A Moral de Rene Descartes
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A MORAL DE DESCARTES
Joel Bonin1
RESUMO
O presente trabalho visa abordar a importância do trabalho de pesquisa filosófica de Descartes, no que se refere à dimensão ética. Descartes inaugura um novo tempo no âmbito filosófico de sua época, entretanto seu modo de raciocinar não escapou por completo do contexto histórico no qual viveu. Por isso, a dissociação entre corpo e alma, o problema metafísico da prova da existência de Deus e as explicações filosóficas baseadas ainda na Escolástica (mesmo se seu desejo era o de superá-la) nos levam a crer que seu modo de filosofar era fruto, enfaticamente, de um processo hermenêutico-reflexivo contextualizado. Entretanto, Descartes ao escrever, já no final de sua vida, O Tratado das Paixões da Alma, revela-se muito mais um verdadeiro professor de vivências, de experiências e ensinamentos práticos do bem viver do que um filósofo ou matemático propriamente dito. Sua preocupação nesta etapa da vida é a de tentar encontrar modos assaz eficazes para se conquistar uma vida boa, ou seja, modos de viver que nos levem a sermos éticos e, conseqüentemente, felizes. Nesta perspectiva, Descartes ensina que a generosidade é a virtude, por excelência, e que só ela pode ser “o remédio para todos os nossos excessos”.
Palavras-chave:
Ética e Felicidade
Generosidade e Paixões
1 INTRODUÇÃO
René Descartes é conhecido por ser um dos principais pensadores do Pré-
Iluminismo. Por suas obras e seu pensamento, é considerado o precursor do
Racionalismo Moderno. Sua obra foi e ainda é respeitada por todos os pensadores
que o sucederam, principalmente pelo fato de ter sido um homem que tentou dar
uma guinada epistemológica que superasse o pensamento filosófico-escolástico,
mesmo que, muitos pesquisadores justifiquem que os argumentos cosmológico-
1 Mestrando em Filosofia pela UNIOESTE – Campus de Toledo - PR
2
ontológicos de Descartes acerca da prova da existência de Deus estejam
fundados no pensamento escolástico de seu tempo.
Descartes é conhecido principalmente por ter publicado o “Discurso do
Método” e “Meditações Metafísicas”. Nestes textos, sua preocupação principal se
redunda a tentar explicar o porquê da importância da dúvida metódica e do “cogito
ergo sum”. Contudo, um texto escrito por ele, quase no final de sua vida, não é
muito conhecido, comentado ou debatido nos espaços acadêmicos. A obra
“Paixões da Alma”, a qual queremos nos referir, entretanto, revela um dos
aspectos fundamentais da vida humana, que Descartes conseguiu entender no
tempo certo: como devemos viver, como devemos agir, enfim, qual é telos de
nossas ações neste mundo e nesta vida? Descartes demonstra, neste mesmo
período, um interesse muito peculiar pela pesquisa biológica de nosso corpo e de
que maneira pode existir uma relação direta entre nossas ações empíricas e
nossa razão.
Descartes, além de ter sido um grande filósofo, foi também um grande
pesquisador em outras áreas da ciência. Ele é famoso pela elaboração de cálculos
matemáticos e pelo seu grande conhecimento da anatomia humana. Segundo tal
conhecimento, Descartes tentou descobrir qual a relação entre nosso corpo (res
extensa) e nossa alma (res inextensa) e como podia ser possível que nosso corpo,
mesmo imperfeito ou causador de inexatidões, contribuísse para que nossa alma
guiasse a nossa vida humana e nossas relações interpessoais. Descartes, apesar
de ser entendido como um racionalista, revela-se muito metafísico desde o início
de sua vida como filósofo, pois apesar de ser contra qualquer saber não advindo
da razão, aceitou a existência de um Deus que não o enganasse ou não o
deixasse nas trevas do saber incerto (Meditações Metafísicas). Ele diz:
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou [...] Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são [...] foram criadas e produzidas (MM. 9 e 22).
