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A ironia romântica no romance histórico de José de Alencar
Geisa Mueller
(UFPR – Universidade Federal do Paraná)
Resumo: Este artigo objetiva abordar o uso da ironia romântica no romance As Minas de Prata
(1865-1866), de José de Alencar, com o propósito de apontar a questão da autorreferencialidade
na ficção alencarina. A teoria poética elaborada pelo primeiro romantismo alemão,
principalmente os fragmentos de Friedrich Schlegel (Athenäum, 1798), consiste no lugar
teórico articulado ao uso da ironia romântica no romance analisado. Assim, nosso objetivo é
demonstrar como o narrador utiliza a ironia para referendar a prática ficcional e, ao mesmo
tempo, desvelar incongruências políticas e sociais do Brasil da segunda metade do século XIX.
Palavras-chave: José de Alencar; ironia romântica; romance histórico.
Abstract: The purpose of this article is to demonstrate how the romantic irony used in the José
de Alencar’s novel As Minas de Prata (1865-1866); our focus is to indicate the question of
self-referentiality in Alencar’s fiction. In this respect, we will analyze the José de Alencar’s
novel through the poetic theory developed by the first generation of German Romantics; more
specifically, this that was gathered in the Schlegel’s fragments (Athenaeum, 1798). The
objective is to demonstrate how the narrator refers to his own work, and exposes the Brazil’s
incongruities in the context of second half of the 19th Century.
Keywords: José de Alencar; romantic irony; historical novel.
Assim, se vós o resolverdes, vai finalmente correr mundo, de
um modo condigno, a obra de um escritor de nota. Apesar dos
grandes dotes do autor, que o escrito descobre, apesar de ser a
obra tida em conta, como justificam as muitas cópias que dela
se tiraram, mais de dois séculos correram sem que houvesse
quem se decidisse a imprimi-la na íntegra.
(F. A. de Varnhagen sobre o Tratado descritivo do Brasil)
Introdução
Como já sabido são diversas as orientações do romantismo enquanto corrente estética,
de modo que o movimento romântico se estende aproximadamente desde o final do século
XVIII até meados do século XIX, tendo como principais países de irradiação a Alemanha, a
Inglaterra e a França. Contudo, é sempre bom relembrar que, por se constituir primeiramente
como um movimento filosófico e poético, também abarcando o aspecto político da vida em
sociedade, o romantismo instiga a tensão entre os valores éticos e artísticos e o universo
burguês em ascensão. Destarte, ao contrário do que comumente é inculcado pelo esforço
didático, o aspecto sentimental do movimento diz respeito à subjetividade exaltada através da
teoria poética do primeiro romantismo alemão; tal teoria não considera o Eu uma força motriz
em detrimento da coletividade, mas um agente capaz de insuflar vigor criativo nas relações
sociais depauperadas pelo advento do capitalismo. Sob esse aspecto, ao reportamo-nos a uma
perspectiva marxista relacionada ao cerne da visão romântica, a proposição é de que a exaltação
da subjetividade não é destacada como sendo a principal característica do movimento
romântico, mas como um dos aspectos que corrobora a resistência à reificação. Pois
[...] quando esses indivíduos se transformam em individualidades subjetivas,
explorando e desenvolvendo seu mundo interior, seus sentimentos
particulares, entram em contradição com um universo baseado na
estandartização e na reificação. E quando reivindicam o livre trâmite de sua
faculdade de imaginação, esbarram na extrema platitude mercantil do mundo
engendrado pelas relações capitalistas. Nesse aspecto, o romantismo
representa a revolta da subjetividade e da afetividade reprimidas, canalizadas
e deformadas (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 48).
Nossa abordagem do romance As Minas de Prata, de José de Alencar, não perceberá a
fatura alencarina segundo a tipologia de orientação marxista (cf. LÖWY; SAYRE, 2015),
entretanto, é importante reter do excerto acima a ótica na qual a primazia do subjetivo está
localizada menos na efusão sentimental do poeta/do intelectual que na crítica realizada a partir
do embate da potência desse Eu (concebido pela filosofia fichteana) com o embotamento da
sensibilidade, esgarçamento social ocorrido pelas prerrogativas da mais-valia. Embora a
questão da existência de classes sociais no Brasil oitocentista não seja tratada neste trabalho,
gostaríamos de explicitar nossa ciência sobre a tardia industrialização do Brasil e também
enfatizar que justamente por ser a discussão a respeito da luta de classes no Brasil oitocentista
chão pantanoso, significa, então, que não é improfícua.
