A Missão Da Tecnologia
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A MISSÃO DA TECNOLOGIA
Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 24/11/07; esta versão, ampliada: 2/10/14
1. Introdução
Este artigo foi escrito para aqueles que se preocupam com o rumo que a
tecnologia, como definida no item 3, há muito tempo está tomando, em sua
grande parte: dominando e destruindo os seres humanos e a natureza. Essa
dominação provém de um verdadeiro endeusamento da ciência e de sua
filha, a tecnologia; um verdadeiro fanatismo por elas. Sou totalmente contra
qualquer fanatismo, em particular o de se achar que tudo que é científico e
tecnológico é ótimo. Obviamente, também sou contra o fanatismo oposto, o
fundamentalismo religioso. Sou totalmente a favor da busca da
compreensão dos fenômenos, e de ações nela baseadas, enriquecida pela
intuição dos sentimentos (já que não podemos ter um conhecimento total de
nada, a não ser na Matemática, mesmo assim com algumas restrições), e
levando em conta as ações e experiências passadas. Nesse sentido, não
tenho crença ou fé. Ou, levando em conta que muitas de minhas ações são
A missão da tecnologia 1
ditadas pelo meu inconsciente – como o impulso de reescrever este artigo –,
procuro não as ter. Note-se que falei de ações baseadas não só em
compreensão, de modo que não me considero um puro racionalista.
Apesar de quase todos os cientistas serem contra o fanatismo religioso, é
preciso reconhecer que o fanatismo pela ciência e pela tecnologia é que está
destruindo o ser humano e a natureza. O fanatismo religioso só destrói
alguns indivíduos, sendo portanto razoavelmente limitado. A poluição
atmosférica e talvez uma de suas consequências, o aquecimento global, a
poluição dos alimentos, a medicação descontrolada, o desastre ecológico e
humano que se avizinha devido à modificação genética de plantas e animais
(criando seres vivos que jamais existiram), o condicionamento pela TV e
pelos video games, e muitos outros fenômenos, são amostras da
mencionada destruição.
Preciso colocar logo de início que não sou contra a tecnologia; não sou,
portanto, um neoluddita. (Luddites eram pessoas que, entre 1811 e 1816,
eram contra a mecanização das indústrias na Inglaterra e formavam bandos
para quebrar máquinas; eles diziam que seguiam uma figura simbólica, o
"rei" Ned Lud.) De fato, formei-me em engenharia eletrônica (ITA, 1963) e
minha vida profissional foi baseada na tecnologia (Ciência da Computação).
Estou usando um computador para compor este texto – mas isso é uma
necessidade, já que pretendo colocar este artigo em meu site.Sou
radioamador classe A (PY2EH – infelizmente inativo, pois a Internet quase
A missão da tecnologia 2
acabou com o radioamadorismo), mas para isso não havia necessidade
nenhuma.
Certamente parecerá a muitos estranho que a tecnologia possa ter uma
missão, pois aparentemente ela é neutra. Em geral crê-se que os benefícios
ou malefícios que ela produz dependem do seu uso. No item 3 mostro que,
ao contrário, a tecnologia não é neutra. Posso falar de uma missão da
tecnologia, tratada no item 4, devido à minha concepção de mundo, que
exponho no item 2. No item 5 caracterizo como se podem compreender os
aspectos do Mal e do Bem, para poder compreender o papel da tecnologia
em relação à liberdade humana. No item 6 mostro como a tecnologia está
sendo mal usada, para no item 7 abordar o que compreendo como sua
missão para a humanidade. No item 8 dou algumas diretrizes no sentido de
cada pessoa tomar uma atitude que considero positiva em relação à
tecnologia, para no item 9 colocar uma breve conclusão. Finalmente, o item
10 contém as referências bibliográficas.
No texto, não serão inseridos vínculos para páginas da Internet, para que o
leitor não tenha o impulso de interromper a leitura e desviar para outra
página, perdendo assim o fio da meada. Esses vínculos estão nas
referências, com o nome citado no texto.
2. Minha concepção de mundo
Há duas visões de mundo mutuamente exclusivas: o materialismo e o que
vou denominar de espiritualismo. Materialismo é a concepção de que só
A missão da tecnologia 3
existem matéria e processos físicos no universo (processos químicos são
hoje em dia reduzidos a processos físicos). Muitos materialistas chamam
esses processos de “naturais”, não admitindo a existência de nenhum
processo “sobrenatural”, isto é, que não possa ser totalmente reduzido a
processos naturais. A grande maioria dos cientistas hoje em dia são
materialistas. Denomino de espiritualismo uma concepção de mundo que
admite que existem “substâncias” e processos e não físicos no universo,
eventualmente influenciando processos físicos. Denomino de espiritualismo
científico o espiritualismo que admite a existência de “substâncias” e
processos não físicos apenas como umahipótese de trabalho. Uso a
expressão “não físico” para indicar algo que existe fora do mundo físico, e
que não pode ser reduzido a fenômenos físicos. Estou ciente do problema de
definir algo por negação, mas é a maneira mais simples que encontrei para
expressar o que estou caracterizando.
Note-se a ênfase que dei à expressão “hipótese de trabalho”. Se alguém
acredita piamente que há processos não físicos não o considero um
espiritualista científico. Hipóteses devem sempre ser temporárias, sujeitas a
revisão. Além disso, deve-se sempre buscar a sua comprovação, devem ser
formuladas para se compreender algo e servir para se construir uma teoria
coerente. Já crenças em geral são permanentes, fixas, e não estão sujeitas
nem a compreensão e nem a comprovação, e não servem para se construir,
a partir delas, uma teoria coerente. Para mais detalhes sobre materialismo e
A missão da tecnologia 4
espiritualismo, vejam-se meus artigos “Ciência, religião e espiritualidade” e
“Consequências do materialismo”; no primeiro denominei de
espiritualismo-crença aquele que se baseia, pelo menos em parte, em
crenças ou fé.
Um materialista e um espiritualista caracterizam-se por sua maneira de
pensar. Tipicamente, um materialista procura e usa somente alguma
explicação física para qualquer fenômeno. Já um espiritualista deve admitir a
existência de fatores não físicos que possam influenciar alguns fenômenos
físicos, principalmente os que envolvem os seres vivos.
Não é por uma pessoa ficar colocando a causa de alguns fenômenos em uma
entidade não física como a que se costuma chamar de Deus, que a considero
um espiritualista científico no sentido que acabei de dar. A razão disso é que
essa entidade e sua maneira de agir não podem ser observadas e
compreendidas, pois ela se tornou uma mera abstração. Assim, tipicamente,
esse tipo de pessoa, que em geral denomina a si própria de “religiosa”, não
procura compreender esses fenômenos, atribuindo como sua causa a
atuação do que chama de Deus. Uma das características dessa falta de
compreensão é a falta de uma explicação de como essa entidade,
claramente não física, poderia influenciar, por exemplo, as ações dos seres
vivos. No sentido que dei, todo espiritualista tem religiosidade, mas nem
toda pessoa religiosa é espiritualista científica. Pelo contrário, pela maneira
A missão da tecnologia 5
de pensar, nota-se que muitos dos que se dizem “religiosos” são, no fundo,
materialistas.
Há muitas evidências que sugerem que a concepção de mundo espiritualista
é razoável. Não vou me alongar nesse aspecto e em muitos outros, pois
escrevi um artigo que aborda isso extensamente, “Por que sou
espiritualista”. Nele, exponho também minha teoria de como processos não
físicos podem agir sobre o mundo físico. Como se verá no item 4, é
justamente pelo fato de adotar a hipótese espiritualista que posso falar de
uma “missão” da tecnologia.
3. A tecnologia e sua não neutralidade
A palavra “tecnologia” deveria referir-se a “conhecimento da técnica”. O
Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI traz a definição “Conjunto de
conhecimentos, esp[ecialmente] princípios científicos, que se aplicam a um
determinado ramo de atividade.” Neste artigo, usarei o termo “tecnologia”
no sentido que se dá popularmente a ele em inglês, isto é, referindo-se a
qualquer artefato, especialmente instrumentos e máquinas.
Nenhuma tecnologia é neutra. De fato, tome-se na mão um martelo, e
veja-se qual a atitude interior que ele inspira: certamente, a de bater, às
vezes com violência, em alguma coisa, provavelmente um prego. Agora,
tome-se um travesseiro; a atitude que ele inspira certamente é de calma, de
aconchego, de descanso – a menos de crianças que gostam de fazer uma
divertida guerra de travesseiros, mas mesmo nesse caso a atitude induzida
A missão da tecnologia 6
por ele não é de machucar outra pessoa com violência. Portanto, esses dois
artefatos induzem uma determinada atitude interior e certos sentimentos. O
filósofo Martin Heidegger escreveu “Assim, jamais vivenciaremos nossa
relação para com a essência da tecnologia, na medida em que nós
meramente concebermos e promovermos o tecnológico, aturarmo-lo ou
fugirmos dele. Mas somos entregues à tecnologia da pior maneira possível,
quando nós a encaramos como algo neutro; pois essa concepção, a qual
hoje em dia gostamos especialmente de prestar homenagem, torna-nos
totalmente cegos à essência da tecnologia.” [Heidegger 1954, minha
tradução]. Na verdade, é preciso reconhecer que nada no mundo é neutro
em relação ao ser humano, pois este incorpora todas as suas vivências. De
fato, o leitor não será exatamente o mesmo depois de ter lido este artigo,
comparando com o que era antes de tê-lo lido: terá entrado em contato com
algumas ideias novas, terá tido algumas reflexões, e tudo isso ficará
“gravado” para sempre, pelo menos em seu subconsciente. Certamente ele
não lembrará de tudo o que leu, mas se for hipnotizado, poderá repetir
muito do que terá esquecido.
Vou dar mais quatro exemplos da não-neutralidade da tecnologia, usando
meus alvos preferidos. Em primeiro lugar, examinemos a TV. Imagine-se o
que significa ter guardado no inconsciente ou no subconsciente todo o lixo
mental televisivo que foi assistido. Certamente isso deve ter alguma
influência na maneira de pensar, nos sentimentos e nas ações dos
A missão da tecnologia 7
telespectadores (um jovem, ao entrar na universidade, já assistiu em média
pelo menos 20.000 horas de TV). É por isso que houve um casamento
perfeito entre a TV e a propaganda. Nunca se gastou tanto em propaganda
quanto depois do advento da TV, e esse é o veículo para o qual é canalizada
a maior parte dos recursos em publicidade. No Brasil, em 2010 66,2%, isto
é, 2/3 de todos os gastos com publicidade foram canalizados para a TV
[Mídia 2011, p. 51]. Poder-se-ia achar que esses gastos são canalizados
para ela pois é o veículo de comunicação mais difundido; de fato, está
presente em praticamente todos os lares brasileiros (a estimativa é de 98%
[idem, p. 60]), a tal ponto que não é possível fazer uma pesquisa usando
algum grupo de controle que não vê TV, pois ele quase não existe. Mas o
fato é que, se a propaganda pela TV não funcionasse, condicionando os
telespectadores a comprarem os produtos anunciados ou transmitidos, as
grandes empresas não gastariam as fábulas que gastam com propaganda
pela TV – afinal, não são idiotas para jogarem dinheiro fora. Para se ter uma
ideia da dimensão desses gastos, cito Susan Linn, que em seu excelente
livro Crianças do Consumo: a Infância Roubada, traz o dado de que em 2002
a rede McDonald’s gastou 510,5 milhões de dólares em propaganda somente
na TV americana [Linn 2006, p. 132]. A luta dos partidos políticos por um
minuto extra de propaganda política na TV também é uma demonstração do
poder de condicionamento que ela tem, conforme exponho em meu artigo
“Um minuto a mais na TV”. Um outro caso interessante é o relatado por
A missão da tecnologia 8
Hancox [2004] e colaboradores, que fizeram uma pesquisa longitudinal
seguindo os sujeitos da pesquisa desde a idade infantil até 21 anos. Eles
verificaram que, na Nova Zelândia, apesar de a propaganda de cigarros pela
TV ter sido proibida em 1963, adultos de 21 anos que, quando crianças,
viram muita TV, tinham 17% mais chance de serem fumantes na idade
jovem adulta, devido simplesmente a terem assistido programas em que
pessoas apareciam fumando, como em entrevistas ou filmes [Hancox 2004].
(Ver detalhes desse e outros estudos aqui citados, em meu artigo “Os efeitos
negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.)
Esses dois casos demonstram que a TV condiciona e, portanto, não é de
modo algum um veículo de comunicação neutro.
Se a TV não é neutra, imagine-se então um video game. Nesse caso, o
condicionamento não é só pela imagem, mas também pela ação. Por
exemplo, já está mais do que provado que jogos eletrônicos violentos
induzem atitudes agressivas a curto, médio e longo prazo, e
dessensibilização social, isto é, diminuição da empatia (ver, por exemplo,
[Anderson 2000, Bushman 2009]). Um outro caso de não-neutralidade de
uma máquina é o caso do computador. Há várias pesquisas mostrando que,
quanto mais uma criança ou adolescente usa um computador, seja em casa
como na escola, pior seu rendimento escolar (ver citações dessas pesquisas
em meu artigo “Considerações sobre o projeto um laptop por criança”).
Popularmente, justifica-se esse fato considerando-se que a criança ou jovem
A missão da tecnologia 9
acabam perdendo muito tempo usando o computador, em lugar de estudar
ou mesmo fazer seus deveres escolares. Obviamente isso é um fato, mas eu
também dou importância essencial à influência do computador na maneira
de pensar, prejudicando o pensamento criativo amplo, pois ele força um
raciocínio matemático, lógico simbólico. Crianças não devem exercer esse
tipo de pensamento, que vai contra o seu pensamento não formal, flexível,
intuitivo e diretamente ligado com a realidade ou a fantasia.
O impacto negativo dos computadores atingiu níveis extraordinários com o
uso da Internet, especialmente com o advento dos smartphones e tablets.
Com eles, pode-se fazer acesso à Internet a qualquer momento em qualquer
lugar, o que acaba provocando sérios distúrbios, desde físicos até
psicológicos, inclusive dependência [Young 2011]. Adultos não estão se
controlando, usando a Internet exageradamente e para finalidades idiotas,
imagine-se o que acontece então com crianças e adolescentes, que estão
ainda desenvolvendo seu autocontrole!
