A medicalização da morte no Brasil durante o século XIX

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00566 A MEDICALIZAÇÃO DA MORTE, NO BRASIL DURANTE O SÉCULO XIX. THE MEDICALIZATION OF DEATH IN THE NINETEENTH-CENTURY BRAZIL. Ana Renata Assis Ribeiro da Silva, Jean Marcel Carvalho França - Campus de Franca – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – História – [email protected] – PIBIC/CNPq. Palavras chaves: morte; cemitério; Brasil. Keywords: death; cemetery; Brazil. 1. INTRODUÇÃO Ao longo da história notamos significativas mudanças na relação dos vivos com os seus mortos. O século XIX, no Brasil, é um período onde tais mudanças podem ser facilmente notadas; aí a relação entre vivos e mortos e a sua convivência alterou-se após o nascimento de um novo saber médico, a medicina social, que tem como objetivo medicalizar, higienizar e normalizar a sociedade, alteração que culminou na construção de cemitérios públicos e extramuros. A partir de então costumes seculares, como a realização de sepultamentos dentro e ao redor das igrejas, passaram a ser abomináveis e condenados pelo novo saber médico que então emergia. A livre convivência com os mortos e seus miasmas não foram mais aceitos, pois estes passam a ser considerados focos de doenças e epidemias. O afastamento dos mortos do convívio com o resto da sociedade fez parte de uma política geral de higiene publica. A morte antes era vista como algo familiar, natural, a livre e direta convivência com os mortos era cotidiana e corriqueira. O processo de medicalização da morte pode ser verificado em diferentes lugares em épocas distintas. Em Paris, desde o século XVIII, notam-se medidas para que ocorresse o afastamento dos mortos e de seus odores pútridos, através da transferência destes para cemitérios públicos afastados das cidades. No Brasil tais medidas são verificadas a partir do século XIX e não se restringiu aos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, a então capital do Império, aqui o novo saber médico expandiu-se para o interior com suas novas normas, como no caso especifico da então Vila Franca do Imperador. Assim a morte passou a não ser mais considerada como algo familiar, mas sim como um interdito. 2. OBJETIVOS E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1. Fundamentação teórica Para a fundamentação teórica, faremos uso de obras como Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil e Foucault, a ciência e o saber, ambos de autoria de Roberto Machado. Fazendo uso de tais obras será possível realizar um estudo sistemático que leve a uma melhor compreensão de como as novas regras médicas passaram a dirigir a vida da população. Como coloca Roberto Machado: “Crítica médica que de um lado justifica-se explicando porque os corpos mortos são causa de morte e doença, e que, de outro lado, procura impor seu projeto de cemitério ordenado, salubre e também moralizante”, que abalou estruturas seculares. Tais considerações são de extrema relevância, pois nos permite compreender questões como a “teoria dos miasmas” e a higienização dos espaços públicos e privados, que levou a total mudança da reação diante da morte, tornando-a algo distante. Ainda dentro desta perspectiva, utilizaremos também a obra Como se escreve a história, especialmente o capítulo Foucault revoluciona a história, de autoria de Paul Veyne. A pesquisa irá, pois, organizar-se a partir de dois eixos: o primeiro irá se apoiar na bibliografia geral sobre a morte e sobre a mudança de mentalidade em torno desta no decorrer dos séculos; o segundo irá amparar-se na leitura e análise das fontes e buscará perceber como a medicalização da morte se deu na Vila Franca do Imperador durante o século XIX, tentando também estabelecer comparações com as demais regiões do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, pois neste período tais regiões também passavam por essa transição. Fazendo uso de tais recursos, aspiramos descrever como se

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A MEDICALIZAÇÃO DA MORTE, NO BRASIL DURANTE O SÉCULO XIX.

THE MEDICALIZATION OF DEATH IN THE NINETEENTH-CENTURY BRAZIL.

Ana Renata Assis Ribeiro da Silva, Jean Marcel Carvalho França - Campus de Franca – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – História – [email protected] – PIBIC/CNPq.