A revolta contra a mercantilização engendrada pelo capitalismo é pauta na pena de José
de Alencar, já que ela atua como crítica contundente da modernidade, por exemplo,
denunciando a especulação das ações relacionadas às concessões para a construção da rede
ferroviária, conforme folhetim publicado em 8 de julho de 1855, no Correio Mercantil:
Dantes os homens tinham as suas ações na alma e no coração; agora têm-nas
no bolso ou na carteira. [...] Aquelas ações do tempo antigo eram avaliadas
pela consciência, espécie de cadinho que já caiu em desuso; as de hoje são
cotadas na praça e apreciadas conforme o juro e interesse que prometem
(ALENCAR, 2004, p. 408-409, grifo no original).
Uma das características da concepção artística romântica é considerar todos os escritos
como uma obra total, fator que nos leva a apreender a visão de mundo de Alencar não somente
através dos textos ficcionais e dos paratextos, como também pelos folhetins, visto que a
versatilidade em conduzir uma gama de assuntos em um espaço restrito exigiu do folhetinista
certo folguedo da palavra, que a nosso ver finca-se no uso da ironia. Outrossim, ao
sublinharmos a envergadura romântica, no que toca o abscesso social ocasionado pelo lucro,
buscamos uma frincha que mova nosso olhar para fora do lugar-comum indicado pela fortuna
crítica em relação à escolha estética de José de Alencar, já que boa parte da recepção crítica do
século XX repete a seguinte fórmula: a invenção e a fantasia demasiadas são o percalço da
ficção alencarina. Dessa fórmula são derivadas variantes contendo a feição do mesmo
argumento, por exemplo: “Excessiva concessão ao gosto da época pelo romanesco [...]”
(AMORA, 1969, p. 254). Se for prestada a devida atenção, o despudor romanesco de José de
Alencar – nesta análise o termo “romanesco” designa enredos cuja tônica é a aventura – ainda
ecoa na crítica contemporânea. Isso posto, apenas indicaremos, ainda nesta introdução, o
porquê As Minas de Prata pode ombrear com os principais romances históricos da literatura
mundial.
O enredo de As Minas de Prata se passa na primeira década do século XVII (1609) e
conflagra a cobiça envolvendo a busca do roteiro das minas de prata de Robério Dias, o
Muribeca. O núcleo dos contendores é formado por D. Francisco de Sousa, a serviço de Felipe
III; pelo visitador da Companhia de Jesus, o padre Gusmão de Molina e, provindo das classes
populares, fazendo valer o adágio que professa serem os últimos os primeiros, o herdeiro de
Robério Dias – da linha genética de Diogo Álvares Caramuru –, o herói Estácio Correia.
No intuito de apontar as diferenças entre a fabulação de As Minas de Prata e a de
Waverley, de Walter Scott, Vasconcelos (2008) compara ambas as narrativas e demonstra que
o romance de Scott realiza a figuração das forças históricas atuantes no evento da união da
Escócia à Inglaterra, diferentemente do romance de Alencar, que não poderia figurar forças
antagônicas porque o modelo scottiano não condiz com o chão histórico brasileiro. Portanto,
Estácio não corresponde aos heróis medianos de Scott, já que estes têm a função de atuar como
o meio-termo entre as duas frentes adversárias. Além disso, os heróis médios são “[...] apenas
corretos e nunca heroicos [...]” (LUKÁCS, 2011, p. 49), assim, a diferença entre Waverley e
Estácio ocorre fundamentalmente por causa da forma com que na fabulação são articulados
“[...] elementos realistas e convenções romanescas [...]” (VASCONCELOS, 2008, p. 27).
