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    SOBRE A IRONIAe a iminncia da vida pr-consumada

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    Sobre a ironiaG. T.

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    Se quiseres comer algum, melhor escreveres umlivro.

    Joo Silva

    Assim o fiz.

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    1. Do acaso

    2. Ilhado

    3. Encarnao

    4. Abrigo

    5. Nem todo corao tem seu destino

    6. Deserto

    7. Soledade8. Pornocracia

    9. Nota de agradecimento

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    Do acaso

    Dia frio, ventania. Era inverno e a chuva precipitava-sesob o cu cinza da velha cidade. Fugazes, as nuvensdeslizavam apressadas, impregnando a atmosfera com oforte aroma da liberdade que se misturava ao seu perfume. Libertinagem. Foi assim que a conheci.Esperava. No que esperasse por algo ou algum,simplesmente esperava. Aguardava o destino. A

    melancolia consumia sua alma escondia seu corpofrgil sob um sobretudo negro enquanto abraavaveementemente os livros contra o peito, protegendo seucorao da selvageria do desconhecido. Seus olhos

    vivos consumiam minha alma. Perdiam-se nohorizonte sob o som de sua respirao silenciosa.

    Encarava o nada como se na iminncia de um orgasmo.Eu assistia a beleza do momento como um voyeur,devorando a forma e o tempo, sem jamais poder toc-la,na possibilidade de destruir minha iluso contemplativa.

    O dourado esmaecido de seus cabelos, ligeiramentemolhados pela chuva fina, e o verde translcido de seus

    olhos tristes eram as nicas cores de um mundo preto-e- branco-e-decadente. Eu mesmo me dissolvia em meioquele noir tempestuoso, obliterando-me dentro deminha prpria fantasia. A pele clara, quase plida,entremeava-se com o aspecto sombrio do universo,transformando-a na prpria iluso da iluso. Era real ou

    apenas um dispositivo de seduo do jogo? No me

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    importava, s conseguia pensar em mergulhar naquelesobretudo e despedaar seu corpo ali mesmo. Eu ardia

    dentro do meu prprio desejo. Sua beleza era quaseobscena eu no conseguia decifr-la e isso meenlouquecia. Suas cores sobressaam-se sobre meumundo aterrador.

    Um fim de tarde espetacular. Deu um passo para trs para melhor se abrigar da chuva e, inevitavelmente,

    correu os olhos de encontro aos meus. Encaramo-nosinfinitamente. Seus lbios articulavam um sorrisotraioeiro e fatal. Matava-me pela terceira vez: umolhar, um sorriso, um beijo. Do acaso. Roou os lbiosmolhados junto aos meus. Meus olhos fechadossuplicavam pela eternizao daquele momento atravs

    da morte. Os seus, abertos, consumavam meu pedido emeu desejo. Jamais encostei em sua lngua, sequer emseu corpo. Dizia-me tudo no atrito de nossos lbios:nada. Silncio, essa era nossa condio.

    Desesperado pela verdade, atirei-a contra uma pilastra.Eu precisava toc-la: arranquei-a de dentro daquele

    sobretudo e beijei desesperadamente seu pescoo. Erade carne. Com fria, eu despia-lhe de suas roupasenquanto devorava cada centmetro quadrado de suapele. Seu corpo estremecia de frio. Pressionei-o contra omeu, num movimento brusco e impetuoso, derrubandoseus livros sobre uma poa dgua. O vento soprou

    mais forte. A chuva apertou. De sobressalto, acometeu-

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    me a incerteza de um futuro negro. Seus braosdesprenderam-se do meu corpo. Uma lgrima triste

    deslizava por sua face, levando consigo suas cores.Afastei-me, tomado em angstia. Apenas ouvia obarulho do movimento rpido dos carros que passavam calada. Fechou o sobretudo e apanhou os livros.