Palavras chaves: morte; cemitério; Brasil.Keywords: death; cemetery; Brazil.

1. INTRODUÇÃOAo longo da história notamos significativas mudanças na relação dos vivos com os seus

mortos. O século XIX, no Brasil, é um período onde tais mudanças podem ser facilmente notadas; aí a relação entre vivos e mortos e a sua convivência alterou-se após o nascimento de um novo saber médico, a medicina social, que tem como objetivo medicalizar, higienizar e normalizar a sociedade, alteração que culminou na construção de cemitérios públicos e extramuros.

A partir de então costumes seculares, como a realização de sepultamentos dentro e ao redor das igrejas, passaram a ser abomináveis e condenados pelo novo saber médico que então emergia. A livre convivência com os mortos e seus miasmas não foram mais aceitos, pois estes passam a ser considerados focos de doenças e epidemias. O afastamento dos mortos do convívio com o resto da sociedade fez parte de uma política geral de higiene publica.

A morte antes era vista como algo familiar, natural, a livre e direta convivência com os mortos era cotidiana e corriqueira. O processo de medicalização da morte pode ser verificado em diferentes lugares em épocas distintas. Em Paris, desde o século XVIII, notam-se medidas para que ocorresse o afastamento dos mortos e de seus odores pútridos, através da transferência destes para cemitérios públicos afastados das cidades. No Brasil tais medidas são verificadas a partir do século XIX e não se restringiu aos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, a então capital do Império, aqui o novo saber médico expandiu-se para o interior com suas novas normas, como no caso especifico da então Vila Franca do Imperador. Assim a morte passou a não ser mais considerada como algo familiar, mas sim como um interdito.

2. OBJETIVOS E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA2.1. Fundamentação teórica

Para a fundamentação teórica, faremos uso de obras como Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil e Foucault, a ciência e o saber, ambos de autoria de Roberto Machado. Fazendo uso de tais obras será possível realizar um estudo sistemático que leve a uma melhor compreensão de como as novas regras médicas passaram a dirigir a vida da população. Como coloca Roberto Machado: “Crítica médica que de um lado justifica-se explicando porque os corpos mortos são causa de morte e doença, e que, de outro lado, procura impor seu projeto de cemitério ordenado, salubre e também moralizante”, que abalou estruturas seculares.

Tais considerações são de extrema relevância, pois nos permite compreender questões como a “teoria dos miasmas” e a higienização dos espaços públicos e privados, que levou a total mudança da reação diante da morte, tornando-a algo distante. Ainda dentro desta perspectiva, utilizaremos também a obra Como se escreve a história, especialmente o capítulo Foucault revoluciona a história, de autoria de Paul Veyne. A pesquisa irá, pois, organizar-se a partir de dois eixos: o primeiro irá se apoiar na bibliografia geral sobre a morte e sobre a mudança de mentalidade em torno desta no decorrer dos séculos; o segundo irá amparar-se na leitura e análise das fontes e buscará perceber como a medicalização da morte se deu na Vila Franca do Imperador durante o século XIX, tentando também estabelecer comparações com as demais regiões do país, como São Paulo e Rio de Janeiro, pois neste período tais regiões também passavam por essa transição. Fazendo uso de tais recursos, aspiramos descrever como se

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deu a mudança de atitude em relação à morte no período mencionado, como a morte deixou de ser encarada como algo familiar e tornou-se um tabu.

2.1 Objetivos• Avaliar as obras gerais e especificas que trataram sobre o tema proposto e estabelecer o

panorama geral em que se desenvolveu a mudança de mentalidade, no decorrer dos séculos, acerca da morte.

• Analisar como a população de Franca, no século XIX, portou-se diante dessa nova forma de pensamento, como esta passou a encarar os seus mortos a partir desse momento.

• Analisar a reação da Igreja diante da medicalização e a posterior secularização dos cemitérios, que até então encontravam-se sobre o seu poder.

• Descrever como o Estado legislou para que a cidade se adaptasse às novas normas de higiene que se colocavam.