Nesse sentido, a fatura de Alencar lança mão do atributo imaginativo fazendo com que os dados
históricos sejam secundários na elaboração da trama, já no enredo de Scott a crônica histórica
é enleada ao substrato ficcional equilibradamente. Daí o veio realista transparecer, em As Minas
de Prata, através das personagens secundárias que, periféricas no enredo e
[...] alheias aos interesses políticos e econômicos que unem e opõem senhores
de engenho, governantes e jesuítas, parecem desempenhar papel de meras
coadjuvantes, mas narram, na verdade, uma história a contrapelo, na
contramão do registro romanesco que preside o enredo principal
(VASCONCELOS, 2008, p. 30).
A história narrada a contrapelo traz à tona a violência como elemento estrutural de nossa
sociedade e, segundo Vasconcelos (2008), isso acontece à revelia do autor. A conclusão é que
tal figuração da violência, como modo de indicar o descompasso entre ideal e realidade social,
possivelmente tenha se dado sem a consciência do escritor de Senhora. Logo, deduzimos que
o projeto romântico de idealização do passado acorrente as possibilidades interpretativas do
romanesco criado por José de Alencar, tendo em vista que o desenvolvimento da argumentação,
para formular uma provável explicação para a possível inconsciência de Alencar, suscita a
leitura que Schwarz (2000) realiza da obra de Machado de Assis. Pois, em Machado, a veia
realista faz com que as personagens secundárias passem a ser o centro dos eventos ficcionais,
recurso que possibilita a figuração das incongruências políticas e econômicas da sociedade
brasileira oitocentista. Entretanto, se não houvesse consciência de José de Alencar a respeito
da possibilidade de o romanesco revelar tais incongruências, o autor não teria construído a
personagem Agrela – também uma personagem secundária atuando na periferia dos eventos
ficcionais de O sertanejo (romance que também figura o período colonial) – de forma a rebaixar
seu patrão, o Capitão-mor Gonçalo Pires Campelo, assim expondo a estupidez e a truculência
do “mandão de Quixeramobim” (ALENCAR, 1967b, p. 242), ou seja, escancarando a violência
como expediente da política colonial.
A apreciação de Vasconcelos (2008) sobre a arquitetura de As Minas de Prata é
perspicaz, todavia, parece-nos que, na conclusão, a pesquisadora repete o refrão de boa parte
da fortuna crítica alencarina: a escolha estética de José de Alencar é um atravanco em relação
à figuração da realidade brasileira.
Em nossa visada, embora Estácio não seja mesmo o molde do herói médio scottiano,
dada a sua práxis heroica, As Minas de Prata apresenta em sua estrutura de composição os
pressupostos constituintes da forma clássica do romance histórico, segundo o modelo scottiano
elaborado por Lukács (2011). Isso significa que Estácio, apesar de heroico, é a personagem
menos interessante do romance (qualquer semelhança com a sensaboria de Ivanhoé não deve
ser mera coincidência). O herói alencarino encontra melhor atribuição na intenção revelada por
tia Euquéria, a governanta de Vaz Caminha, padrinho de Estácio:
– O pequeno já se foi, senhor licenciado?
– Agora mesmo saiu; ainda não dobrou o canto. Por quê?
– É pena que se fosse; podia dar-me uma demão para cortar lá no horto um
cachinho de bananas que estão a cair de maduras! Faz gosto ver!
– Pois Euquéria, disse Vaz com ar severo, é essa incumbência que quereis dar
a um moço cavalheiro?
– Ai!... tal não me lembrou, senhor Vaz; mas não leveis a mal, que me
arrependo, e dos arrependidos é o reino dos céus. Como ele foi criado quase
aqui...
– Contudo já é um homem...
– Um rapaz, resmungou a velha; para homem ainda lhe falta muito. Porém as
frutinhas? Ficam perdidas? Mete dó! Já estão sorvando! (ALENCAR, 1967a,
p. 30).