    Notei meus lbios cortados. Um delicado filete de meusangue negro jazia sobre seu lbio inferior. Apesar das

    lgrimas, sorria-me. A chuva torrencial lavavasutilmente suas cores embora escorriam por seusobretudo, encontrando seu destino em poas dgua.Era, agora e para sempre, somente mais uma figurantede um mundo em preto-e-branco-e-nada. Eu haviadiludo sua alma dentro de meu universo. Sorri-lhe em

    troca, sem saber ao certo o que fazer e, ao mesmotempo, pedindo-lhe desculpas. Enxugou as lgrimas elanou-me um ltimo olhar. Transbordava uma vida queeu jamais alcanaria. Foi quando, antes de se virar, noteio verde brandamente reacender-se dentro de seus olhos.Deu-me as costas e partiu em direo ao norte do nada.Abandonou-me morte. Eu me obliterava dentro do

    mundo e o mundo obliterava-se dentro de si mesmo.Somente ela sobrevivera escurido.

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    Ilhado

    Noites como essa me fazem sentir acorrentado. O ar estpesado, carregado de umidade. H concentrao de guanas paredes e janelas a fina barreira criada por esseacmulo torna insuportvel a vida nesse poro. De fato,est chovendo l fora, mas essa priso est pegandofogo. Posso ver sapatos passando rapidamente pelanica fresta de ar e luz qual disponho: um pequeno

    buraco com barras de metal no topo de uma parede. Ah,sim, posso ver os mais belos tornozelos femininos efantasiar com eles, mesmo que apenas por algunssegundos. No andar superior, a festa parece estaranimada, a msica frentica chega abafada aos meusouvidos. O barulho das centenas de ps chocando-se

    sobre o piso de madeira que reveste meu teto diz-meque o velho bar est cheio.

    Encostado na parede, s consigo pensar no meuapocalipse particular e no h nada como um cigarro para antecip-lo. Entretanto, s h mais dois deles nacarteira, espero que bastem por hoje. Enquanto acendo o

    primeiro, mantenho o olhar fixo no lado de fora da vida:no h muitas pessoas transitando nem glamour algumna cidade suja. Pelo contrrio: a podrido urbana parececorromper meu espao sagrado, a chuva escorre aimundice da cidade pela minha janela improvisada.Estou um pouco confuso, acordei h pouco, no meio da

    madrugada, e meus ltimos dias so um mistrio, no

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    me recordo de praticamente nada. Hoje deveria ser umasexta-feira, se bem lembro. Esses ltimos dias tem sido

    estranhos, tenho apenas alguns flashes que continuamvindo memria. E as palavras me vem da mesmaforma: em breves relampejos. Na verdade, at mesmo aslembranas desse lugar me so escassas. As paredessujas e suadas fazem com que eu me sinta em ummatadouro. Porm, sinto um lao muito forte com esselugar. Talvez por me manter em constante contato com

    a morte: imagino meu corpo suspenso, enganchado pelainterseco do pescoo e da coluna, tal qual uma vacaem um aougue. Vem-me ao pensamento a imagem deum pedao de carne mugindo. Esboo um breve sorrisoe dou mais uma tragada no cigarro, devolvendo cidadea fumaa e a podrido que instalou em meu corpo

    nesses anos todos.

    Por onde terei andado? Ser que passei esses ltimostrs dias enfurnado nesse quarto? Minha fisionomia aoespelho confirma. Parece que fui atropelado por uma jamanta, minha barba est pssima, as olheiras sonotrias e h resqucios de vmito no canto da minha

    boca. Lavo o rosto, mesmo sabendo que ser intil,meus lenis e minha roupa esto impregnados pelofedor da comida velha e da bebida barata, misturadas,lavadas com suco gstrico e gentilmente devolvidaspara fora do meu corpo. O contato com a gua me deixasedento por uma cerveja. Caminho at o frigobar e, ao

    abri-lo, estranhamente no levo um choque. Pego uma

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    longneck e tento encontrar o abridor perto dorefrigerador. Em vo, terei de acender a luz. S ento

    noto que no apenas aquela lata velha enferrujada queno est funcionando. Como de costume, o dono doboteco costuma cortar minha energia em noites de muitomovimento. Tudo bem, tudo bem... j passei por coisas piores do que cerveja quente. Recosto-me sobre a parede novamente e continuo a apreciar o cheiro decachorro sarnento da cidade morta que irrompe pela

    entrada de ar. Destampo a garrafa utilizando a camisa etomo a cerveja para esquecer tudo o gosto de merdafaz o cheiro no parecer to ruim assim.