Ou seja, se Deus fosse mau ou não representasse o Bem Supremo, seria
em si contraditório com o seu Ser, pois o mal seria sua negação e, por
conseguinte, seu não-Ser. Sem tal certeza, Deus seria mutável e imperfeito; e isso
3
contraria os princípios fundamentais da filosofia cartesiana. Dessa forma, é papel
fundamental na filosofia cartesiana, a presença de um Deus como “demiurgo”,
como feitor da harmonia humana, conservador de nossas idéias inatas. Neste
ponto, é possível notar uma grande semelhança de Descartes e Platão, no que se
refere à defesa de um mundo inteligível perfeito, que sirva de modelo de
referência para este mundo sensível. Porém, vale lembrar que Platão era grego,
politeísta e co-fundador de um sistema de pensamento que serviu de base para a
grande maioria dos pensadores monoteístas-cristãos até o final do século XV;
Descartes, católico e monoteísta, tentou dar uma nova orientação para o
pensamento de sua época ao encetar as pistas para um pensar mais racionalista
e universal.
Sob este olhar de pesquisa, tentaremos desenvolver o tema acerca de uma
noção cartesiana de ética, não tanto embasada nos problemas referentes à
relação anatômica entre corpo e alma, mas essencialmente sobre o agir humano,
na busca de um telos último da ação entendida por Descartes. Contudo, é
inevitável uma breve abordagem sobre este ponto: o homem, ser composto por
duas substâncias distintas, corpo e a alma. E é sobre isso que discutiremos agora.
2 POR QUE DESCARTES PREOCUPA-SE COM A RELAÇÃO CORPO-ALMA?
Segundo Gilles-Gaston Granger, o homem para Descartes “participa a um
tempo do reinado da extensão, onde tudo é mecanismo, e do reinado do
pensamento, que o introduz na moral e na religião. Mas depende ainda de um
terceiro reinado, que é o da união entre a alma e o corpo”. (Introdução a Obra
Escolhida de Descartes, pp. 24).
Segundo Granger, Descartes durante toda a sua vida de pesquisador,
tentou resolver esta questão essencial para sua filosofia, a saber: como pode
haver uma ligação entre aquilo que é imperfeito (corpo) e aquilo que é perfeito
(alma). Como vimos, Granger expressa sinteticamente a visão cartesiana do
corpo: onde tudo é mecanismo. Neste ponto, Descartes diz que o corpo humano e
o corpo de qualquer outro animal são semelhantes, pois apenas correspondem
igualmente a consecução de atividades autômatas, tais como a de um relógio. E
4
quando estas findam, o corpo (res extensa) simplesmente pára de funcionar. Ele
diz:
[...] a morte nunca sobrevém por culpa da alma, mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere de um homem morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir. (PA. Art. 6).
Esta visão efetivamente utilitarista do corpo é vista como um meio para se
justificar racionalmente a desimportância do corpo. Ou seja, para Descartes, o
corpo, aparentemente, é apenas um executor das intencionalidades da alma, ou
talvez, um receptáculo aprisionador da alma. É verdade também que o
pensamento cartesiano entende que, devido à imperfeição corporal, a alma pode
ser enganada ou desvirtuada do seu fim último. A alma, outrossim, pode ser ainda
encarada como a sede da razão e da moral, pois as vontades corpóreas são
dissimuladoras da vontade da alma. Essa distinção na filosofia cartesiana entre
corpo e alma é fundamental para se entender sua moral. Lívio Teixeira diz:
A idéia da separação da alma e do corpo é fundamental no sistema de Descartes. Ela é em primeiro lugar a conquista inicial do método. O ‘cogito’ significa que podemos conhecer com plena certeza a existência da alma, enquanto a dúvida ainda continua a pairar sobre a existência do corpo e dos corpos em geral (TEIXEIRA, 1990, p. 85).
Não é à toa que Descartes denomina a alma como a parte do homem que
lhe fornece a possibilidade de pensar e estar no mundo. A res cogitans (o homem
como coisa que pensa, orientado pela alma) lhe dá a certeza de que o cogito ergo
sum é possível. Aliás, nas Meditações Metafísicas, Descartes tenta demonstrar
justamente este ponto, a saber, o de que só pode existir corpo se a alma o
preceder, ou melhor, se pode haver corpo se a alma assim compreender. Para
tanto, Descartes fala da cêra produzida por uma colméia de abelhas. Esta cêra
pode sofrer inúmeras mutações e elas já estão impressas em seu interior, porém a
idéia de cêra permanece em nosso pensamento/imaginação2. E isto só se torna
2 Para Descartes, imaginação é um ato do pensamento. “A imaginação, pois, pressupõe a existência dos corpos e também a união de um certo corpo com a minha alma. É isso que faz com que, sendo uma forma de pensamento, a imaginação não se confunde com o entendimento: ‘ela depende de alguma coisa diferente de
5
possível graças a nossa capacidade intelectual de uma “redução eidética”3 do
objeto e não porque nossos sentidos capturaram a idéia do objeto, pois segundo
Descartes, só sou capaz de compreender o mundo que está a minha volta “pelo
poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus
olhos” (MM. 14).