O desejo de Euquéria pelo reluzente cacho de bananas não é o único momento de As
Minas de Prata no qual se verifica o sentimento de autenticidade histórica, este pode ser
percebido através das especificidades históricas “[...] da vida psicológica de sua época não por
meio da análise ou da explicação psicológica de seus conteúdos mentais, mas pela ampla
figuração de seu ser, pela demonstração de como as ideias, sentimentos e modos de agir
crescem a partir desse solo” (LUKÁCS, 2011, p. 69). O miúdo do cotidiano então é revelado
pelo sentimento de autenticidade histórica, motivo pelo qual o diálogo entre Vaz Caminha e
Euquéria sublinha a artimanha contida no pedido de desculpas da governanta, que pretende sair
do mau passo evocando o reino dos arrependidos, isto é, o narrador insere no discurso dessa
personagem a reprodução da falácia religiosa, pois está claro que não se trata de
arrependimento. Euquéria apenas utiliza um expediente muito comum também nos dias atuais:
vestir a máscara de Deus com o propósito de se eximir das consequências, ou para findar o
assunto. Este procedimento demonstra a ampla figuração do ser histórico porque a desculpa
esfarrapada desvela o que é realmente importante para Euquéria, visto que as frutinhas maduras
são muito mais dignas de consideração do que a condição de moço cavalheiro de Estácio.
Portanto, apesar de o vulto da personalidade literária do escritor de Iracema ser
reconhecido, o hábil manejo com que Alencar articula o romanesco em seus romances é, muitas
vezes, interpretado exclusivamente através do já rogado sentimentalismo romântico. Neste
sentido, o jogo da ironia conjugado à postura combativa frente à “coisificação” do indivíduo
faz com que nosso olhar se detenha em como a ironia romântica é elaborada no romance
histórico alencarino, razão pela qual se pretende destacar, na seção seguinte, a remissão feita
pelo narrador à própria prática ficcional.
O quanto era dura a profissão de escritor no capítulo XIX
Reclamar sobre a questão da profissionalização do escritor brasileiro no século XIX era
uma constante. Passagens que abordam essa questão não são raras na obra alencarina e na de
outros autores do mesmo período, por exemplo:
É preciso, porém, não somente o gosto destas escavações pacientes [está
reportando-se à pesquisa folclórica], como folga para as empreender; coisas
muito difíceis de reunir em um país onde as letras, longe de serem profissão,
entram ainda para muita gente no número das futilidades nocivas à reputação
do homem grave (ALENCAR, 1993, p. 20).
O fragmento de texto pertence a uma das cartas publicadas no jornal O Globo, em 1874,
e reunidas posteriormente em O nosso cancioneiro; as cartas antecipam a escritura de O
sertanejo (1875) e focam a poesia popular versando sobre a transformação da sintaxe e
prosódia da língua portuguesa na constituição do folclore brasileiro. A coleta e restauro dos
poemas que José de Alencar afirma ter sido tarefa difícil de realizar constituem o núcleo da
ideia de “espíritos dos povos” e do conceito de Volkslieder:
A teoria estética de Herder liga-se à ideia de que a poesia constitui um produto
de condições naturais e históricas captadas por intermédio de uma experiência
do "sentir" (Gefühl). Ainda que autônoma, a obra poética está relacionada
com seu ambiente gerador, que nela se incorpora e se transforma num "sentir"
em si e que, no decorrer do tempo, além de o refletir, também o influencia
(FABEL, 2005, p. 43).
A “experiência do sentir” apresenta cunho arqueológico, antropológico, linguístico e
criativo e, para o escritor de O sertanejo, a coleta e restauro dos poemas possibilitou identificar
a originalidade da poesia pastoril cearense, cujo traço não apresenta nenhuma semelhança com
o caráter idílico das éclogas clássicas nem com os apólogos que personificam os animais, pois,
no cancioneiro cearense, o boi figura como herói; os animais apresentam cunho mítico nas
lendas sertanejas porque “[...] resumem os entusiasmos dos vaqueiros pela raça generosa,
companheira inseparável de suas fadigas, e provida mãe que o alimenta e veste” (ALENCAR,
1993, p. 52).
Alencar aponta a dificuldade enfrentada pelo escritor brasileiro tendo em vista o desdém
das instâncias políticas pela pesquisa folclórica/pelo trabalho intelectual, tratamento que
dificultava, por exemplo, empreendimentos culturais como a compilação de um cancioneiro.
