A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento ...

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Universidade do Minho Escola de Direito Telma Sofia Martins Ribeiro janeiro de 2017 A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento de inspeção tributária e o processo penal Telma Sofia Martins Ribeiro A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento de inspeção tributária e o processo penal UMinho|2017

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Universidade do MinhoEscola de Direito

Telma Sofia Martins Ribeiro

janeiro de 2017

A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal

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017

Telma Sofia Martins Ribeiro

janeiro de 2017

A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal

Trabalho efetuado sob a orientaccedilatildeo daProfessora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro

Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Mestrado em Direito Judiciaacuterio

Universidade do MinhoEscola de Direito

ii

DECLARACcedilAtildeO

Nome Telma Sofia Martins Ribeiro

Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom

Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute

13072017

Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro

Ano de conclusatildeo 2017

Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio

Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE

INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE

COMPROMETE

UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________

iii

AGRADECIMENTO

Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente

por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e

empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade

profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta

monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento

cientiacutefico

Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou

para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um

muito mas muito obrigada

Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e

para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos

momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que

idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem

Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que

sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A

minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para

mim

iv

v

RESUMO

O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo

penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute

legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual

penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente

reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo

legal de cooperar no procedimento tributaacuterio

O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do

nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas

nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos

constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de

natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do

estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso

de violaccedilatildeo do princiacutepio

Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em

mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo

analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees

acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em

que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento

ilegiacutetimo desse dever

Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente

colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e

jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens

e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito

normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria

inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute

obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das

informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres

de colaboraccedilatildeo

vi

vii

ABSTRACT

The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of

information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under

and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there

is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not

contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo

tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax

procedure

The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur

se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content

historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of

Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions

and finally the legal consequences in case of breach of the principle

Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax

matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the

framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical

implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the

consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty

Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed

of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence

intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out

to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur

(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed

solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings

(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information

tax inspection under collaborative duties

viii

ix

IacuteNDICE

RESUMO v

ABSTRACT vii

SIGLAS E ABREVIATURAS xiii

INTRODUCcedilAtildeO 17

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare

39

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43

32 Fundamento constitucional de natureza processual 49

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51

c) A garantia de um processo equitativo 55

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade

normativa e validade material 65

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98

44Dever de advertecircncia 101

x

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e

obrigaccedilotildees acessoacuterias 109

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio

da colaboraccedilatildeo 118

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137

xi

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a

inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria 154

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176

REFLEXAtildeO FINAL 183

CONCLUSOtildeES 185

BIBLIOGRAFIA 191

JURISPRUDEcircNCIA 203

xii

xiii

SIGLAS E ABREVIATURAS

ss ndash seguintes

Ac ndash Acoacuterdatildeo

AR ndash Assembleia da Repuacuteblica

AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria

ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

BCE - Banco Central Europeu

CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos

CC ndash Coacutedigo Civil

CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios

CE - Comissatildeo Europeia

CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem

CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios

CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis

CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios

CP ndash Coacutedigo Penal

CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo

CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal

CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio

CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo

DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees

DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo

DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria

DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

xiv

DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros

DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras

DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras

DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais

DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico

DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais

DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

DL ndash Decreto-Lei

DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais

FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional

GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland

GNR ndash Guarda Nacional Republicana

IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas

IRA - Irish Republican Army

IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas

IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado

LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria

MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico

ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas

PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos

PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila

seacutec ndash Seacuteculo

TC ndash Tribunal Constitucional

xv

TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia

UE ndash Uniatildeo Europeia

UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes

xvi

17

INTRODUCcedilAtildeO

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do

aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao

processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e

que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem

as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da

monografia que nos propusemos a realizar

Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso

quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes

tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do

processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento

administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria

Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de

benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo

tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O

problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado

perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo

Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja

a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer

elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a

18

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos

solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de

colaboraccedilatildeo

Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis

a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a

intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil

atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados

como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje

consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em

ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que

tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute

neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial

relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia

a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto

Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo

principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que

ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute

em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como

eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees

tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL

nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo

Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na

resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um

estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo

especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada

extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute

sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas

e praacuteticas que os mesmos comportam

1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47

19

O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta

documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente

indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que

podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo

auto-inculpaccedilatildeo

ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo

interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como

procedimentalrdquo2

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou

inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com

a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria

para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica

acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo

person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e

Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do

princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina

e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual

penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz

naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou

direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de

inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5

2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45

3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132

4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como

decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos

oportunidade de desenvolver no seio da monografia

5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

20

O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do

nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio

mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido

tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)

Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no

ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao

conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes

Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta

um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as

questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez

que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as

temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o

direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos

constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta

determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda

parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial

no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito

entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e

internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico

21

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare

O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica

de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem

diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo

processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido

Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se

conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como

arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7

FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o

estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos

primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres

ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])

autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua

decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se

maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual

Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o

arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a

6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424

7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao

interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura

superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa

a favor da pessoa interrogada (arguido)

8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p 9

22

todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento

dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que

tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao

respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido

enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede

a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido

declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da

sua livre personalidade

Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do

nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo

autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria

incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir

para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no

que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo

em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O

que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo

seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14

9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430

10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua

proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se

accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur

11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131

12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham

exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo

reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente

prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia

MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico

de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal

Coimbra Almedina 2010 p118

A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido

A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise

14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121

23

COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o

cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees

de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam

valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir

toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave

superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no

essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana

(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta

senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de

declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo

penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo

arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)

No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo

positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa

o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si

imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade

de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema

pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17

Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser

feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado

(art61ordm nordm1 ald) CPP)

O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo

contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio

de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas

seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou

15 Idem ibidem pp117-120

16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual

Penal) pp74-80

17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121

24

apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de

aplicaccedilatildeo

Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que

ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar

ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse

motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo

contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo

Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao

silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por

privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe

sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a

pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que

contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a

extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios

tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que

suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132

19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo

versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In

BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da

prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104

20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia

Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular

que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo

penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo

21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS

Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e

Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da

proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar

para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a

declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor

de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo

25

precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o

princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida

reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas

neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas

A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de

modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex

buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua

maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair

frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a

recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em

autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio

nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de

prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos

aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de

ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros

O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e

pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute

somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo

calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional

22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127

23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de

2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em

httphudocechrcoeint (link) [em linha]

24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA

etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa

que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo

25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21

26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo

de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao

silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange

o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a

colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o

meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes

de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido

26

abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de

um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja

todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize

vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo

Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido

estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo

O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar

para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a

prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29

Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute

mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer

calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir

o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender

exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao

silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute

vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor

incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as

manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou

comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo

com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)

eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo

27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf

Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da

Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de

incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de

manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em

linha]

30 Op cit p 52

31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa

Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136

32 Idem ibidem

27

LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera

que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de

uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao

silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e

dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena

de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos

cidadatildeosrdquo 33

Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido

como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade

para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o

escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir

quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui

objecto do processo34

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo

do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais

concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas

inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e

desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)

Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de

matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da

verdade material

33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso

34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27

35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)

p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op

cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133

36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss

28

A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal

inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais

de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do

indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava

como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias

processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe

sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total

impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos

probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)

Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime

disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem

admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura

Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo

penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII

e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)

O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e

desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo

do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA

RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente

o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse

conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento

da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a

Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal

procedimento obter a confissatildeo do acusado

Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por

Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici

37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade

material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos

representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos

que lhe satildeo imputados

38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61

39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35

29

Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos

processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com

verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do

lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em

submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um

segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o

considerava culpadordquo40

Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do

Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O

procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi

aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se

serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas

No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era

a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova

central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste

paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse

inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a

verdade que incidia sobre o acusado

Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre

Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a

alterar-se

No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos

naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se

constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a

puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer

medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se

40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137

41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62

42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64

30

Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o

indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo

inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu

direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal

torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa

espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas

consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria

afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval

Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade

julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo

necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje

ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)

eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil

CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal

apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-

se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema

por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes

estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los

intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los

interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio

cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio

del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto

del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por

parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de

investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial

que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y

de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque

soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44

43 Idem ibidem

44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1

ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122

31

Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de

armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a

autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as

partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas

caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos

assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash

que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio

PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45

Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra

com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-

Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e

aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental

reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)

Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria

na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare

45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico

desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado

contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador

do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a

condenaccedilatildeo do acusado

46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we

send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma

de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36

47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era

influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores

onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os

procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o

processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que

metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute

acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se

tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou

incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute

incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer

confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas

(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93

32

O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que

surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em

instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do

arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu

surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao

crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio

Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o

mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu

aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a

partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo

de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua

vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs

aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o

indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo

Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito

que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their

defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este

princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da

obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the

Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with

respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo

48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37

49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123

50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100

51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio

encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento

que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se

verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente

e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o

arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este

panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado

porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39

33

Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos

em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da

assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior

conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)

Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em

documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo

mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em

17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment

(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que

ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O

entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de

duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo

do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54

Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito

contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o

poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de

declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes

de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da

responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao

suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a

estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido

A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos

tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia

[em linha] Disponiacutevel em

httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075

ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido

que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte

porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no

sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22

53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104

55 Idem Ibidem

34

mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da

doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees

voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees

forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession

doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar

a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial

O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se

destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-

incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia

americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash

tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado

Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos

estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia

ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com

vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente

admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e

56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]

Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)

por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio

policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se

fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em

audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado

A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do

advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal

do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo

da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes

e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo

ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o

perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais

de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo

57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os

direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114

58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a

guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo

tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio

deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode

voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op

cit pp 104-114

35

portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como

uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito

o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais

sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the

determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following

minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess

guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o

nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de

fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP

mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um

processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com

a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo

14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de

uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60

Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do

direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de

1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de

julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61

O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas

limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo

59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de

um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente

todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o

conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo

numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo

acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm

devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo

60 Idem ibidem

61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14

36

pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929

acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu

incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves

segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode

evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu

pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao

art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de

responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63

ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao

silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse

remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo

de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito

pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como

demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65

A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um

controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu

Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute

verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa

inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade

de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de

proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao

silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da

proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66

62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933

Volume 4 pp158 e ss

63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160

64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem

autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa

mesma valoraccedilatildeo contra reum

65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13

66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14

37

Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a

obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido

(art342ordm nordm2 CPP)