    Ouo batidas na porta de metal do quarto.Provavelmente no foi a primeira, mas no devo ter

    ouvido as demais por conta do barulho quaseensurdecedor. A maaneta gira e um feixe de luz penetra no ambiente. Consigo ver apenas a silhueta dovelho dono do bar. Nossa! Que fedor! Acho que vouvomitar!, diz. Levanto a cerveja, como se estivesse propondo um brinde, para confirmar que estou vivo.Faa essa barba e trate de escovar os dentes, tenho um

    casamento para voc realizar em vinte minutos, padre.No falo nada, apenas me levanto vagarosamente e vouem direo pia. O homem, satisfeito pela minhareao, fecha a porta e vai embora. Vai ser mais umanoite daquelas. Espero no vomitar sobre os noivosdessa vez.

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    Encarnao

    Silencioso, eu dirigia at o ponto de encontrocombinado. Navegava lentamente sobre o asfalto,dividindo minha ateno entre a rua e a busca da estaoideal no rdio do carro. Pessoas transitavam em bandos pelas caladas, desabrigados aos perigos que seescondiam nas sombras. Eu no ligava. De fato, naqueleinstante no havia nada sobre a superfcie do meu

    pensamento, apenas lembranas esparsas do dia. Erauma noite na qual era necessrio sentir, seja o que fosse, para integrar o esprito tribal. O glido invlucroinvisvel era sustido pela atmosfera: o frio rasgavaminhas entranhas e eu nada podia fazer. Apenasaproximei meu corpo ao volante do automvel, tentando

    aproveitar ao mximo o ar quente dissipado pelo painel era minha forma de celebrar o frio.

    Reduzi a marcha e pressionei o p contra o acelerador,deixei para trs o semforo j vermelho e todas asmemrias restantes. Aposto que voc se sentiu timocom isso, disse a fantasmagoria do meu pensamento,

    encarnada sobre o banco do passageiro. Apenas sorri emretribuio. Acompanhou-me com uma gargalhadahistrica que ecoava dentro de minha cabea. Entreguei-me loucura, rimos em unssono insanamente enquantoeu continuava a pressionar o acelerador. Perdi a contados carros e dos semforos fechados que ultrapassei. Eu

    voava na contramo. Mantinha o olhar insano fixo no

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    asfalto enquanto era saudado pelas buzinas dos entesnotvagos. Elas soavam como aplausos para mim, eu era

    ovacionado pelo meu pblico. Imvel, o sorriso emminha face era um misto de loucura e felicidade eterna.Mas, num flash de lucidez reassumi minha mente earremessei a iluso contra a janela, despejando oespectro s ruas ptridas. Pisei no pedal do freio comvontade e ensurdeci com a sinfonia orquestrada pelos pneus. Tornei a acelerar, observando as marcas da

    freada pelo espelho retrovisor, e dobrei primeiraesquina, fugindo da inscrio da minha insanidade noasfalto quente. Desliguei o rdio e diminuiveementemente a velocidade. Respirei fundo algumasvezes na tentativa de domar meu esprito furioso.Quando me apercebi de total controle, retomei meu

    rumo em direo ao ponto de encontro combinado.

    Ah, o velho boteco. Alegoria dos subrbios, o barcompletava meu ser, preenchia minha alma ele eravazio de qualquer substncia. O odorretro emanava deseu interior, atraindo jovens, idosos e todos os demaisvermes rastejantes e repugnantes da cidade fria. Doce

    iluso da marginalizao. Eram todos excludos,vestiam-se e comportavam-se como tais. Os aparatostecnolgicos escondiam-se entre os bolsos, as jiascaras, mascaradas sob a falsa temtica punk, enfeitavamdesde suas faces at suas mos, diluindo todas asnuances, por mais sutis que fossem, em uma massa

    negra homognea. cone da subverso, a esttica de

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    trevas camuflava a vida e envolvia a todos na auramstica da noite. Seita da falsa perverso. Ningum ali

    ligava para mim. Eu no era apenas mais um no meio damultido, eu era a prpria multido. O meu vazio no osatingia, a minha indiferena no os alcanava. Nohaviam pessoas, mas sim clulas de um corpo nico. Ovelho bar era nada seno um grande organismo. E s alipodia praticar a existncia do meu ser em plenitude. Ali,e s ali, eu podia ser ningum.