Este olhar cartesiano para o problema da dissociação e associação entre
alma e corpo possui um fim que é o de justificar o seu método, pois como vimos,
para ele, a existência de Deus tem fundamental importância em sua metafísica.
Assim pode-se acreditar que Deus, em si, em sua grandiosidade, jamais
tomou figura humana tal qual como ele é: a res extensa jamais foi personificada,
do ponto de vista cartesiano, pela figura divina. Desse modo, Deus não pode ser
encarado ou aceito como uma entidade personificada, que adquiriu um corpo tal
qual como o nosso. Sendo assim, o único modo de ligar o humano com o divino se
dá pela alma, que como foi dito anteriormente, é sede da razão e, agora, de Deus.
A imutabilidade de Deus garante esta tese, pois o pensamento, depois de ter
passado pelo crivo da dúvida metódica e hiperbólica, só pode ficar alocado em um
espaço hermeticamente seguro e este lugar, certamente, não pode ser corpóreo.
Contudo, o reflexo do corpo na alma pode ser considerado como aceitável. Sobre
isso, Lívio Teixeira diz:
O grande argumento de Descartes, porém, em favor da união substancial4 é o já mencionado fato, a experiência de que a alma não está apenas alojada no corpo, como um piloto em seu navio, mas está de tal modo unida ao corpo que sente as suas dores etc. [... Outrossim] para Descartes, a matéria, criação de Deus, não pode ser má em si mesma, do ponto de vista do conhecimento, ela pode ser conhecida cientificamente pela geometria e pela física. (TEIXEIRA, 1990, p. 92, 108).
Ao chegarmos a esta conclusão, novas idéias subjacentes a ela vão
brotando: se existe alguma distinção clara e nítida entre corpo e alma, há também
a noção de que ambos co-existem, como relata Lívio Teixeira: “[...] não só a
existência do nosso próprio corpo, mas a existência de um corpo unido a nossa
alma [...]”. Segundo sua interpretação de Descartes, existem duas origens meu espírito’, isto é, o corpo. Contudo a imaginação não pode só por si provar a existência dos corpos: apenas permite formular a conjectura”. (TEIXEIRA, 1990, p. 87). 3 Segundo a fenomenologia de Husserl. 4 Entre corpo e alma.
6
possíveis que nos auxiliam a compreender e a superar esta dicotomia, advinda
das idéias confusas que os sentidos nos provêm cotidianamente. Teixeira explana
seu ponto de vista partindo da idéia de que não se pode compreender Descartes
sem o entendimento claro acerca destas origens, porque elas podem revelar um
caráter de possibilidade de superação das idéias confusas adquiridas pelos
sentidos do corpo, se bem entendidas. São elas: “a) as que provêm da aceitação
de tradições e hábitos não-criticados5 [...]; b)as que vêm da união da alma com o
corpo”.
Segundo Descartes, a primeira parte é bem mais fácil de ser superada
justamente porque parte do princípio da dúvida impiedosa contra todo nosso
passado adquirido com base em idéias falsas ou incertas. Nosso intento deve ser
o de questionar, como verdadeiros torturadores diante de prisioneiros de guerra,
todo conhecimento tido como verdadeiro e indubitável. Contudo, a incerteza, por
mais que seja redimida, é um malogro inevitável, pois na medida em que
avançamos rumo às certezas indubitáveis, novos problemas aparecem. Dentre
eles, os que envolvem a união corpo-alma.
