegria? Então, estávamos
preparados pra essa festa de axexê? Não tenho como caracterizar o axexê da minha mãe dessa
forma, não consegui fazer isso, mas eu acho que ele é importante porque ele é tradição, como em
qualquer religião, e a tradição é feita pra ser cumprida, então ela deve ser cumprida.
Faltou preparação pra morte; ninguém queria a partida dela, não se preparou a casa pra
partida dela, acho que tudo isso foi um aprendizado pra todos nós, valeu por esse motivo, porque
foi um aprendizado, então se hoje um velho da minha casa for morrer a casa tem que se
preparar pra que ele parta, se for por doença que permitam que todos os filhos se despeçam dele,
que permitam que, todas as pessoas que consideravam aquela pessoa importante, não importa o
motivo pelo qual as pessoas estejam indo até a pessoa se despedir, bonito ou feio, se é pra
verificar se está morrendo mesmo ou se ainda vai viver muito tempo, digamos assim, não
interessa, o que vai no âmago de cada um é problema do ori de cada um, da consciência de cada
um, com seu próprio orixá, com seu próprio caminho, com seu próprio destino, não é um
problema daquele que está indo embora, então eu acho que foi um aprendizado. Faltou
preparação pra aquele rito que iria se cumprir, não se tinha idéia que seria tão sofrido, não se
tinha idéia de que ia ser tão difícil;algumas pessoas nem chegaram a se despedir dela com ela
ainda viva, mesmo que fosse um olhar, mesmo que fosse um abraço....
Eu graças a Deus tive a oportunidade de me despedir dela, mas sei que muitos dos meus irmãos
não tiveram, foi errado, no meu entendimento foi errado; ela não foi preparada pra ir embora:
você está indo embora, então se despeça daqueles que estão em torno de você, se iludiu talvez por
envolver muito sentimento, de que em algum momento, por um passe de mágica, tudo voltaria à
estaca zero; então tinha que ter sido mais verdadeiro, mais exposto, talvez tivesse sido, pra nós
filhos de santo, melhor. Eu não sei o que seria pra ela, como pessoa, se ela realmente preferia não
se despedir, mas se é que é dado a um sacerdote o direito de não se despedir, quando você entra
no mundo do sacerdócio você também vai ter que aceitar a tradição daquilo que for imposto; eu
sou uma joye, quando chegar a mim o meu tempo eu também vou ter que entender isso, então,
hoje eu tenho essa concepção e espero conseguir transmitir aos mais novos essa concepção.
Na iniciação, as pessoas não tinham acesso ao sagrado, e no momento da iniciação passam a ter
acesso ao sagrado, ou seja, dali começa uma nova vida dentro do sagrado, ou um outro enfoque
que eu acredito é que no momento em que você participa de uma iniciação, você por ser iaô,
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tenha a manifestação mais inteira do Orixá na sua pessoa; como eu sou uma joye, não passei
nem por uma coisa e nem pela outra; porque nem por uma coisa nem pela outra? A questão de
não ser iaô é fácil de ser explicado porque eu não viro no santo, então é um sentimento que eu
não vou poder ter dentro de mim, e a relação que eu tinha com o sagrado ela já existia antes da
minha feitura. Eu fui oborizada em 91, então, quando eu me oborizei eu tenho a sensação de
que eu passei a pertencer a um novo caminho, no sentido de participar do sagrado de uma forma
mais vivencial. Desde o meu primeiro bori eu passei a ter contato com o sagrado, a entrar nos
cômodos sagrados, a entender o que era um assentamento, a entender como que acontecia a
feitura de um iaô. Quando eu vim a fazer a minha feitura, há 7 anos, eu já participava de tudo
do sagrado; na verdade o sagrado é que estava pesando sobre os meus ombros, atrapalhando a
minha vida, no mundo digamos lá fora, na minha vida profissional, na minha vida dos meus
compromissos, financeiramente, ou seja, na verdade existia uma cobrança do sagrado em torno
da minha feitura; mas todos os atos que pertenciam ao sagrado, eu Luciana, antes de ser Tojú
já participava. Minha feitura, na verdade, foi fazer um acerto de contas; a única mudança, que
eu posso dizer, é que pesou mais a responsabilidade, porque antes eu tinha o direito de errar,
agora eu tenho o dever o de acertar, eu, Luciana como consciência, como pessoa, dentro dos
princípios de educação que eu trago da minha casa, pra mim mudou só nesse sentido, mas em
relação, começa uma nova vida a partir de agora pra mim era indiferente, eu já era uma ekedi,
já fazia tudo que uma ekedi fazia, pra mim não teve esse enfoque.