O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a

oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na

redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao

arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais

Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta

atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves

perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes

criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas

declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia

previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees

previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal

O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos

antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de

defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto

pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs

O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres

processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo

responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e

sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)

comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

68 Era o seguinte o teor do preceito

ldquoArtigo 342ordm

1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de

nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo

2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal

que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal

3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer

incorrer em responsabilidade penalrdquo

38

exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em

responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)

Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as

garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de

que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70

para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos

direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo

penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao

silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de

inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da

questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus

antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao

silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido

O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo

art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a

obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o

arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de

prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo

se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido

poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu

tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos

referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda

mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda

natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a

comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72

69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a

resposta com verdade sobre os antecedentes criminais

70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm

do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)

pp105-106

A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma

presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA

39

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se

ipsum accusare

Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo

tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs

Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73

Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio

entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for

retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)

para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar

declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as

garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que

constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do

arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)

72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os

autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro

interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil

mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo

Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e

ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime

prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes

aos antecedentes criminais

73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea

comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al

detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2

Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la

acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba

pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos

en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo

74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos

entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo

75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por

comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute

mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos

El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute

justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda

especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en

ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la

autoricerdquo

76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a

presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of

War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in

40

estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a

autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo

expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma

uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo

impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a

doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza

constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em

geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79

A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees

legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do

princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos

anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o

direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao

arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm

nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o

legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e

any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property

be taken for public use without just compensationrdquo

77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125

78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)

p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil

Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado

princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos

69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo

79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20

81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder

a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles

prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for

necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia

desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico

nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os

factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a

recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]

41

perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do

silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como

forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei

processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de

advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do

arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos

previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas

obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que

ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos

interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada

natildeo podem ser utilizadas como provardquo85

O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves

testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando

alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de

responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento

que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito

legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo

interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo

de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86

Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia

natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)

donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio

83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido

84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou

um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se

necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA

constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do

defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial

em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de

poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo

85 Itaacutelico nosso

86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as

pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si

mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20

42

Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo

tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais

limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que

natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios

de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de

caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana

natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias

processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no

segundo pode sofrer limitaccedilotildees

A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira

vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos

fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal

(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na

doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente

processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios

nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de

defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio

do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou

ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da

estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a

maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores

optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas

87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) p58

88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123

89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595

90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) pp69-72

91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ

(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28

92 PALMA Maria Fernanda op cit p103

93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit

(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss

PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133

43

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)

A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos

fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da

personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente

na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de

personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante

GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95

2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo

violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes

1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal

respeitaacute-la e protegecirc-la

19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia

O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento

da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de

defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito

geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de

prova contra si proacuteprio96

A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana

justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial

de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a

impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por

consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a

mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo

94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im

Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de

entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63

95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die

Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist

unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem

Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa

96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125

44

indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por

ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de

personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do

legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera

indisponiacutevel da liberdaderdquo97

ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa

do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto

componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana

Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias

constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as

garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal

A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa

(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa

possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o

seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito

fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm

CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O

silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo

art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza

aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e

aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo

Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de

claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros

seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa

do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se

indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido

97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5

nordm19 (1987) p186

98 Op cit pp81-91

99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2007 Volume I p516

45

defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio

na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da

dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos

cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis

infraconstitucionais que a violem

Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia

uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do

ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do

exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o

fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder

puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo

princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um

conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do

arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101

A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade

pessoal constitucionalmente previsto

O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a

impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis

degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da

pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte

autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a

Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que

o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)

primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo

objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da

dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da

100 Op cit p 90

101 Op cit p 91

102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos

fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal

direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198

46

respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana

enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as

praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da

qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios

racismo)

Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser

ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos

crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes

de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou

enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave

integridade fiacutesica e moral da pessoa)104

O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa

mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a

respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder

legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via

da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da

investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou

moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash

art32ordm nordm8 CRP)

A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de

tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura

como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de

tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado

senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento

103 Idem ibidem p198

104 Idem ibidem p454

105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo

intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a

punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira

pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um

agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se

considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)

47

[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o

tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil

descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito

menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes

dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada

accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se

distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106

Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal

mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas

obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a

impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no

processo criminal107

Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir

fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus

corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana

integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato

do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur

que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na

imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos

parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do

processo equitativo do que com as restantes109

Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a

autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de

conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo

no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97

107 RISTORI Adriana Dias Paes p76

108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do

art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal

Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)

109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199

48

arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de

vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode

o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do

processordquo111

Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da

pessoa humana

Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana

e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto

da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser

meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio

ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu

fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade

humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de

Direitordquo112 113

Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a

dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana

justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual

e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo

contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur

comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da

plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem

como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como

111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41

113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO

DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade

humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo

efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para

o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas

humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um

Estado de Direito Democraacutetico

49

objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos

processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114

32 Fundamento constitucional de natureza processual

Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um

fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que

a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito

Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas

relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente

processualrdquo116

Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores

divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem

entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da

estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com

aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser

ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de

defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria

Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos

nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial

114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores

desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo

tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64

116 Idem ibidem p63

117 Idem ibidem pp68-69

118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e

3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial

uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez

referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo

Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo

50

declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos

seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente

enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo

essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como

lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal

admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que

adiante aludiremos

MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo

da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de

defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a

partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de

natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao

arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash

ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova

De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute

indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao

silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm

nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o

tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a

exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza

processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva

119 Op cit p103-104

120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais

Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio

Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da

estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e

de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio

e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio

prejuiacutezordquo

121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo

prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre

noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de

Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178

51

legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e

instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos

direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a

defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou

conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao

silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do

processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe

permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos

processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo

queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de

constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias

que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer

forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido

deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de

defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do

arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia

Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional

do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo

pode ser forccedilado a incriminar-se

Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido

se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como

conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em

detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do

122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516

123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p28

124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430

125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)

52

processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de

custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo

de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento

criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o

estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126

A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de

tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro

sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de

um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social

juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute

impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da

presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se

impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a

acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo

da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado

como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e

equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128

O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o

processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo

nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a

sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo

A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do

arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre

participaccedilatildeo

O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais

Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos

126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518

127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60

128 Idem ibidem p59

129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p9

53

direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos

nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual

eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm

nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios

admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua

posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5

CRP)

A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do

arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto

ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo

princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos

os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a

utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua

decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de

uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante

a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa

a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e

sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das

declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como

fundamento do direito ao silecircncio

Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo

prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar

satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do

processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo

130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429

131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf

VILELA Alexandra op cit p95 e ss

132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a

tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo

134 Op cit pp132-133

54

pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser

encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a

presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de

que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo

eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio

Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se

autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo

contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em

desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado

com a presunccedilatildeo da inocecircncia136

A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e

do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de

comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se

autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de

inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo

ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees

susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao

arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que

serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados

com a sua culpa

135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de

inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016

Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25

55

c) A garantia de um processo equitativo

Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma

causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo

equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave

justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave

sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute

especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e

art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao

processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia

do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do

proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel

As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm

quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due

process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de

saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a

obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser

privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due

process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele

proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente

estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas

ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo

legal dos mesmos processos

Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na

Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo

legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas

138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP

139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina

2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando

estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de

exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal

a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado

segundo princiacutepios de justiccedila)

140 Idem ibidem paacuteg493

56

tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos

vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual

Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma

decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma

decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o

direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de

pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e

independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual

conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o

direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda

o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela

contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e

contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado

deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees

judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das

sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados

em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do

processo142

E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito

criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente

Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez

tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o

contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e

da noccedilatildeo de processo equitativo

No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no

art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel

com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave

instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo

proibiccedilotildees de prova entre outras

141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415

142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501

143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150

57

Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo

estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave

dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do

contraditoacuterio144 e a igualdade de armas

Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do

processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo

No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o

nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez

eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao

silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que

demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes

Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147

No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais

franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria

(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no

estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos

de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca

domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos

no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas

autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular

de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea

qualquer extrato bancaacuterio

Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos

documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo

garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido

144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os

testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit p523

145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

58

sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo

montada contra si

O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a

condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora

natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os

documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele

proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que

as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo

podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em

permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1

da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a

presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149

No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo

probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo

tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)

por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde

estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do

IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no

momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio

ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido

advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas

consequecircncias

Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos

juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do

exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto

natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida

que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient

lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave

fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient

justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point

contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

59

satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo

de processo justo150

No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi

chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo

(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash

Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise

mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos

interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no

procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal

cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia

(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num

processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas

atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa

medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152

Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela

sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo

como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o

enquadramento nas garantias de defesa

150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police

questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair

procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom

151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v

United Kingdom

152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para

prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125

60

61

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare

Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur

(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da

sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como

corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao

silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do

nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas

Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma

visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito

por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees

doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees

potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de

154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos

do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da

Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais

tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29

155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss

156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a

auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-

43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins

SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica

Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44

Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer

afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo

157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel

em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser

condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g

documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou

ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo

Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

62

documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio entre outras

O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar

a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo

tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o

arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a

questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua

responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao

silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo

representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159

CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos

e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito

brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer

caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas

capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a

impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a

intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da

reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de

tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar

juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do

acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-

incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova

de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria

[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do

158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United

Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused

person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to

incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo

159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30

160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo

significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos

normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma

63

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se

relacionemrdquo161

Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta

posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito

desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um

processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas

preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de

fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente

obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma

colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162

A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute

comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a

concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do

conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute

autoincriminadoras

O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o

arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias

probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado

(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de

sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163

Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou

meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente

imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume

natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos

uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito

interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos

atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material

ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar

(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo

161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43

162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21

64

ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio

uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito

Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de

recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em

muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos

limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de

coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede

constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do

conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de

outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz

social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer

limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em

diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado

comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse

na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente

e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver

Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts

that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v

United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right

to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46

Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of

inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do

Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295

de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos

todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz

op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm

142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-

dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio

especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de

Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash

Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo

tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e

garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e

nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74

165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias

no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406

65

Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal

validade normativa e validade material

A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre

validade temporal validade material e validade normativa166

A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo

o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao

Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167

Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu

dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos

166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072

167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana

da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito

ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser

assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel

da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista

civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese

o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante

qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito

vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa

resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no

processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um

dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer

espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos

sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio

geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os

procedimentos criminais independentemente do tipo de crime

168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico

Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183

Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente

influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal

constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como

constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja

inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem

sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH

admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no

66

anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os

direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende

esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo

equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa

criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no

encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos

demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no

processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a

acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de

ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios

Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a

dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal

todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando

formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de

haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias

incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo

de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de

um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH

no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o

conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para

acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeordquo

169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland

SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a

witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged

was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1

That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It

may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal

offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo

No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa

criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos

alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que

se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na

substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo

67

aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de

lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta

primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas

formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa

seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)

segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da

sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o

caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e

repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo

apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza

criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do

criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173

Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se

intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo

autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto

mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de

validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo

O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode

ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a

uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um

crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua

constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the

provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both

concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be

examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States

The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would

generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks

incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a

punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at

stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all

require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the

subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo

173 COSTA Joana op cit pp127-128

174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23

68

art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste

caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da

anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa

relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou

que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o

caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito

ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)

Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes

forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo

de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no

art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes

satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua

responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido

tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem

Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se

deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual

responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe

forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em

falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente

poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os

parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele

viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal

por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada

nos termos do art 364ordm al b) do CP

Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash

temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento

eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no

decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da

sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio

do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188

176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o

caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

69

autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da

monografia que nos comprometemos a responder posteriormente

Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da

personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas

fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma

perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a

comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio

Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos

da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas

na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu

estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-

se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou

quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178

O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta

determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise

sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o

caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o

direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias

de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova

confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo

que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo

MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126

178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o

acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo

179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo

180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao

silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as

manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP

que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais

existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da

atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e

art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de

base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio

estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da

70

Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a

possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa

verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS

ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el

procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay

que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega

sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por

supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado

p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico

como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute

mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido

teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado

psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como

cuando se lo confronta con un testigordquo

Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser

conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser

considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou

quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade

livre do arguidordquo183

Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm

CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do

CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas

de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]

sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9

do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida

de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135

181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133

182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees

prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames

(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do

Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito

ao silecircncio

183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176

anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430

71

lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a

diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou

obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser

compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo

Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas

legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando

alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas

normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias

ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta

questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da

atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo

se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da

personalidade187

184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP

185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber

se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e

aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)

encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a

recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos

parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao

referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a

utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo

seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo

Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de

amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm

0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta

mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias

entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade

judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode

por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo

Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser

aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado

186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo

187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros

2003 I Volume p870

Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a

72

Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da

prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei

Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura

coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que

devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da

integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento

delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas

corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora

facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com

o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para

obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de

sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de

alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda

que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito

Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de

novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova

mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo

nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da

sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados

elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser

assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm

CPP

Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a

possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam

cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o

processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a

busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este

todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz

(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo

188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit

p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido

nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico

Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora

descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo

189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362

73

Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado

indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade

pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma

total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila

Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo

com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva

no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as

autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a

exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito

processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio

meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)

Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever

geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor

agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)

atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)

prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos

125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um

dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191

Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios

de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova

[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a

de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo

do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se

190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio

Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255

192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316

193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658

74

como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica

vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195

Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que

tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito

constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse

motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam

garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na

CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que

devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do

CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver

expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo

exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o

enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em

concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos

proibidosrdquo197

Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm

nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de

obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si

mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua

apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios

de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para

investigar e recolher meios de prova198

De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos

171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade

material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que

ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo

195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658

196 Cf op cit p255

197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua

proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256

198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio

FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361

199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os

segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a

75

que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios

que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi

praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1

estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo

do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame

eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios

materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do

circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se

apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios

pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos

vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade

judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os

indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201

Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de

prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um

lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou

menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de

coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc

constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202

Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais

sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser

alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de

vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo

representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a

tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende

a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita

medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua

conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a

detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit p 420

200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870

201 SILVA Germano Marques op cit p236

202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439

203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)

76

utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo

preventivardquo204

Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e

quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo

contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como

parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e

jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo

Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o

que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem

proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que

forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de

fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um

alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei

atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo

extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita

demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios

fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de

assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave

liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206

Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de

modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias

(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e

direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal

(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas

204 Cf Ac TC nordm 2282007

205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento

p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os

MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas

Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento

na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3

ald) do CPP

206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes

77

tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de

diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207

Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS

que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um

meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser

entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de

coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a

restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente

imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade

pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames

em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208

A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito

a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de

substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a

obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do

estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos

casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm

nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando

ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de

agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel

ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver

indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees

referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade

social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico

adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se

mostrar necessaacuteria (nordm3)

207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de

2009 p12

208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]

209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)

210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar

necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo

211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro

78

Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo

de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os

exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como

esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do

Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que

sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e

consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite

fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo

acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o

arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a

questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo

suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio

artigo 61ordm)rdquo

CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita

(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo

existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que

imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm

nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular

Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame

devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe

estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo

213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para

determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004

ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de

autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo

de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua

realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser

compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo

Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a

recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa

bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora

tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia

214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame

para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua

presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia

qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo

menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo

79

adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na

lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a

um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que

resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215

A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se

extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por

demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216

Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames

ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do

arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e

aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo

A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se

pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida

pelo nemo tenetur

O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou

accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash

apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo

permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo

podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido

maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais

ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219

215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18

216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo

217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash

setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana

218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales

como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No

obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen

corporalrdquo [itaacutelicos nossos]

Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e

ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073

Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss

219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da

influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um

80

O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de

submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos

mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur

uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido

admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de

periciardquo220

No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-

se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria

atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A

produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do

acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo

acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra

a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante

entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a

participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras

Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou

agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo

das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)

Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse

compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo

Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva

(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina

fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso

a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do

princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a

invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas

hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59

220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]

221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma

voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo

da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem

significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

[itaacutelicos nossos]

222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64

223 Cf Op cit p316

81

germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia

portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo

eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida

e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja

meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do

arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar

uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem

pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se

agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se

torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento

tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo

do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo

chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o

reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou

manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta

linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se

para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228

224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa

op Cit pp127-128

225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit

p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit

pp98-99

Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos

ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas

as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss

Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter

afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma

mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como

obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de

colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato

Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos

classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de

marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo

fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo

sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo

226 Op cit pp103-104

227 PINTO Lara Sofia op cit p99

228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131

82

Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande

vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode

ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo

podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute

que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo

O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da

vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo

tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do

sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230

Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela

vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o

direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes

coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente

colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231

229 Op cit p368

230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -

op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007

ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en

los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o

expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra

la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto

del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen

los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier

Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13

[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar

231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the

will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and

elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of

compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a

warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo

mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo

y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros

intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad

de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo

83

O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh

v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo

tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas

advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o

acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de

documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material

corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o

TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime

grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave

recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo

de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo

duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234

No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu

acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina

acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do

arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila

do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do

arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do

sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de

saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui

nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se

confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que

independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar

como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que

232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102

ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused

person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not

extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which

has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or

voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a

recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido

233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila

234 COSTA Joana op cit p157

84

pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-

incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como

AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente

acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao

silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da

vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas

natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem

ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as

declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois

natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo

mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que

razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob

ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva

ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo

Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a

conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a

aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do

arguido

Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio

da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237

235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora

processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se

a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis

em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo

afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito

ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal

(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que

respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira

linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo

em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e

adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional

nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

ponto 7)

236 Cf op cit p24

237 Cf op cit p23

85

fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica

dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos

afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de

documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando

dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo

entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela

compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios

conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos

direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio

da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos

VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa

Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada

situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente

protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma

ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do

nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias

fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si

mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre

autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria

eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes

implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)

O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito

de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e

direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o

238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299

239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)

pp1270 e ss

240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300

241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil

estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores

por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais

elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76

Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com

intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior

parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300

86

mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos

Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo

tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses

valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de

outro bem em jogo

O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional

admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da

mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito

produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de

variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma

prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um

criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em

conflito

Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos

valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos

direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo

e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244

A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o

conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa

segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de

direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos

valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas

circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246

Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em

termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all

or nothingrdquo ndash op cit p 23

243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301

244 Cf Idem ibidem

245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303

246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303

87

concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor

comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio

total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou

da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247

Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem

construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na

prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)

Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois

de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que

um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro

(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto

podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador

Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas

as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir

para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade

pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de

valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave

obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais

contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o

direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade

na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de

intimidade da vida privada

O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade

corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais

preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea

da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274

248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem

249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este

respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave

integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das

pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo

comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de

outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo

88

como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas

contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252

Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas

normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de

exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo

nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a

possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a

muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia

constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades

e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm

nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em

decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda

de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)

for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo

18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir

a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da

Constituiccedilatildeo)