Lívio Teixeira, por fim, levanta várias hipóteses para a solução deste
inextrincável problema cartesiano, a saber, o de como responder, de modo
suficiente, ao problema desta união re-estudada por Descartes6, pois por mais que
o mesmo tente dar uma resposta filosoficamente satisfatória, seu objetivo não
chega a ser alcançado, pois como afirma Teixeira:
Descartes, ao contrário, não pretende resolver o problema, apenas o propõe: alma e corpo são substâncias distintas que se encontram unidas substancialmente no homem. [...] Quanto à sua origem, ela resulta de um ato da vontade de Deus. Mas explicação racional da união não é possível: estamos em um plano em que só são possíveis as idéias confusas. Na verdade, os textos de Descartes mostram que com a apresentação da glândula pineal como a sede da alma, ele não pretendeu resolver o problema da interação entre as duas substâncias. Porque a glândula é sem dúvida uma parte do nosso corpo [...] encerrando uma sorte de contradição, ou a afirmação de que existem elementos no homem que são
5 Para tanto, Descartes afirma logo no início da 1ª Meditação Metafísica: “Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (MM. p. 117). 6 Dentro desta perspectiva, os tomistas foram uns dos primeiros que tentaram resolver este problema.
7
de natureza intermédia, nem bem corpóreos, nem bem espirituais. (TEIXEIRA, 1990, p. 98).
Enfim, a solução da glândula pineal como sede da alma não é entendida
como uma justificativa racional satisfatória justamente porque esta explicação é
anatômica e não ter caráter filosófico em si. Entretanto esta explicação ganha
corpo quando se entende que “‘a razão de ser do sistema cartesiano estava
porém, em ensinar-nos a pensar a extensão como se nossa alma não estivesse
unida ao corpo’, isto é, pensar a extensão com o entendimento e não com as
sensações e imaginações que vêm do plano da união da alma e do corpo”.
(TEIXEIRA, pp. 94).
Sendo assim, se tentarmos responder a pergunta que intitula este capítulo,
vemos que a preocupação cartesiana no que tange a união corpo-alma não está
tanto em dar uma resposta cabal à união através do subterfúgio argumentativo da
glândula pineal, mas sim em compreender que o corpo deve ser assimilado pelo
entendimento, pela razão alojada na alma e que esta precede o corpo, pois este é
enganoso, pelo fato das sensações e imaginações serem enganosas. E é aí que
reside sua preocupação: buscar a superação de nossos enganos dando à alma, a
função “de pilotar nosso navio corporal”, mesmo que o problema dualista corpo-
alma não tenha encontrado uma explicação assaz convincente7.
3 COMO VIVER MORALMENTE BEM, SEGUNDO DESCARTES.
Após a tentativa de solucionar o problema da relação entre corpo e alma,
Descartes se debruça sobre o problema de como se deve viver. É interessante
notar que logo após a complexa solução entre estas substâncias “assez claires et
distinctes”, todas as idéias de Descartes se voltam para a compreensão de uma
vida pautada em ações morais ou imorais, aceitáveis ou reprováveis, dignas de
louvor ou repúdio, seja subjetiva ou objetivamente falando. Segundo muitos
7 Ou seja, ainda permanece a dúvida da intencionalidade cartesiana de explicar a ligação corpo-alma, pois ainda perduram muitas dúvidas quanto a este problema. Para tanto, há quem julgue que uma explicação possível seria a de justificar que a glândula pineal funcionaria tal como um “sinal de fax” do corpo para a alma.
8
pesquisadores, foi no final de sua vida, que Descartes conseguiu entender o
verdadeiro fim último de toda vida humana: a moral. Para tanto, sua obra mais
expressiva neste campo do conhecimento filosófico, chamada “Paixões da Alma”,
revela seu lado mais pragmático, porém não menos metafísico.
A obra está dividida em artigos, ao todo 212, que variavelmente explanam
acerca das paixões corporais e das paixões espirituais, e de como o corpo influi na
alma e vice-versa. A obra trata também e principalmente em sua última parte,
sobre como o corpo e a alma sofrem influências externas do ambiente ao qual
está exposta e de como o homem deve discernir o modo de agir perante tais
influências.
Antes, porém, é importante ressaltar que a moral cartesiana não possui o
mesmo rigor epistemológico que estava presente nas obras anteriores, apesar de
que muitos autores concordam com a idéia de que o principal intento da filosofia
cartesiana é o de buscar a sagesse em primeiro lugar. Segundo eles, o grau mais
elevado da vida do homem está posto na simbiose entre ciência e virtude, isto é, a
sagesse (sabedoria) é “a ciência com a virtude, juntando as funções da vontade
com as do entendimento”. Teixeira diz:
“A sagesse compreende um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta da vida, como para a preservação da saúde e a invenção de todas as artes. Essas três aplicações práticas, Descartes as considera todas de grande importância: todas são galhos da mesma árvore da Filosofia e o seu valor relativo para Descartes, dependerá, talvez, das circunstâncias”. (TEIXEIRA, 1990, p. 102).