Eu acho que os dez anos que eu passei na roça me prepararam para isso, eu era extremamente
feliz no momento da minha obrigação, e deixava pra trás um filho pequeno, que tinha 1 ano de
idade, a única sensação que eu tinha era saudade da minha família, da minha filha, do meu
esposo, mas eu não tinha essa sensação de reclusão, eu não tive essa sensação de reclusão. Até
porque eu recolhi com dois iaôs, e o tempo todo eu participei da obrigação deles, quando a
obrigação não pertencia aos três, pertencia só a eles eu participava da obrigação, porque eu já
participava antes, eu participava antes continuei participando depois, então eu não tive essa
sensação de reclusão, porque na verdade eu acho que eu estava pronta pra entrar no roncó, então
o que acontece, pra mim, naquele exato momento não houve essa sensação de reclusão. O meu
kelê, o kelê foi muito mais difícil pra mim do que o estado dentro do roncó, porque eu tive que
trabalhar e nos primeiros dias posteriores que vieram da minha saída pro mundo eu era
extremamente assustada, eu tinha medo da árvore, eu tinha medo de tudo, eu estava
extremamente fragilizada, e assim, o kelê não tinha peso, porque fazer certo pra mim é normal,
ter que tomar banho, ter que rezar, ter que vir pra roça é normal, não tenho essa sensação de
peso, mas eu tinha medo da rua e não gostava de estar na rua à noite, não gostava de me expor
na rua, eu sentia a necessidade de estar num ambiente tranqüilo, num ambiente como se fosse o
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roncó, que na verdade seria minha casa, eu tinha essa necessidade. Então pra mim o kelê foi
muito mais difícil, os 21 dias de kelê foram muito mais difíceis do que os 26 dias no roncó, não
pelas abstinências, mas eu sentia muito medo da rua. É como se uma energia que me envolvia,
em relação ao kelê, me fazia querer não estar no meio daquelas outras pessoas; além do que é um
estereótipo de estar de cabeça raspada, de estar de ojá, de estar com uma outra vestimenta, de
não poder sentar no alto, de não poder adentrar em alguns recintos; estas abnegações não fazem
parte do mundo real, então elas te tornam fragilizada, como no seu trabalho você não está em
contato com aquelas pessoas, como no seu trabalho você está o tempo todo sentando no chão, essa
fragilidade ela vem do kelê, então o tempo máximo que eu podia passar dentro da minha casa
eu passava. O kelê faz parte do mundo da roça, não faz parte do mundo que eu trabalho, então
quer dizer deveria ser tudo mesclado, mas não é, necessariamente não é. Pra mim, o kelê teve
um peso muito forte, ainda mais eu que trabalho na área de educação física; tinha que estar
exposta ao sol, tinha que estar exposta a muita gente, tinha que usar determinados tipo de roupa
que eu não poderia, não queria estar usando que era calça cumprida, nenhum educador físico dá
aula de saia, então, a tradição que envolve o kelê é que era conturbada pra mim. Eu já tinha
acompanhado do Fernando, mas é diferente você ver alguém vivenciar três meses de kelê, não
era o resguardo do sexo, resguardo do álcool, que eu nem bebo, não era o resguardo em si que
me pesava, mas eu ter que estar no mundo que me pesava. Senti dificuldade pela compreensão
cultural das pessoas sobre aquilo.
Eu acho que a tradição ela é necessária, pra todas as formas de comunidades existentes, eu
acredito que a tradição é que faz com que a repetição do mesmo ato se torne uma coisa tão forte
que se torne uma regra, que as pessoas façam aquilo numa naturalidade tão forte que se torne
uma cultura, por isso eu digo, eu menciono que tem que ser feito porque é a tradição, e por ter,
realmente, abraçado com amor o candomblé, e mais ainda a minha casa, eu faço questão de
repetir os mesmos atos: uma, para que eu não esqueça, duas, pra que eu possa transmiti-lo da
mesma forma com a qual aprendi e tendo a certeza de que mesmo repetindo várias vezes eu irei
ensinar diferente do que quem me ensinou, ou seja, em algum momento já vai se perder alguma
coisa, então a tradição é para que não se percam legados, pra que as pessoas possam entender
que os atos, mesmo que de forma inconsciente durante certo um momento eles fazem parte de um
todo maior, por isso, eu sou tão sistemática, a ponto de ser chata quanto aos horários das coisas,
quanto a forma como elas se procedem, como isso não é assim porque não foi assim que eu
aprendi, e porque se uma vez feito ele funcionou, esse ato tem que ser repetido sempre da mesma
forma. Então, a tradição é importante? Ela é muito importante. Toda vez que nós quebramos
uma tradição, por acharmos que o tempo evoluiu, e nós também temos que evoluir, nós
diminuímos a nossa força, porque se perde alguma coisa; se o momento mágico está na noite e se
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eu faço o ato durante o dia alguma coisa se perdeu, nem que sejam todas as magias que
envolvem a noite, nem que sejam todos os espíritos que rondam pela noite, nem que seja aquele
exato momento mágico que o cosmo está preparado pra receber aquela determinada energia,
então quando eu quebro aquele ato, pela conveniência da atualidade, da modernidade, eu perdi
alguma coisa, por isso a tradição tem que ser cumprida, mesmo que me doa, mesmo que eu não
quisesse participar, já que eu me imbuí na questão de ser uma sacerdotisa, de manter a minha
religião, de vê-la crescer, de ver a minha casa crescer, de ver o meu axé se perpetuar, de ver essa
religião, que trás às vezes tantos entraves, tantas nuances mal formuladas culturalmente no
mundo exterior, que elas possam ser cada vez mais elucidadas, se tornarem cada vez mais
brandas de uma forma que o candomblé possa ser visto com bons olhos; você possa dizer: sou do
candomblé, de uma forma natural, que nós sabemos, que no mundo que nós vivemos não é
natural, que todo mundo se refugia no mágico, mas ninguém tem coragem de dizer que se
refugia no mágico, é mais fácil dizer que é católico, mais aceito dizer que é católico, ou então
que é espírita, então, é por esse motivo, tradição, que eu cumpro ato pela tradição, que se eu não
cumprir aquele ato da tradição os que vierem posteriores a mim não cumprirão, em algum
momento o axexê vai acabar, por exemplo.
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Participante 4: Fernando
Sexo masculino, 49 anos. Empresário e advogado.