Assim, além de denunciar o quão longe a pátria amada estava de afiar as vocações literárias
com a devida estima, o escritor mostra-se inconformado porque o agravante consiste em sua
inclinação para a escritura de textos ficcionais. Não deve ser por coincidência que o capítulo
XIX da primeira parte de As Minas de Prata opere a ironia com este título: “Quanto ingrato já
era no século XVII o mister de escritor”. Nesse capítulo observa-se a jocosa articulação entre
história e literatura através da justaposição do desdém com que é tratada a obra da personagem
padre Manuel Soares e da impostura creditada à atividade de ficcionista no Brasil oitocentista.
Nesse sentido, nota-se o uso da ironia romântica através da apropriação do discurso do
historiador, no intuito de o narrador contar, de maneira anedótica, a história do livro/da cultura
no Brasil. O narrador lança mão do chiste para emoldurar, sob a perspectiva de seis jesuítas, a
aparição da obra de Manuel Soares taxando a crônica escrita pelo padre de “bacamarte”, termo
que designa a inutilidade de um volumoso livro velho, isto é, traste que é o avesso da infinitude
creditada às obras com as quais a cultura de uma nação é erigida. Depois de o cronista sacudir
o pó de seu alfarrábio, já causando horror no conclave, que receava ter que suportar o autor a
deslindar o conteúdo do catatau, ocorre o seguinte diálogo entre o padre Manuel Soares e o
padre Molina:
– V. Reverência talvez não saiba a história deste livro?
– Não, padre-mestre, não sei. Pois tem uma história? perguntou o assistente
[um dos cargos mais altos da Companhia de Jesus] com resignação
evangélica.
– Tem-na, como tudo neste mundo (ALENCAR, 1967a, p. 106-107).
A história do livro do padre Manuel Soares é sobre a extensão do trabalho despendido
(quatorze anos) para elaboração da obra que contém a memória a respeito das famosas minas
de prata de Jacobina (Bahia), assinalando o quão árduo foi pesquisar a existência de tais minas
que, segundo o parecer dos doutos, provavelmente não passaria de lenda propalada pela voz
popular. Na exposição do cronista jesuíta a voz narrativa explora a ironia apropriando-se do
discurso de Varnhagen, procedimento que, por um lado, permite ao narrador aderir ao ponto
de vista do historiador quando este critica a demora ocorrida para que a obra de Gabriel Soares
fosse publicada integralmente, pois o Tratado descritivo do Brasil (1587) teve uma precária
primeira edição somente em 1825: “Pese-nos ver nos tristes azares deste livro mais um
desgraçado exemplo das injustiças ou antes das infelicidades humanas. Se esta obra se
houvesse impresso pouco depois de escrita, estaria hoje tão popular o nome de Soares como o
de Barros” (VARNHAGEN, 1851, p. x). A adesão do ponto de vista narrativo ao ponto de vista
do historiador engendra – em tom zombeteiro – a justaposição do passado e do tempo da escrita
de As Minas de Prata, pois a infelicidade sofrida pela obra de Gabriel Soares é encarnada na
obra de Manuel Soares, esta sequer chegou a ser publicada, assim o narrador ironiza o estado
das coisas no que diz respeito à cultura brasileira oitocentista. Por outro lado, a ironia romântica
se mostra ao nos darmos conta de que Alencar está, ao realizar esse jogo de aproximação e
distância em relação à matéria narrada através da máscara de historiador, fazendo remissão à
sorte de seus próprios alfarrábios. Remetemos o leitor ao caráter aleatório que permeou a
história do livro de Alencar, visto que As Minas de Prata teve dezenove capítulos publicados
na coleção Biblioteca Brasileira (terceiro e quinto volumes), em 1862, evento cuja lembrança
registrada em Como e porque sou romancista esclarece o seguinte fato: “Sem aquela insistência
de Quintino Bocaiúva, As Minas de Prata, obra de maior traço, nunca sairia da crisálida, e os
capítulos já escritos estariam fazendo companhia a Os Contrabandistas” (ALENCAR, 1965,
p. 119). “Mas, infelizmente, por falta de leitores, a ideia da Biblioteca Brasileira morreu cedo
[...]. O projeto de continuação de As minas de prata poderia ter voltado para o fundo escuro de
alguma gaveta, não fosse outra vez o apurado faro editorial de Baptiste Louis Garnier [...]”