Finalmente, um último exemplo de não-neutralidade da tecnologia: os
transgênicos, que também considerarei aqui como artefatos, pois não
existem originalmente na natureza. Já está provado que vários deles
provocam problemas, por exemplo o fato de que bactérias são usadas na
transposição de genes e com isso quebra-se a barreira genética entre
espécies diferentes, como documentado por Jeffrey Smith em seu excelente
livro [Smith 2007, pp. 123 ff.]. Em uma palestra sua que assisti em outubro
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de 2007, ele afirmou que considerava os alimentos geneticamente
modificados como um desastre ecológico muito maior do que o aquecimento
global e o lixo nuclear.
4. A questão da “missão” – determinismo e acaso
Como coloquei no item 2, não tenho (ou, como já disse, procuro não ter)
crenças. Uma das primeiras crenças que não tenho é no acaso. Uma de
minhas hipóteses fundamentais é de que existe uma causa para qualquer
fenômeno. Consigo fazer essa hipótese devido à minha concepção
espiritualista de mundo: algumas causas podem não ser físicas. Por
exemplo, tome-se a simetria das orelhas de uma pessoa. Se a forma das
orelhas de uma pessoa for comparada com as de outra, a diferença em geral
é muito grande; relativamente a essa diferença, em geral a que existe entre
as duas orelhas de uma mesma pessoa é insignificante. Acontece que as
orelhas crescem continuamente. Como é que elas preservam a sua grande
simetria? Não é possível imaginar que uma célula de uma orelha, ao se
subdividir para promover o crescimento do tecido onde ela se encontra,
“comunique” fisicamente à célula correspondente na outra orelha que ela vai
subdividir-se, e em que direção, de modo que esta também se subdivida e
posicione as suas duas células resultantes na posição simétrica das
produzidas pela primeira. Sem admitir-se essa comunicação, resta a
explicação física de que o crescimento é aleatório, regulado por uma
misteriosa “programação”, quem sabe existente no código genético: o
A missão da tecnologia 11
ambiente de uma célula faz com que o “programa” seja executado de uma
maneira diferente dependendo da localização da mesma. Mas nesse caso é
necessário supor que o ambiente é o mesmo na vizinhança das duas células
simétricas antes da subdivisão. Se o código genético é o mesmo, como é
produzida uma simetria? Além disso, haverá necessariamente uma certa
aleatoriedade, pois o momento da subdivisão pode variar entre as duas
células correspondentes e o ambiente delas obviamente não é exatamente o
mesmo; provavelmente nem mesmo existe a simetria perfeita no nível
celular. No entanto, observando-se as orelhas de uma pessoa, a simetria
parece ser grande demais para que haja um acaso no crescimento dos
tecidos; qualquer aleatoriedade quebraria pelo menos um pouco da simetria
(o que seria facilmente perceptível) e isso se propagaria posteriormente,
causando mais quebras da simetria, o que obviamente não ocorre. Uma
outra hipótese é que existe um modelo regulando o crescimento das orelhas.
Só que esse modelo obviamente não pode ser físico, senão teríamos que
andar com moldes encaixados nas orelhas; pior, esses moldes deveriam ser
dinâmicos, frequentemente modificados, à medida que as orelhas fossem
crescendo. Portanto, os modelos simétricos das orelhas, que controlam seu
crescimento até o nível das células, talvez das moléculas e átomos, são
modelos mentais, ideias.
Não se deve estranhar a existência de modelos que são ideias: por exemplo,
ao projetar uma casa um arquiteto tem a ideia da mesma em sua mente,
A missão da tecnologia 12
antes de representá-la fisicamente num papel e de concretizá-la na
construção. Todos os entes matemáticos são ideias, como por exemplo a de
uma circunferência perfeita (que nunca ninguém viu, o que se vê em objetos
com forma de círculo são representações aproximadas dessa ideia).
Justamente por eu admitir a concepção espiritualista de mundo posso fazer
a hipótese da existência de modelos mentais para as nossas orelhas: as
ideias, os modelos mentais, existem em um mundo platônico, não físico, das
ideias. Para muito mais detalhes, inclusive com fotos de plantas e
borboletas, mostrando formas e simetrias, veja-se o meu artigo “Por que
sou espiritualista” onde, como já citei, exponho uma teoria de como esses
modelos mentais podem atuar no mundo físico, por exemplo determinando o
momento e a direção de uma subdivisão celular. Note-se que não há
problema algum em se supor que um modelo mental seja dinâmico, isto é,
no caso das orelhas, ele vai modificando-se conforme o crescimento delas.
Por exemplo, em um bebê as orelhas ainda não têm precisamente a forma,
em miniatura, que adquirirão na idade adulta. Aliás, todo bebê tem formas
quase universais, em geral tendendo para a esfericidade – por isso cada
pessoa da família próxima pode dizer que o bebê é parecido com ela... O
que citei para as orelhas vale obviamente para todos os órgãos simétricos,
como as mãos, pés, sobrancelhas etc.
O conhecido biólogo Richard Lewontin, em seu livro The Triple Helix, mostra
com grande ênfase que os genes e o ambiente não são suficientes para
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prever o crescimento de seres vivos e a sua forma. Ele considera que deve
existir um terceiro fator (daí a “tripla hélice”), que ele denomina “noisy
development”, desenvolvimento com ruído, ou aleatório [Lewontin 2000, p.
36]. Na minha concepção, não se trata de um processo aleatório de
desenvolvimento, e sim a conformação de um organismo vivo a um modelo
não físico.
Observe-se a ênfase que dou para a simetria nos seres vivos como uma
forte indicação da existência, neles, de processos não físicos. Note-se que
não se deve confundir acaso com imprecisão em medidas, pois estas são
resultado da própria imprecisão dos aparelhos ou a influência destes sobre
os fenômenos que medem, o que é claro nos níveis molecular e atômico
(daí, em parte, a Mecânica Quântica, sobre a qual discorro no artigo “Por
que sou espiritualista”). Um materialista deve necessariamente fazer a
hipótese de existência do acaso, pois não pode admitir a existência de um
mundo platônico das ideias influenciando o mundo físico. De fato, o acaso é
extensamente usado nos raciocínios científicos, desde a teoria da evolução
neodarwinista (mutações e encontros casuais, estes últimos levando à
seleção natural) até as teorias atômicas e cosmogônicas. Assim, o que
aparentemente é uma aleatoriedade no mundo físico, pode deixar de sê-lo
ao se admitir a influência de um mundo não físico. A atuação de modelos
não físicos não torna o aparente não determinismo físico em um
determinismo, pois esse conceito não existe no mundo não físico, onde tudo
A missão da tecnologia 14
é dinâmico, eventualmente dentro de certos limites. Essa é uma dificuldade
de Jacques Monod em seu livro [Monod 1972], pois ele, sendo materialista,
não consegue admitir a hipótese do mundo não físico: “Puro acaso,
totalmente livre e cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução:
este conceito central da biologia moderna não é mais uma dentre hipóteses
possíveis ou mesmo imagináveis. Hoje em dia é a única hipótese concebível,
a única que se ajusta a fatos observados e testados” (pp. 112-113 da edição
em inglês, minha tradução). Curiosamente, apesar de seu pensamento ser
materialista, pois quer reduzir todo o fenômeno biológico a uma “filosofia
natural”, em seu livro ele fala de Deus, afirmando que a admissão dessa
entidade deve ter finalidades puramente morais. Em meus artigos e livros,
eu não apelo para essa entidade que, como visto no item 2, tornou-se uma
mera abstração.
Pois bem, como fui radical e escrevi no início deste item que não admito a
hipótese da existência do acaso, a existência da tecnologia também não
deve ser um acaso. (Eu poderia ter sido um pouco mais politicamente
correto e ter admitido a existência do acaso em casos particulares, como já
fiz alhures em relação à evolução neodarwinista, mas em minha velhice já
não me importo tanto em ser politicamente correto...) Vejamos qual poderia
ser sua razão de ser, isto é, sua missão para a humanidade, também de um
ponto de vista espiritualista. Mas antes disso é necessário discorrer sobre a
livre arbítrio e o que é necessário para que ele exista.
A missão da tecnologia 15
5. Livre arbítrio – mal e bem
Um materialista não pode falar em livre arbítrio, pois para ele só existem
matéria e energia físicas no universo. Estas só podem estar sujeitas às
assim denominadas “leis físicas”. Não vou entrar aqui na discussão se
existem ou não leis físicas; se houver dúvida quanto a isso, poder-se-ia
considerar “condições e forças físicas” em lugar das “leis”. Essas “leis” são
inexoráveis: sempre se aplicam, caso contrário não haveria as engenharias
civil, mecânica, elétrica etc. Para mim, um materialista que fala em livre
arbítrio do ser humano – e suas consequências, como a responsabilidade, a
moral e o altruísmo consciente – não é uma pessoa coerente. Um antigo
raciocínio é o seguinte: se existem apenas forças físicas, certamente um
átomo não pode ser livre. Portanto, um grupo de átomos, formando uma
molécula, não pode ser livre. Idem para um grupo de moléculas, formando
uma célula. O mesmo para um grupo de células formado um tecido, o
mesmo para um grupo de tecidos formando um órgão, e portanto um grupo
de órgãos formando um ser humano também não pode ser livre.
De onde, então, adviria o livre arbítrio do ser humano? Impossível que ele
venha da matéria. Para um espiritualista, não há absolutamente nenhum
problema em admitir a hipótese de que o ser humano pode ter livre arbítrio,
pois ele parte da hipótese da existência de fenômenos não físicos, e estes
obviamente não estão sujeitos às “leis” físicas. No meu artigo já citado, “Por
que sou espiritualista”, mostro como, sem infringir as “leis” físicas, o ser
A missão da tecnologia 16
humano pode ter livre arbítrio, e dou até exercícios (mentais) para que cada
um observe que pode ter liberdade em seu pensamento. Isso dá confiança
na admissão da hipótese de haver livre arbítrio e, portanto, da existência de
uma parte não física ligada a qualquer ser humano, isto é, interagindo com
seu corpo físico. Do ponto de vista humano, só pode haver livre arbítrio se
houver possibilidade de se escolher conscientemente, em cada momento,
uma dentre pelo menos duas possíveis ações, inclusive mentais, como o
controle do pensamento.
Digamos que, em uma dada situação, há duas ações que podem ser
executadas, uma “boa”, e outra “má”. Por exemplo, uma que seja benéfica
ao meio ambiente e à própria pessoa, como ir à pé até o supermercado
próximo, em lugar de uma ação maléfica como ir de automóvel (supondo,
por absurdo neste Brasil miserável, que se indo a pé tenha-se menos perigo
de assalto do que ir de automóvel), já que isso iria produzir poluição, iria
isolar a pessoa de seu meio ambiente, iria signifcar uma quase total
ausência de exercíco físico, iria forçar a absorção de uma avalanche de
imagens, produzir nervosismo no trânsito etc. Estou ignorando aqui o caso
particular de a pessoa ter muita pressa e ter que cortar o tempo gasto
usando um automóvel. Podemos dizer que a pessoa, escolhendo ir a pé, faz
assim um “bem”, em lugar de fazer um “mal”.
É justamente a possibilidade de fazer algo “bom” ou algo “mau” que dá ao
ser humano o livre arbítrio. Se só pudéssemos fazer o bem, não teríamos a
A missão da tecnologia 17
possibilidade de decidir. Estaríamos em um estado correspondendo à
magnífica imagem bíblica do Paraíso: não teríamos autoconsciência e nem
liberdade. A “expulsão do Paraíso” pode ser interpretada como uma imagem
para a “queda” do ser humano na matéria. Note-se a fantástica imagem:
Adão e Eva, representando a humanidade, comem do fruto da “árvore do
conhecimento do bem e do mal” [Gen 2:17, 3:6], e logo depois disso
adquirem autoconsciência, “Então foram abertos os olhos de ambos e
conheceram que estavam nus” [3:7]. Note-se que uma criança pequena não
tem ainda a autoconsciência desenvolvida, e não percebe que está nua. A
propósito, se antes desse ato Adão e Eva não tinham autoconsciência, não
tinham “conhecimento”, não poderiam ter cedido a uma “tentação” e
cometido um “pecado”, pois não tinham possibilidade de escolher e de errar.
Assim, parece-me que a expressão Pecado Original, introduzida por Santo
Agostinho, está totalmente mal colocada. Note-se que em alemão a
expressão é Erbsünde, isto é, “Pecado Herdado”, o que tem um pouco mais
de cabimento, pois pelo menos a “herança” faz sentido: uma vez “caída” na
matéria, a humanidade permanece nela por hereditariedade. É precisamente
essa “queda” na matéria, e a consequente aquisição de autoconsciência, de
individualidade, que faz o ser humano, que antes estava apenas no mundo
não físico, poder cometer erros e portanto poder ter livre arbítrio.
Portanto, a existência de forças não físicas do bem e do mal (uma parte
destas últimas representada pelo interessante símbolo bíblico da serpente no
A missão da tecnologia 18
Paraíso), algo que para o materialismo não faz nenhum sentido, é que
permite ao ser humano poder ter livre arbítrio. Porém, é importante notar
que a influência do mal acaba gerando vários bens essenciais: além da
possibilidade de liberdade, também a autoconsciência e a individualidade.
Isso lembra a famosa frase de Mefistófeles na cena do escritório
(Studierzimmer) na Parte I do Fausto de Goethe, respondendo à pergunta
de Fausto, sobre quem ele era: “Ein Teil von jener Kraft, die stets das Böse
will und stets das Gute Schafft” [Goethe, p. 172], isto é, “Uma parte daquela
força, que sempre quer o mal e sempre cria o bem” (minha tradução literal).
Os Maniqueus tinham um dito que mostra qual deveria se nossa atitude
frente ao mal: “Ame bem o mal”, isto é, o mal deve ser redimido,
transformado em bem, e não eliminado [Haub 1996, p. 31]. Nesse sentido,
uma maneira interessante de encarar o mal é como se fosse um bem
deslocado, no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma volta ao passado
(como querem quaisquer fundamentalistas religiosos) é um mal, mas
também o é um adiantamento indevido do futuro (como, por exemplo,
dar-se liberdade exagerada antes de a humanidade estar preparada para
isso; parece-me que a Internet é um desses casos). De qualquer modo,
devemos ser gratos ao mal, pois se ele não existisse, ainda estaríamos no
estado do “Paraíso”, ou como dizia o Dr. Rudolf Lanz, “Estaríamos no Céu,
vestidos de bata cor-de-rosa tocando lira, que monotonia!”.