    Eis que ela surge. Irrompe a noite glida e perfura aesttica da mediocridade sectria. Ousara ser algum nomeio de vermes e trouxera-me de volta a meus ps um mergulho profundo no meio do nada, uma viagemde volta morte. Do alto de sua sabedoria, tecia a nova

    iconografia tribal: trazia consigo a aniquilao, masfalava de deuses. Canalizei minhas foras na tentativade fechar novamente os olhos, mas ela insistia emmant-los abertos. Pedia-me para toc-la, para devor-la. Para onde quer que eu fugisse, estaria l. Perseguia-me em todos os universos, falava todas as lnguas. Osilncio j era impossvel. Eu estava acorrentado sua

    sombra em meio ao deserto. Ela lia a vida ali, decifravaa todos no exerccio da verdade simplria. Mas, averdade que me conseguia ler perfeitamente. Era a prpria fantasmagoria do meu ser, a mesma que euatirara da janela do carro horas atrs. Falava demais para fugir do vazio da noite. Recusava-se a celebrar o

    frio e insistia em manter a todos presos em sua

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    embarcao. O mundo lhe pertencia, e estendia-se atodos ao seu redor. O esprito ceifador da morte

    irradiava de seu olhar. Matara a todos, abandonando-meancorado no mar do vazio.

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    Abrigo

    Fui dormir tarde essa noite. No conte minha me queandei triste. Andei pela casa e apaguei as luzes. Fui at a janela do meu quarto e olhei os prdios l fora. Osilncio me permitia ouvir o barulho do vento, euconseguia enxergar milhares de luzes. Uma nuvempassava rapidamente pelo cu, fugindo da noite escura.O mundo s minhas costas simplesmente desabou.

    Restavam apenas eu, seguro no alto daqueleapartamento, e o mundo minha frente, caindo aospedaos.

    No haviam portas, s um par de janelas. Afastei-meum passo delas e percebi a distncia que me separava da

    vida. Olhos atentos transitavam pela noite nua. Me sentisolitrio envolto pela escurido, como se a cada ruadesbravasse um novo universo. Meus olhos dissecavamos detalhes da nvoa bem desenhada pela luz. Eu viaalm. Podia sentir o odor da umidade que recobria asruas imundas. Milhares de pessoas transitavam pelascaladas. Sem rumo, sem tempo e sem espao. Ali sua

    vida se resumia a um passo de cada vez. Milhares devidas, milhares de passos. O movimento era fluido,deixava resqucios da vida flutuando ao ar. Podia ver arespirao pesada, tocar resqucios de sombras. Euouvia coraes acelerados. Mas no ouvia o meu prprio. No consegui encontrar minha sombra, nem

    sentir minha respirao. A vida no havia penetrado

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    aquelas quatro paredes. De fato, jogava-se contra aminha janela, desesperada. Estendi minha mo e toquei

    o vidro. Podia sentir o desespero das almas perdidasalm daquele quarto.

    O ar tornou-se denso, senti as paredes mais prximas demim. Estava preso em um pequeno cubculo com uma janela minha frente. Permiti que uma lgrimaescapasse. Tomei alguns segundos antes de enxug-la.

    Senti-me sozinho no universo, preso dentro daquelas paredes que planavam sobre um mundo decadente.Podia ver os prdios desmoronando lentamente, comouma reao em cadeia. Um a um. Sentei-me contra a parede, estiquei minhas pernas e apenas observei aescurido engolir vagarosamente as luzes alm daquela

    janela. Tenho andado meio cansado, sem tempo pararespirar, com o corao partido. Milhares de vezes. Noconte minha me que tenho andado triste. Ela vai ficarpreocupada.

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    tempo passava rpido demais, e, ainda assim, levavatempo demais. A vida era muito longa. E muito dura.

    Ela vivia uma noite para esquecer a outra. Aprendera aser segura, mesmo que j no soubesse como era asensao. Era uma garota de ningum. Seu corao erade ningum. A verdade era sua, e somente sua. Noqueria compartilh-la comigo; eu jamais entenderia, ela jamais entenderia. Mas era seu direito deix-la l,adormecida. Estava cansada das respostas.