Contudo, se levanta uma questão importante para o entendimento da
filosofia prática de Descartes: desde o princípio da elaboração de sua filosofia, um
dos seus objetivos mais evidentes foi o de esclarecer que, sem um procedimento
bem estruturado de questionamento das verdades tidas como certas e
indubitáveis, o conhecimento não poderia ser considerado como certo ou
científico. Com outras palavras: a dúvida hiperbólica foi adotada por Descartes,
como método infalível para se encontrar um conhecimento efetivamente correto do
mundo. E o ponto de partida para tal empreendimento foi a descoberta do cogito
ergo sum. Com tal conclusão, muitos pesquisadores do pensamento cartesiano,
compreenderam que seu pensamento moral pudesse ser considerado como um
9
sistema ético-filosófico científico ou definitivo, pois a moral de Descartes poderia,
com base nestas idéias, ser induzida a uma “moral que permitiria deduzir, de um
certo número de princípios verdadeiros e de conhecimentos certos sobre o
universo e o homem, normas infalíveis de conduta”.
Contudo, por incrível que pareça, o pensamento moral cartesiano não
escapa da lógica da sagesse, pois para a sagesse duas coisas são requeridas: o
conhecimento de tudo o que é bom e a vontade para estar sempre disposto a
segui-lo. Estas prerrogativas são essenciais, pois a ciência pode ser uma tarefa
destinada para poucos homens, mas a virtude é uma “dádiva divina” que pode ser
praticada por todos os homens de vontade. “Só o esforço da vontade, diz
Descartes, está ao alcance de todos os homens, ‘visto que o entendimento de
alguns não é tão bom como o de outros’. E o que faz com que o homem possa ser
‘perfeitamente sábio’ não é o conhecer, mas a vontade de conhecer” (TEIXEIRA,
p. 103). Com isso, podemos entender que o objetivo da sagesse segundo
Descartes, não é cientifico, mas moral-racional.
É justamente sobre este olhar que o filósofo francês escreveu o Tratado das
Paixões, obra tão importante para uma compreensão ampla de seu sistema
filosófico. Ou seja, neste trabalho sua preocupação maior é a seguinte: como
podemos descobrir, sem irresolução, os desígnios pragmáticos e metafísicos de
nosso agir. Como diz Teixeira, sobre esta obra: “versando assunto moral,
poderíamos considerar que é o coroamento de todo aquele esforço que ele
anuncia desde o início de sua carreira, no sentido de buscar o conhecimento de
tudo o que fosse útil à vida” (TEIXEIRA, 1990, p. 151).
Dentre todas as paixões que Descartes vai estudar minuciosamente nesta
obra, algumas são sintetizadas e elevadas a um nível superior de valor. Vale a
pena ressaltar que nesta obra, Descartes, de certo modo, tenta tal qual um médico
legista fazer uma verdadeira autópsia da relação corpo-alma e de como qualquer
homem, cientista ou camponês, pode viver bem, pois segundo ele, um dos passos
mais importantes no caminho do conhecimento moral não está no sujeito em si,
mas no modo como ele se depara com outros sujeitos ou com o objeto do
conhecimento. Descartes considera a admiração um ponto-chave para tal. No
10
artigo 77, por exemplo, ele diz que, verdadeiramente, os mais inclinados à
admiração são aqueles que “embora possuam um senso comum assaz bom, não
têm todavia, em grande conta sua própria suficiência”.
Além da admiração, as paixões consideradas por Descartes como
imprescindíveis para uma vida boa e equilibrada são: o amor, o ódio, o desejo, a
alegria e a tristeza. Estas paixões, como se pode ver, apresentam um caráter
antagônico entre si. Porém para Descartes, todas elas são importantes, pois estas
paixões não são em si nem más nem boas. Tudo depende do modo como elas
são vividas. O amor em excesso, por exemplo, pode ser altamente prejudicial
tanto para o corpo quanto para a alma, segundo ele. Tudo depende do modo
como o vivenciamos. Por esta perspectiva, a lógica cartesiana está realmente
orientada para a sagesse, ou seja, para cada virtude a devida medida.