A missão da tecnologia 19
Note-se que os animais e as plantas obviamente não têm uma
individualidade que transcende sua hereditariedade e as influências do meio
ambiente, pois não têm nem autoconsciência nem aquilo que cada ser
humano tem e que chamarei, sem discorrer sobre isso, pois fugiria ao
escopo deste artigo, uma “individualidade superior”. Esta é uma
individualidade que transcende a corpórea, a de sentimentos, da memória
etc. É devido a ela, por exemplo, que gêmeos univitelinos criados no mesmo
ambiente em geral têm ideais diferentes e tomam rumos totalmente
diferentes em sua vida. É interessante notar que a ciência materialista reduz
a individualidade do ser humano à hereditariedade e à influência do meio
ambiente, isto é, não é capaz de considerar que o ser humano tem algo
essencialmente diferente dos animais. Considerando-se o ser humano como
um animal, não se deveria falar, em relação a ele, de livre arbítrio,
responsabilidade e moral, que os animais obviamente não têm. A propósito,
note-se a ênfase que está se dando, principalmente nos meios científicos, à
influência genética, muitas vezes desprezando o meio ambiente, desde o de
uma célula até o externo ao ser vivo. A respeito disso, veja-se meu artigo
“Desmistificação da onda do DNA”.
O leitor deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com a
tecnologia. Vamos chegando lá.
6. O uso da tecnologia
A missão da tecnologia 20
Como mostrei no item 3, a tecnologia não é neutra. Portanto, seu uso
deveria ser feito com extremo cuidado, o que implica um uso consciente.
Mas, em geral, esse não é absolutamente o caso. Estamos em uma era em
que, como citei logo no início deste artigo, está havendo um verdadeiro
endeusamento da tecnologia. Em geral, pensa-se que tudo o que é
tecnológico é bom. Isso é devido ao fato de a tecnologia ser uma aplicação
direta da ciência, e ambas terem tido desde o século passado resultados
fenomenais em termos de conhecimento e domínio sobre a natureza.
Acontece que, quanto maior o conhecimento e o domínio sobre a natureza,
mais mal pode ser feito com eles.
A ciência nasceu com a separação do ser humano em relação à natureza.
Sem uma grande capacidade de abstração em relação à realidade, não há
curiosidade em compreendê-la. Por exemplo, a perspectiva linear consciente
apareceu somente no início do século XV [Zajonc 1993, p. 58], época que
marca não só o surgimento da Renascença, mas dos descobrimentos e do
desenvolvimento científico – uma verdadeira descontinuidade no
desenvolvimento da capacidade mental e no sentimento de individualidade
do ser humano. Antes disso, uma estrada reta era representada por linhas
paralelas, pois na realidade as suas margens não se encontram. É preciso
fazer uma grande abstração em relação à realidade para representar o que é
percebido com a visão, isto é, as duas margens da estrada convergindo para
o ponto de fuga. Antes dessa época, não ocorria uma individualidade como
A missão da tecnologia 21
por exemplo a de Hamlet, com seus destino e problemas únicos; em geral,
não se sabia quem era o particular pintor de uma obra produzida em uma
oficina e muitos outros casos. Aquela curiosidade é a fonte primordial do
impulso de se fazer ciência. E a tecnologia visava trazer um bem. Hoje em
dia, isso mudou completamente. Obviamente, alguns idealistas ainda fazem
ciência movidos pela sede de conhecer algo ou para transmitirem seu
conhecimento a seus alunos e para o público. Mas a maioria dos cientistas
faz ciência em busca de prestígio ou de uma atividade em que não se sintam
tolhidos pelas imposições de uma empresa. Ultimamente, vários cientistas
almejam desenvolver algo que possa ser produzido e vendido no mercado e,
assim, abrir uma empresa própria. Por outro lado, muita ciência é feita por
encomenda de empresas, ou por equipes delas próprias, visando unicamente
o lucro. Por exemplo, o aparecimento de plantas transgênicas deu-se
precisamente nesse paradigma. Um outro caso é citado no livro de Susan
Linn mencionado no item 3: ela conta que nos EUA empresas de propaganda
fazem mais pesquisa em psicologia aplicada do que universidades e
institutos de pesquisa, visando desenvolver técnicas para convencer
crianças, adolescentes e adultos a comprarem o que é anunciado [Linn, p.
46]. A propósito, caracterizo a propaganda como a arte, a ciência e a técnica
de influenciar pessoas a fazerem aquilo que não fariam sem essa influência.
É isso, por exemplo, que leva as pessoas a comprarem o que não
A missão da tecnologia 22
necessitam, o que é mais caro ou de qualidade inferior; isso é feito por meio
de condicionamentos, isto é, de diminuição da liberdade individual.
Portanto, boa parte da ciência e quase a totalidade da tecnologia visam hoje
em dia satisfazer ambições e egoísmos. Acontece que ambos são
antissociais. O que estamos vendo como resultado desses impulsos é a
destruição do ser humano e da natureza. A destruição desta é visível, mas
em muitos casos a destruição do ser humano é subreptícia, por exemplo
quando a constituição psicológica é atacada, como discorri para o caso dos
meios eletrônicos no item 3. Infelizmente, parece-me que a quase totalidade
da humanidade não está consciente dos problemas da tecnologia ou, se
está, sente-se impotente diante dela, acabando assim por usá-la ou, ainda,
usa-a por inércia ou comodismo, não querendo pensar sobre os malefícios
que ela traz. Uma das consciências fundamentais que, parece-me, a
humanidade deveria ter em relação à tecnologia é a sua missão.
7. A missão da tecnologia
Como coloquei no item 4, a tecnologia não deve existir por acaso, e deve ter
uma finalidade, uma missão para a humanidade. Como vimos no item 5,
uma de minhas hipóteses fundamentais, com fortes indícios de ser
verdadeira, é a de que o ser humano pode ter livre arbítrio. Para mim, a
missão da tecnologia é de dar liberdade ao ser humano, livrando-o de forças
e capacidades restritivas internas ou externas a ele.
A missão da tecnologia 23
Por exemplo, o avião é uma tecnologia que dá liberdade a uma pessoa de se
deslocar rapidamente a grandes distâncias, suplantando assim as limitações
de sua velocidade de andar ou correr, mesmo fazendo-o a cavalo. O telefone
permite a comunicação verbal entre pessoas distantes entre si. Um edifício
dá a pessoas a liberdade de se abrigarem e de se reunirem, mesmo se lá
fora estiver chovendo ou fazendo muito frio. No entanto, em geral a
tecnologia está funcionando justamente às avessas dessa missão: em lugar
de libertar o ser humano de forças internas ou externas a ele, ela o está
aprisionando. Muitas vezes algumas vantagens que ela fornece é
acompanhada de muito mais desvantagens. Assim, o automóvel deu uma
tremenda liberdade de locomoção a médias e mesmo longa distâncias. No
entanto, permitiu que pessoas morassem longe de seu local de trabalho ou
de estudo, perdendo muito tempo no trajeto, com consequências
psicológicas nefastas; permitiu o inchaço das cidades, transformadas mais
em vias de trânsito do que em moradias e vielas agradáveis para se ir a pé
de um lugar para outro; permitiu que não houvesse transporte coletivo
suficiente, com menos desvantagens do que os automóveis. O resultado
pode ser visto em São Paulo: uma cidade sufocada pelo trânsito, tanto do
ponto de vista da qualidade do ar quanto do aspecto psicológico dos
motoristas e passageiros, obrigados a enfrentar diariamente o nervosismo
advindo de um trânsito literalmente infernal (estastística no site do DETRAN
A missão da tecnologia 24
diz que em 12/2013 foram lacrados 33.494 veículos na cidade de São
Paulo).
Quantas pessoas tornaram-se prisioneiras da Internet, essa rede eletrônica
que envolveu uma boa parte da humanidade? Por exemplo, eu próprio sou
obrigado a consultar minha caixa postal de e-mails a cada dia, pois senão
ocorrem duas coisas: acumulam-se correspondências em demasia, e
pessoas que me escreveram começam a achar que eu as desprezei pois não
lhes respondi imediatamente. Sugiro ao leitor, que certamente usa a
Internet, examinar-se a si próprio e verificar quantos dias é capaz de ficar
sem usá-la. Se não for mais do que um ou dois dias, isso já caracteriza uma
dependência; o número de dependentes da Internet, desses que ficam horas
seguidas usando-a todos os dias, é enorme, principalmente entre
adolescentes. Uma pesquisa de 2006 mostrou que 12,5% dos americanos
são dependentes da Internet; estudos com estudantes universitários
resultaram em uma estimativa de 10 a 14% desses dependentes [Young, p.
20]. A rede eletrônica realmente capturou uma boa parte da humanidade!
8. O que fazer?
8.1 Em primeiro lugar, deve haver uma conscientização do que é cada
tecnologia. Isso significa compreender o funcionamento, pelo menos básico,
de cada instrumento e máquina, e os efeitos que eles produzem nos seus
usuários. Infelizmente, como as máquinas estão cada vez mais complexas,
por exemplo com a incorporação de pastilhas com circuitos eletrônicos
A missão da tecnologia 25
(chips), seu funcionamento está tornando-se cada vez mais incompreensível.
Um exemplo disso é o automóvel: antes da injeção eletrônica, um mecânico
eletricista e mesmo um usuário comum podia compreender perfeitamente
todo o funcionamento do motor e das outras partes de um carro. Com a
incorporação de pastilhas eletrônicas, algumas verdadeiros computadores, o
funcionamento ficou incompreensível. Além disso, um defeito em uma
dessas pastilhas obriga a troca da mesma; antes, muitas peças, mesmo as
elétricas, podiam ser feitas numa oficina para substituir uma quebrada. A
velha imagem de um marciano vindo à Terra e desmontando uma máquina
para compreendê-la já não vale mais: é impossível desmontar uma pastilha
eletrônica para verificar como é seu circuito e descobrir seu funcionamento,
pois isso a destruiria. A “caixa preta” tornou-se inviolável. Parece-me
também impossível tentar descobrir como ela funciona simplesmente
introduzindo nela impulsos elétricos em alguns contatos e medindo o que sai
em outros, devido à complexidade do seu funcionamento lógico.
No entanto, muitas máquinas, pelo menos em seu funcionamento básico,
podem ser compreendidas; essa compreensão deveria ser uma das tarefas
mais importantes do ensino secundário, por meio de disciplinas de
“laboratório de tecnologia”. Foi com essa intenção que elaborei um currículo
de introdução de computadores nesse ensino (ver meu artigo
“Computadores na Educação: por que, quando e como” [Setzer 2005, p. 85,
ou na Internet]. Infelizmente, não há em geral consciência dessa
A missão da tecnologia 26
necessidade, a menos dos ensinos médios Waldorf, pois o fundador dessa
pedagogia, Rudolf Steiner, já para a primeira escola Waldorf, fundada em
Stuttgart em 1919, recomendou a introdução dessa disciplina, que desde
então faz parte do currículo Waldorf no mundo todo [Stockmeyer 1965, Vol.
II, p. 278, Bideau 1951, p. 149].
A constatação da falta, em geral, de conhecimento básico sobre as máquinas
é muito simples. Por exemplo, será que o leitor destas linhas sabe por que
um avião voa e não cai? Os dois efeitos que levam à sustentação (inclinação
da asa e diferença de velocidade do ar acima e abaixo dela; esse último
efeito pode ser demonstrado facilmente, soprando-se abaixo e acima de
uma folha de papel leve) são fáceis de serem compreendidos. Isso me leva a
uma consideração que considero importante. Quantas pessoas veem um
avião voando, não sabem por que ele se sustenta no ar, e não têm a
curiosidade de investigar ou aprender por que isso acontece?
Provavelmente, devem achar que a explicação deve ser difícil demais, ou
então nem chegam a formular a pergunta a si próprios. Para mim, isso é
uma indicação de uma verdadeira paralisia mental. O normal de um ser
humano, quando tem alguma representação mental devida a uma percepção
sensorial e não consegue associar a ela um conceito, é ficar irrequieto, em
busca dessa associação, dando-lhe a compreensão de causa e efeito de um
fenômeno. Por exemplo, suponhamos que, em um jardim sem nenhum
vento, uma pessoa vê um galho de uma moita mover-se. Ela imediatamente
A missão da tecnologia 27
deve achar o caso muito estranho, e aproxima-se da moita para verificar a
causa do fenômeno. Ao dar alguns passos, um passarinho que estava
pousado no galho, mas escondido pelas folhas, alça voo. A pessoa
compreende então por que o galho havia se mexido, e fica intelectualmente
satisfeita. O aumento da complexidade das máquinas, e a ausência de
ensino no sentido de explicar o funcionamento básico das mesmas,
produzem aquela paralisia mental: as pessoas deixam de ser curiosas, de
investigar, e de fazer um esforço para compreender. Tornam-se, assim,
menos humanas.
Voltando à conscientização da tecnologia, citei como a segunda parte da
mesma a compreensão do efeito que ela produz em seus usuários.
Retornando aos meus alvos preferidos, isso significaria, no caso da TV,
compreender que ela coloca normalmente o telespectador em um estado de
sonolência, semi-hipnótico; daí a maioria de suas consequências funestas,
especialmente o condicionamento. No caso dos video games, especialmente
os de ação/reação, compreender que o usuário tem que desligar totalmente
seu pensamento consciente, e passar a agir automaticamente. Isso leva a
um profundo condicionamento das ações, principalmente em casos de
inconsciência, como stress, medo extremo, raiva, falta de sono etc. No caso
dos computadores, compreender o fato de eles forçarem o uso de uma
linguagem formal e um raciocínio lógico simbólico, algorítmico. No seu uso, é
necessário exercer um pensamento que pode ser transmitido à máquina e
A missão da tecnologia 28
corretamente interpretado por esta, o que denomino de “Pensamento
Maquinal”. Para mais detalhes sobre esses e outros aspectos desses três
aparelhos, vejam-se meus artigos “Os meios eletrônicos e a educação:
televisão, jogo eletrônico e computador” (Setzer 2005, p. 15, e na Internet),
e outros nesse livro e em meu site, especialmente “Os efeitos negativos dos
meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.