Vinte anos de participação no candomblé. Dezessete anos de iniciação. É filho de
Oxalá, Pai Pequeno e Maé do Axé Baraleji.
Na verdade, minha iniciação começou no ventre da minha mãe; sou descendente de africanos;
meu avô nasceu no Congo, foi para Bahia, e minha mãe, como primogênita tinha a herança
genética espiritual de dar continuidade ao trabalho do meu avô – coisa que ela não o fez, por
uma série de motivos, e saindo da Bahia para o Rio ela também não deu continuidade, e passou
a ter ojeriza a todo o culto religioso, principalmente de origem afro, e eu, como filho
primogênito, neto primogênito, acabei herdando essa herança genética espiritual do meu avô,
que também veio de seus ancestrais africanos, de tal sorte que, aos 14 anos de idade, eu percebi
que eu já era iniciado na religião de forma inconsciente; tive que tomar algumas providencias
porque minha mãe começou a ter sérios problemas de saúde e, aos 14 anos de idade,
eu,voluntariamente, a levei num centro espírita, na época, de umbanda; e lá, eu via algumas
manifestações de minha mãe, coisa que ela sempre teve ojeriza, e daquele momento em diante, eu
vi que eu tinha que fazer alguma coisa pra ajudá-la. Então, a intenção foi ajudá-la, só que eu
acabei me envolvendo cada vez mais, e hoje, eu vou fazer, na realidade, 35 anos de convivência
com esse mundo espiritual. Aconteceram vários fatos, até que aos 15 anos, quando saí de casa,
em todo o lugar que eu fui bater, eu acabava batendo na casa de um religioso, espírita,
espiritualista, ou alguns dos cultos de origem afro, e aos 18 anos de idade, foi quando no Ceará,
eu conheci um Senhor, chamado seu Francisco, que à época tinha 72 anos de idade, esse senhor
começou a me ensinar um pouco sobre o mundo espiritual; ele fazia verdadeiros milagres, e eu
acreditei nele, assim, como outras pessoas, e daquele ponto em diante eu comecei a entender um
pouco o meu caminho, porque eu pouco conhecia sobre o candomblé, mas estava começando a
conhecer sobre o mundo espiritual, esse entendimento é que, no Ceará, eu fui conhecer outras
casas, casas essas que mexiam com a chamada quimbanda, que é uma umbanda pesada que
mexe com magia negra e voltei a trabalhar na umbanda. Do Ceará, eu acabei vindo morar em
Brasília, e em Brasília, eu fui ser kardecista; passei 6 anos como kardecista, fazendo trabalhos
espirituais magníficos, aliás, sendo usado como instrumento para esses trabalhos e, após esses 6
anos, um amigo espiritual como nós chamamos, um espírito iluminado, falou que minha missão
ali tinha terminado, que eu teria que começar, parece redundante, começar o início de um novo
caminho, que seria o meu verdadeiro caminho, que naquele momento eu estava terminando um
aprendizado, e foi aí que eu entendi porque que eu passei por tantos lugares, e aprendi muito,
inclusive aquilo que não se deve fazer, que não se deve cultuar, e foi quando em 1986,
exatamente em fevereiro de 86, um pouco antes do carnaval de 86, me lembro como hoje, eu
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passei muito mal, acho que umas 3 semanas antes do carnaval, passei muito mal e apaguei,
comercial da 310 Sul, simplesmente apaguei, e acordei dentro de uma casa que vendia artigos
de santos, que era a casa de hoje meu Pai Tito de Omolú, aonde no segundo andar ele jogava
búzios; eu acordei lá, desmaiei na porta da loja dele e daí começou esse novo caminho que já
haviam me revelado antes. Então o caminho religioso, é um dito que se tem principalmente
dentro do candomblé, ou você entra pelo amor ou pela dor e noventa e nove por cento das pessoas
entram pela dor, essas dores elas doem em vários lugares; em 1986, como eu estava dizendo, eu
acabei lá na loja do Pai Tito, e acabei sendo conduzido para a roça de santo uma semana
depois, e já fazendo o meu primeiro oborí. Na realidade eu voltei à origem de meus ancestrais
que era o meu avô e aos seus ancestrais. Até então, eu não conhecia o Pai Tito; fui levado até ele
pelos Orixás, uma forma meio estranha, mas como não encontrei o caminho fizeram com que eu
encontrasse, porque, assim de repente, você estar desacreditado de tudo, porque assim que eu
deixei o kardecismo, que era para buscar esse novo caminho, só que não me falaram qual era
esse novo caminho, eles nunca falam, você normalmente acaba descobrindo isso a base de
algumas dores, e na época a minha concepção sobre candomblé, que era equivocada, não era
muito boa e não passava pela minha cabeça entrar para o do culto religioso nagô, ioruba, que é
uma das origens do candomblé.