    A verdade? No era de ningum, nem mesmo sua.Havia perdido seu corao no meio do caminho. Haviadeixado seu corao no meio do caminho. Ele a tornavafrgil demais, e vulnervel demais. E, como a vida ingrata demais, assim ela se encontrava, sentada no

    mesmo velho lugar, mais velha, perdida, carregando acruz do tempo sobre suas costas. Frgil demais, evulnervel demais. Procurava outro corao. No umqualquer, apenas para chamar de seu. Tampouco umigual quele que deixara para trs, sabe? Digo,provavelmente ela no procurava algum como ela, massim quem a completasse. No precisava de quem lhe

    aceitasse tal como era; precisava, porm, de quem lheproporcionasse um recomeo.

    Trocamos um olhar, estava na mesa em frente minha.Talvez, naquele instante, ela tenha me lido melhor doque eu lhe lera. Talvez eu estivesse terrivelmente

    enganado. Mas, naquele olhar, confirmou tudo que eu

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    pensava para, em seguida, sorrir-me sarcasticamente.Levantou-se, empurrou a cadeira cuidadosamente para

    baixo da mesa e foi embora para nunca mais ser vista.Sabe, nem todo corao tem seu destino. Alguns foramfeitos para se perder por a. E o meu acabara de seperder.

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    Deserto

    Eu sou o homem que acorda no meio da madrugada.Sem ar. Sozinho. Envolto na escurido. Sinto o toquedas trevas deslizar suavemente por minha pele. Eu sou ohomem desesperado. Meus olhos viram o que ningum jamais viu, e choraram lgrimas que jamais algum hde entender somente para serem devoradosviolentamente pelo caos. Contemplo minha alma

    esvaecer em cada suspiro alongado, desprendendo-seritmada por minha respirao pesada. Estou cego. Mas,vejo a vida como nunca a vi antes. Milhares desensaes emanam do calor da noite. Sentimentosreluzem ao ar, alguns vibrantes, outros apagados.Abandonado a um nico sentido, consigo tocar o medo

    e a insegurana que circundam meu corpo e o recobremcom essa mortalha. A vida esvai-se por entre meus poros, onde rapidamente se aloja o calor liberto ao ar.Percorro cuidadosamente meu corpo com a ponta dosdedos preciso certificar-me de que estou vivo. Notominha pele spera, enrugada. Descubro o tempo. Eu souo homem velho e solitrio.

    Com as trevas, sou um. A escurido obnubila minhaviso e desnuda o real minha frente. Sinto-me vazio. Otempo pra e agora posso ver com clareza. Consigotocar minha dor, desvencilhar-me de todos ossentimentos. Eles repousam adormecidos no ar. Posso

    transitar entre eles. Sobre o esqueleto noturno da vida

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    jazem almas efmeras, vorazes a vida irrompe o caose devora todo o sentimento sepultado na atmosfera,

    devolvendo-lhe as sobras. Evanescente, o real no querdizer mais nada. s prximas vidas, cegas, restamsomente as sobras do sentido, impresses. Alimentam-se dos resduos e consomem as fantasias desgastadas,sedimentadas sobre a noite perptua. Um caminhocircular, vicioso. Passo por entre a solido e a confusoque h muito habitam meu ser, enxergo-as com

    acuidade. Esse tempo todo, apenas me alimentei daebulio das sobras da vida abandonadas ao ar. Todomeu sofrimento vazio de sentido. Sempre foi.Consumi inconscientemente o resto da vida urbana sonhos e projees vazias. Na ferocidade com quesempre avanara sobre todos esse sentimentos, lancei-

    me eternidade sem perceber. Embebi-me no vazio e nasolido.

    Recomeando o ciclo, a vida cega consome o amanhnum mpeto de fria. Ele jamais se tornar presente, pois sempre haver um novo dia para ser devorado.Assim como esse nico instante ao qual se resume

    minha eternidade; tudo que tenho, nada mais. O hojeest fadado morte, pois nunca se efetuar haversempre uma prxima respirao, um prximo obstculoa superar, uma prxima milha a correr e uma prxima pessoa a amar. Nossa vida intangvel. Os segundosque passam so abandonados ao destino e, no momento

    seguinte, so histria. So vida sedimentada,

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    lembranas de um passado obscuro. Tudo que fao olhar pra trs e sentir que o tempo passou rpido

    demais, e que a vida me foi cruel demais. Tenho medo.Preocupo-me com o amanh. No com o hoje, nuncacom o hoje.