Uma das consequências da paralisia mental citada acima é fazer com que o
usuário não se preocupe ou não se interesse pelo estado em que ele é
colocado pelas máquinas que usa.
8.2 Em segundo lugar, baseado no conhecimento do princípio básico de
funcionamento e do efeito que a tecnologia produz nos seus usuários,
dever-se-ia ter permanente consciência no seu uso, em particular com
relação ao que caracterizei como “missão da tecnologia” no item 7 acima.
Nesse último aspecto, isso significaria usar alguma máquina e
constantemente se fazer o questionamento se ela está cerceando a liberdade
pessoal ou está ajudando a se obter alguma liberdade. Um outro aspecto
fundamental é pesarem-se constantemente os benefícios e os malefícios
pessoais que advêm do uso de uma tecnologia.
8.3 Em terceiro lugar, é preciso usar as tecnologias não só com consciência
pessoal, mas também com consciência social e global. Isso significa avaliar
se o uso de alguma tecnologia beneficia ou prejudica outras pessoas e o
mundo em geral. Aqui cabe a consideração de uma tecnologia cercear ou
A missão da tecnologia 29
não a liberdade dos outros. Porém, não é só a liberdade que deve ser levada
em conta, mas também a igualdade (direitos humanos) e a fraternidade, a
solidariedade. Sobre esses três aspectos, ver meu artigo “Liberdade,
igualdade e fraternidade: presente, passado e futuro”. Além disso, muito
importante é considerar-se se o uso de alguma tecnologia diminui ou não a
consciência das pessoas.
Em termos de consciência do impacto no mundo em geral, isso pode
significar mudanças de hábitos, por exemplo tomarem-se banhos os mais
curtos possíveis, para não se gastar a cada vez mais preciosa água em um
prazer dispensável. Chamo a atenção para o grau de consciência que se
deve ter no uso da tecnologia: nesse exemplo, quem sabe, de vez em
quando, em casos de uma grande necessidade de relaxamento, talvez valha
a pena prolongar um bom banho quente... O importante é que a escolha
seja consciente.
8.4 Em quarto lugar, deve-se conscientizar as pessoas para os malefícios e
benefícios da tecnologia. É o que tenho feito em grande parte com meus
artigos, livros, palestras e cursos. É o que fez maravilhosamente Susan Linn
em seu livro já citado, em relação ao consumismo induzido pela TV [Linn
2006]. No entanto, é impressionante ler nesse livro que a autora, apesar de
sua posição crítica em relação à TV, e como em geral é o caso de pessoas
que criticam esse meio, não tem a coragem de afirmar que não se deve ver
TV, a menos de casos excepcionais. Em minha experiência, esses casos
A missão da tecnologia 30
quase nunca ocorrem: tenho uma TV, mas ao escrever estas linhas não
lembro a última vez que assisti algum programa; a propósito, não tive TV
em casa até minha filha menor tornar-se adulta. Por exemplo, Susan Linn
queixa-se de que a filha adolescente ficava sendo influenciada pela
propaganda televisiva; ora bolas, por que não tira a TV da sua casa ou
tranca-a para só destrancá-la quando, conscientemente, a família decidir
que vale a pena assistir um programa especial? Já Manfred Sptizer, em seu
extraordinário livro Vorsicht, Bildschirm! (“Cuidado, Tela!”) declarou que
tinha 5 filhos mas não tinha TV em casa, justamente devido às suas crianças
[Spitzer 2005, p. 250]. Já que citei esse autor, vale a pena citar seu
segundo livro, com uma quantidade imensa de citações de artigos científicos
citando os malefícios dos meios eletrônicos [Spitzer 2012]; o título
(Demência Digital) pode parecer bombástico, mas deve-se lembrar que o
autor é o diretor da clínica de psiquiatria da Universidade de Ulm, na
Alemanha.
8.5 A questão da coragem leva-me ao quinto ponto. Uma das consequências
que deduzo de meus conceitos em relação aos aparelhos eletrônicos e a
minha concepção do ser humano é o fato de aqueles prejudicarem a força de
vontade. De fato, não é preciso fazer nenhum esforço para ver TV ou jogar
um jogo eletrônico, talvez mesmo navegar pela Internet ou ler e-mails e
mensagens recebidas por ela. O grande esforço que deve ser feito é para
desligar os aparelhos. Assim, recomendo que se exercite interromper
A missão da tecnologia 31
periodicamente o uso dessas e de quaisquer outras tecnologias, na medida
em que isso for possível (espero que algum leitor entusiasta pelas minhas
ideias – coisa rara, pois são em geral incômodas – não desligue o seu carro
no meio do trânsito!). A esse respeito, vejam-se as recomendações que dou
em meu artigo “O que a Internet está fazendo com nossas mentes”.
Parece-me também que se deveria exercitar consistente e conscientemente
a vontade, para contrabalançar o prejuízo que ela tem sofrido com a
tecnologia moderna, por exemplo no comodismo que ela muitas vezes
proporciona. Para isso, posso recomendar o exercício de se treinar mudança
de hábitos. Por exemplo, se a pessoa adora tomar um café quente de
manhã, deixar de fazê-lo de vez em quando; se adora tomar suco (espero
que seja pelo menos natural!) nas refeições, tomar água de vez em quando.
Se está acostumado a usar um relógio, deixar às vezes de fazê-lo. De vez
em quando, tentar escrever com a mão que não costuma usar para isso.
Esses exercícios têm um efeito muito grande de fortalecimento da vontade,
quando feitos com regularidade, e vão produzindo maior flexibilidade
mental. Isso é especialmente importante nas ações que se tornam
praticamente uma dependência, como o caso já citado de ficar alguns dias
sem usar a Internet (garanto por experiência própria, é o Paraíso!).
Uma das manifestações do prejuízo para a vontade é a impotência que
certamente muitas pessoas sentem face à tecnologia. A frase típica que
A missão da tecnologia 32
mostra isso é “O que adianta eu tomar uma atitude? Que influência posso
ter sobre isso ou aquilo?” Isso me leva ao próximo ponto.
8.6 Em sexto lugar, recomendo ações afirmativas. Na palestra de Jeffrey
Smith, mencionada no fim do item 3, ele afirmou que, se 15% das pessoas
deixam de consumir algo, isso muda a produção das empresas envolvidas.
No caso, ele se referia aos alimentos transgênicos, mas certamente deve ser
o caso em relação a outros produtos, como por exemplo programas de TV,
McDonald’s etc. Infelizmente, o brasileiro não é em geral muito afeito a
protestos, confundindo tolerância com permissividade.
Há certas pessoas que dizem o seguinte: estamos realmente numa situação
crítica para a humanidade, mas esta vai evoluir naturalmente e acabará
suplantando os problemas atuais. Acontece que o ser humano não é um ser
puramente natural. Quando ele pintou as primeiras pinturas rupestres, já
não era totalmente natural, e se pode conjeturar que jamais tenha sido, o
que não apresenta problema algum para uma concepção de mundo
espiritualista. Se cada ser humano não é um ser puramente natural (como o
são, em grande parte, os animais e as plantas), a sociedade e a humanidade
também não o são. Assim, não se deve confiar que as coisas vão melhorar
naturalmente, por si só. Pelo contrário, tenho uma concepção de que a
tendência é sempre de piorar, pois se a humanidade melhorasse
automaticamente, bastaria cruzarmos os braços e esperar que ela melhore.
Ao contrário, se a tendência é piorar, somos chamados cada vez mais à
A missão da tecnologia 33
consciência e à ação; precisamos nos desenvolver continuamente para
enfrentarmos um mundo cada vez mais miserável e lutarmos cada vez com
mais energia para melhorá-lo. Note-se que isso deve ser entendido de um
ponto de vista global. É óbvio que, em alguns aspectos, tem havido
melhoria. Mas o que adianta, por exemplo, melhorar o saneamento básico se
as pessoas estão se sentindo psicologicamente muito piores, aumentam os
casos de usos de drogas psicotrópicas e de álcool, aumentam os suicídios,
aumenta a separação de casais – uma amostra de que as pessoas têm cada
vez mais dificuldades de conviver e se relacionar socialmente? (A propósito,
quando eu era criança e adolescente, jamais havia ouvido falar em
psicólogos e terapeutas...)
Se o ser humano não é um ser puramente natural, não se deveria confiar
que ele naturalmente aprenderá a conviver com os males da tecnologia,
eventualmente aprendendo a colocá-la em seu devido lugar. Isso só será
conseguido por um grande esforço educacional e, na fase adulta, por
auto-educação. Para não passar uma imagem totalmente pessimista da
humanidade, vou colocar aqui que reconheço nela avanços fantásticos, como
os movimentos ecológico, da paz universal, dos direitos humanos e do
respeito aos deficientes.
8.7 Em sétimo lugar, recomendo o desenvolvimento de um espírito crítico
em relação à ciência como, aliás, exige a sua prática. Quantas vezes uma
pesquisa é justificada por meio de seus pretensos resultados futuros, muitas
A missão da tecnologia 34
vezes bombásticos? Lembro-me muito bem da justificativa oficial de Neil
Armstrong ter pisado na Lua em 1969, algo como “Agora conheceremos a
origem do sistema solar”, o que obviamente não se confirmou. Ou da
justificativa do sequenciamento genético da Xilella Fastidiosa, publicado em
2000, o primeiro feito no Brasil: agora íamos descobrir como combater a
doença correspondente dos laranjais. Passados tantos anos, onde está esse
resultado? O livro citado de Jeffrey Smith documenta muito bem como
pesquisas científicas podem ser usadas parcialmente, de modo a mascarar
efeitos negativos de alguma tecnologia. Ele chama a atenção para o fato de
que, em geral, as pesquisas científicas necessárias para a aprovação de um
produto, tais como medicamentos e alimentos transgênicos, são feitas pelos
próprios produtores [pp. 193 ff.] e são relativamente curtas e parciais. O
que se pode esperar disso, levando-se em conta que, do ponto de vista
empresarial, o único motivo para a introdução de um novo produto é ganhar
dinheiro?
É muito importante considerar-se que a ciência jamais proporciona um
conhecimento total sobre algo, principalmente devido à extrema
especialização e reducionismo que a caracterizam. Nessas condições, é
impossível preverem-se todos os efeitos colaterais de qualquer produto. Isso
nos leva ao próximo ponto.
8.8 Em oitavo lugar, uma palavra sobre a liberdade de pesquisa. Sou
totalmente a favor de se dar total liberdade ao cientista de pesquisar o que
A missão da tecnologia 35
bem entender. Mas uma coisa é a pesquisa, e outra é a produção de um
produto. Já que é impossível ter-se um conhecimento total sobre os efeitos
de algum produto, sempre haverá um fator de subjetividade no julgamento
de quanto ele é ou pode ser benéfico ou maléfico. Devido a essa
subjetividade, sou absolutamente contra a liberdade de se produzir seja lá o
que for. A sociedade é que deveria ter a última palavra sobre o interesse ou
não de um novo produto ser lançado. Isto é, esse lançamento deveria ir de
encontro a uma verdadeira necessidade, e não a necessidades criada pela
propaganda ou um modismo, como é comumente o caso. Note-se que me
referi ao controle pela sociedade, e não pelos governos. Essa necessidade é
absolutamente clara no Brasil, devido à corrupção que temos entre nós, mas
que não é nossa marca registrada: Jeffrey Smith cita que na Indonésia a
Monsanto corrompeu ou pagou ilegalmene 140 pessoas do governo para
aprovação do algodão transgênico [Smith 2007, p. 176]. No julgamento final
do interesse sobre um produto, os cientistas devem entrar exclusivamente
com seus dados objetivos sobre as vantagens e desvantagens do mesmo.
Devido aos fatores imponderáveis, numa decisão dessas um cientista só
deveria participar como cidadão comum, e não como o cientista que é.
Já que não se deve coibir ou direcionar a pesquisa científica, o importante é
conscientizar os cientistas da responsabilidade moral que têm em suas
pesquisas, de modo que cada um escolha, em liberdade, o que poderia
pesquisar para um real bem da humanidade. Lembro-me muito bem uma
A missão da tecnologia 36
notícia que li nos EUA, provavelmente em 1970, em plena guerra do Vietnã,
do cientista que tinha descoberto, na universidade de Harvard, a bomba
Napalm usada extensivamente naquela guerra. Essa bomba, espirra material
incandescente (de 800 a 1.200 ºC) grudando na pele das pessoas atingidas,
infligindo dores lancinantes (em 1980 ela foi proibida pela ONU contra
populações civis). Ele afirmou que, se pudesse, inventava-a novamente!
Aqui esbarramos em um problema muito profundo: a educação universitária
científica ou técnica exclusivamente profissional, como é por exemplo feita
em nosso país, não proporciona a formação humanística, artística e social
necessárias para que o cientista ou o técnico desenvolvam uma sensibilidade
e preocupação para com a natureza e com os seres humanos. Nesse sentido,
há ainda um terrível fator: os meios acadêmicos e de pesquisa são em geral
materialistas e, portanto, sendo coerentes, não deveriam admitir a
responsabilidade humana e a moral, pois elas não podem decorrer da
matéria ou da energia físicas (ver o item 5 acima). Se não deveriam
admiti-las, como vão ensinar seus alunos, futuros cientistas e técnicos, a
serem socialmente responsáveis ou agirem moralmente?
9. Conclusão
A humanidade está em uma encruzilhada. A aceleração do desenvolvimento
tecnológico é brutal hoje em dia, produzida por certas forças que caracterizei
no item 5 como o mal. Em lugar de a tecnologia estar cumprindo sua
missão, que é a de libertar o ser humano das restrições impostas por suas
A missão da tecnologia 37
forças e capacidades internas e das forças externas, ela o está aprisionando
e influenciando cada vez mais, chegando a ameaçar a sua existência. A
única maneira de se mudar esse estado de coisas, redimindo aquele mal, é
adquirir uma consciência do que a tecnologia significa, e de seu impacto em
cada ser humano e na natureza, passando-se a tomar atitudes para
colocá-la em seu devido lugar. A alternativa é o desastre total, tanto físico
como psicológico.
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Agradecimento
Sou grato a Vitor Morgensztern por valiosas sugestões quanto à redação, até
o item 6 inclusive.