Sendo assim, tentaremos em breves palavras evidenciar a importância e o
valor de cada uma delas (as paixões).
Por seu turno, a admiração já foi mencionada no parágrafo acima, porém é
de suma importância acrescentar que Descartes deixa claro que o pontapé inicial
para o conhecimento se dá por meio da admiração. A novidade é a causa da
admiração, que proporciona em nós a geração do entendimento dos objetos.
Porém, Descartes explica que o excesso da admiração gera em nós o espanto,
que nos impede de apreender o real conhecimento acerca das coisas, pois nos
deixa paralisados e não motivados ao conhecimento. Ficamos apenas
boquiabertos. Ou seja, se nos deixamos levar pelos excessos, nos autopunimos.
Para Descartes, as paixões podem ser entendidas também como virtudes, como
pensavam Platão e Aristóteles. O excesso e o defeito são repugnáveis. A
diferença paira sobre o fato de que Descartes acredita no telos das paixões
negativas (ódio, tristeza e espanto decorrente do excesso de admiração).
No que se refere ao amor, Descartes diz que esta paixão é originada,
quando por meio da admiração, compreendemos que a pessoa ou objeto
admirado é bom e nos trará algum bem. Além disso, Descartes explica que o amor
pode ter três representações básicas: a afeição, a amizade e a devoção. A afeição
se liga à idéia de que sentimos um amor maior a nós do que ao objeto. Na
11
amizade, existe um amor equânime entre o sujeito-objeto ou entre o sujeito-
sujeito; e na devoção, há um amor maior ao objeto do que ao sujeito ou de um
sujeito para outro sujeito.
No que se refere ao ódio, Descartes diz que é uma emoção causada pela
repulsa aos objetos que se apresentam nocivos. A nocividade dos objetos faz com
que os repulsemos e daí surja o ódio. Com relação ao ódio, Descartes dá mais
atenção para as explicações anatômicas, tentando demonstrar as conseqüências
negativas desta paixão, quando a desenvolvemos excessivamente. Chama-nos a
atenção à explicação do art. 98, que trata sobre o vômito como conseqüência do
ódio elevado. Além disso, para Descartes, ódio é uma coisa só. O ódio pode ser
entendido como algo uno e sem ramificações. Ele só distingue o horror do ódio,
como aversão aos objetos feios, contudo, ódio é sinal de fechamento e repulsa a
tudo aquilo que se apresenta como aversivo. Outrossim, não há ódio sem tristeza.
A tristeza, por sua vez, para Descartes, é um langor (fraqueza)
desagradável no qual consiste a incomodidade que a alma recebe do mal. A
tristeza é resultado da inaceitação do mal em nós, pois ele nos incomoda e por
isso nos entristece. Desse modo, a tristeza nos causa dor e insatisfação. Nos
chama a atenção o fato de que, para Descartes, a fome pode provocar muita
tristeza (art. 110). Penso que, através do art. 116, ele vai tentar justificar o art. 110,
pois a tristeza nos “faz parecer pálidos e descarnados, principalmente quando a
tristeza é grande” e por isso notamos esta correlação entre fome e tristeza. Para
Descartes, a tristeza também existe em nós como paixão, pois como vimos, ele a
explica psicofisiologicamente, assim como, todas as outras. Enfim, o conceito
cartesiano de tristeza pode ser resumido da seguinte forma: melancolia e saudade
do bem.
O desejo para Descartes é, de forma bem simples, um olhar futuro do amor
(é por isso que a admiração é um passo importante para o conhecimento. O
conhecimento desperta em nós o desejo de conhecermos mais e,
conseqüentemente, este desejo gera em nós o amor, seja pelos objetos ou pelos
sujeitos). É a espera confiante do amor que virá. É “desejar” que o amor seja
sempre nosso maior bem. Porém, essa espera não pode ser inerte, mas ativa. A
12
aspiração de viver e de unir-se a alguém de outro sexo é, para Descartes, a
resposta mais sublime e perfeita do desejo, pois é resultado da admiração e do
amor.
A alegria, por sua vez, é o gozo do bem. É a agradável emoção que resulta
do bem que acreditamos possuir. Mais uma vez, Descartes quer evidenciar as
aparências fisiológicas que a alegria provoca em nós. Isso fica claro no art. 115
(além de muitos outros), quando ele fala do rubor que a alegria nos causa. A
alegria nos conduz a uma vida direcionada para a virtude e o bem, pois nos leva
ao conhecimento verdadeiro, o que é bom, desde que não haja excesso (art. 141).