    Abrao o tempo eterno. Estou perdido na madrugada de fato, estou h tanto tempo acordado que j no faoideia de que horas so. Sinto a vida esfriar e meus olhos

    fecharem-se. Minha respirao flui harmnica, leve.Abandono eternidade minha vida, meus deuses e meusdemnios. Todas as expectativas, todos os sonhos.Tenho medo de adormecer e perder esse instante. Tenhomedo de acordar e encontrar o amanh. Agora souapenas mais uma viajante solitrio da noite, correndo

    uma milha de cada vez, superando obstculo porobstculo e incendiado pela paixo efmera, eternaenquanto durar. No tenho nome, nem tempo, nemlugar. Eu sou o homem deserto.

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    Soledade

    A cidade chora e escorre a imundcie atravs do cu.Inevitvel morte: a mstica e a iluso que revestem anoite eterna evaporam-se perante olhos abertos edesdobram-se nas ruas encardidas da manh cinzenta.Escorrendo por entre ruelas e becos sujos, a gua pluviallava a alma da cidade nua e embala o sono profundo doscorpos sem vida. Fatdica morte dos sentimentos e

    apoteose das sensaes, nem isso, restam apenas asruas. Ruas imensas. Imensas e vazias. Ao testemunho daviso urbana resta somente o silncio. Um mgico foraassassinado essa noite, devorado at as entranhas pelaescurido voraz. A vida dissipa-se dentro dos inslitoscaminhos noturnos e mergulha na ausncia eterna. Os

    braos e as pernas de Joo da Silva, msico e estudante,foram encontrados s margens do canal do porto pelamanh. Seu corpo jamais fora achado.

    Amigos diziam que ele criava a vida com seu violo ecom sua poesia sua mgica, no entanto, no lhesalvou a prpria vida. Quase conseguia rir com a ironia

    da situao. A verdade pura: eu no conseguia vermstica nenhuma ali, somente braos e pernas, jeanscobertos de sangue e uma imitao barata de um Rolexno pulso direito. Recoloquei o capuz, apertei a capa dechuva e, no meio daquele lamaal, abri caminho at aviatura, esgueirando-me entre os demais policiais.

    Enquanto investigavam o local, eu terminava meu caf.

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    Sbado dos sonhos. Observava fixo o fluxo do canal,acompanhado pelo barulho do choque da chuva contra a

    lataria do carro. No havia encanto nenhum na manhfria. noite, as sirenes so o canto proftico daabnegao do real. Um carro cruza a avenida centralnum mpeto de fria, ultrapassa os semforos vermelhoscomo um relmpago. O diabo insano ao volanteregozija-se num xtase espiritual e atinge o pice davida ao chocar-se contra um nibus distrado numa

    esquina. O claro de luz revela manh a cidade vazia,cheiro de carnia queimada cuidadosamente depositadaentre a sucata do automvel, encharcada pela gua dachuva.

    A solido imanente vida, a morte da to chamada vida.

    Da viatura, vejo o amontoado de giroflex prestarcondolncias finais ao nada. A cidade penetra todos osinterstcios da vida. Da viatura, no sinto nada, mas ficotriste com o que vejo. Perdo os pecados do diabohumano, somente para poder dar mais um gole no caf,dessa vez sem culpa. O pior de tudo saber que, naverdade, nem triste estou. Esboo o resqucio de um

    sentimento para provar a mim mesmo que estou vivo,que sou humano em vo. Um imenso nada penetrameus poros. A falta da vida sedimenta-se em minhaalma. E, justamente quando acho que me falta o ar prarespirar, noto que exatamente por ter ar demais. Assensaes, conheo todas elas: tal qual o frio ou o calor.

    Sob essa carcaa jazem as ruas encardidas, as mesmas

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    as quais revestem-se de neon e fascinam a vida urbanadurante a noite.