A missão da tecnologia 41
A MISSÃO DA TECNOLOGIA
Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 24/11/07; esta versão, ampliada: 2/10/14
1. Introdução
Este artigo foi escrito para aqueles que se preocupam com o rumo que a
tecnologia, como definida no item 3, há muito tempo está tomando, em sua
grande parte: dominando e destruindo os seres humanos e a natureza. Essa
dominação provém de um verdadeiro endeusamento da ciência e de sua
filha, a tecnologia; um verdadeiro fanatismo por elas. Sou totalmente contra
qualquer fanatismo, em particular o de se achar que tudo que é científico e
tecnológico é ótimo. Obviamente, também sou contra o fanatismo oposto, o
fundamentalismo religioso. Sou totalmente a favor da busca da
compreensão dos fenômenos, e de ações nela baseadas, enriquecida pela
intuição dos sentimentos (já que não podemos ter um conhecimento total de
nada, a não ser na Matemática, mesmo assim com algumas restrições), e
levando em conta as ações e experiências passadas. Nesse sentido, não
tenho crença ou fé. Ou, levando em conta que muitas de minhas ações são
ditadas pelo meu inconsciente – como o impulso de reescrever este artigo –,
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procuro não as ter. Note-se que falei de ações baseadas não só em
compreensão, de modo que não me considero um puro racionalista.
Apesar de quase todos os cientistas serem contra o fanatismo religioso, é
preciso reconhecer que o fanatismo pela ciência e pela tecnologia é que está
destruindo o ser humano e a natureza. O fanatismo religioso só destrói
alguns indivíduos, sendo portanto razoavelmente limitado. A poluição
atmosférica e talvez uma de suas consequências, o aquecimento global, a
poluição dos alimentos, a medicação descontrolada, o desastre ecológico e
humano que se avizinha devido à modificação genética de plantas e animais
(criando seres vivos que jamais existiram), o condicionamento pela TV e
pelos video games, e muitos outros fenômenos, são amostras da
mencionada destruição.
Preciso colocar logo de início que não sou contra a tecnologia; não sou,
portanto, um neoluddita. (Luddites eram pessoas que, entre 1811 e 1816,
eram contra a mecanização das indústrias na Inglaterra e formavam bandos
para quebrar máquinas; eles diziam que seguiam uma figura simbólica, o
"rei" Ned Lud.) De fato, formei-me em engenharia eletrônica (ITA, 1963) e
minha vida profissional foi baseada na tecnologia (Ciência da Computação).
Estou usando um computador para compor este texto – mas isso é uma
necessidade, já que pretendo colocar este artigo em meu site.Sou
radioamador classe A (PY2EH – infelizmente inativo, pois a Internet quase
A missão da tecnologia 43
acabou com o radioamadorismo), mas para isso não havia necessidade
nenhuma.
Certamente parecerá a muitos estranho que a tecnologia possa ter uma
missão, pois aparentemente ela é neutra. Em geral crê-se que os benefícios
ou malefícios que ela produz dependem do seu uso. No item 3 mostro que,
ao contrário, a tecnologia não é neutra. Posso falar de uma missão da
tecnologia, tratada no item 4, devido à minha concepção de mundo, que
exponho no item 2. No item 5 caracterizo como se podem compreender os
aspectos do Mal e do Bem, para poder compreender o papel da tecnologia
em relação à liberdade humana. No item 6 mostro como a tecnologia está
sendo mal usada, para no item 7 abordar o que compreendo como sua
missão para a humanidade. No item 8 dou algumas diretrizes no sentido de
cada pessoa tomar uma atitude que considero positiva em relação à
tecnologia, para no item 9 colocar uma breve conclusão. Finalmente, o item
10 contém as referências bibliográficas.
No texto, não serão inseridos vínculos para páginas da Internet, para que o
leitor não tenha o impulso de interromper a leitura e desviar para outra
página, perdendo assim o fio da meada. Esses vínculos estão nas
referências, com o nome citado no texto.
2. Minha concepção de mundo
Há duas visões de mundo mutuamente exclusivas: o materialismo e o que
vou denominar de espiritualismo. Materialismo é a concepção de que só
A missão da tecnologia 44
existem matéria e processos físicos no universo (processos químicos são
hoje em dia reduzidos a processos físicos). Muitos materialistas chamam
esses processos de “naturais”, não admitindo a existência de nenhum
processo “sobrenatural”, isto é, que não possa ser totalmente reduzido a
processos naturais. A grande maioria dos cientistas hoje em dia são
materialistas. Denomino de espiritualismo uma concepção de mundo que
admite que existem “substâncias” e processos e não físicos no universo,
eventualmente influenciando processos físicos. Denomino de espiritualismo
científico o espiritualismo que admite a existência de “substâncias” e
processos não físicos apenas como umahipótese de trabalho. Uso a
expressão “não físico” para indicar algo que existe fora do mundo físico, e
que não pode ser reduzido a fenômenos físicos. Estou ciente do problema de
definir algo por negação, mas é a maneira mais simples que encontrei para
expressar o que estou caracterizando.
Note-se a ênfase que dei à expressão “hipótese de trabalho”. Se alguém
acredita piamente que há processos não físicos não o considero um
espiritualista científico. Hipóteses devem sempre ser temporárias, sujeitas a
revisão. Além disso, deve-se sempre buscar a sua comprovação, devem ser
formuladas para se compreender algo e servir para se construir uma teoria
coerente. Já crenças em geral são permanentes, fixas, e não estão sujeitas
nem a compreensão e nem a comprovação, e não servem para se construir,
a partir delas, uma teoria coerente. Para mais detalhes sobre materialismo e
A missão da tecnologia 45
espiritualismo, vejam-se meus artigos “Ciência, religião e espiritualidade” e
“Consequências do materialismo”; no primeiro denominei de
espiritualismo-crença aquele que se baseia, pelo menos em parte, em
crenças ou fé.
Um materialista e um espiritualista caracterizam-se por sua maneira de
pensar. Tipicamente, um materialista procura e usa somente alguma
explicação física para qualquer fenômeno. Já um espiritualista deve admitir a
existência de fatores não físicos que possam influenciar alguns fenômenos
físicos, principalmente os que envolvem os seres vivos.
Não é por uma pessoa ficar colocando a causa de alguns fenômenos em uma
entidade não física como a que se costuma chamar de Deus, que a considero
um espiritualista científico no sentido que acabei de dar. A razão disso é que
essa entidade e sua maneira de agir não podem ser observadas e
compreendidas, pois ela se tornou uma mera abstração. Assim, tipicamente,
esse tipo de pessoa, que em geral denomina a si própria de “religiosa”, não
procura compreender esses fenômenos, atribuindo como sua causa a
atuação do que chama de Deus. Uma das características dessa falta de
compreensão é a falta de uma explicação de como essa entidade,
claramente não física, poderia influenciar, por exemplo, as ações dos seres
vivos. No sentido que dei, todo espiritualista tem religiosidade, mas nem
toda pessoa religiosa é espiritualista científica. Pelo contrário, pela maneira
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de pensar, nota-se que muitos dos que se dizem “religiosos” são, no fundo,
materialistas.
Há muitas evidências que sugerem que a concepção de mundo espiritualista
é razoável. Não vou me alongar nesse aspecto e em muitos outros, pois
escrevi um artigo que aborda isso extensamente, “Por que sou
espiritualista”. Nele, exponho também minha teoria de como processos não
físicos podem agir sobre o mundo físico. Como se verá no item 4, é
justamente pelo fato de adotar a hipótese espiritualista que posso falar de
uma “missão” da tecnologia.
3. A tecnologia e sua não neutralidade
A palavra “tecnologia” deveria referir-se a “conhecimento da técnica”. O
Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI traz a definição “Conjunto de
conhecimentos, esp[ecialmente] princípios científicos, que se aplicam a um
determinado ramo de atividade.” Neste artigo, usarei o termo “tecnologia”
no sentido que se dá popularmente a ele em inglês, isto é, referindo-se a
qualquer artefato, especialmente instrumentos e máquinas.
Nenhuma tecnologia é neutra. De fato, tome-se na mão um martelo, e
veja-se qual a atitude interior que ele inspira: certamente, a de bater, às
vezes com violência, em alguma coisa, provavelmente um prego. Agora,
tome-se um travesseiro; a atitude que ele inspira certamente é de calma, de
aconchego, de descanso – a menos de crianças que gostam de fazer uma
divertida guerra de travesseiros, mas mesmo nesse caso a atitude induzida
A missão da tecnologia 47
por ele não é de machucar outra pessoa com violência. Portanto, esses dois
artefatos induzem uma determinada atitude interior e certos sentimentos. O
filósofo Martin Heidegger escreveu “Assim, jamais vivenciaremos nossa
relação para com a essência da tecnologia, na medida em que nós
meramente concebermos e promovermos o tecnológico, aturarmo-lo ou
fugirmos dele. Mas somos entregues à tecnologia da pior maneira possível,
quando nós a encaramos como algo neutro; pois essa concepção, a qual
hoje em dia gostamos especialmente de prestar homenagem, torna-nos
totalmente cegos à essência da tecnologia.” [Heidegger 1954, minha
tradução]. Na verdade, é preciso reconhecer que nada no mundo é neutro
em relação ao ser humano, pois este incorpora todas as suas vivências. De
fato, o leitor não será exatamente o mesmo depois de ter lido este artigo,
comparando com o que era antes de tê-lo lido: terá entrado em contato com
algumas ideias novas, terá tido algumas reflexões, e tudo isso ficará
“gravado” para sempre, pelo menos em seu subconsciente. Certamente ele
não lembrará de tudo o que leu, mas se for hipnotizado, poderá repetir
muito do que terá esquecido.
Vou dar mais quatro exemplos da não-neutralidade da tecnologia, usando
meus alvos preferidos. Em primeiro lugar, examinemos a TV. Imagine-se o
que significa ter guardado no inconsciente ou no subconsciente todo o lixo
mental televisivo que foi assistido. Certamente isso deve ter alguma
influência na maneira de pensar, nos sentimentos e nas ações dos
A missão da tecnologia 48
telespectadores (um jovem, ao entrar na universidade, já assistiu em média
pelo menos 20.000 horas de TV). É por isso que houve um casamento
perfeito entre a TV e a propaganda. Nunca se gastou tanto em propaganda
quanto depois do advento da TV, e esse é o veículo para o qual é canalizada
a maior parte dos recursos em publicidade. No Brasil, em 2010 66,2%, isto
é, 2/3 de todos os gastos com publicidade foram canalizados para a TV
[Mídia 2011, p. 51]. Poder-se-ia achar que esses gastos são canalizados
para ela pois é o veículo de comunicação mais difundido; de fato, está
presente em praticamente todos os lares brasileiros (a estimativa é de 98%
[idem, p. 60]), a tal ponto que não é possível fazer uma pesquisa usando
algum grupo de controle que não vê TV, pois ele quase não existe. Mas o
fato é que, se a propaganda pela TV não funcionasse, condicionando os
telespectadores a comprarem os produtos anunciados ou transmitidos, as
grandes empresas não gastariam as fábulas que gastam com propaganda
pela TV – afinal, não são idiotas para jogarem dinheiro fora. Para se ter uma
ideia da dimensão desses gastos, cito Susan Linn, que em seu excelente
livro Crianças do Consumo: a Infância Roubada, traz o dado de que em 2002
a rede McDonald’s gastou 510,5 milhões de dólares em propaganda somente
na TV americana [Linn 2006, p. 132]. A luta dos partidos políticos por um
minuto extra de propaganda política na TV também é uma demonstração do
poder de condicionamento que ela tem, conforme exponho em meu artigo
“Um minuto a mais na TV”. Um outro caso interessante é o relatado por
A missão da tecnologia 49
Hancox [2004] e colaboradores, que fizeram uma pesquisa longitudinal
seguindo os sujeitos da pesquisa desde a idade infantil até 21 anos. Eles
verificaram que, na Nova Zelândia, apesar de a propaganda de cigarros pela
TV ter sido proibida em 1963, adultos de 21 anos que, quando crianças,
viram muita TV, tinham 17% mais chance de serem fumantes na idade
jovem adulta, devido simplesmente a terem assistido programas em que
pessoas apareciam fumando, como em entrevistas ou filmes [Hancox 2004].
(Ver detalhes desse e outros estudos aqui citados, em meu artigo “Os efeitos
negativos dos meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.)
Esses dois casos demonstram que a TV condiciona e, portanto, não é de
modo algum um veículo de comunicação neutro.
Se a TV não é neutra, imagine-se então um video game. Nesse caso, o
condicionamento não é só pela imagem, mas também pela ação. Por
exemplo, já está mais do que provado que jogos eletrônicos violentos
induzem atitudes agressivas a curto, médio e longo prazo, e
dessensibilização social, isto é, diminuição da empatia (ver, por exemplo,
[Anderson 2000, Bushman 2009]). Um outro caso de não-neutralidade de
uma máquina é o caso do computador. Há várias pesquisas mostrando que,
quanto mais uma criança ou adolescente usa um computador, seja em casa
como na escola, pior seu rendimento escolar (ver citações dessas pesquisas
em meu artigo “Considerações sobre o projeto um laptop por criança”).
Popularmente, justifica-se esse fato considerando-se que a criança ou jovem
A missão da tecnologia 50
acabam perdendo muito tempo usando o computador, em lugar de estudar
ou mesmo fazer seus deveres escolares. Obviamente isso é um fato, mas eu
também dou importância essencial à influência do computador na maneira
de pensar, prejudicando o pensamento criativo amplo, pois ele força um
raciocínio matemático, lógico simbólico. Crianças não devem exercer esse
tipo de pensamento, que vai contra o seu pensamento não formal, flexível,
intuitivo e diretamente ligado com a realidade ou a fantasia.
O impacto negativo dos computadores atingiu níveis extraordinários com o
uso da Internet, especialmente com o advento dos smartphones e tablets.
Com eles, pode-se fazer acesso à Internet a qualquer momento em qualquer
lugar, o que acaba provocando sérios distúrbios, desde físicos até
psicológicos, inclusive dependência [Young 2011]. Adultos não estão se
controlando, usando a Internet exageradamente e para finalidades idiotas,
imagine-se o que acontece então com crianças e adolescentes, que estão
ainda desenvolvendo seu autocontrole!