Fiz um oborí e me senti outro homem, e aí comecei a me preparar para uma iniciação, iniciação
essa que deveria ocorrer um ano após e acabou ocorrendo três anos após, mas fazendo um
parênteses, por que desses momentos de dores? Quando eu sai do kardecismo, eu,
profissionalmente, estava muito bem, pensei que voltar as origens era voltar para umbanda;
comecei novamente, por um breve período de 6 meses com a umbanda, e como profissionalmente
eu estava muito bem, minha ignorância sobre o assunto ainda era tamanha, eu não sabia que
era tão ignorante, fez com que eu abandonasse toda a parte espiritual; eu simplesmente peguei
todas as minhas coisas de santo da umbanda, os patuás, as imagens, botei tudo numa caixa,
despachei pro Rio de Janeiro, falei que não precisava de nada daquilo e, chegando lá, eu
despachei tudo no mar, e simplesmente falei que não precisava de nada disso, dar continuidade a
nada porque isso não poderia representar muita coisa já que eu tinha muita fé em Deus, sempre
acreditei em Deus e isso bastava. Grande equívoco, pelo menos dentro do meu caminho, porque
eu tinha uma responsabilidade de uma herança genética espiritual que eu deveria dar
continuidade, e aí começou, era empresário antes, morava bem, cheguei a literalmente passar
fome, eu sai de uma casa no Lago Sul pra morar num barraco na Ceilândia, não tive coragem
de levar a minha mulher e a minha filha, que hoje também é filha de santo, porque também é
caminho dela por ser minha primogênita, que também tentou abandonar, sofreu algumas
conseqüências, mas eu não interferi no caminho dela porque eu aprendi que eu não poderia
interferir, como ninguém interferiu no meu caminho, porque é uma opção, é uma escolha, um
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livre arbítrio. Em seis meses eu perdi tudo que tinha, inclusive a primeira família, eu já era
casado e o casamento se foi, a filha se foi, voltou pro Ceará, eu perdi os bens materiais todos,
comecei a ficar muito ruim, dessa conseqüência foi que aconteceu o desmaio, e como eu não
encontrei o caminho, fizeram com que eu encontrasse, então, esse é o parêntese.
Com a iniciação eu comecei a perceber, três anos após esse primeiro contato com o candomblé,
que é o obori, foi que eu fui até avisado, pelo próprio erê que a gente chama, que é o orixá
criança, que tendo em vista alguns erros de percursos dentro das minhas opções, dentro da
minha escolha eu teria que mostrar para o que vim e isso levaria sete anos. O meu próprio erê
deixou um recado para mim dizendo que levaria sete anos para que a minha vida começasse a
se ajustar, exatamente porque eu não tive competência, à época, de discernir o caminho, e
abandonei tudo na verdade, coisa que eu não poderia ter feito, tendo em vista a minha origem
hereditária, minha origem espiritual ancestral. O erro que eu cometi foi que eu fiz isso por bens
materiais, porque eu estava muito bem profissionalmente, não dependia financeira de ninguém,
de nada, e achei que isso já bastava em minha vida, esqueci exatamente da minha
hereditariedade, do meu compromisso com a ancestralidade e aí sim, foi um castigo porque eu
não tive visão e não assumi o meu compromisso com essa ancestralidade, eu os abandonei de
fato, não os abandonei por simplesmente ter uma opinião diferenciada da religião, ou ter ido
pra uma outra religião, abandonei porque achei que o mundo material pra mim era o que valia,
então houve um castigo durante sete anos.
Com o tempo você vai aprendendo a amar os orixás e a partir do momento que você começa a
seguir o caminho com fé, crença e atitude, não basta também ter fé e crença e não tomar atitudes,
dentro e fora da comunidade, cada vez mais você vai recebendo, como num conta gotas que o
axé, que o orixá lhe dá, ele vai lhe dando a conta gotas força e poder individual para que você
construa para você e para os seus, e é fato, são 20 anos na verdade que eu comecei, me iniciei e
eu sou uma prova vida disso, como conheço dezenas, centenas de pessoas que também são provas
vivas disso e do contrário, pessoas que manipularam esse poder de forma equivocada , que
falaram demais, porque existem muitos segredos e você só vai tendo acesso a esses segredos de
acordo o tempo e com a sua dignidade com o axé e com o teu orixá, com o teu compromisso com
ele, é que ele vai liberando ensinamentos, ensinamento esse que vem através de irmãos, de
babalorixá, vem através de conhecimento que você não sabe da onde apareceu, simplesmente
veio, você acaba aprendendo,e o mais importante é que você não fica obrigado a usar isso apenas
dentro da comunidade, lhe é permitido usar isso no seu mundo lá fora para benefício próprio,
contanto que você não use isso de uma forma egocêntrica e a forma como você usa não venha a
prejudicar a ninguém, então você é proibido inclusive de usar em benefício próprio esses
199
conhecimentos, esses poderes, se por acaso para ter algum benefício você prejudique alguém, isso
também você tem punição para isso. Só que o orixá ele te prova a todo o dia, a toda a hora, nós
que somos filhos de santo, que somos sacerdotes, nós normalmente temos muito mais problemas e
pedras no nosso caminho do que as outras pessoas, mas cada pedra dessa, na realidade, ela é um
aprendizado, ele é um ensinamento, todo, todo ele, ele te testa, aí ele vai testar a sua fé, ele testa
a sua fé, porque ele quer saber se você está pronto pra próxima gotinha que ele vai lhe dar, para
o próximo passo que ele vai lhe dar, para que você cresça; por muitas vezes esse sacrifício que ele
lhe impõe, que por muitas vezes você não sabe de forma consciente, o beneficiado não é você, é
um filho, é um pai, uma mãe, que você passa a ser, naturalmente, você passa a ser o esteio e o
alicerce da sua família, normalmente.