(NETO, 2006, p. 218).
Segundo Hallewell (2012), houve expansão do público leitor por causa do
desenvolvimento econômico do Brasil após 1850, em fins desse mesmo ano, Garnier começa
a subsidiar a publicação da obra de alguns autores, pagando-lhes direitos autorais, prática já
efetiva em outros países (Inglaterra, França e Estados Unidos). No entanto, a atuação do editor
foi novidade no Brasil, inclusive, gerou desconfiança no ambiente das tipografias, sendo um
dos motivos para a indisposição do mercado tipográfico brasileiro com a prática do livreiro
francês a questão de os livros da Garnier terem sido impressos na França devido ao menor
custo do material. Todavia, a efeméride que mais salta aos olhos é Garnier ter começado a
publicar ficção somente em meados de 1860!
Diante desse quadro é possível inferir que a fama de literato conquistada por José de
Alencar em sua época não lhe permitia fiar-se na literatura como meio de seu nome alcançar a
tão desejada posteridade. Terá sido esse um dos motivos para que o escritor de O Guarani
também enveredasse pelo sacolejante âmbito político?
No enredo romanesco de As Minas de Prata, o desdém demonstrado pelo livro do padre
Manuel Soares suscita o modo de vida da aristocracia brasileira, que faz da cultura o distintivo
da nobreza adquirida através dos superfaturados títulos distribuídos por D. Pedro (pai e filho),
ou seja, a artificialidade com que essa nobreza é constituída pretende ser preenchida por um
suposto apreço pelas artes, na medida em que esta se presta a incluir o Brasil atrasado e
escravocrata no rol de países civilizados. José de Alencar pertence ao círculo da elite brasileira,
é conservador e escravocrata, porém, quando o narrador utiliza o procedimento acima indicado,
a autor expressa a postura romântica por nós comentada na introdução deste trabalho, daí a
crítica ao embotamento da sensibilidade ocasionada pela especulação capitalista. Sob tal
aspecto, a riqueza cultural provavelmente contida na obra do padre Manuel Soares, por conta
da extensa e intensa pesquisa de campo por ele realizada, não interessara aos jesuítas da ficção
como também não interessaria aos aristocratas do Brasil oitocentista – interessaria a alguém do
século XXI? –, visto que o livro só saiu do fundo escuro da gaveta porque padre Molina
desejava se apossar da localização das minas de prata.
É justamente sob a efígie da sanha por dinheiro que é possível circunscrever o uso da
ironia romântica em um romance de capa e espada como As Minas de Prata, razão pela qual o
chiste (Witz), que na teoria poética apresentada no Fragmento 116 de Schlegel (1987) é o
operador da romantização da ironia, funciona no enredo romanesco de modo a revelar a
tacanhice e mesquinhez da elite cultural e política brasileira. Destarte, o propósito de
escangalhar, através da ironia, a modorra espiritual e intelectual emanada pela modernidade, é
atingido. Já a questão da autorreferencialidade, responsável pela operação crítica e autocrítica
da poesia romântica, na ficção alencarina surge através da reacentuação de Dom Quixote, de
Cervantes, no sentido de ressignificar os pressupostos estéticos de José de Alencar; sobre este
tópico não nos debruçaremos aqui, apenas apontamos que a operação autocrítica desencadeada
pelo chiste é notada na ressignificação do romanesco, este flagrado através do diálogo com
Cervantes.
Considerações finais
Na concepção artística de José de Alencar, o ideário romântico apresenta-se através das
noções herderianas (de gênio, de povo, de poesia popular, de mito, de nação), pois a sensibilidade
romântica, derivada das especificidades de cada ambiência, estabelece correspondência com o
conceito de canções populares (Volkslieder). Logo, através dos paratextos percebe-se que, na
ficção alencarina, a poiesis é também engendrada pela poesia popular, sendo esta constituinte
do âmago de cada nação e também constituída por caracteres que encarnam um corpus poético
e cultural; a vitalidade e a inocência das composições são aspectos apontados como traços
estéticos e tais predicados nada deixariam a desejar em relação à arte erudita. O conceito de
Volkslieder resultou na elaboração de procedimentos expressivos utilizados em diferentes
momentos do romantismo alemão, por exemplo,
Jacob [Grimm] tentou delimitar o autêntico sentido do “conto popular”
(Volksmärchen), para ele a mais elevada acepção e a forma original da poesia,
do “conto maravilhoso artístico” (Kunstmärchen): ao primeiro caso, ele se
referia como um ato de criação coletiva da alma popular. O segundo caso
constituía a poesia artística (Kunstpoesie), resultado de uma preparação
subjetiva e pessoal (BARBOSA, 2009, p. 13-14).