Para concluir, em suma, Descartes tenta resolver o problema das paixões,
apresentando a generosidade como o remédio para todos os excessos, pois para
se alcançar à plenitude desta vida, é necessário que a vivamos segundo as
virtudes, ou seja, devemos evitar os excessos e os defeitos. A generosidade é,
para Descartes, a melhor virtude que podemos ter. Nas cartas de Descartes a
Chanut8, ele diz: “A generosidade, por implicar o conhecimento do verdadeiro
valor do homem, o livre-arbítrio9, é o meio de nos curar da cólera, sem que
possamos ser acusados de covardia. A gente só se livra da cólera livrando-se da
excessiva auto-estima e da suscetibilidade à injúria daí decorrente”. Ou seja, a
generosidade é um “santo remédio”, pois nos coloca em nosso devido lugar, pois
nos ensina “a estima a nós próprios e o respeito ao outro”.
De acordo com Teixeira,
“A generosidade – amor-próprio fundado no conhecimento – é a consciência clara de que a única coisa que verdadeiramente nos pertence e por cujo uso devemos ser louvados ou condenados é o livre-arbítrio, acompanhado de uma firme e constante resolução de bem usar dele. Em suma, a generosidade é uma forma de sagesse, uma nova expressão da virtude. Não é, pois, de admirar que ela apareça como chave e remédio contra os excessos e desregramentos das paixões”. (TEIXEIRA, 1990, p. 245).
Descartes surpreende a grande maioria de seus leitores justamente por
este ponto: a moral cartesiana, além de possuir um aspecto que envolve a
8 Nota de rodapé, da pág. 400, art. 203, extraída da carta de Descartes à Chanut, de 1º de Novembro de 1646. 9Ainda neste sentido, Descartes compreende que “Deus propõe e o homem, por intermédio de seu livre-arbítrio, dispõe. Desse modo, Deus não é o culpado dos meus erros nem dos meus pecados. Sou eu que me engano, sou eu que peco. Meu livre-arbítrio me faz merecedor ou culpado” (http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes2.htm).
13
dimensão subjetiva e objetiva do agir, tem consigo um aspecto racional, porém
não-científico. Racional, pois foi pela “[...] aplicação rigorosa do método que ele
chegou a discriminar as diversas substâncias10 [...] e pela noção de virtude,
esforço para bem agir segundo os melhores juízos e também esforço para bem
pensar”. E não-científico, pois o conhecimento das paixões não pode ser
propriamente científico, mas apenas racional, na busca dos melhores juízos
possíveis. Teixeira afirma que Descartes faz, na segunda parte do Tratado das
Paixões, “uma enumeração ou classificação das paixões, de acordo com os
critérios intelectuais que não visam, entretanto, a uma ordem científica, mas
somente uma explicação preliminar, capaz de proporcionar um fio condutor para
pôr alguma ordem na massa confusa das paixões”.
Ou seja, o principal intento desta obra cartesiana no que se refere ao
conhecimento possível, está baseado, pelo que pudemos observar, mais em uma
racionalidade moral-existencial-pragmático-metafísica do que em uma ciência
matemática indubitável válida ad eternum e concebida por Deus. Seu telos moral
é, assim como para Aristóteles, a felicidade. “O bom funcionamento do corpo, as
ligações harmoniosas entre os espíritos animais e os pensamentos humanos são
altamente desejáveis. A moral surge, então, como uma técnica da felicidade [...]”,
resultante da vontade e do livre-arbítrio, que por sua vez, conclui Descartes, são
efeitos da verdadeira sagesse.
4 CONCLUSÕES
A filosofia cartesiana aprendida nos bancos escolares dos cursos
universitários de Filosofia, na grande maioria das vezes, está voltada para uma
formação matemático-científica, onde Descartes é visto como um filósofo
extremamente racionalista e direcionadamente metafísico. Direcionadamente no
sentido de que precisava agir de tal modo para não ser perseguido pelos poderes
da Santa Inquisição de outrora. Sobre isso, Dainé Collinson diz:
Seu O mundo, completado em 1634, que oferecia uma teoria científica sobre as origens e funcionamento do universo, teve sua publicação
10 Corpo, alma e a união psicofísica entre ambas.
14
adiada, porque expunha o sistema copernicano de astronomia, e o filósofo havia observado a recente condenação de Galileu. (COLLINSON, 1989, p. 100).