    Silncio. Apenas observo e escuto o mundocuidadosamente. Deso do carro e sinto a chuva molharmeu rosto para me certificar de que ainda sou de carne.Aproximo-me do ponto de impacto e sinto o cheirofresco da morte misturado com o forte odor de uma vidaevanescente que impregnara o ar no momento final da

    coliso. O pice da vida. Entendo como se sentia odiabo destemido dentro do carro: ele era exatamentecomo eu, fugia do imenso nada que habitava a suasombra, procurando um suspiro de vida autntico acombusto de todos os sentimentos na exploso devitalidade emanante do choque do velho Camaro contra

    a lateral do nibus Mercedes-Benz. Um nico instantevivo melhor do que uma eternidade inteira vagando sluzes da noite. A vida fatal.

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    Pornocracia

    So por volta das trs horas e a banda toca loucamentena sala do meu apartamento, despindo o vu da noitediante de mim. Um soul, um jazz, um blues, seja o quefor, um misto de melancolia e paixo. Um raio de luzincandescente desliza suavemente sobre a superfciecristalina de uma taa de vinho, dissolvendo meu olharno encontro mgico entre suas provocantes cores e as

    nuances gneas do fogo na lareira. No preciso dequalquer iluminao, eu a vejo em qualquer lugar, emtodo o lugar. Refletida nas janelas, nos copos, perdidano fundo dos meus olhos. L fora, a vida dorme. Almascadentes vagam sem destino pela eternidade da noitefria e deixam a sensual aura noturna somente para os

    meus olhos. Efervescncia de todos sentidos o vinhotinto, suave e perfeito dentro do meu copo agua meupaladar; o ritmo leve e romntico do soul me chega aosouvidos e acende o calor da paixo; o olhar se perde naescurido da noite medida que o tato e o olfato levam-me ao xtase, deslizo minhas mos pelas curvas de seucorpo e inalo o doce perfume que emana dos poros de

    sua pele. Afundamos no sof de couro como um corpos. O tempo pra num segundo infinito e, num abraointerminvel, colo seu corpo suado ao meu. Um brinde noite.

    Sua respirao ofegante ao p do meu ouvido leva-me

    loucura. Os gemidos abafados, quase chorados, so

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    envolvidos pela msica alta que a vitrola dissipa naatmosfera. Somos abandonados madrugada como

    criminosos sutis: o segredo e a cumplicidade pemnossas vidas em combusto, inscrevendo o desejo comomarcas em nossas peles. O desejo da ordem dosegredo, o silncio da conivncia instiga a iluso e afantasia, transcende a carne e transforma a paixo nopecado da alma, o crime perfeito. Ns nos conectamosna intimidade que decifra os seres inextricveis.

    Encontro sua boca com meus lbios midos e consumotoda a essncia do seu ser. Perdemo-nos na obscenidade,no sentimento lascivo da antecipao, que esgota as possibilidades do prazer em nossa fico secreta. Seusolhos dolorosamente fechados revelam a entrega, elasucumbe ao desespero e dilacera minhas costas com

    suas unhas afiadas. Renunciamos s nossas identidadesem nome de nossa unio. Meu sangue profano escorreem suas mos, tatuando a beleza que emana de seuesprito em minhas entranhas. Eu a possuo como umanimal, devoro seus sentimentos e denuncio aemergncia do agora, aniquilando seu passado e seufuturo, exaurindo qualquer mulher que no aquela ali presente, nascida sob coliso da dor e do prazer que aprendem ao trgico instante do presente.

    Ela me encara com olhar cndido. Seus olhos dizem-mecoisas, revelam-me tudo. Tenho a certeza de ela estarinteiramente nua em minha frente de corpo e alma.

    Fortuitamente, corro a ponta dos dedos por seu rosto

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    macio, terminando por desliz-los entre seus cabelos.Afasta os lbios dos meus, fita meus olhos e sorri-me o

    delrio de uma noite inesquecvel. Perco-me numapaixo totalizante, extrema num desejo mais alm dequalquer paixo. Ao seu lado, sou. E somente assim.Sinto com seu toque, vejo atravs de seus olhos,apaixono-me com seu beijo. Sem ela, nada resta. Deito-a gentilmente sobre o couro macio do sof enquantoassisto ao fogo consumir lentamente a moblia do

    apartamento e pulverizar nossos corpos. Num ltimo beijo, sussurra ao p do meu ouvido seu desejo final.Pergunta por meu nome. Respondo-lhe com o mesmobeijo, guardando nossas identidades na noite para todo osempre.