3. METODOLOGIAInicialmente, foi feito um levantamento bibliográfico sobre o tema da pesquisa,

depois foram realizadas as leituras e análises destas obras para, em um primeiro momento, analisarmos como se deu o processo no Rio de Janeiro e São Paulo e, em seguida, realizarmos um trabalho comparativo com o caso da então Vila Franca do Imperador. As fontes que serão utilizadas, disponíveis Arquivo Municipal de Franca e no Museu Municipal Professor José Chiachiri, apresentam uma grande diversidade e consistem em relatos da época feitos em sua maioria por anônimos. Tais documentos possibilitam construir uma perspectiva sobre a situação social da cidade e sobre como a população encarava o novo modo de lidar com os mortos. Fizemos uso, também, de testamentos e inventários, pois estes são importantes fontes primárias que nos oferecem informações de ordem social, econômica, cultural, educacional, religiosa, política e administrativa sobre a cidade. Consultamos, ainda, os Códigos de Postura, nos Relatórios Fiscais e nas atas da Câmara Municipal entre 1829 e 1856, para compreendermos como se legislava acerca dessa nova situação que se colocava e como os então vereadores, sob a pressão da igreja, que em muitas situações se colocou veementemente contra a medicalização da morte e a secularização dos cemitérios, portavam-se diante das novas regras sanitárias que surgiam. Como coloca Roberto Machado: “Contra a medicalização da morte, proclama-se o direito dos católicos de serem sepultados nas igrejas e fora delas nos seus adros, cemitérios e catacumbas”.

Seguindo este viés, para a compreensão de como a igreja se colocou diante das mudanças ocorridas nas mentalidades durante o século XIX, utilizamos, ainda, os livros de tombo Archivo Parochial Franca: Óbitos (1805-1853) e o Registro de Sepultamentos da Paróquia de Franca (1805-1863), que se encontram arquivados no Arquivo da Cúria Metropolitana na cidade de Franca. O uso de tais documentos fez-se importante pelo fato desses nos proporcionarem uma visão ampla das principais moléstias que afligiam a população e de suas causa mortis.

4. DISCUSSÕESApós o recolhimento e análise das já citadas fontes e materiais de pesquisa, foi possível

analisar não só a difusão desse novo saber médico que levou ao processo de medicalização da sociedade e das suas instituições (hospitais, prisões, cemitérios, escolas e etc.), mas também a reação da população a tais mudanças, que muitas vezes se viu colocada a parte, além da reação da igreja, que viu o poder que tinha sobre a morte diminuir.

O trabalho comparativo entre as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e a Vila Franca do Imperador possibilitou uma maior abrangência do trabalho e ampliou sua perspectiva, oferecendo uma visão panorâmica sob a situação que se desenrolava, pois além de analisarmos como os grandes centros adaptaram-se a mudanças tão radicais, vimos ainda em que medida as influências das grandes regiões se deram na região interiorana e como esta se adaptou e legislou diante de tal situação.

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5. CONCLUSÕESA pesquisa tem nos permitido notar que, muitas vezes, costumes e regras que se fazem

presentes no nosso dia a dia passaram por processos de mudanças radicais. Tradições seculares são quebradas e, tais quebras não são percebidas nem por seus contemporâneos e nem por nós próprios, que muitas vezes achamos que tais coisas sempre foram da maneira como são. Tal estudo permitiu-nos ter uma visão ampla sobre a morte, que é um tema tão presente, mas sempre evitado. Foi possível analisarmos as mudanças que ocorreram não só no sentido religioso, mas também no sentido laico de encarar os mortos.

Dentro de tal análise a mudança de atitude perante a morte foi um processo longo e demorado, onde tanto a visão médica, quanto a visão leiga e religiosa sob esta se alterou de tal modo, que esta nunca mais seria encarada como a naturalidade de outrora. A mudança de atitude em relação à morte encaixa-se em um importante acontecimento da história das mentalidades do ocidente.

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