A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade

pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer

meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos

ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees

agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de

alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores

admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave

reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e

integridade fiacutesica de terceiros253

251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino

disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de

dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins

criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264

253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o

mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode

deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia

89

Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de

circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a

adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente

pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em

condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes

ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos

diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave

conduccedilatildeo

Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila

rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor

e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo

do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez

art292ordm do Coacutedigo Penal254

Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser

acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova

dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a

satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo

das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez

aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para

afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma

intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio

todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na

caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a

conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a

tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de

deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual

estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no

excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave

realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo

254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011

relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013

256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira

Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013

90

elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem

proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257

Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo

Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de

autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita

no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou

psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por

regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade

um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas

quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo

da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na

colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode

considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos

cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo

de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele

direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258

Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da

concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se

ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da

estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado

fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios

do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees

257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]

258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]

259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23

PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos

da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26

260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash

recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a

integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou

princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas

se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam

independentemente da vontade do sujeito

Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o

criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses

91

parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei

preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao

princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim

para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma

lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo

entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores

juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento

do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a

necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263

O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo

da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos

restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da

restriccedilatildeo ao nemo tenetur

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees

justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na

impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a

261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]

262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade

de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31

263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo

e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade

da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo

fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de

eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como

acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a

condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por

aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da

medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia

probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais

relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo

264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem

reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas

circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra

a sua vontade)rdquo

92

restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em

lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)

No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo

tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade

(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos

(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de

acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar

exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas

(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo

tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito

de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas

pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia

previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei

nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM

Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel

sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja

superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio

da proporcionalidade]rdquo265

O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas

legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de

natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo

obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais

de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem

inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas

obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios

subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou

a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando

essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o

exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266

265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21

266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36

93

Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma

forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor

constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da

prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa

prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)

ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou

direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute

considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de

desobediecircncia

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir

Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do

direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade

de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do

silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao

silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio

de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270

Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo

267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido

pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa

desfavorecerrdquo

269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud

ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute

reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais

meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches

nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido

do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido

juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o

arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou

parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS

Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP

BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua

incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de

culpardquo

270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449

94

pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico

jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271

ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave

livre apreciaccedilatildeo da prova272

No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA

defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de

defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o

desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee

o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou

negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade

O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a

determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273

Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente

desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero

ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou

desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou

parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio

tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar

consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de

circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)

271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861

272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit

p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do

silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo

273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub

Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido

de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo

MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 ponto II

274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique

qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo

do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com

o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular

o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo

275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

95

O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto

a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias

que as regras da experiecircncia comum permitam

No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio

e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a

que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em

julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o

silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de

ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a

possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas

consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de

esclarecimento sobre os factos a si imputados

O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa

em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal

que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem

claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na

avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto

comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma

decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem

qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por

inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma

276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in

particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are

absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or

alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper

compulsionrsquordquo

277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely

or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally

obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from

him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two

extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be

answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should

necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed

out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent

on this pointrdquo

96

explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de

acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder

estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um

raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por

inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de

inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo

de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do

arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo

Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido

renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados

remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis

no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova

por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida

tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o

facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior

credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da

experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o

arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior

credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente

a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)

O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes

enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a

concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas

para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente

retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode

impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham

Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo

que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova

formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a

responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo

podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos

278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150

97

casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio

contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos

suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e

deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como

instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar

alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo

probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma

seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo

Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves

perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de

existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido

pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento

eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que

sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a

mentir280

Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal

direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos

em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever

moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia

juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir

que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido

ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721

280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo

tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na

doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto

de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente

tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O

interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES

op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo

apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a

uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode

declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo

281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente

tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo

282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance

praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo

98

nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por

isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285

Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento

considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um

processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos

inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um

ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel

Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash

que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade

(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada

indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas

O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de

direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos

e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo

com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais

salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma

limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais

compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo

283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451

284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se

autoincriminadora

285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de

2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento

juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a

inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito

Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)

286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP

287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss

288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as

pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo

agraves pessoas coletivas

99

que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel

de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente

os mesmos termos e amplitude em ambos os casos

Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas

pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum

accusare

Vejamos

Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do

princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios

independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo

constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave

partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada

pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa

agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289

Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas

coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes

(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio

que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser

titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos

fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas

privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter

direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a

competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo

exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas

puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114

Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de

aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de

interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou

de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op

cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss

289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e

concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179

290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas

da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137

291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns

sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o

cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento

dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de

100

ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se

podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em

processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido

[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292

Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos

natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza

das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo

documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade

econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur

292 Idem ibidem

293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas

coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees

impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com

contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487

disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas

coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de

uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma

infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave

disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio

expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que

os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como

sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar

contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as

ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves

pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio

das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm

nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da

concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo

testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito

de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia

Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de

salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o

Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa

evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter

determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por

conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de

acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas

as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua

posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento

anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave

empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34

101

de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295

44 Dever de advertecircncia

Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve

resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz

cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de

Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal

recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o

arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e

esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e

natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no

CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio

total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees

o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se

antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298

Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina

com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o

294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em

si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as

ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com

esses lugares e com essas coisasrdquo

295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42

296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria

insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse

conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos

resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o

autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a

invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta

processual ase adotarrdquo ndash p227

297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela

da Costa op cit (parecer) p39

298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules

que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia

HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222

102

depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar

depor300

Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em

caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de

advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da

violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a

formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado

da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e

autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do

nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum

accusare satildeo na verdade realidades interdependentes

A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao

incumprimento do dever de advertecircncia

Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo

ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se

inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo

de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees

prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu

autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como

ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur

299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento

1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas

a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido

b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em

condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo

300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas

autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a

faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente

mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo

301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da

Costa op cit p84

103

se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do

direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria

inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve

ser a mais forte possiacutevelrdquo302

A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta

eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo

daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que

sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim

um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem

aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a

proacutepria incriminaccedilatildeo304

Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele

qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A

nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante

intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O

argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que

em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim

os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo

tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e

esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em

prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as

declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo

prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de

advertecircncia ou esclarecimento305

Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo

tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem

303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel

Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit

p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43

304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio

305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36

306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127

104

com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante

tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra

soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas

sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral

autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou

da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308

Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE

haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309

eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o

qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a

proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova

cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar

que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito

embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos

da nulidade do ato

Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do

CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo

servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais

quase como se natildeo existisse)311

Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute

somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros

meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida

Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem

como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-

distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

307 Idem ibidem

308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a

devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia

Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447

309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193

310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss

311 Idem ibidem

312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss

313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas

consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo

105

probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos

documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos

proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica

se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de

afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo

objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315

Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia

dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave

consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao

art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato

com a nulidade ele eacute apenas irregular316

deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais

meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree

(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este

entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit

p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o

efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp

32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194

Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da

jurisprudecircncia

Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do

efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of

the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel

em

httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905

Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver

SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40

314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves

declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS

Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in

Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de

Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina

2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17

nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op

cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous

treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode

frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de

prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos

disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321

316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p

359

106

107

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza

juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um

devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo

encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se

sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos

estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito

Privado

Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e

simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de

cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso

exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres

para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se

encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do

contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo

tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois

que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss

318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute

sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o

conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que

significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter

tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre

outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas

a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada

cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)

108

categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou

outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo

juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor

ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)

cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os

dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento

da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria

tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo

juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o

contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo

concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a

prestaccedilatildeo de imposto

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321

alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo

de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres

acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar

e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322

319 Cf Art397ordm CC

320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de

Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011

p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o

direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um

determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal

como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal

natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos

negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para

satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA

umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que

apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por

acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11

321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e

os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15

322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss

109

A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo

(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo

exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a

custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324

Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica

tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua

complexidade325

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo

principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias

Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa

As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um

determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo

juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos

eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326

A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de

um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do

conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327

De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto

da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o

facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de

sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente

323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss

324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16

325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L

Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal

2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de

Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal

Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss

326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra

Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49

327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss

110

em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma

tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de

mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees

financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao

trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos

aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o

contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute

suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo

existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas

uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330

A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma

abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo

tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de

pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos

acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de

emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e

entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante

328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo

mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e

tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss

329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute

de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar

atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT

330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o

sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos

exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de

ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que

natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da

entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio

pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a

mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs

grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf

ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular

trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal

Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto

de estudo

111

superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante

os casosrdquo331

Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da

obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou

demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas

porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros

moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere

a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo

que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os

deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram

autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave

praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees

legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo

acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia

pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336

Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa

relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e

das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto

significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de

pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na

lei

331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10

332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo

333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee

aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees

que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31

334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do

sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de

documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo

335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20

336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32

337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11

112

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria

Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da

LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o

pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos

declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de

cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto

em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que

estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais

accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340

Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios

que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a

declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar

o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar

recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e

os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar

periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o

dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1

da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade

que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um

comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere

Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica

como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e

ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La

declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a

estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala

maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo

339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79

340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os

deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por

outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como

objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

341 Idem ibidem

113

A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo

pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e

de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre

obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente

formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo

de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em

ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e

situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma

posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343

Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias

tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema

de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos

uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos

necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de

uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida

preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento

patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que

muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados

pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e

cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo

juriacutedica tributaacuteria346

342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e

executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op

cit pp253-254

343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27

344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130

345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT

ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos

rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal

sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos

sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias

346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47

114

Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela

lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo

pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347

O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada

complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica

exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades

contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees

especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um

modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades

sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina

estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa

enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes

(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)

A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de

determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar

um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os

particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado

por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas

contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no

ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-

pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo

conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto

prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave

Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres

esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e

auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas

347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss

348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de

uma diacutevida tributaacuteria

349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56

350 Idem ibidem

115

O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos

contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme

prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo

tributaacuteria e contribuintes

No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios

textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei

Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees

acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da

obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos

previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354

351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode

suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e

efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de

avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT

352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre

contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais

sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos

Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de

cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo

paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as

relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte

ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA

CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que

estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)

Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais

ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave

obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na

exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp

57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254

354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo

1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo

2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que

personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital

exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo

116

O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja

que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo

normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que

existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros

(art59ordm nordm1 da LGT)

Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria

para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular

e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais

interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria

esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo

de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao

exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se

observem356

Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento

esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo

os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a

administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e

a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como

sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4

da LGT

Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos

referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade

inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo

modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria

de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos

355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110

356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT

357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT

117

comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta

solicitados358

Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja

simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem

apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do

dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica

Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia

do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de

determinadas tarefas de imposto

Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)

declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos

declarados

No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que

seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que

recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos

iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos

Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz

remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo

tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram

de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo

Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da

prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere

(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os

factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres

358 Cf Art48ordm RCPITA

118

acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de

cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos

rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto

encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais

deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de

entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)

obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade

(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de

cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de

entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da

declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir

faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada

(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais

obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a

sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o

subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo

Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo

tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os

princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da

celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O

objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a

realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva

359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss

360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte

361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-

administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de

uma vontade jurisdicional

119

daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do

art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material

Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria

implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na

sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois

apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido

apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo

ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta

iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade

contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por

qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)

que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material

vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio

daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou

mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash

prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364

Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute

o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como

estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos

Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e

absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade

362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da

Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor

total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as

pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios

constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a

capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre

a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit

(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss

363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112

364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44

120

processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material

subjacenterdquo365

As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que

assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios

princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da

igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que

tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo

equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de

cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo

365 SOUSA Rui Correia ibidem

366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o

preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O

princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em

diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o

desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a

tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o

art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo

legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta

op cit pp 137 e ss

O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a

imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da

mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios

fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142

Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees

acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei

O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio

material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo

encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em

sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num

procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido

formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual

de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de

2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash

Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M

Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal

Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em

httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit

pp137 e ss

367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio

368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84

121

com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se

verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o

pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica

A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades

contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade

vertical)369

A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva

permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais

Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de

pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de

declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos

passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva

quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser

considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se

de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias

(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo

do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade

contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades

detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os

deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm

maior capacidade de prestaccedilatildeo371

369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154

370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166

371 Idem ibidem p169

122

123

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo

Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se

aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo

Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que

natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees

tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos

elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de

factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para

fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames

teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o

ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com

o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas

tributaacuteriasrdquo375

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou

terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que

eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio

das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num

controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da

372 Cf Art 4ordm do RCPITA

373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA

374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA

375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12

376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)

p164

124

Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo

lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as

normas de incidecircncia tributaacuteria certas

A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma

funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees

funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo

fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento

tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios

contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer

com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que

busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e

controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute

efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria

Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca

dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria

Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos

princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os

princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores

da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem

bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na

administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo

377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento

Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011

Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss

378 Cf Art 2ordm do RGIT

379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30

380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167

381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30

125

tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio

da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e

igualdade)382

A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo

oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da

obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho

das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio

supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo

deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes

concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios

relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar

desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria

de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes

fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de

investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com

382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183

NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss

383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar

um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute

verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento

Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de

Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash

roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19

Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio

Coimbra Coimbra Editora 2009 p372

Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das

necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva

SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa

tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do

Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que

implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte

natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em

consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de

arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios

de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) p19

384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45

126

base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de

irregularidadesrdquo385 386

Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral

eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos

arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na

restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva

pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da

vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave

propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da

inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a

AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs

dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a

medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica

se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a

adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que

melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada

na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do

considerado juridicamente aceitaacutevel)389

O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito

da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem

385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185

386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria

estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo

tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo

tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio

no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010

387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio

Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)

388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo

tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados

pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre

outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)

389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163

127

ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os

contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)

na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os

objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou

prossigam os fins pretendidos390

Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei

Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento

inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo

de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas

ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia

o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem

afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este

princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do

procedimento que lhes digam respeito392

A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito

passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os

factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de

inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm

da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado

Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85

391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como

esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a

AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de

proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel

392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir

que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento

nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando

devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento

tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos

sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-

126

128

ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar

partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem

acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma

decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de

evitar futuros conflitos de pretensotildees393

Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de

colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do

RCPITA)

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo

Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado

que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394

Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao

inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o

acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem

juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer

todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria

relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos

relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do

RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396

393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57

394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo

de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder

395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100

396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves

instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das

129

Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em

termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na

inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este

dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-

tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em

variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside

nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de

entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc

Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de

cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria

instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos

mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos

relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos

estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de

empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade

puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o

desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das

entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas

funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)

Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos

dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros

com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados

indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos

contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das

accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de

processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros

Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais

entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo

63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise

laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para

apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos

sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre

que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees

agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou

internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees

de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito

nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas

de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT

397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss

130

Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a

entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso

agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio

ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo

quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios

para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos

determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio

dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem

praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA

donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que

sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua

atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar

designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou

uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)

Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos

inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e

compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum

a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a

relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)

Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito

passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um

representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o

cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta

atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes

legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos

atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do

398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados

tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm

do RCPITA

131

sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material

(art54ordm nordm1 RCPITA)

Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a

cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo

Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do

procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos

por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente

necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para

com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com

antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1

e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa

notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)

Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a

exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400

aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo

Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado

pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos

sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto

leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever

O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo

sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves

desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA

400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65

132

colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o

infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal

nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos

passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando

ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da

leirdquo

Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos

funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a

AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de

responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos

mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito

pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica

Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei

diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da

aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos

gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei

prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente

impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art

14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo

bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave

coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas

para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)

A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste

paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou

presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de

cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo

realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros

elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de

401 Idem ibidem pp175-176

402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A

quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss

133

boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo

apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo

colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da

mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos

vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo

ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos

seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos

fiscalmente relevantesrdquo403

O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a

administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos

elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe

satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma

recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma

presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees

aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406

Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um

caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos

princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte

403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295

404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito

incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com

a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees

Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No

entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as

suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a

avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos

rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -

Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel

Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss

405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69

406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade

material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195

407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303

134

natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a

Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408

Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de

cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo

de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia

art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas

contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo

Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do

dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo

cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em

que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras

limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas

que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave

pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas

precedentemente mencionadas411

Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo

do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever

408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten

tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-

constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola

Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes

Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando

natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por

existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms

87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo

409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48

410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174

411 SAacute Liliana da Silva op cit p130

135

de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime

Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida

iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e

garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de

oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a

diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com

base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda

como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos

funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)

Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa

em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois

tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o

princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a

mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia

ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave

ou injustordquo413 414

Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de

documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees

entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo

412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de

competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada

pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA

413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2010 p767

414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento

Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a

recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de

colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou

dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou

descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas

[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do

direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)

Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo

136

ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres

e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes

a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais

Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio

em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a

colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)

137

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem

verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o

dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em

colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais

ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de

colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo

penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um

crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129

416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo

Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137

417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169

418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o

contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo

tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT

138

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte

O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual

consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e

mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas

O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado

eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela

Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco

caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de

fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar

com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou

documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do

dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do

inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo

em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do

arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se

ipsum accusare420

Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo

Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na

virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que

ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos

indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder

419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o

caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado

a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares

supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do

processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores

mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da

concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp

199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash

Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS

Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56

420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149

139

de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se

tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute

impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel

a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a

transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria

condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-

dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423

O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou

coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma

soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo

Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer

apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro

lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando

os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de

um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento

sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo

421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148

422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52

423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127

424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la

articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a

eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute

contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do

sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na

preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de

ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo

o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso

Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave

Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do

obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales

140

autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na

generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de

declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do

arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425

Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de

forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash

que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos

de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute

aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia

desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para

o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo

dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os

documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas

pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se

incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por

exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado

tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del

sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade

do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja

essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este

grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo

inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia

depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais

ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo

tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la

imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar

contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis

Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf

425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho

a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)

enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma

qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos

426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo

estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica

verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o

indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria

427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el

proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em

httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF

141

livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo

desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)

Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o

nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o

princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo

tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo

para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem

relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito

inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade

dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do

sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente

ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a

invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na

opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo

que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a

posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante

perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou

criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova

dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos

aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da

428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35

429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten

tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de

conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido

consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios

Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf

ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento

concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo

utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario

responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de

voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de

terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente

sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a

no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros

dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo

142

determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas

implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que

os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam

determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente

permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter

autoincriminador

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades

competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees

Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo

das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito

por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que

se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica

Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria

Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de

inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e

Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de

acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As

direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria

e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou

designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas

desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo

da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de

dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430

430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103

143

Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das

Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e

a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei

referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de

Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que

integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da

LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de

poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)

Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade

denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as

entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade

Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo

que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura

de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da

estrutura de serviccedilos regionais e locais

Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a

incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos

de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees

A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que

lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do

territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de

acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a

accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se

encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os

controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional

prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos

iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433

431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo

432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro

433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)

144

Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de

Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos

centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434

No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo

destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e

agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais

eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439

434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm

435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente

designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-

Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea

da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria

e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo

tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos

manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de

inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a

respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades

orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de

contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com

os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar

pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar

e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a

metodologia em vigorrdquo

436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por

DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo

com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo

437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da

gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila

tributaacuteriardquo

438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011

439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro

ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de

Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees

Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees

Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A

Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas

145

O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial

determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para

desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia

esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de

competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses

casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos

passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo

considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC

Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades

orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo

Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)

que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho

nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos

contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos

contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees

efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos

de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da

Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441

Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal

portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus

do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os

atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam

aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe

assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja

Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm

as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]

440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97

441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012

146

sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder

do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que

entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a

delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)

Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo

penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia

criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a

cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo

ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP

No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da

administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos

oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o

MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo

geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas

competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos

processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes

aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a

ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e

na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no

exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas

que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor

da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por

crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas

entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3

do RGIT)

Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo

das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de

442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas

de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes

ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal

e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)