Minha iniciação, entro do culto do candomblé, foi uma nova experiência, um renascimento,
como eu já tinha essa experiência, de forma bastante diferente dentro da umbanda, como do
próprio kardecismo, elas funcionam de forma diferente. A sensação é diferente, a forma de
incorporação é diferente, a forma como acontece depois é diferente; são energias bastante
diferenciadas; depois que você é iniciado existe um processo, vou fazer uma analogia com a
criança, você para andar, primeiro você tem que aprender a engatinhar; porque você aprende a
engatinhar? Pra que você comece a iniciar um equilíbrio sobre o seu próprio corpo, depois você
começa a andar meio desequilibrado, aí começa a andar, e mesmo andando você precisa de
sempre os pais, pra você não bater na quina da mesa, etc., etc., então dentro da incorporação, que
na verdade, é bom deixar bem claro, que não existe incorporação, o processo é diferenciado; você,
quando inicia essa iniciação ela tem que objetivo? Fazer uma comunicação mais estreita da sua
pessoa, do seu eu, do seu espírito com a sua origem ancestral .... então você vai buscar aquele
orixá que é o seu ancestral divino......ele passa a reviver dentro de você, você recebe todos esses
axés que levam de 14 a 32 dias esses rituais sagrados..... Você fica, por muitas vezes, você fica
21 ou 30 dias inconsciente. Me lembro que quando eu fui feito eu entrei para a iniciação
quando acordei tinha a guerra do Golfo Pérsico, tinha havido uma maxi valorização do dólar,
confisco do Collor, moeda tinha mudado, o mundo estava de cabeça pra baixo e eu não
participei de nada disso e onde eu estava? Você só sabe como é emprestar seu corpo para o orixá
quando você volta, isso quer dizer, enquanto você está emprestando, você simplesmente não é,
nada.. Você não tem o estado de consciência de nada. A tomada pelo orixá ela é uma integração.
Primeiro, porque o orixá, para poder interagir com você, lhe tomar, você precisa ter se doado
primeiro, ter trazido ele da sua origem, por opção, e ele está dentro de você, então, na realidade,
ser tomado pelo orixá é sempre uma integração, porque ele já ta dentro de você, nós somos um
único ser, e ela está dentro, então, ele simplesmente ele aflora, vai crescendo dentro de você.
Então, o candomblé, é uma religião aonde você passa a ter contato praticamente que físico com o
200
orixá, e quando a pessoa está virada no santo outros tem a oportunidade de abraça-lo, sentir
aquele calor, aquela energia, ou um frio, então você sente e dá a oportunidade a outros, mesmo
que não sejam do culto, de sentir aquela vibração, aquela energia, a maioria das pessoas que não
são filho de santo ou que não seguem o culto sentem a mudança do ar, dentro do culto que é feito
para o público, e mesmo aqueles que não viram no santo, que tem cargos ou funções como ogan,
joye, ekede, adagã, pegigã, alabê, e outros mais que não viram no santo, que eles tem postos, que
o fundamento é justamente pra que eles ajudem a cuidar do orixá, até mesmo esses, que não
viram, acabam sentindo toda essa energia, essa vibração, então isso só pode ser prazeroso , você
saber que você faz parte de um todo, todo esse que tem origem divina que você está sendo útil,
mas que você entenda isso, compreenda e sinta isso dessa forma você tem que ter amor por aquilo
que você faz, por aquilo que você optou, pelo orixá, pelo axé, se não você não vai ter esse
sentimento; há algumas pessoas que não tiveram a graça de alcançar esse sentimento e que não
tem a oportunidade de sentir isso, as vezes se sentem cansadas, porque é uma troca de energia,
orixá é uma energia que na realidade ele funciona como uma simbiose. E podemos ter contato
com o orixá, sentindo essa energia, às vezes, ela traz uma paz muito grande, às vezes ela traz
calor, às vezes ela trás frio, ao sentir isso você passa a ter uma crença, tem uma fé, na existência
do orixá, mas tem que crer no poder, crer até onde ele pode, aí você começa através dos
sentimentos e ao mesmo tempo dos sentidos, a ter essa comprovação e aumentar a sua crença, isso
pra quem é filho e para quem não é filho, eu, no meu modo de ver, para mim é uma dádiva,
servir o orixá, emprestar o corpo, para mim, sempre foi muito prazeroso, mesmo que por muitas
vezes eu fique cansado, porque o orixá as vezes ficam horas, duas, três, quatro, cinco, dez, doze,
vinte e quatro horas no ar e como ele precisa da sua energia também, as vezes você acorda
desgastado, mas é por pouco tempo, logo depois essa tua energia ela vem em dobro, ou triplicado
porque ele lhe reabastece, então ele lhe agradece e diz usei a sua, agora tome a sua e mais a
minha e mais um pouco e você fica muito forte para o mundo.