Finalmente, um último exemplo de não-neutralidade da tecnologia: os
transgênicos, que também considerarei aqui como artefatos, pois não
existem originalmente na natureza. Já está provado que vários deles
provocam problemas, por exemplo o fato de que bactérias são usadas na
transposição de genes e com isso quebra-se a barreira genética entre
espécies diferentes, como documentado por Jeffrey Smith em seu excelente
livro [Smith 2007, pp. 123 ff.]. Em uma palestra sua que assisti em outubro
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de 2007, ele afirmou que considerava os alimentos geneticamente
modificados como um desastre ecológico muito maior do que o aquecimento
global e o lixo nuclear.
4. A questão da “missão” – determinismo e acaso
Como coloquei no item 2, não tenho (ou, como já disse, procuro não ter)
crenças. Uma das primeiras crenças que não tenho é no acaso. Uma de
minhas hipóteses fundamentais é de que existe uma causa para qualquer
fenômeno. Consigo fazer essa hipótese devido à minha concepção
espiritualista de mundo: algumas causas podem não ser físicas. Por
exemplo, tome-se a simetria das orelhas de uma pessoa. Se a forma das
orelhas de uma pessoa for comparada com as de outra, a diferença em geral
é muito grande; relativamente a essa diferença, em geral a que existe entre
as duas orelhas de uma mesma pessoa é insignificante. Acontece que as
orelhas crescem continuamente. Como é que elas preservam a sua grande
simetria? Não é possível imaginar que uma célula de uma orelha, ao se
subdividir para promover o crescimento do tecido onde ela se encontra,
“comunique” fisicamente à célula correspondente na outra orelha que ela vai
subdividir-se, e em que direção, de modo que esta também se subdivida e
posicione as suas duas células resultantes na posição simétrica das
produzidas pela primeira. Sem admitir-se essa comunicação, resta a
explicação física de que o crescimento é aleatório, regulado por uma
misteriosa “programação”, quem sabe existente no código genético: o
A missão da tecnologia 52
ambiente de uma célula faz com que o “programa” seja executado de uma
maneira diferente dependendo da localização da mesma. Mas nesse caso é
necessário supor que o ambiente é o mesmo na vizinhança das duas células
simétricas antes da subdivisão. Se o código genético é o mesmo, como é
produzida uma simetria? Além disso, haverá necessariamente uma certa
aleatoriedade, pois o momento da subdivisão pode variar entre as duas
células correspondentes e o ambiente delas obviamente não é exatamente o
mesmo; provavelmente nem mesmo existe a simetria perfeita no nível
celular. No entanto, observando-se as orelhas de uma pessoa, a simetria
parece ser grande demais para que haja um acaso no crescimento dos
tecidos; qualquer aleatoriedade quebraria pelo menos um pouco da simetria
(o que seria facilmente perceptível) e isso se propagaria posteriormente,
causando mais quebras da simetria, o que obviamente não ocorre. Uma
outra hipótese é que existe um modelo regulando o crescimento das orelhas.
Só que esse modelo obviamente não pode ser físico, senão teríamos que
andar com moldes encaixados nas orelhas; pior, esses moldes deveriam ser
dinâmicos, frequentemente modificados, à medida que as orelhas fossem
crescendo. Portanto, os modelos simétricos das orelhas, que controlam seu
crescimento até o nível das células, talvez das moléculas e átomos, são
modelos mentais, ideias.
Não se deve estranhar a existência de modelos que são ideias: por exemplo,
ao projetar uma casa um arquiteto tem a ideia da mesma em sua mente,
A missão da tecnologia 53
antes de representá-la fisicamente num papel e de concretizá-la na
construção. Todos os entes matemáticos são ideias, como por exemplo a de
uma circunferência perfeita (que nunca ninguém viu, o que se vê em objetos
com forma de círculo são representações aproximadas dessa ideia).
Justamente por eu admitir a concepção espiritualista de mundo posso fazer
a hipótese da existência de modelos mentais para as nossas orelhas: as
ideias, os modelos mentais, existem em um mundo platônico, não físico, das
ideias. Para muito mais detalhes, inclusive com fotos de plantas e
borboletas, mostrando formas e simetrias, veja-se o meu artigo “Por que
sou espiritualista” onde, como já citei, exponho uma teoria de como esses
modelos mentais podem atuar no mundo físico, por exemplo determinando o
momento e a direção de uma subdivisão celular. Note-se que não há
problema algum em se supor que um modelo mental seja dinâmico, isto é,
no caso das orelhas, ele vai modificando-se conforme o crescimento delas.
Por exemplo, em um bebê as orelhas ainda não têm precisamente a forma,
em miniatura, que adquirirão na idade adulta. Aliás, todo bebê tem formas
quase universais, em geral tendendo para a esfericidade – por isso cada
pessoa da família próxima pode dizer que o bebê é parecido com ela... O
que citei para as orelhas vale obviamente para todos os órgãos simétricos,
como as mãos, pés, sobrancelhas etc.
O conhecido biólogo Richard Lewontin, em seu livro The Triple Helix, mostra
com grande ênfase que os genes e o ambiente não são suficientes para
A missão da tecnologia 54
prever o crescimento de seres vivos e a sua forma. Ele considera que deve
existir um terceiro fator (daí a “tripla hélice”), que ele denomina “noisy
development”, desenvolvimento com ruído, ou aleatório [Lewontin 2000, p.
36]. Na minha concepção, não se trata de um processo aleatório de
desenvolvimento, e sim a conformação de um organismo vivo a um modelo
não físico.
Observe-se a ênfase que dou para a simetria nos seres vivos como uma
forte indicação da existência, neles, de processos não físicos. Note-se que
não se deve confundir acaso com imprecisão em medidas, pois estas são
resultado da própria imprecisão dos aparelhos ou a influência destes sobre
os fenômenos que medem, o que é claro nos níveis molecular e atômico
(daí, em parte, a Mecânica Quântica, sobre a qual discorro no artigo “Por
que sou espiritualista”). Um materialista deve necessariamente fazer a
hipótese de existência do acaso, pois não pode admitir a existência de um
mundo platônico das ideias influenciando o mundo físico. De fato, o acaso é
extensamente usado nos raciocínios científicos, desde a teoria da evolução
neodarwinista (mutações e encontros casuais, estes últimos levando à
seleção natural) até as teorias atômicas e cosmogônicas. Assim, o que
aparentemente é uma aleatoriedade no mundo físico, pode deixar de sê-lo
ao se admitir a influência de um mundo não físico. A atuação de modelos
não físicos não torna o aparente não determinismo físico em um
determinismo, pois esse conceito não existe no mundo não físico, onde tudo
A missão da tecnologia 55
é dinâmico, eventualmente dentro de certos limites. Essa é uma dificuldade
de Jacques Monod em seu livro [Monod 1972], pois ele, sendo materialista,
não consegue admitir a hipótese do mundo não físico: “Puro acaso,
totalmente livre e cego, na própria raiz do estupendo edifício da evolução:
este conceito central da biologia moderna não é mais uma dentre hipóteses
possíveis ou mesmo imagináveis. Hoje em dia é a única hipótese concebível,
a única que se ajusta a fatos observados e testados” (pp. 112-113 da edição
em inglês, minha tradução). Curiosamente, apesar de seu pensamento ser
materialista, pois quer reduzir todo o fenômeno biológico a uma “filosofia
natural”, em seu livro ele fala de Deus, afirmando que a admissão dessa
entidade deve ter finalidades puramente morais. Em meus artigos e livros,
eu não apelo para essa entidade que, como visto no item 2, tornou-se uma
mera abstração.
Pois bem, como fui radical e escrevi no início deste item que não admito a
hipótese da existência do acaso, a existência da tecnologia também não
deve ser um acaso. (Eu poderia ter sido um pouco mais politicamente
correto e ter admitido a existência do acaso em casos particulares, como já
fiz alhures em relação à evolução neodarwinista, mas em minha velhice já
não me importo tanto em ser politicamente correto...) Vejamos qual poderia
ser sua razão de ser, isto é, sua missão para a humanidade, também de um
ponto de vista espiritualista. Mas antes disso é necessário discorrer sobre a
livre arbítrio e o que é necessário para que ele exista.
A missão da tecnologia 56
5. Livre arbítrio – mal e bem
Um materialista não pode falar em livre arbítrio, pois para ele só existem
matéria e energia físicas no universo. Estas só podem estar sujeitas às
assim denominadas “leis físicas”. Não vou entrar aqui na discussão se
existem ou não leis físicas; se houver dúvida quanto a isso, poder-se-ia
considerar “condições e forças físicas” em lugar das “leis”. Essas “leis” são
inexoráveis: sempre se aplicam, caso contrário não haveria as engenharias
civil, mecânica, elétrica etc. Para mim, um materialista que fala em livre
arbítrio do ser humano – e suas consequências, como a responsabilidade, a
moral e o altruísmo consciente – não é uma pessoa coerente. Um antigo
raciocínio é o seguinte: se existem apenas forças físicas, certamente um
átomo não pode ser livre. Portanto, um grupo de átomos, formando uma
molécula, não pode ser livre. Idem para um grupo de moléculas, formando
uma célula. O mesmo para um grupo de células formado um tecido, o
mesmo para um grupo de tecidos formando um órgão, e portanto um grupo
de órgãos formando um ser humano também não pode ser livre.
De onde, então, adviria o livre arbítrio do ser humano? Impossível que ele
venha da matéria. Para um espiritualista, não há absolutamente nenhum
problema em admitir a hipótese de que o ser humano pode ter livre arbítrio,
pois ele parte da hipótese da existência de fenômenos não físicos, e estes
obviamente não estão sujeitos às “leis” físicas. No meu artigo já citado, “Por
que sou espiritualista”, mostro como, sem infringir as “leis” físicas, o ser
A missão da tecnologia 57
humano pode ter livre arbítrio, e dou até exercícios (mentais) para que cada
um observe que pode ter liberdade em seu pensamento. Isso dá confiança
na admissão da hipótese de haver livre arbítrio e, portanto, da existência de
uma parte não física ligada a qualquer ser humano, isto é, interagindo com
seu corpo físico. Do ponto de vista humano, só pode haver livre arbítrio se
houver possibilidade de se escolher conscientemente, em cada momento,
uma dentre pelo menos duas possíveis ações, inclusive mentais, como o
controle do pensamento.
Digamos que, em uma dada situação, há duas ações que podem ser
executadas, uma “boa”, e outra “má”. Por exemplo, uma que seja benéfica
ao meio ambiente e à própria pessoa, como ir à pé até o supermercado
próximo, em lugar de uma ação maléfica como ir de automóvel (supondo,
por absurdo neste Brasil miserável, que se indo a pé tenha-se menos perigo
de assalto do que ir de automóvel), já que isso iria produzir poluição, iria
isolar a pessoa de seu meio ambiente, iria signifcar uma quase total
ausência de exercíco físico, iria forçar a absorção de uma avalanche de
imagens, produzir nervosismo no trânsito etc. Estou ignorando aqui o caso
particular de a pessoa ter muita pressa e ter que cortar o tempo gasto
usando um automóvel. Podemos dizer que a pessoa, escolhendo ir a pé, faz
assim um “bem”, em lugar de fazer um “mal”.
É justamente a possibilidade de fazer algo “bom” ou algo “mau” que dá ao
ser humano o livre arbítrio. Se só pudéssemos fazer o bem, não teríamos a
A missão da tecnologia 58
possibilidade de decidir. Estaríamos em um estado correspondendo à
magnífica imagem bíblica do Paraíso: não teríamos autoconsciência e nem
liberdade. A “expulsão do Paraíso” pode ser interpretada como uma imagem
para a “queda” do ser humano na matéria. Note-se a fantástica imagem:
Adão e Eva, representando a humanidade, comem do fruto da “árvore do
conhecimento do bem e do mal” [Gen 2:17, 3:6], e logo depois disso
adquirem autoconsciência, “Então foram abertos os olhos de ambos e
conheceram que estavam nus” [3:7]. Note-se que uma criança pequena não
tem ainda a autoconsciência desenvolvida, e não percebe que está nua. A
propósito, se antes desse ato Adão e Eva não tinham autoconsciência, não
tinham “conhecimento”, não poderiam ter cedido a uma “tentação” e
cometido um “pecado”, pois não tinham possibilidade de escolher e de errar.
Assim, parece-me que a expressão Pecado Original, introduzida por Santo
Agostinho, está totalmente mal colocada. Note-se que em alemão a
expressão é Erbsünde, isto é, “Pecado Herdado”, o que tem um pouco mais
de cabimento, pois pelo menos a “herança” faz sentido: uma vez “caída” na
matéria, a humanidade permanece nela por hereditariedade. É precisamente
essa “queda” na matéria, e a consequente aquisição de autoconsciência, de
individualidade, que faz o ser humano, que antes estava apenas no mundo
não físico, poder cometer erros e portanto poder ter livre arbítrio.
Portanto, a existência de forças não físicas do bem e do mal (uma parte
destas últimas representada pelo interessante símbolo bíblico da serpente no
A missão da tecnologia 59
Paraíso), algo que para o materialismo não faz nenhum sentido, é que
permite ao ser humano poder ter livre arbítrio. Porém, é importante notar
que a influência do mal acaba gerando vários bens essenciais: além da
possibilidade de liberdade, também a autoconsciência e a individualidade.
Isso lembra a famosa frase de Mefistófeles na cena do escritório
(Studierzimmer) na Parte I do Fausto de Goethe, respondendo à pergunta
de Fausto, sobre quem ele era: “Ein Teil von jener Kraft, die stets das Böse
will und stets das Gute Schafft” [Goethe, p. 172], isto é, “Uma parte daquela
força, que sempre quer o mal e sempre cria o bem” (minha tradução literal).
Os Maniqueus tinham um dito que mostra qual deveria se nossa atitude
frente ao mal: “Ame bem o mal”, isto é, o mal deve ser redimido,
transformado em bem, e não eliminado [Haub 1996, p. 31]. Nesse sentido,
uma maneira interessante de encarar o mal é como se fosse um bem
deslocado, no tempo ou no espaço. Por exemplo, uma volta ao passado
(como querem quaisquer fundamentalistas religiosos) é um mal, mas
também o é um adiantamento indevido do futuro (como, por exemplo,
dar-se liberdade exagerada antes de a humanidade estar preparada para
isso; parece-me que a Internet é um desses casos). De qualquer modo,
devemos ser gratos ao mal, pois se ele não existisse, ainda estaríamos no
estado do “Paraíso”, ou como dizia o Dr. Rudolf Lanz, “Estaríamos no Céu,
vestidos de bata cor-de-rosa tocando lira, que monotonia!”.