443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691

444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT

147

investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na

medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades

No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de

dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees

tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender

uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual

tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo

penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas

especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que

nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o

Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445

Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia

do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com

competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do

RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou

por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia

(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do

crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da

administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos

mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)

Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito

por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a

todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e

termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio

apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos

interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e

445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126

446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis

447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia

delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida

ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo

448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss

148

funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que

isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos

oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito

seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua

competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da

instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a

Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo

dos crimes tributaacuterios

Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo

evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no

que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de

informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos

funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em

inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das

informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas

garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo

administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a

invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em

desconformidade com a Constituiccedilatildeo450

Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir

sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo

tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal

cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute

449 Idem ibidem

450 SAacute Liliana da Silva op cit p149

149

vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua

aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito

Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute

exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou

procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que

termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade

ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e

concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio

o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem

451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46

452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material

Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)

[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo

SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-

64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a

despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da

CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a

sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo

privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de

processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op

cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no

caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal

stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal

Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das

garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave

atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo

tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila

v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo

pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os

direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia

de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao

tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal

Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)

[em linha]

No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE

Manuel da Costa op cit pp46-49

Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito

de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias

empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de

informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo

150

obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam

uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453

Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual

o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o

conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada

Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os

trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The

Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de

ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a

qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs

Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o

conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH

um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual

enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo

formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur

Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa

do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses

autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos

sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do

artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos

factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir

em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de

uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave

empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash

(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)

453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146

454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976

455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal

contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do

nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito

interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo

e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)

456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997

457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento

em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo

na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos

458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]

151

em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos

assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse

servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave

circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de

um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio

do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo

de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa

prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno

que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor

aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o

estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh

Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada

apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em

excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo

incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos

natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido

autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a

instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade

Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito

interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por

conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que

na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja

a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada

obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao

privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma

459 COSTA Joana op cit pp123

460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending

against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him

54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding

within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give

information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself

incriminatingrdquo

461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the

Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act

152

maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os

respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente

afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao

silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de

lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica

ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-

se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do

veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio

O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo

do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and

MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para

obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio

pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em

processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a

invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH

No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da

aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees

tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos

procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e

invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo

pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para

prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute

to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a

sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does

not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo

462 COSTA Joana op cit p129

463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento

penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo

para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES

Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no

autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72

153

preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute

atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute

que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela

gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem

acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465

Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste

entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466

Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que

concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do

processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta

instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita

ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de

prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria

Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare

facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos

rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que

podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos

patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara

satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da

CRP)467

Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo

sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se

abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais

464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment

to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo

465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

466 Cf Op cit p22

467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de

concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244

154

eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do

nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se

exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-

los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de

determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo

tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em

inspeccedilatildeo tributaacuteria

A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo

quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo

assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito

passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou

documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o

esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos

Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia

processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o

contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a

desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre

que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um

processo ou procedimento sancionatoacuterio

Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria

incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel

se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional

O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito

corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da

presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece

155

(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela

consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se

exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e

regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado

no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na

Constituiccedilatildeo Portuguesa469

Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o

nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo

a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para

determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face

ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que

assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo

de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o

aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes

dele Mas natildeo se procede dessa forma

Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais

Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo

para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de

contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e

social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos

dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da

comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias

processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos

468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes

de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais

formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da

Constituiccedilatildeo materialrdquo

469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366

470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da

prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de

Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt

156

um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do

contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees

Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram

assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito

atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta

e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos

Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando

os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades

administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou

atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos

cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de

documentos fiscalmente relevantes471

Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de

direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual

depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas

comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude

e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos

cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A

doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de

interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando

uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos

interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da

prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um

princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia

471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos

normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela

falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH

Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do

ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na

sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo

472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo

157

constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio

inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo

A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de

inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos

do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo

agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute

harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar

pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo

forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que

acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave

presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses

direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473

Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo

sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de

utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao

abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do

princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a

utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade

e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute

diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores

que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir

para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse

obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza

tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas

decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto

473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA

RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid

2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss

158

com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave

fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios

O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como

o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo

como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo

tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute

natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e

a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha

uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito

natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475

Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais

destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e

manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso

de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de

autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio

contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave

circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o

contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem

indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos

elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo

colaborar

475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de

criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse

desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del

contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo

Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto

Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e

interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente

protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de

colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a

igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo

e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos

que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das

desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo

476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -

Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10

159

Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde

logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a

informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e

transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute

se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido

infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o

risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas

circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada

qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e

um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do

contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash

consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo

Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao

suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos

tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro

lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos

funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante

complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente

conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora

exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar

do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito

tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar

Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que

ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de

477 Op cit pp276 e 284

160

contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo

penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria

para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem

a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir

esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou

processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em

inspeccedilatildeo)

Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio

estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do

nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento

para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as

atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas

pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das

informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479

Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no

processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria

ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo

qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o

incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480

478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria

y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar

penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse

debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se

assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria

480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA

RODRIGUEZ Rafael op cit p270

161

Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se

defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa

inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo

conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela

tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos

a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo

penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente

fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481

Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo

nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do

processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo

mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de

tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com

a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo

tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente

aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos

pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de

informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados

contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal

ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483

Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres

de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que

481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke

482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves

exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos

483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador

Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de

12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

162

aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais

restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria

destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute

deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer

a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior

utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de

indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como

veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades

comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse

prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do

princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade

probatoacuteria485

Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo

tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos

processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade

torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das

realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das

infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash

considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das

infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi

estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que

natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado

comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo

484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]

todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo

arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou

poderes de supervisatildeordquo (p110)

486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284

487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss

163

finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial

em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material

proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal

onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido

enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito

ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488

Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo

tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de

passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos

fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o

sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio

de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia

a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos

solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as

que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo

funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave

partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo

penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e

constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do

sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante

veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual

Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a

colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a

natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio

poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com

a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e

488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27

489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208

490 Idem ibidem pp209 e ss

164

agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a

manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora

al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el

sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente

inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade

diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a

correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a

comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a

praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade

entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do

nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo

penal

A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em

processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo

sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um

inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma

questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491

Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em

constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e

controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento

de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de

comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito

491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos

pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101

e ss

165

(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de

fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e

tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo

inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio

Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe

solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de

instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o

poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se

eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito

ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492

Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e

garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer

informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que

ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur

O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que

circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa

intercomunicabilidade probatoacuteria

A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur

se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente

impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo

tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal

natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram

recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de

uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o

transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a

imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo

492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135

166

processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa

do processo penal portuguecircs493

Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do

Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional

ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal

posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de

cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo

tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do

art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de

gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de

2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou

que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos

indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto

agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo

constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de

assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar

expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria

Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495

ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo

Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem

prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem

proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo

proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta

493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012

494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e

argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional

495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem

natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo

vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de

investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua

destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173

496 Op cit pp 332 e ss

167

em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor

que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo

constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do

CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente

previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das

circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis

de serem utilizados em processo penal posterior

Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser

constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa

requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo

fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime

tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf

parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o

seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender

passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []

assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm

Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por

qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees

que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como

consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como

prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497

FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de

contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora

ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash

conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um

497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de

2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a

sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos

termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto

designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo

498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no

mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores

Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3

do CdVM)

168

vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a

ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo

sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo

ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de

supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o

cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500

Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo

compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do

estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser

obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-

arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash

em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade

decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor

O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com

uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees

tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo

normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena

da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo

obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do

proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no

aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo

499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave

entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia

exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O

aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do

princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf

Op cit (parecer) p49

500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281

169

contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz

agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao

processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo

autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute

livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade

livre e esclarecida)

Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la

perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen

suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de

proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al

procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no

declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente

el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de

sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a

efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea

atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las

sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo

de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la

voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo

Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o

princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a

questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de

colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de

verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se

natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute

a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir

para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el

procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10

170

Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a

questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou

direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica

dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o

outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503

Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de

interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo

de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas

apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em

nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o

regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado

abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como

noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento

dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a

antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo

reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua

funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do

abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em

503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte

da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo

legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na

ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo

facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante

veremos

504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como

sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade

configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer

outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao

silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria

Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-

incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de

investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica

Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94

505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]

506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a

imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed

natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo

penalrdquo ndash p45

171

instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da

abertura do processo penal tributaacuterio)507

Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia

do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em

torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de

documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais

instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo

de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou

inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em

colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir

e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a

condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo

consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando

em causa a justiccedila do processo

Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a

sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-

se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos

investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo

equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de

ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode

ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente

autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter

autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo

507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209

508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos

abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -

durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de

Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de

inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a

existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal

Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe

executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em

caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos

prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no

processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo

172

para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento

ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio

segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na

garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria

autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em

tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito

de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510

Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem

sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a

invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash

salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem

genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa

vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das

obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo

da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios

(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a

prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a

inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)

Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na

perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este

argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que

transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar

509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to

remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -

such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the

prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to

otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo

510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest

in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the

present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness

contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal

offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers

compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo

173

com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a

impunidade

Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e

perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico

hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los

tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511

Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto

elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam

inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que

na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses

aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes

e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo

equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto

natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo

tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema

fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute

simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser

instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que

se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento

sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob

coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as

garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513

Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes

coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada

pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave

actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela

autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma

processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo

512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss

513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

p145

174

suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a

CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees

tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre

exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar

o caacutelculo do imposto

Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a

intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa

argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou

opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que

podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem

independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre

outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as

declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute

descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da

justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material

probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num

processo penal516

Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores

proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo

natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio

ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito

constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se

514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152

515 Cf Paraacutegrafo 69

516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

pp147-148

175

ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e

presunccedilatildeo da inocecircncia517

Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo

permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e

consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material

obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo

penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova

ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia

do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros

elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees

detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas

quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo

apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo

voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones

tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el

procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero

iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a

principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no

auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su

intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se

utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes

de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no

debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una

517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo

ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y

el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos

adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11

176

eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en

un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos

Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a

soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos

processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute

uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que

as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se

apresenta sem qualquer desvantagem)