É um grande equívoco das pessoas, que se predispõe a entrar no caminho do sacerdócio do
orixá,fazerem essa separação entre o mundo dentro de uma roça de santo, do axé, e o mundo lá
fora; é um grande equívoco que eles cometem, porque o fato de você atingir a maioridade, sair
de casa, morar sozinho, ter a sua vida independente não quer dizer que seus pais deixaram de
ser seus pais e que você deixou de amá-los, é a mesma coisa, então lá fora o mundo é apenas o
seu mundo mas que você tem que transportar a tua essência de orixá e sentir sempre a presença
do orixá dentro de você, primeiro porque ele está dentro de você, mesmo que você queira tira-lo
você não vai tira-lo, a não ser que você decida abandona-lo, aí você não vai tirá-lo, ele é que
vai sair; então, não tem como, e tentar fazer essa separação, pra que você de repente começa a
ter uma vida fora dos limites lá fora por achar que você lá fora não tem compromisso com o
201
orixá é exatamente o grande erro que a grande maioria comete, porque lá fora é que você tem
que se comportar melhor do que dentro do axé, porque aqui dentro é fácil, aqui dentro você está
convivendo dentro de uma energia de axé, com pessoas com os mesmos propósitos, com os
mesmos objetivos da comunidade, queira ou não queira você é vigiado pelo orixá, se sente
vigiado pelo orixá, por irmãos de santo, então aqui é fácil você manter um comportamento ou
uma disciplina, lá fora que é o mais difícil e lá fora é que você tem que contar com o orixá e lá
fora que você tem que realmente se sentir e servir o orixá, para que ele possa também lá fora te
dar alguma coisa, se não se você abandonar o orixá aqui dentro como é que você vai poder
cobrar dele que ele te acompanhe e te ajude lá fora, ele tem que estar contigo lá fora, você tem
que senti-lo, venera-lo, chama-lo, se comportar, ser disciplinado, dentro do culto do candomblé
exige muita disciplina, hierarquia, comportamento, preceitos, coisas que você não pode, não deve
comer, em determinados dias, em respeito ao orixá, coisas que você não pode fazer, abstinências,
as vezes de sexo, as vezes de álcool, não é uma vida fácil ser filho de orixá porque você tem uma
série de preceitos que se você quiser ser um bom filho, se você quiser receber aquelas gotinhas você
tem que cumprir, se não você não vai ter, em conseqüência disso o teu crescimento pessoal,
profissional, ele também vai retardar, porque você assumiu um compromisso e o compromisso é
para com o orixá, é para com o axé, não é você, você está se abnegando da tua própria vida
para o orixá e para o axé, acabou. Agora, dependo do teu comportamento, da conduta dessa
abnegação é que ele vai te retribuir, lhe dar força, lhe dar axé para que você conquiste muito
mais do que você imaginou que poderia conquistar, sempre com algum sacrifício, porque é um
aprendizado mas ele vai te dar muito mais do que aquilo que as vezes você até acha que
merecia, mas você ganha, tudo é questão de que, comportamento e atitude, principalmente o
coração, quando falamos de coração falamos da nossa consciência, porque o orixá ele está
instalado dentro de você na consciência, pode enganar todo mundo menos tua própria
consciência, então o orixá reage a emoção, se tua emoção, o teu sentimento é de carinho, de amor,
mesmo que você cometa erros, cometeu um erro involuntário ou mesmo que tenha cometido de
forma consciente, mas que reconheça o erro e que busque não errar de novo, o orixá ele não vai
te castigar, você ta retardando um pouquinho um caminho mas ele não vai te castigar, e se você
não reconhecer o erro ele vai te mostrar de uma forma dolorosa que você errou, mas porque que
tem que ser dolorido, porque marca, aí você dificilmente vai cometer esse erro de novo
Vamos começar pelo axexê. Primeiro que o ritual não são sete dias; o ritual completo são 21
dias de axexê, o ritual que houve aqui, no caso da nossa mãe Vera, ali não foi uma morte,
aquilo foi um novo caminho, o nosso Pai de Santo, Tito de Omolu, ele fez um ritual secreto
antes para que não precisasse ficar vinte e um dias, então ele fez um ritual secreto onde
participaram três pessoas, e se teve um ritual de no mínimo sete dias. O ritual completo são
202
vinte e um dias, na realidade, esse ritual, ele também da mesma forma da iniciação, é a
iniciação de um novo caminho do espírito, e do novo caminho, que aí é uma opção da pessoa
depois que morre, da alma, que existe alguns segredos que eu não vou poder contar...
Quando a pessoa vem a falecer, há uma separação; você tem o corpo, que é a matéria, que tem
uma energia; você tem a alma, que é a energia catalizadora, que traz o equilíbrio entre o corpo
e o espírito, a própria vida é a alma, a alma é a energia que faz a sua mente funcionar, que faz
todos os seus órgãos funcionarem, ela é que sente, que te dá as sensações, os sentidos.... O
espírito,é a bagagem de experiência que você traz desse mundo e de outros mundos. A alma é o
centro de catalização de energia do equilíbrio do corpo, e é o elo de ligação entre o corpo e o
espírito; e o espírito é uma partícula divina, que não é o orixá, orixá não é espírito. Tem mais o
axé, pra o iniciado você tem o axé que é exatamente aquilo que vai dar sustentação ao corpo, a
alma, ao espírito, ao ori e ao orixá, a base de tudo é o axé.
Se você partir do conceito que o orixá é um ancestral divino, que foi denominado orixá por nós,
todos têm, porque todos temos ancestral, se você for considerar como culto religioso, em que você
cultua um orixá, tem o dever ou caminho de cultuar o orixá, aí sim, nem todos têm orixá; agora,
o orixá sendo um ancestral, todos temos ancestrais, que não necessariamente você tenha que
cultuá-lo ou seguir o caminho do orixá...
A alma, ela pode seguir dois caminhos, ou ela pode se desfazer ou ela pode se tornar um egun; é
alma que comanda, que toma uma decisão, se ela quer continuar existindo ou não, há uma
interferência do espírito com relação a isso, dependendo da decisão dessa alma, se ela vai
continuar, tem um ritual onde vai-se até os vinte e um dias para que ela fixe essa consciência e
se torne um ser vivo, sem corpo. Esse ser vivo sem corpo, dependendo do acúmulo de experiência
dela, do propósito que ela queira existir, ela pode levar um ano ou cem anos aprendendo ainda a
ser um bom egun. Ele tem a consciência da pessoa que viveu adquirindo novas experiências,
normalmente esses seres eles são utilizados num outro ritual que se chama egungun... Nós por
exemplo dentro do nosso ilê axé nós temos o nosso lesse egun, porque pro nosso Pai, pra ele é
permitido, é uma coisa que não deve se brincar nunca, você ta mexendo aí sim, com mortos, o
egun é um morto, o espírito não.