Ao restaurar os poemas “O Boi Espácio” e o “Rabicho da Geralda” (ambos integram o
romance O sertanejo), Alencar parte de acepção similar ao que Jacob Grimm denomina
Volksmärchen, pois tem que exercer “[...] uma rigorosa intuição do pensamento, que produziu
o poema popular [...]” (ALENCAR, 1993, p. 39), no intuito de preservar, na arqueologia da
reescrita, o espírito local que configurara a existência do poema; depois, ao incorporá-los na
narrativa de O sertanejo, aproxima-se da operação designada Kunstpoesie, visto que além de
auxiliar na figuração da pujança do homem, do animal e da paisagem, os poemas também
compõem o timbre merencório do narrador que canta um universo perdido – tradição que
somente pode ser alçada pela memória elaborada no romance. O procedimento explanado é
emblemático do rigor com o qual José de Alencar arquitetava sua obra, motivo pelo qual a
ficção alencarina figura a insubordinação da subjetividade e da fantasia em relação à
mecanização inculcada pela ideologia capitalista.
Neste sentido, demonstramos que a ironia romântica é usada na ficção alencarina como
recurso que desvela as incongruências de uma sociedade que aprecia a arte com a mesma nota
votada aos títulos de nobreza. Daí a política embarafusta-se pelo meio da ficção porque esta
desacredita o berço político e é por ele desacreditada. O narrador alencarino então recua no
tempo para dialogar com o presente, isto é, orquestra a ampla figuração do ser histórico para
que o passado atue como pré-história do presente. Assim, a concepção de história incorporada
pelo romance é “[...] sobre a história como processo, sobre a história como precondição
concreta do presente” (LUKÁCS, 2011, p. 36), razão pela qual se identifica, por um lado, a
violência como componente estrutural de nossa sociedade e, por outro, o curso da mentalidade
patriarcal a disseminar uma cultura de fachada. Em que pese a pecha moralista de José de
Alencar, quando ele utiliza a pena para dar voz ao seu narrador, verifica-se que a ficção vai
além do paradigma pessoal do letrado porque a consciência do autor se apresenta – autor
forjado no embate do Eu criativo com o mundo em desencanto do advento capitalista.
Se de fato “[o] historiador é um profeta voltado para o passado” (SCHLEGEL, 1987,
p. 54), pode-se inferir sobre a análise do uso da ironia romântica em As Minas de Prata que o
recurso de vestir a máscara de historiador fez com que o narrador profetizasse de fato,
prevendo, por exemplo, como alguns aspectos do século XIX reverberam no século XXI, tais
como:
i) o público que lota os lançamentos para adquirir livros escritos sem a
concessão do autor ao excessivo gosto da época pela autoajuda;
ii) a possibilidade de o artista/de o intelectual viver arrazoadamente de seu
trabalho antes de completar 90 anos;
iii) a alegria de um país onde o analfabetismo foi praticamente erradicado;
iv) a absoluta tranquilidade com que andamos para lá e para cá independente da
hora do dia;
v) a gestão pública que atenta para o interesse coletivo, tendo como principais
vetores de cidadania a educação e a pesquisa científica.
Por fim, qualquer semelhança com o nosso século também não deve ser mera
coincidência, porque a pré-história do presente figurada em As Minas de Prata, à revelia de
nosso desejo, expõe um Brasil violento e inculto, quase o mesmo que seria apontado pela
estética rés do chão de Lima Barreto, quando este implicara “[...] com três ou quatro sujeitos
das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis [...]” (BARRETO
apud BARBOSA, 1988, p. 174).
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BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
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