A missão da tecnologia 60
Note-se que os animais e as plantas obviamente não têm uma
individualidade que transcende sua hereditariedade e as influências do meio
ambiente, pois não têm nem autoconsciência nem aquilo que cada ser
humano tem e que chamarei, sem discorrer sobre isso, pois fugiria ao
escopo deste artigo, uma “individualidade superior”. Esta é uma
individualidade que transcende a corpórea, a de sentimentos, da memória
etc. É devido a ela, por exemplo, que gêmeos univitelinos criados no mesmo
ambiente em geral têm ideais diferentes e tomam rumos totalmente
diferentes em sua vida. É interessante notar que a ciência materialista reduz
a individualidade do ser humano à hereditariedade e à influência do meio
ambiente, isto é, não é capaz de considerar que o ser humano tem algo
essencialmente diferente dos animais. Considerando-se o ser humano como
um animal, não se deveria falar, em relação a ele, de livre arbítrio,
responsabilidade e moral, que os animais obviamente não têm. A propósito,
note-se a ênfase que está se dando, principalmente nos meios científicos, à
influência genética, muitas vezes desprezando o meio ambiente, desde o de
uma célula até o externo ao ser vivo. A respeito disso, veja-se meu artigo
“Desmistificação da onda do DNA”.
O leitor deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com a
tecnologia. Vamos chegando lá.
6. O uso da tecnologia
A missão da tecnologia 61
Como mostrei no item 3, a tecnologia não é neutra. Portanto, seu uso
deveria ser feito com extremo cuidado, o que implica um uso consciente.
Mas, em geral, esse não é absolutamente o caso. Estamos em uma era em
que, como citei logo no início deste artigo, está havendo um verdadeiro
endeusamento da tecnologia. Em geral, pensa-se que tudo o que é
tecnológico é bom. Isso é devido ao fato de a tecnologia ser uma aplicação
direta da ciência, e ambas terem tido desde o século passado resultados
fenomenais em termos de conhecimento e domínio sobre a natureza.
Acontece que, quanto maior o conhecimento e o domínio sobre a natureza,
mais mal pode ser feito com eles.
A ciência nasceu com a separação do ser humano em relação à natureza.
Sem uma grande capacidade de abstração em relação à realidade, não há
curiosidade em compreendê-la. Por exemplo, a perspectiva linear consciente
apareceu somente no início do século XV [Zajonc 1993, p. 58], época que
marca não só o surgimento da Renascença, mas dos descobrimentos e do
desenvolvimento científico – uma verdadeira descontinuidade no
desenvolvimento da capacidade mental e no sentimento de individualidade
do ser humano. Antes disso, uma estrada reta era representada por linhas
paralelas, pois na realidade as suas margens não se encontram. É preciso
fazer uma grande abstração em relação à realidade para representar o que é
percebido com a visão, isto é, as duas margens da estrada convergindo para
o ponto de fuga. Antes dessa época, não ocorria uma individualidade como
A missão da tecnologia 62
por exemplo a de Hamlet, com seus destino e problemas únicos; em geral,
não se sabia quem era o particular pintor de uma obra produzida em uma
oficina e muitos outros casos. Aquela curiosidade é a fonte primordial do
impulso de se fazer ciência. E a tecnologia visava trazer um bem. Hoje em
dia, isso mudou completamente. Obviamente, alguns idealistas ainda fazem
ciência movidos pela sede de conhecer algo ou para transmitirem seu
conhecimento a seus alunos e para o público. Mas a maioria dos cientistas
faz ciência em busca de prestígio ou de uma atividade em que não se sintam
tolhidos pelas imposições de uma empresa. Ultimamente, vários cientistas
almejam desenvolver algo que possa ser produzido e vendido no mercado e,
assim, abrir uma empresa própria. Por outro lado, muita ciência é feita por
encomenda de empresas, ou por equipes delas próprias, visando unicamente
o lucro. Por exemplo, o aparecimento de plantas transgênicas deu-se
precisamente nesse paradigma. Um outro caso é citado no livro de Susan
Linn mencionado no item 3: ela conta que nos EUA empresas de propaganda
fazem mais pesquisa em psicologia aplicada do que universidades e
institutos de pesquisa, visando desenvolver técnicas para convencer
crianças, adolescentes e adultos a comprarem o que é anunciado [Linn, p.
46]. A propósito, caracterizo a propaganda como a arte, a ciência e a técnica
de influenciar pessoas a fazerem aquilo que não fariam sem essa influência.
É isso, por exemplo, que leva as pessoas a comprarem o que não
A missão da tecnologia 63
necessitam, o que é mais caro ou de qualidade inferior; isso é feito por meio
de condicionamentos, isto é, de diminuição da liberdade individual.
Portanto, boa parte da ciência e quase a totalidade da tecnologia visam hoje
em dia satisfazer ambições e egoísmos. Acontece que ambos são
antissociais. O que estamos vendo como resultado desses impulsos é a
destruição do ser humano e da natureza. A destruição desta é visível, mas
em muitos casos a destruição do ser humano é subreptícia, por exemplo
quando a constituição psicológica é atacada, como discorri para o caso dos
meios eletrônicos no item 3. Infelizmente, parece-me que a quase totalidade
da humanidade não está consciente dos problemas da tecnologia ou, se
está, sente-se impotente diante dela, acabando assim por usá-la ou, ainda,
usa-a por inércia ou comodismo, não querendo pensar sobre os malefícios
que ela traz. Uma das consciências fundamentais que, parece-me, a
humanidade deveria ter em relação à tecnologia é a sua missão.
7. A missão da tecnologia
Como coloquei no item 4, a tecnologia não deve existir por acaso, e deve ter
uma finalidade, uma missão para a humanidade. Como vimos no item 5,
uma de minhas hipóteses fundamentais, com fortes indícios de ser
verdadeira, é a de que o ser humano pode ter livre arbítrio. Para mim, a
missão da tecnologia é de dar liberdade ao ser humano, livrando-o de forças
e capacidades restritivas internas ou externas a ele.
A missão da tecnologia 64
Por exemplo, o avião é uma tecnologia que dá liberdade a uma pessoa de se
deslocar rapidamente a grandes distâncias, suplantando assim as limitações
de sua velocidade de andar ou correr, mesmo fazendo-o a cavalo. O telefone
permite a comunicação verbal entre pessoas distantes entre si. Um edifício
dá a pessoas a liberdade de se abrigarem e de se reunirem, mesmo se lá
fora estiver chovendo ou fazendo muito frio. No entanto, em geral a
tecnologia está funcionando justamente às avessas dessa missão: em lugar
de libertar o ser humano de forças internas ou externas a ele, ela o está
aprisionando. Muitas vezes algumas vantagens que ela fornece é
acompanhada de muito mais desvantagens. Assim, o automóvel deu uma
tremenda liberdade de locomoção a médias e mesmo longa distâncias. No
entanto, permitiu que pessoas morassem longe de seu local de trabalho ou
de estudo, perdendo muito tempo no trajeto, com consequências
psicológicas nefastas; permitiu o inchaço das cidades, transformadas mais
em vias de trânsito do que em moradias e vielas agradáveis para se ir a pé
de um lugar para outro; permitiu que não houvesse transporte coletivo
suficiente, com menos desvantagens do que os automóveis. O resultado
pode ser visto em São Paulo: uma cidade sufocada pelo trânsito, tanto do
ponto de vista da qualidade do ar quanto do aspecto psicológico dos
motoristas e passageiros, obrigados a enfrentar diariamente o nervosismo
advindo de um trânsito literalmente infernal (estastística no site do DETRAN
A missão da tecnologia 65
diz que em 12/2013 foram lacrados 33.494 veículos na cidade de São
Paulo).
Quantas pessoas tornaram-se prisioneiras da Internet, essa rede eletrônica
que envolveu uma boa parte da humanidade? Por exemplo, eu próprio sou
obrigado a consultar minha caixa postal de e-mails a cada dia, pois senão
ocorrem duas coisas: acumulam-se correspondências em demasia, e
pessoas que me escreveram começam a achar que eu as desprezei pois não
lhes respondi imediatamente. Sugiro ao leitor, que certamente usa a
Internet, examinar-se a si próprio e verificar quantos dias é capaz de ficar
sem usá-la. Se não for mais do que um ou dois dias, isso já caracteriza uma
dependência; o número de dependentes da Internet, desses que ficam horas
seguidas usando-a todos os dias, é enorme, principalmente entre
adolescentes. Uma pesquisa de 2006 mostrou que 12,5% dos americanos
são dependentes da Internet; estudos com estudantes universitários
resultaram em uma estimativa de 10 a 14% desses dependentes [Young, p.
20]. A rede eletrônica realmente capturou uma boa parte da humanidade!
8. O que fazer?
8.1 Em primeiro lugar, deve haver uma conscientização do que é cada
tecnologia. Isso significa compreender o funcionamento, pelo menos básico,
de cada instrumento e máquina, e os efeitos que eles produzem nos seus
usuários. Infelizmente, como as máquinas estão cada vez mais complexas,
por exemplo com a incorporação de pastilhas com circuitos eletrônicos
A missão da tecnologia 66
(chips), seu funcionamento está tornando-se cada vez mais incompreensível.
Um exemplo disso é o automóvel: antes da injeção eletrônica, um mecânico
eletricista e mesmo um usuário comum podia compreender perfeitamente
todo o funcionamento do motor e das outras partes de um carro. Com a
incorporação de pastilhas eletrônicas, algumas verdadeiros computadores, o
funcionamento ficou incompreensível. Além disso, um defeito em uma
dessas pastilhas obriga a troca da mesma; antes, muitas peças, mesmo as
elétricas, podiam ser feitas numa oficina para substituir uma quebrada. A
velha imagem de um marciano vindo à Terra e desmontando uma máquina
para compreendê-la já não vale mais: é impossível desmontar uma pastilha
eletrônica para verificar como é seu circuito e descobrir seu funcionamento,
pois isso a destruiria. A “caixa preta” tornou-se inviolável. Parece-me
também impossível tentar descobrir como ela funciona simplesmente
introduzindo nela impulsos elétricos em alguns contatos e medindo o que sai
em outros, devido à complexidade do seu funcionamento lógico.
No entanto, muitas máquinas, pelo menos em seu funcionamento básico,
podem ser compreendidas; essa compreensão deveria ser uma das tarefas
mais importantes do ensino secundário, por meio de disciplinas de
“laboratório de tecnologia”. Foi com essa intenção que elaborei um currículo
de introdução de computadores nesse ensino (ver meu artigo
“Computadores na Educação: por que, quando e como” [Setzer 2005, p. 85,
ou na Internet]. Infelizmente, não há em geral consciência dessa
A missão da tecnologia 67
necessidade, a menos dos ensinos médios Waldorf, pois o fundador dessa
pedagogia, Rudolf Steiner, já para a primeira escola Waldorf, fundada em
Stuttgart em 1919, recomendou a introdução dessa disciplina, que desde
então faz parte do currículo Waldorf no mundo todo [Stockmeyer 1965, Vol.
II, p. 278, Bideau 1951, p. 149].
A constatação da falta, em geral, de conhecimento básico sobre as máquinas
é muito simples. Por exemplo, será que o leitor destas linhas sabe por que
um avião voa e não cai? Os dois efeitos que levam à sustentação (inclinação
da asa e diferença de velocidade do ar acima e abaixo dela; esse último
efeito pode ser demonstrado facilmente, soprando-se abaixo e acima de
uma folha de papel leve) são fáceis de serem compreendidos. Isso me leva a
uma consideração que considero importante. Quantas pessoas veem um
avião voando, não sabem por que ele se sustenta no ar, e não têm a
curiosidade de investigar ou aprender por que isso acontece?
Provavelmente, devem achar que a explicação deve ser difícil demais, ou
então nem chegam a formular a pergunta a si próprios. Para mim, isso é
uma indicação de uma verdadeira paralisia mental. O normal de um ser
humano, quando tem alguma representação mental devida a uma percepção
sensorial e não consegue associar a ela um conceito, é ficar irrequieto, em
busca dessa associação, dando-lhe a compreensão de causa e efeito de um
fenômeno. Por exemplo, suponhamos que, em um jardim sem nenhum
vento, uma pessoa vê um galho de uma moita mover-se. Ela imediatamente
A missão da tecnologia 68
deve achar o caso muito estranho, e aproxima-se da moita para verificar a
causa do fenômeno. Ao dar alguns passos, um passarinho que estava
pousado no galho, mas escondido pelas folhas, alça voo. A pessoa
compreende então por que o galho havia se mexido, e fica intelectualmente
satisfeita. O aumento da complexidade das máquinas, e a ausência de
ensino no sentido de explicar o funcionamento básico das mesmas,
produzem aquela paralisia mental: as pessoas deixam de ser curiosas, de
investigar, e de fazer um esforço para compreender. Tornam-se, assim,
menos humanas.
Voltando à conscientização da tecnologia, citei como a segunda parte da
mesma a compreensão do efeito que ela produz em seus usuários.
Retornando aos meus alvos preferidos, isso significaria, no caso da TV,
compreender que ela coloca normalmente o telespectador em um estado de
sonolência, semi-hipnótico; daí a maioria de suas consequências funestas,
especialmente o condicionamento. No caso dos video games, especialmente
os de ação/reação, compreender que o usuário tem que desligar totalmente
seu pensamento consciente, e passar a agir automaticamente. Isso leva a
um profundo condicionamento das ações, principalmente em casos de
inconsciência, como stress, medo extremo, raiva, falta de sono etc. No caso
dos computadores, compreender o fato de eles forçarem o uso de uma
linguagem formal e um raciocínio lógico simbólico, algorítmico. No seu uso, é
necessário exercer um pensamento que pode ser transmitido à máquina e
A missão da tecnologia 69
corretamente interpretado por esta, o que denomino de “Pensamento
Maquinal”. Para mais detalhes sobre esses e outros aspectos desses três
aparelhos, vejam-se meus artigos “Os meios eletrônicos e a educação:
televisão, jogo eletrônico e computador” (Setzer 2005, p. 15, e na Internet),
e outros nesse livro e em meu site, especialmente “Os efeitos negativos dos
meios eletrônicos em crianças, adolescentes e adultos”.