O orixá ele volta, ele tem um caminho pré determinado, também tem um caminho de
aprendizado, e ele é um ancestral, mas não é um ancestral só seu ou um ancestral só meu, todas
as pessoas trazem uma ancestralidade; um novo descendente que tem um novo caminho de orixá,
com aquela ancestralidade ele vai, se aquele filho tiver ligação direta com aquele orixá, ele vai
voltar e isso pode ser imediato ou como pode levar centenas de anos....ele traz experiência, mas
não experiência do ser humano, um outro tipo de visão, de visão de orixá, de ser divino.
203
Se a alma escolher ficar, virar egun o ori vai junto, se decidir não ficar, não virar egun, o ori
vai embora.
O axé se reincorpora exatamente na casa, e se a alma decidir virar um egun ela também
incorpora aquele axé, ai passa a ser uma troca, porque aquela alma, mesmo que ela decida virar
egun, ela pode vir a se desfazer se não tiver o axé, com o tempo, mas ela é sempre obediente ao
axé e a quem a deixou continuar a existir, não a viver, a existir....
O Axexê é doloroso por uma questão cultural, nós temos a cultura cristã, católica, nós temos
essa cultura que tem dois mil anos, então, o axexê, ele passa a ser mais doloroso exatamente por
causa da cultura, mas a partir do momento em que o Omo Orixá, o filho de orixá, tem a
consciência do que é um axexê, e do que ele representa, ele não é tão doloroso, pelo contrário, ele
acaba lhe trazendo conforto em saber que aquele que você ama, ou que você conviveu, ou que
você gosta, está num processo claro, não doloroso, em que ele está indo para um caminho em que
ele, alma, espírito, optaram, e que estão de forma consciente fazendo aquilo que eles realmente
querem e que sozinhos não poderiam, exatamente porque eles estão presos a uma iniciação. Eles
estão presos a iniciação porque eles ficaram presos a uma ancestralidade, que é um poder muito
mais forte do que o próprio axé, porque o axé é a concentração de poder da ancestralidade, de
vários orixás, de vários caminhos, então você tem o conforto de saber que ela está indo pra opção
dela, da própria alma, e ao mesmo tempo você sabe, tem a certeza do descanso; então, é um
alívio, na realidade; mas para nós é óbvio que é dolorido, é doloroso para nós que amamos a
pessoa, porque nós somos egoístas no nosso sentimento, gostaríamos de ter aquela pessoa presente,
não gostaríamos de perdê-la, mas é puro egoísmo, e porque aquela pessoa vai fazer falta
realmente.
Então existem duas visões, a visão do candomblé, e a minha, que é visão do candomblé e mais
um pouquinho. Para o candomblé, a tua alma e o teu espírito, a morte, na realidade, é o
momento aonde a tua alma e o teu espírito, o teu orixá, o teu axé, o teu ori, se desprendem deste
ayie, desse mundo; agora, o direito a reencarnação, o kardecismo diz que vai reencarnar para
melhorar, etc., no candomblé, você para voltar a este mundo ou ir para um outro mundo você
tem que conseguir esse direito, você tem que fazer muito, e tem que ser um bom Omo Orixá para
que você possa ter direito a retornar; o espírito tem que adquirir o direito de voltar, para esse ou
para outro; não são todos que reencarnam, podem voltar, ou ficar estagnado.
Então, a morte, dentro do candomblé, ela simplesmente é o desligamento dessas cinco existências
desse mundo: ou se dissipam, ou a alma vira egun, e o espírito volta para esse mundo por
204
merecimento, não por castigo, como é a crença kardecista, mas por merecimento, ou volta para o
mundo de outro orum. Daí que dentro do culto, do pensamento, do fundamento do candomblé, a
morte nem sempre é uma continuidade, para ter continuidade, tem que ter merecimento.
Na minha forma de enxergar é um pouco além disso, porque após todas essas experiências,
espirituais, religiosas, que eu tive a felicidade e a oportunidade de ter, eu já vejo o retorno como
além de merecimento, uma necessidade real de evolução, do espírito sempre para um mundo
melhor; porque a maior herança, o melhor presente que você pode dar aos seus descendentes é
exatamente a sua experiência de vida, é o seu ensinamento, em todos os aspectos que você possa
imaginar, então, para mim a morte é, na realidade, aonde você cumprir o seu papel, deixou
ensinamentos, ou tentou deixar, e parte para um outro caminho de evolução, para continuar
aprendendo e para voltar a ensinar, ou aqui, ou em outro mundo. Para mim a morte é um novo
caminho, eu não chamo um renascimento, é uma transformação, para, inclusive, com todo o
conhecimento que eu adquiri dentro do culto religioso, do sacerdócio, cada vez mais eu tenho
certeza que é uma transformação. Por quê? Se você analisar que o Orixá, que é o seu ancestral,
voltou para o orum dele, e que tem a necessidade ou vai voltar depois, e que adquiriu uma
experiência usando a tua matéria e a tua alma, o teu espírito aqui; se você analisar que a minha
alma pode optar em ser um egun, e aqui continuar, e o espírito ter outra vida, ter vida própria.