Aqui, contudo, não quero afirmar que seu pensamento é resultado de uma
arquitetura epistemológica voltada apenas para salvá-lo deste poder eclesiástico
impiedoso. Mas o certo é que o aprendizado filosófico apresentado pela grande
maioria dos professores foge de uma explanação acerca do conteúdo moral do
pensamento cartesiano. Normalmente, somos introduzidos no pensamento
cartesiano sob os cuidados da Teoria do Conhecimento ou da Metafísica, mas
nunca ou raramente em um conteúdo ético.
Na pesquisa elaborada, foi possível a constatação de que Descartes foi um
homem efetivamente capaz de ter um Weltschaunung para além do que seu
tempo. A explicação da sede da alma na glândula pineal foi uma descoberta
interessante, pois hoje sabemos da importância, graças aos avanços científicos na
área da medicina, desta glândula para o bom funcionamento do ciclo cicardiano de
nosso corpo, o que de um modo ou de outro, já estava implícito na descoberta
cartesiana.
Além disso, as implicações psicossomáticas entre corpo e alma, apesar de
Descartes vê-las como duas substâncias claras e distintas, são de fundamental
importância para o entendimento contemporâneo de nossa vida, seja a nível
privado ou público e de como podemos compreender melhor a influência das
relações interpessoais em nossa vida pessoal. Esta preocupação demonstra um
profundo conhecimento não só filosófico em si, mas pragmático, ou seja,
Descartes soube hermeneuticamente, através de seu conhecimento científico e
empírico, dar respostas as seguintes questões: como que as relações entre minha
interioridade e minha exterioridade agem sobre meu corpo? Como devo me
comportar para ter uma vida boa?
De fato, o pensamento moral cartesiano como paradigma filosófico
ultrapassa o cogito ergo sum, pois sua filosofia prática, pode ser equiparada com a
filosofia prática aristotélica, pois ambas entendem que o fim último de todo agir
está voltado para a prática do bem e a busca do Sumo Bem, que por fim, nos leva
a felicidade. Viver segundo tais orientações é, como ele mesmo diz, viver
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orientado pela sagesse, que por sua vez, orienta as paixões da alma: “a sabedoria
é principalmente útil neste ponto, porque ensina a gente a tornar-se de tal forma
seu senhor e a manejá-las com tal destreza, que os males que causam são muito
suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria de todos”. (PA, art. 212). Aliás, é
importante lembrar que o pensamento cartesiano, de modo algum, se orienta
pelos juízos sintéticos a priori, como preconiza Kant.
Em suma, o agir cartesiano está voltado para uma maneira de pensar onde
que a virtude é resultado sim de uma ação praticada reiteradas vezes, pois “razão
e vontade estão unidas na virtude, em busca do maior contentamento que é
possível na vida – eis a moral de Descartes, que é, sem dúvida, uma forma de
eudemonismo”. (TEIXEIRA, 1990, p. 247). E tal conclusão só pode ser alcançada
se o Tratado das Paixões for lido e compreendido como um dos pilares
indispensáveis da constituição do edifício filosófico tão bem construído e
elaborado por René Descartes, durante sua brilhante carreira como filósofo laico-
renascentista e como precursor do Iluminismo francês.
5 REFERÊNCIAS
GRANGER, Gilles-Gaston. Introdução a Descartes – Obra Escolhida. Tradução de
J. Guinsburg e Bento Prado Jr. Clássicos Garnier – Editora Difusão Européia do
Livro, São Paulo, 1962.
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de J. Guinsburg e Bento
Prado Jr. Clássicos Garnier – Editora Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1962.
___________, _____. As Paixões da Alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento
Prado Jr. Clássicos Garnier – Editora Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1962.
TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a moral de Descartes. 2ª ed. Editora Brasiliense.
São Paulo, 1990.
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http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes2.htm
COLLINSON, Dainé. 50 grandes filósofos. Tradução de Maurício Waldmann e Bia
Costa. 2ª ed. Editora Contexto, São Paulo, 2004.
6 ABREVIATURAS
MM. – Meditações Metafísicas.
PA. – Paixões da Alma.