Uma das consequências da paralisia mental citada acima é fazer com que o
usuário não se preocupe ou não se interesse pelo estado em que ele é
colocado pelas máquinas que usa.
8.2 Em segundo lugar, baseado no conhecimento do princípio básico de
funcionamento e do efeito que a tecnologia produz nos seus usuários,
dever-se-ia ter permanente consciência no seu uso, em particular com
relação ao que caracterizei como “missão da tecnologia” no item 7 acima.
Nesse último aspecto, isso significaria usar alguma máquina e
constantemente se fazer o questionamento se ela está cerceando a liberdade
pessoal ou está ajudando a se obter alguma liberdade. Um outro aspecto
fundamental é pesarem-se constantemente os benefícios e os malefícios
pessoais que advêm do uso de uma tecnologia.
8.3 Em terceiro lugar, é preciso usar as tecnologias não só com consciência
pessoal, mas também com consciência social e global. Isso significa avaliar
se o uso de alguma tecnologia beneficia ou prejudica outras pessoas e o
mundo em geral. Aqui cabe a consideração de uma tecnologia cercear ou
A missão da tecnologia 70
não a liberdade dos outros. Porém, não é só a liberdade que deve ser levada
em conta, mas também a igualdade (direitos humanos) e a fraternidade, a
solidariedade. Sobre esses três aspectos, ver meu artigo “Liberdade,
igualdade e fraternidade: presente, passado e futuro”. Além disso, muito
importante é considerar-se se o uso de alguma tecnologia diminui ou não a
consciência das pessoas.
Em termos de consciência do impacto no mundo em geral, isso pode
significar mudanças de hábitos, por exemplo tomarem-se banhos os mais
curtos possíveis, para não se gastar a cada vez mais preciosa água em um
prazer dispensável. Chamo a atenção para o grau de consciência que se
deve ter no uso da tecnologia: nesse exemplo, quem sabe, de vez em
quando, em casos de uma grande necessidade de relaxamento, talvez valha
a pena prolongar um bom banho quente... O importante é que a escolha
seja consciente.
8.4 Em quarto lugar, deve-se conscientizar as pessoas para os malefícios e
benefícios da tecnologia. É o que tenho feito em grande parte com meus
artigos, livros, palestras e cursos. É o que fez maravilhosamente Susan Linn
em seu livro já citado, em relação ao consumismo induzido pela TV [Linn
2006]. No entanto, é impressionante ler nesse livro que a autora, apesar de
sua posição crítica em relação à TV, e como em geral é o caso de pessoas
que criticam esse meio, não tem a coragem de afirmar que não se deve ver
TV, a menos de casos excepcionais. Em minha experiência, esses casos
A missão da tecnologia 71
quase nunca ocorrem: tenho uma TV, mas ao escrever estas linhas não
lembro a última vez que assisti algum programa; a propósito, não tive TV
em casa até minha filha menor tornar-se adulta. Por exemplo, Susan Linn
queixa-se de que a filha adolescente ficava sendo influenciada pela
propaganda televisiva; ora bolas, por que não tira a TV da sua casa ou
tranca-a para só destrancá-la quando, conscientemente, a família decidir
que vale a pena assistir um programa especial? Já Manfred Sptizer, em seu
extraordinário livro Vorsicht, Bildschirm! (“Cuidado, Tela!”) declarou que
tinha 5 filhos mas não tinha TV em casa, justamente devido às suas crianças
[Spitzer 2005, p. 250]. Já que citei esse autor, vale a pena citar seu
segundo livro, com uma quantidade imensa de citações de artigos científicos
citando os malefícios dos meios eletrônicos [Spitzer 2012]; o título
(Demência Digital) pode parecer bombástico, mas deve-se lembrar que o
autor é o diretor da clínica de psiquiatria da Universidade de Ulm, na
Alemanha.
8.5 A questão da coragem leva-me ao quinto ponto. Uma das consequências
que deduzo de meus conceitos em relação aos aparelhos eletrônicos e a
minha concepção do ser humano é o fato de aqueles prejudicarem a força de
vontade. De fato, não é preciso fazer nenhum esforço para ver TV ou jogar
um jogo eletrônico, talvez mesmo navegar pela Internet ou ler e-mails e
mensagens recebidas por ela. O grande esforço que deve ser feito é para
desligar os aparelhos. Assim, recomendo que se exercite interromper
A missão da tecnologia 72
periodicamente o uso dessas e de quaisquer outras tecnologias, na medida
em que isso for possível (espero que algum leitor entusiasta pelas minhas
ideias – coisa rara, pois são em geral incômodas – não desligue o seu carro
no meio do trânsito!). A esse respeito, vejam-se as recomendações que dou
em meu artigo “O que a Internet está fazendo com nossas mentes”.
Parece-me também que se deveria exercitar consistente e conscientemente
a vontade, para contrabalançar o prejuízo que ela tem sofrido com a
tecnologia moderna, por exemplo no comodismo que ela muitas vezes
proporciona. Para isso, posso recomendar o exercício de se treinar mudança
de hábitos. Por exemplo, se a pessoa adora tomar um café quente de
manhã, deixar de fazê-lo de vez em quando; se adora tomar suco (espero
que seja pelo menos natural!) nas refeições, tomar água de vez em quando.
Se está acostumado a usar um relógio, deixar às vezes de fazê-lo. De vez
em quando, tentar escrever com a mão que não costuma usar para isso.
Esses exercícios têm um efeito muito grande de fortalecimento da vontade,
quando feitos com regularidade, e vão produzindo maior flexibilidade
mental. Isso é especialmente importante nas ações que se tornam
praticamente uma dependência, como o caso já citado de ficar alguns dias
sem usar a Internet (garanto por experiência própria, é o Paraíso!).
Uma das manifestações do prejuízo para a vontade é a impotência que
certamente muitas pessoas sentem face à tecnologia. A frase típica que
A missão da tecnologia 73
mostra isso é “O que adianta eu tomar uma atitude? Que influência posso
ter sobre isso ou aquilo?” Isso me leva ao próximo ponto.
8.6 Em sexto lugar, recomendo ações afirmativas. Na palestra de Jeffrey
Smith, mencionada no fim do item 3, ele afirmou que, se 15% das pessoas
deixam de consumir algo, isso muda a produção das empresas envolvidas.
No caso, ele se referia aos alimentos transgênicos, mas certamente deve ser
o caso em relação a outros produtos, como por exemplo programas de TV,
McDonald’s etc. Infelizmente, o brasileiro não é em geral muito afeito a
protestos, confundindo tolerância com permissividade.
Há certas pessoas que dizem o seguinte: estamos realmente numa situação
crítica para a humanidade, mas esta vai evoluir naturalmente e acabará
suplantando os problemas atuais. Acontece que o ser humano não é um ser
puramente natural. Quando ele pintou as primeiras pinturas rupestres, já
não era totalmente natural, e se pode conjeturar que jamais tenha sido, o
que não apresenta problema algum para uma concepção de mundo
espiritualista. Se cada ser humano não é um ser puramente natural (como o
são, em grande parte, os animais e as plantas), a sociedade e a humanidade
também não o são. Assim, não se deve confiar que as coisas vão melhorar
naturalmente, por si só. Pelo contrário, tenho uma concepção de que a
tendência é sempre de piorar, pois se a humanidade melhorasse
automaticamente, bastaria cruzarmos os braços e esperar que ela melhore.
Ao contrário, se a tendência é piorar, somos chamados cada vez mais à
A missão da tecnologia 74
consciência e à ação; precisamos nos desenvolver continuamente para
enfrentarmos um mundo cada vez mais miserável e lutarmos cada vez com
mais energia para melhorá-lo. Note-se que isso deve ser entendido de um
ponto de vista global. É óbvio que, em alguns aspectos, tem havido
melhoria. Mas o que adianta, por exemplo, melhorar o saneamento básico se
as pessoas estão se sentindo psicologicamente muito piores, aumentam os
casos de usos de drogas psicotrópicas e de álcool, aumentam os suicídios,
aumenta a separação de casais – uma amostra de que as pessoas têm cada
vez mais dificuldades de conviver e se relacionar socialmente? (A propósito,
quando eu era criança e adolescente, jamais havia ouvido falar em
psicólogos e terapeutas...)
Se o ser humano não é um ser puramente natural, não se deveria confiar
que ele naturalmente aprenderá a conviver com os males da tecnologia,
eventualmente aprendendo a colocá-la em seu devido lugar. Isso só será
conseguido por um grande esforço educacional e, na fase adulta, por
auto-educação. Para não passar uma imagem totalmente pessimista da
humanidade, vou colocar aqui que reconheço nela avanços fantásticos, como
os movimentos ecológico, da paz universal, dos direitos humanos e do
respeito aos deficientes.
8.7 Em sétimo lugar, recomendo o desenvolvimento de um espírito crítico
em relação à ciência como, aliás, exige a sua prática. Quantas vezes uma
pesquisa é justificada por meio de seus pretensos resultados futuros, muitas
A missão da tecnologia 75
vezes bombásticos? Lembro-me muito bem da justificativa oficial de Neil
Armstrong ter pisado na Lua em 1969, algo como “Agora conheceremos a
origem do sistema solar”, o que obviamente não se confirmou. Ou da
justificativa do sequenciamento genético da Xilella Fastidiosa, publicado em
2000, o primeiro feito no Brasil: agora íamos descobrir como combater a
doença correspondente dos laranjais. Passados tantos anos, onde está esse
resultado? O livro citado de Jeffrey Smith documenta muito bem como
pesquisas científicas podem ser usadas parcialmente, de modo a mascarar
efeitos negativos de alguma tecnologia. Ele chama a atenção para o fato de
que, em geral, as pesquisas científicas necessárias para a aprovação de um
produto, tais como medicamentos e alimentos transgênicos, são feitas pelos
próprios produtores [pp. 193 ff.] e são relativamente curtas e parciais. O
que se pode esperar disso, levando-se em conta que, do ponto de vista
empresarial, o único motivo para a introdução de um novo produto é ganhar
dinheiro?
É muito importante considerar-se que a ciência jamais proporciona um
conhecimento total sobre algo, principalmente devido à extrema
especialização e reducionismo que a caracterizam. Nessas condições, é
impossível preverem-se todos os efeitos colaterais de qualquer produto. Isso
nos leva ao próximo ponto.
8.8 Em oitavo lugar, uma palavra sobre a liberdade de pesquisa. Sou
totalmente a favor de se dar total liberdade ao cientista de pesquisar o que
A missão da tecnologia 76
bem entender. Mas uma coisa é a pesquisa, e outra é a produção de um
produto. Já que é impossível ter-se um conhecimento total sobre os efeitos
de algum produto, sempre haverá um fator de subjetividade no julgamento
de quanto ele é ou pode ser benéfico ou maléfico. Devido a essa
subjetividade, sou absolutamente contra a liberdade de se produzir seja lá o
que for. A sociedade é que deveria ter a última palavra sobre o interesse ou
não de um novo produto ser lançado. Isto é, esse lançamento deveria ir de
encontro a uma verdadeira necessidade, e não a necessidades criada pela
propaganda ou um modismo, como é comumente o caso. Note-se que me
referi ao controle pela sociedade, e não pelos governos. Essa necessidade é
absolutamente clara no Brasil, devido à corrupção que temos entre nós, mas
que não é nossa marca registrada: Jeffrey Smith cita que na Indonésia a
Monsanto corrompeu ou pagou ilegalmene 140 pessoas do governo para
aprovação do algodão transgênico [Smith 2007, p. 176]. No julgamento final
do interesse sobre um produto, os cientistas devem entrar exclusivamente
com seus dados objetivos sobre as vantagens e desvantagens do mesmo.
Devido aos fatores imponderáveis, numa decisão dessas um cientista só
deveria participar como cidadão comum, e não como o cientista que é.
Já que não se deve coibir ou direcionar a pesquisa científica, o importante é
conscientizar os cientistas da responsabilidade moral que têm em suas
pesquisas, de modo que cada um escolha, em liberdade, o que poderia
pesquisar para um real bem da humanidade. Lembro-me muito bem uma
A missão da tecnologia 77
notícia que li nos EUA, provavelmente em 1970, em plena guerra do Vietnã,
do cientista que tinha descoberto, na universidade de Harvard, a bomba
Napalm usada extensivamente naquela guerra. Essa bomba, espirra material
incandescente (de 800 a 1.200 ºC) grudando na pele das pessoas atingidas,
infligindo dores lancinantes (em 1980 ela foi proibida pela ONU contra
populações civis). Ele afirmou que, se pudesse, inventava-a novamente!
Aqui esbarramos em um problema muito profundo: a educação universitária
científica ou técnica exclusivamente profissional, como é por exemplo feita
em nosso país, não proporciona a formação humanística, artística e social
necessárias para que o cientista ou o técnico desenvolvam uma sensibilidade
e preocupação para com a natureza e com os seres humanos. Nesse sentido,
há ainda um terrível fator: os meios acadêmicos e de pesquisa são em geral
materialistas e, portanto, sendo coerentes, não deveriam admitir a
responsabilidade humana e a moral, pois elas não podem decorrer da
matéria ou da energia físicas (ver o item 5 acima). Se não deveriam
admiti-las, como vão ensinar seus alunos, futuros cientistas e técnicos, a
serem socialmente responsáveis ou agirem moralmente?
9. Conclusão
A humanidade está em uma encruzilhada. A aceleração do desenvolvimento
tecnológico é brutal hoje em dia, produzida por certas forças que caracterizei
no item 5 como o mal. Em lugar de a tecnologia estar cumprindo sua
missão, que é a de libertar o ser humano das restrições impostas por suas
A missão da tecnologia 78
forças e capacidades internas e das forças externas, ela o está aprisionando
e influenciando cada vez mais, chegando a ameaçar a sua existência. A
única maneira de se mudar esse estado de coisas, redimindo aquele mal, é
adquirir uma consciência do que a tecnologia significa, e de seu impacto em
cada ser humano e na natureza, passando-se a tomar atitudes para
colocá-la em seu devido lugar. A alternativa é o desastre total, tanto físico
como psicológico.
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Agradecimento
Sou grato a Vitor Morgensztern por valiosas sugestões quanto à redação, até
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