O espírito tem o caminho dele, o orixá tem o caminho dele, a alma tem o caminho dela, o corpo e
vai servir de adubo, de micróbio, lá pra alguma coisa; então é uma transformação, uma
metamorfose, e que tudo isso que nós estamos vivendo em corpo, alma e espírito se transformam,
e sempre com um conhecimento a mais, uma experiência a mais, então isso não pode ser doloroso
para nós; as coisas que acontecem, que alguns chamam de desgraça, eu vejo como aprendizado,
eu vejo isso como transformação da vida, ou da morte de uma existência para transformação de
uma nova vida, eu enxergo isso como fazendo parte do que vai ser o que as pessoas chamam de
morte, para mim é o acúmulo de experiência do ori, do orixá, do espírito e da alma.
Dentro do culto do candomblé nós não acreditamos em carma, e procuramos fundamentar
porque não acreditamos. Como, se acreditamos em um ser, Deus, Olorum, Olodumare, não
importa, que nos dá a condição de viver, de ter a oportunidade de crescer e melhorar, mas que
nos coloca num estado de inconsciência daquilo que por um acaso fizemos, esse Deus, ele está
punindo a quem? Se estivermos num estado de inconsciência e não sabemos, ele está punindo um
espírito? Você sabe quem é teu espírito? Eu não sei quem é o meu, ninguém sabe. Então, não
existe carma no sentido de punição, porque você não tem consciência daquilo que você fez de
errado, então como é que você vai consertar aquilo que você não sabe? Então isso é uma filosofia
religiosa, ou um fundamento religioso que para nós, do culto religioso do candomblé, ele não tem
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muito fundamento; se nós estamos aqui pra pagar aquilo que não sabemos que temos pra pagar,
então aonde é que está a evolução?
Independente de crença, ou religião, a conspiração divina ela é constante. A troca, é uma
conspiração divina, aonde um está trocando com o outro, aprendendo, onde uma palavra toca lá
na alma, que capta, armazena e transfere ao espírito, porque é a alma que dá a energia vital
para o seu pensamento, para seu raciocínio, para tudo que funciona no teu corpo, é a alma, não é
o espírito. Então a alma armazena, o espírito absorve, e leva quando desencarnar, então, essa
conspiração divina é constante, e é uma das coisas que o culto do candomblé tenda ensinar aos
filhos, que essa troca ela é constante, na vida lá fora, num bate papo, seja num botequim, seja
numa escola, seja com um filho, nós que somos pais, mães, aprendemos tanto com nossos filhos.
Nós tentamos mostrar que a relação com o Orixá, à aproximação com o Orixá, o sentimento, a
emoção com o Orixá, o sentimento do cumprimento do dever, o aprimoramento do sentimento
para que chegue ao amor verdadeiro pelo Orixá é que permite que o Orixá lhe torne sensível o
suficiente para perceber a vida e a existência, e aprender a não temer a morte.
206
8.2. Termo de consentimento livre e esclarecido
Eu, _________________________________, concordo em participar, por minha livre e
espontânea vontade, da pesquisa A escuta do filho de santo sobre a morte – entre o
silêncio do Ocidente moderno e a fala do Candomblé.
Declaro ter sido esclarecido(a) e informado(a) de que a pesquisa oferecerá subsídios
para a dissertação de mestrado em psicologia da Universidade Católica de Brasília –
UCB, desenvolvida pela mestranda Dalva Barbosa, e visa investigar a visão que o fiel
do Candomblé tem da morte.
De livre e espontânea vontade responderei às perguntas da entrevista sobre minha
vivência no Candomblé, que será gravada, transcrita e analisada. Estou ciente de que
na pesquisa será utilizado pseudônimo, quando houver referência ao nome de qualquer
um dos participantes do culto, e que não serei, portanto, identificado no trabalho
escrito ou apresentado.
Declaro também estar ciente que, durante a pesquisa, se tiver dúvida, serei
esclarecido(a), assim como terei a liberdade de recusar a participação ou retirar meu
consentimento em qualquer fase da pesquisa. Tenho garantia de sigilo aos dados
confidenciais envolvidos na pesquisa e minha participação está livre de qualquer
remuneração ou despesa.
____________________
Entrevistado(a)
207
8.3. Solicitação de autorização
Ao
Ilê Axé Owom Omo Omolu
Ilmo. Sr. Babalorixá Tito de Omolu
Prezado Senhor,
Solicito autorização para a realização de entrevistas semi-estruturadas com os
fiéis desse templo, a fim de investigar as semelhanças e diferenças na forma de ver a
morte entre os iniciados no Candomblé e a visão da sociedade ocidental moderna de um
modo geral.
As entrevistas, bem como a observação de rituais do culto, facultadas ao olhar
leigo, destinam-se a embasar a dissertação de mestrado em psicologia da Universidade
Católica de Brasília – UCB, desenvolvida pela mestranda Dalva Barbosa, sob
orientação da Profa. Dra. Marta Helena de Freitas e co-orientação da Profa. Dra.
Ondina Pena Pereira.
Comprometo-me a não descrever fatos ou informações ocorridas nesse templo
sem a devida autorização e não revelar, sob nenhuma hipótese, segredos de culto nele
realizados.
Agradeço antecipadamente sua colaboração,
______________________
Dalva Barbosa
Autorizo:
_____________________
Babalorixá Tito de Omolu
Brasília ____/____/2004.