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    Nota de agradecimento

    A chuva torrencial lava a alma da cidade afora. Gotasdgua chocam-se violentamente contra as janelas domeu apartamento e escorrem suavemente atravs dovidro, somente para serem levadas pelo vento,desesperadas. Escuto o locutor anunciar a piortempestade na cidade dentro dos ltimos dois anos.Ventos fortes e queda de temperatura, diz, evitem

    sair de casa. Sua voz d lugar a uma velha violacountry embalada por um teclado. A msica me fala para acreditar em deus, para ter f. Ouo o ventosussurrar e, num quase-suspiro, abandono a ele minhaf. Sinto o frio enregelar meu corpo. Vi passar cadasegundo desses dois anos, noite aps noite. Ento, tudo

    bem... acho que posso acreditar em deus por hoje.Vejo o cu logo minha frente, chorando. Por um brevemomento, o rdio silencia. H somente a tempestade. Eo barulho da chuva me faz lembrar de como ela meensinou a ouvir. Eu lhe falava de sonhos, h um diamelhor aps a noite fria. Um dia melhor que nunca vi

    chegar; do seu lado vivi apenas a noite fria. tudo quetemos dizia. E era tudo que precisvamos. A mesmanoite que jamais deixamos acabar, hoje, o que meresta. Mas, dela, somente a perene escurido e aslembranas. Do alto do meu saber, tornava-meinsignificante quando confrontado por toda sua

    vitalidade. Teorias rasgadas, lavadas pela tempestade.

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    De nada valia minha objetividade, jamais pude parar prarespirar ou sequer pensar meu destino. E, com o tempo,

    aprendi a viver assim.Existe um homem melhor a. Eu nunca haviaacreditado verdadeiramente, mas me reconfortava ouvirisso. Isso e tudo mais que ela dizia, deitados no sof, perdidos nas luzes dos prdios acesas, a ribalta damadrugada. No havia mais nada ali, apenas duas vidas

    efmeras e evanescentes, dissolvidas e unidas numaefervescncia de sentimentos. ramos passageiros deuma noite sem fim. Uma eternidade em um momento um nico segundo ao qual ela me ensinou a eternizar, pois sabia que amanh no haveria mais nada. As pessoas so fugazes. Voc fecha os olhos e as perde.

    Elas vo embora, mas deixam marcas. E so essasmarcas que nos fazem ser quem somos. Somos um pouco de cada pessoa que passou por nossa vida. Umsorriso ou at mesmo um olhar, quem sabe? Amanh isso que vai resumir toda uma histria. E isso quequero levar comigo.

    Mas, no sei ao certo se ela vivia para amar ouprecisava amar para viver. Era assim, enlouquecida, quecorria para os meus braos, chorando ou rindo, numaexploso de vida. E, foi assim que ela me deixou. Hojeo amanh chegou. Porque eu parei pra pensar nele. Enesse instante percebi que voc no deixou em mim

    sequer uma marca. Todo o esforo que eu fazia para te

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    conquistar num dia, precisava repetir no outro, e nooutro, e no outro. como se eu acordasse ao lado de

    uma pessoa completamente diferente todos os dias.Saiu pela porta, levando o homem melhor que havia emmim.

    Se a vida sobre carregar marcas, ela deixou em mimuma cicatriz aberta. noite, voltam os olhares e ossorrisos. Levei dois anos, mas acho que finalmente

    compreendi o que ela quis dizer ao me deixar. E enfimaprendi a ver o mundo um pouco como ela. Pelo tempoque caminhei solitrio na chuva, hoje posso assistir tempestade de casa. Mas, me pergunto se estscaminhando por essa tempestade ou se tu s a prpria,batendo minha janela, trazendo tona a noite e todas

    essas lembranas. Por onde andares, com quemestiveres, essa a nota de agradecimento ao final domeu livro. Livro que tu escreveste. Muito obrigado.

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    No tente. (Charles Bukowski)

    G. T. 2009

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