A Mercantilização Da USP _ Ruy Braga
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A mercantilização da USPPublicado em 24/08/2015 | 1 comentário
Por Ruy Braga.
Em seu influente estudo dedicado à gênese do capitalismo industrial no século XIX, o marxista
húngaro Karl Polanyi associou a consolidação desta verdadeira utopia regressiva que é a ideia de
“autoregulação” mercantil à precificação das três mercadorias por ele consideradas “fictícias”, pois
não produzidas com a finalidade da venda: o trabalho, a terra e o dinheiro. O impacto provocado
pelo mercado nestes três alicerces sociais, para utilizar uma linguagem marxista, destruiria seus
valores de uso ao subordiná-los ao movimento alienado do valor.
O valor de uso do trabalho, isto é, a reprodução social pela mediação sócio-metabólica entre a
humanidade e a natureza, seria deteriorado pela espoliação dos meios de produção e pela
[Fotograma do fi lme The Woll (Pink Floyd), dirigido por A lan Parker.]
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intensificação da exploração econômica. O valor de uso da terra, isto é, sua fertilidade, seria
ameaçado pela degradação ambiental. E, finalmente, o valor de uso do dinheiro, isto é, sua
capacidade de medir os valores de troca, seria arruinado pela generalização do processo de compra
e venda do próprio dinheiro. Em suma, o movimento do mercado “auto-regulado”, isto é, o
movimento irracional e alienado do trabalho abstrato, colocaria em risco a existência da própria
sociedade.
Recentemente, o sociólogo britânico, Michael Burawoy, lembrou-se de acrescentar uma quarta
mercadoria fictícia à lista de Polanyi: o conhecimento. A atual onda de mercantilização do
conhecimento impediria a realização de seu valor de uso, ou seja, promover o progresso social, ao
espoliar sua natureza pública. A crise de financiamento das universidades públicas em diferentes
países do mundo, o endividamento crescente da juventude trabalhadora a fim de sustentar seus
estudos e o aprofundamento da burocratização por meio do bloqueio da participação democrática
nas decisões estratégicas das universidades seriam diferentes dimensões de uma mesma realidade: o
ataque ao conhecimento público promovido pelas forças de mercado.
As denúncias do jornal O Estado de S. Paulo de contratos celebrados pela Fundação de Apoio à USP
(Fusp) envolvendo diversas empresas de professores, de dirigentes da fundação e de pesquisadores
da universidade com prefeituras e corporações, revelam uma dimensão importante deste ataque: a
espoliação dos recursos públicos por meio da privatização da atividade científica.
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Trata-se de uma realidade propagada há décadas pelos movimentos sociais ligados à proteção do
caráter público da USP, mas, nunca seriamente debatida pela alta burocracia universitária. E como
seria diferente se os principais beneficiários destes contratos são integrantes desta mesma
burocracia? Apesar de graves – afinal, professores da universidade, alguns deles coordenadores de
projetos da Fusp, assinaram contratos por empresas em seus nomes ou de familiares, contrariando
frontalmente o código de ética da USP –, estas denúncias revelam apenas uma dimensão do processo
de espoliação que afronta e oprime a universidade.
Ainda mais grave é o documento redigido por uma equipe criada pela Comissão Especial de Regimes
de Trabalho (CERT) para reavaliar a regulação do trabalho docente da USP. Em termos sumários, a
equipe propôs abandonar o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) como
forma de contratação prioritária da universidade em benefício do Regime de Turno Completo (RTC)
e do Regime de Turno Parcial (RTP). Na prática, isto significaria que o docente contratado receberia
muito menos, não poderia desenvolver plenamente as funções de pesquisa e ficaria anos sob
constante avaliação da CERT a fim de um dia ser promovido ao RDIDP.
Caso seja aprovado pelo Conselho Universitário (CO), este projeto fatalmente degradaria o ensino e a
pesquisa por meio da precarização do trabalho docente. Alega-se que a razão por trás da proposta é
a atual crise de financiamento pela qual atravessa a universidade. No entanto, ao economizar em
algo tão essencial, isto é, a dedicação dos docentes ao ensino e à pesquisa acadêmica, a reitoria não
apenas estaria se desobrigando da tarefa de reivindicar mais verbas para a educação pública, como
submeteria os novos professores à vicissitude de seu despotismo acadêmico.
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Além disso, este projeto aprofundaria ainda mais a “dualização” do corpo docente divido entre um
núcleo prestigiado e uma semiperiferia subalterna e mal remunerada. Os novos contratados
precisariam ter outras fontes de rendimento o que os conduziria fatalmente ao mercado de trabalho
do sistema universitário privado. Aqui, reencontramos a mercantilização do conhecimento sob
outra roupagem.
A precarização do trabalho docente e a privatização do conhecimento acadêmico são duas
expressões do mesmo projeto: a mercantilização da USP. Trata-se de um projeto cujo núcleo radica
na apropriação do aparelho universitário por uma burocracia cujo compromisso principal não é
com as classes subalternas que financiam a universidade, mas com seus próprios interesses
mesquinhos de camada social privilegiada em busca do enriquecimento. Contra este tipo de projeto,
só existe uma solução. Estabelecer e ampliar o controle democrático da burocracia acadêmica pela
comunidade universitária.
Karl Polanyi nos mostrou que ao ser ameaçada pela mercantilização, a sociedade reage por meio de
movimentos contrários à lógica alienada da economia capitalista. Alguns destes
“contramovimentos”, como o fascismo e o stalinismo, por exemplo, mostraram-se verdadeiramente
desastrosos para a própria sociedade que buscava se proteger do mercado. Outros, como o New
Deal estadunidense e a socialdemocracia europeia apontaram alternativas progressistas.
Necessitamos urgentemente de uma solução radicalmente democrática para a crise da USP. Uma
saída capaz de proteger a universidade das ameaças da mercantilização neoliberal. Para tanto, é
preciso emancipar a comunidade universitária do despotismo burocrático que a asfixia. A USP
precisa de uma revolução democrática.
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Ruy Braga: O retorno da luta de classes no Brasil
NOT AS
Ver POLANY I, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. São Paulo: Campus,
2000.
Ver BURAWOY , Michael. “Facing an unequal world”. Current Sociology, vol. 63 (1), 2015.
Ver também o blog criado por Michael Burawoy quando era presidente da Associação
Internacional de Sociologia (ISA) a fim de promover o debate sobre o tema da crise internacional da
universidade: “Universities in crisis“.
Ver SALDAÑA, Paulo. “Pesquisadores da USP são sócios de firmas beneficiadas por contratos”. O
Estado de S. Paulo, 15 de agosto de 2015; e SALDAÑA, Paulo. “Fundação da USP paga empresas de
docentes”. O Estado de S. Paulo, 15 de agosto de 2015.
Ver ASSOCIAÇÃO DE DOCENTES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. “Universidade pública e
fundações privadas: aspectos conceituais, éticos e jurídicos”. Cardernos da Adusp, São Paulo,
novembro de 2004.
Bastaria lembrar que o ex-diretor da Fusp, José Roberto Cardoso, afastado semana passada por
suspeita de corrupção, desistiu de sua candidatura a reitor, em 2013, beneficiando o atual reitor,
Marco Antonio Zago, que o nomeou para dirigir a fundação logo após sua posse.
***
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública
(Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e
crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de
ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e
Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista,
tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia
lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog
da Boitempo mensalmente, às segundas.
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