No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e

respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com

esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo

da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo

tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a

compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma

vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o

poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual

consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel

mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele

natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521

519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299

520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito

tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada

com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo

belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)

admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam

atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)

521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave

separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para

a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens

juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e

177

Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de

colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer

inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a

comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum

accusare

Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar

uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica

dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo

afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a

separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os

procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade

entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento

do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio

das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e

informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a

investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo

contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas

natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais

de obtenccedilatildeo probatoacuteria

Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas

acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que

alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para

laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema

juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e

social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais

pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da

atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da

admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de

tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade

522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54

523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106

178

(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da

alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito

sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio

tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune

as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de

recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)

nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais

ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera

da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel

Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo

de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias

poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o

investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer

todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa

soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo

processual

Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de

procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica

das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees

que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros

domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de

evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito

normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar

exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525

Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees

preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe

524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162

525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54

179

alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se

confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres

de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria

condenaccedilatildeo

A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do

suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse

momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo

ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa

constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o

art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem

respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites

previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar

informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre

tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do

CPA)

Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula

de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o

indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas

processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)

A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da

inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes

teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse

Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o

nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo

anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que

esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum

accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196

180

interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para

que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento

dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua

sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal

de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o

direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da

AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os

autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT

podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova

protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da

proacutepria condenaccedilatildeo

As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento

inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias

processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o

indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores

antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o

procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a

edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas

anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal

cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente

afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os

direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a

servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do

oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar

jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal

por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser

utilizados em posterior processo penal

527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50

528 Cf Op cit pp56-57

529 Cf Idem pp58-59

181

Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por

parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo

como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a

comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo

de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente

(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que

soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode

construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se

Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo

tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as

exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e

da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade

probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns

inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare

abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o

dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante

da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a

AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo

do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se

conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das

infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus

direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de

exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar

isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a

prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os

deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos

Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a

propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico

530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

p195

531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

182

sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e

considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria

entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada

em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do

indiviacuteduo

Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas

proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que

apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute

permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas

normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas

proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a

enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade

fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532

E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo

inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade

probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que

a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da

sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma

utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total

desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os

princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo

seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da

autoincriminaccedilatildeo

No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico

portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio

soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo

532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133

183

REFLEXAtildeO FINAL

Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute

absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas

obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo

do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado

O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da

dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida

por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute

reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em

que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e

poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo

(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou

posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees

ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal

deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado

Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar

da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur

contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no

sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um

ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo

necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade

probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute

constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos

processos

A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo

com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas

no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo

utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo

184

indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida

e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios

constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a

integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para

considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo

tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova

agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de

decisatildeo do indiviacuteduo

185

CONCLUSOtildeES

I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa

segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou

seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a

sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao

silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo

satildeo corolaacuterios que se interligam

II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo

tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais

autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais

incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas

para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio

III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se

ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo

penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino

Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos

IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal

circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a

sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo

constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num

plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que

asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre

noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)

art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)

V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica

debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana

Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A

primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais

como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm

186

CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende

um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e

seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no

texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos

circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur

cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza

processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em

princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz

juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa

humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma

mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se

defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente

amparo de natureza processual

VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum

accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua

compreensatildeo e alcance

VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo

exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo

- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O

nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso

ordenamento juriacutedico

VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o

Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e

ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em

alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual

(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as

testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos

entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento

da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas

187

sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute

de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo

expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no

art61ordm nordm3 ald) do CPP

XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da

concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente

com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes

tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se

pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias

coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel

autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia

constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo

de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos

ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou

concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes

harmonizando-os entre si concretamente

XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para

resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores

em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio

recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash

prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido

XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute

o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende

diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana

com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na

sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse

sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos

ou interesses de valor social e constitucional prevalecente

188

XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar

previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e

devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da

CRP

XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua

posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser

juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico

na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo

de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a

infraccedilatildeo

XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir

XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica

proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que

atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da

pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de

todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral

(art32ordm nordm8 da CRP)

XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada

nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de

pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram

em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos

preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou

administrativas

XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute

obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da

inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e

demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade

XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e

natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar

189

esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de

incumprimento ilegiacutetimo deste dever

XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de

colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao

cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa

situaccedilatildeo

XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de

oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente

entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal

por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da

informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute

legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal

XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias

dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito

no processo penal tributaacuterio

XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos

respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar

aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do

Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio

XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a

informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou

precisamente a sua razatildeo de ser

XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal

seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo

investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar

totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo

190

equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria

de cada indiviacuteduo

XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa

de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos

sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios

constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos

contribuintes no subsequente processo penal

XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de

uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos

resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se

verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos

em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever

de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a

intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva

separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres

de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de

qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja

interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por

violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado

continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas

poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e

aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal

posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo

autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o

chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)

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JURISPRUDEcircNCIA

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro

Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro

Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo

Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link)

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo

Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link)

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de outubro de 1998 relator Conselheiro

Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de 2001 relatado pela

Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link)

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm19804 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura

Ramos disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm30404 de 5 de maio de 2004 relatado pelo

Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm18105 de 5 de abril de 2005 relatado pelo Conselheiro

Paulo Mota Pinto disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm12707 de 27 de fevereiro de 2007 relatado pela

Conselheira Helena Brito httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo

Conselheiro Gil Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora

Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link)

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204

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011 relatora

Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro

Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira

Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

Supremo Tribunal de Justiccedila

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005

relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008

relator Conselheiro Simas Santos disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 08P295 de 20 de fevereiro de 2008

relator Conselheiro Rauacutel Borges disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de 2008

Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010

relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 de

28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt

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Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra

- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002

relator Desembargador Oliveira Mendes disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de

2007 relator Desembargador Gabriel Catarino disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em

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205

Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora

- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro

de 2011 relator Desembargador Martinho Cardoso disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)

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Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees

- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de

2007 relator Desembargador Cruz Bucho disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de

marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva disponiacutevel em httpwwwdgsipt

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de

janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador Antoacutenio Condesso disponiacutevel em

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Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto

- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 0546541 de 3 de maio de 2006

relatora Desembargadora Alice Santos disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009

relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro

de 2013 relator Desembargador Ernesto Nascimento disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)

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Tribunal Central Administrativo do Sul

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro

de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)

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206

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de

8 de junho de 1976 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro

de 1984 Disponiacutevel em

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CHAMBER]itemid[001-57553] (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de

1993 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de

fevereiro 1996 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de

dezembro de 1996 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de

1997 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de

21 de dezembro 2000 disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de

2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em

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207

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004

disponiacutevel em

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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de

2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBER

CHAMBER] (link) [em linha]

- Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro

de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMB

ERCHAMBER]itemid[001-78135] (link) [em linha]

Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia

- Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro

de 1989 processo nordm 37487 disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]

Tribunal Constitucional Espanhol

- Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales

(link) [em linha]

Supremo Tribunal Americano

- Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link)

[em linha]

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Page 2: A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento ...

Telma Sofia Martins Ribeiro

janeiro de 2017

A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal

Trabalho efetuado sob a orientaccedilatildeo daProfessora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro

Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Mestrado em Direito Judiciaacuterio

Universidade do MinhoEscola de Direito

ii

DECLARACcedilAtildeO

Nome Telma Sofia Martins Ribeiro

Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom

Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute

13072017

Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro

Ano de conclusatildeo 2017

Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio

Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE

INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE

COMPROMETE

UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________

iii

AGRADECIMENTO

Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente

por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e

empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade

profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta

monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento

cientiacutefico

Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou

para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um

muito mas muito obrigada

Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e

para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos

momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que

idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem

Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que

sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A

minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para

mim

iv

v

RESUMO

O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo

penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute

legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual

penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente

reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo

legal de cooperar no procedimento tributaacuterio

O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do

nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas

nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos

constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de

natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do

estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso

de violaccedilatildeo do princiacutepio

Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em

mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo

analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees

acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em

que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento

ilegiacutetimo desse dever

Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente

colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e

jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens

e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito

normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria

inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute

obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das

informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres

de colaboraccedilatildeo

vi

vii

ABSTRACT

The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of

information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under

and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there

is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not

contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo

tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax

procedure

The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur

se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content

historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of

Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions

and finally the legal consequences in case of breach of the principle

Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax

matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the

framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical

implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the

consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty

Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed

of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence

intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out

to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur

(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed

solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings

(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information

tax inspection under collaborative duties

viii

ix

IacuteNDICE

RESUMO v

ABSTRACT vii

SIGLAS E ABREVIATURAS xiii

INTRODUCcedilAtildeO 17

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare

39

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43

32 Fundamento constitucional de natureza processual 49

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51

c) A garantia de um processo equitativo 55

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade

normativa e validade material 65

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98

44Dever de advertecircncia 101

x

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e

obrigaccedilotildees acessoacuterias 109

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio

da colaboraccedilatildeo 118

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137

xi

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a

inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria 154

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176

REFLEXAtildeO FINAL 183

CONCLUSOtildeES 185

BIBLIOGRAFIA 191

JURISPRUDEcircNCIA 203

xii

xiii

SIGLAS E ABREVIATURAS

ss ndash seguintes

Ac ndash Acoacuterdatildeo

AR ndash Assembleia da Repuacuteblica

AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria

ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

BCE - Banco Central Europeu

CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos

CC ndash Coacutedigo Civil

CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios

CE - Comissatildeo Europeia

CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem

CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios

CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis

CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios

CP ndash Coacutedigo Penal

CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo

CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal

CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio

CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo

DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees

DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo

DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria

DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

xiv

DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros

DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras

DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras

DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais

DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico

DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais

DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

DL ndash Decreto-Lei

DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais

FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional

GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland

GNR ndash Guarda Nacional Republicana

IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas

IRA - Irish Republican Army

IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas

IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado

LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria

MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico

ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas

PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos

PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila

seacutec ndash Seacuteculo

TC ndash Tribunal Constitucional

xv

TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia

UE ndash Uniatildeo Europeia

UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes

xvi

17

INTRODUCcedilAtildeO

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do

aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao

processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e

que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem

as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da

monografia que nos propusemos a realizar

Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso

quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes

tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do

processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento

administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria

Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de

benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo

tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O

problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado

perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo

Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja

a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer

elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a

18

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos

solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de

colaboraccedilatildeo

Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis

a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a

intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil

atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados

como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje

consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em

ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que

tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute

neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial

relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia

a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto

Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo

principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que

ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute

em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como

eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees

tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL

nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo

Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na

resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um

estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo

especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada

extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute

sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas

e praacuteticas que os mesmos comportam

1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47

19

O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta

documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente

indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que

podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo

auto-inculpaccedilatildeo

ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo

interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como

procedimentalrdquo2

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou

inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com

a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria

para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica

acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo

person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e

Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do

princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina

e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual

penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz

naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou

direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de

inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5

2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45

3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132

4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como

decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos

oportunidade de desenvolver no seio da monografia

5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

20

O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do

nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio

mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido

tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)

Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no

ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao

conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes

Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta

um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as

questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez

que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as

temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o

direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos

constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta

determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda

parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial

no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito

entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e

internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico

21

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare

O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica

de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem

diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo

processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido

Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se

conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como

arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7

FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o

estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos

primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres

ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])

autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua

decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se

maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual

Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o

arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a

6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424

7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao

interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura

superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa

a favor da pessoa interrogada (arguido)

8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p 9

22

todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento

dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que

tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao

respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido

enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede

a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido

declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da

sua livre personalidade

Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do

nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo

autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria

incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir

para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no

que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo

em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O

que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo

seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14

9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430

10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua

proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se

accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur

11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131

12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham

exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo

reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente

prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia

MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico

de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal

Coimbra Almedina 2010 p118

A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido

A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise

14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121

23

COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o

cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees

de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam

valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir

toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave

superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no

essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana

(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta

senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de

declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo

penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo

arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)

No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo

positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa

o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si

imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade

de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema

pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17

Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser

feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado

(art61ordm nordm1 ald) CPP)

O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo

contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio

de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas

seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou

15 Idem ibidem pp117-120

16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual

Penal) pp74-80

17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121

24

apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de

aplicaccedilatildeo

Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que

ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar

ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse

motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo

contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo

Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao

silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por

privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe

sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a

pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que

contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a

extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios

tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que

suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132

19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo

versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In

BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da

prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104

20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia

Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular

que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo

penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo

21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS

Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e

Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da

proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar

para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a

declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor

de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo

25

precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o

princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida

reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas

neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas

A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de

modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex

buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua

maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair

frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a

recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em

autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio

nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de

prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos

aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de

ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros

O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e

pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute

somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo

calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional

22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127

23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de

2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em

httphudocechrcoeint (link) [em linha]

24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA

etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa

que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo

25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21

26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo

de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao

silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange

o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a

colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o

meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes

de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido

26

abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de

um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja

todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize

vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo

Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido

estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo

O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar

para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a

prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29

Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute

mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer

calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir

o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender

exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao

silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute

vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor

incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as

manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou

comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo

com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)

eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo

27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf

Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da

Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de

incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de

manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em

linha]

30 Op cit p 52

31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa

Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136

32 Idem ibidem

27

LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera

que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de

uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao

silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e

dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena

de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos

cidadatildeosrdquo 33

Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido

como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade

para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o

escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir

quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui

objecto do processo34

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo

do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais

concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas

inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e

desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)

Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de

matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da

verdade material

33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso

34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27

35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)

p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op

cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133

36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss

28

A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal

inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais

de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do

indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava

como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias

processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe

sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total

impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos

probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)

Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime

disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem

admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura

Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo

penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII

e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)

O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e

desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo

do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA

RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente

o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse

conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento

da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a

Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal

procedimento obter a confissatildeo do acusado

Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por

Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici

37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade

material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos

representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos

que lhe satildeo imputados

38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61

39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35

29

Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos

processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com

verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do

lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em

submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um

segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o

considerava culpadordquo40

Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do

Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O

procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi

aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se

serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas

No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era

a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova

central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste

paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse

inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a

verdade que incidia sobre o acusado

Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre

Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a

alterar-se

No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos

naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se

constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a

puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer

medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se

40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137

41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62

42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64

30

Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o

indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo

inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu

direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal

torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa

espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas

consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria

afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval

Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade

julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo

necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje

ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)

eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil

CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal

apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-

se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema

por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes

estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los

intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los

interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio

cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio

del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto

del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por

parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de

investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial

que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y

de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque

soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44

43 Idem ibidem

44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1

ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122

31

Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de

armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a

autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as

partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas

caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos

assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash

que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio

PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45

Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra

com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-

Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e

aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental

reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)

Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria

na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare

45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico

desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado

contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador

do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a

condenaccedilatildeo do acusado

46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we

send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma

de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36

47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era

influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores

onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os

procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o

processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que

metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute

acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se

tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou

incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute

incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer

confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas

(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93

32

O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que

surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em

instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do

arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu

surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao

crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio

Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o

mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu

aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a

partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo

de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua

vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs

aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o

indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo

Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito

que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their

defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este

princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da

obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the

Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with

respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo

48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37

49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123

50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100

51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio

encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento

que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se

verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente

e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o

arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este

panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado

porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39

33

Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos

em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da

assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior

conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)

Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em

documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo

mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em

17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment

(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que

ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O

entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de

duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo

do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54

Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito

contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o

poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de

declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes

de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da

responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao

suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a

estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido

A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos

tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia

[em linha] Disponiacutevel em

httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075

ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido

que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte

porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no

sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22

53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104

55 Idem Ibidem

34

mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da

doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees

voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees

forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession

doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar

a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial

O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se

destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-

incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia

americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash

tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado

Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos

estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia

ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com

vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente

admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e

56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]

Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)

por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio

policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se

fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em

audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado

A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do

advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal

do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo

da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes

e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo

ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o

perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais

de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo

57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os

direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114

58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a

guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo

tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio

deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode

voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op

cit pp 104-114

35

portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como

uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito

o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais

sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the

determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following

minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess

guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o

nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de

fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP

mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um

processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com

a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo

14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de

uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60

Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do

direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de

1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de

julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61

O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas

limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo

59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de

um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente

todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o

conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo

numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo

acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm

devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo

60 Idem ibidem

61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14

36

pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929

acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu

incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves

segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode

evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu

pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao

art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de

responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63

ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao

silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse

remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo

de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito

pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como

demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65

A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um

controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu

Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute

verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa

inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade

de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de

proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao

silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da

proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66

62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933

Volume 4 pp158 e ss

63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160

64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem

autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa

mesma valoraccedilatildeo contra reum

65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13

66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14

37

Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a

obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido

(art342ordm nordm2 CPP)

O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a

oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na

redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao

arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais

Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta

atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves

perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes

criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas

declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia

previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees

previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal

O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos

antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de

defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto

pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs

O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres

processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo

responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e

sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)

comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

68 Era o seguinte o teor do preceito

ldquoArtigo 342ordm

1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de

nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo

2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal

que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal

3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer

incorrer em responsabilidade penalrdquo

38

exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em

responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)

Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as

garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de

que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70

para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos

direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo

penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao

silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de

inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da

questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus

antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao

silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido

O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo

art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a

obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o

arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de

prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo

se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido

poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu

tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos

referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda

mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda

natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a

comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72

69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a

resposta com verdade sobre os antecedentes criminais

70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm

do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)

pp105-106

A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma

presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA

39

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se

ipsum accusare

Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo

tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs

Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73

Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio

entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for

retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)

para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar

declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as

garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que

constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do

arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)

72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os

autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro

interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil

mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo

Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e

ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime

prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes

aos antecedentes criminais

73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea

comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al

detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2

Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la

acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba

pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos

en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo

74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos

entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo

75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por

comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute

mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos

El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute

justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda

especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en

ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la

autoricerdquo

76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a

presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of

War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in

40

estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a

autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo

expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma

uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo

impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a

doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza

constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em

geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79

A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees

legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do

princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos

anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o

direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao

arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm

nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o

legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e

any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property

be taken for public use without just compensationrdquo

77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125

78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)

p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil

Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado

princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos

69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo

79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20

81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder

a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles

prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for

necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia

desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico

nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os

factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a

recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]

41

perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do

silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como

forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei

processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de

advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do

arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos

previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas

obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que

ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos

interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada

natildeo podem ser utilizadas como provardquo85

O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves

testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando

alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de

responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento

que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito

legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo

interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo

de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86

Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia

natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)

donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio

83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido

84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou

um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se

necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA

constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do

defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial

em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de

poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo

85 Itaacutelico nosso

86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as

pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si

mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20

42

Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo

tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais

limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que

natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios

de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de

caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana

natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias

processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no

segundo pode sofrer limitaccedilotildees

A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira

vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos

fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal

(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na

doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente

processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios

nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de

defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio

do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou

ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da

estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a

maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores

optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas

87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) p58

88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123

89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595

90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) pp69-72

91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ

(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28

92 PALMA Maria Fernanda op cit p103

93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit

(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss

PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133

43

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)

A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos

fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da

personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente

na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de

personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante

GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95

2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo

violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes

1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal

respeitaacute-la e protegecirc-la

19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia

O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento

da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de

defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito

geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de

prova contra si proacuteprio96

A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana

justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial

de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a

impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por

consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a

mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo

94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im

Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de

entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63

95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die

Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist

unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem

Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa

96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125

44

indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por

ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de

personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do

legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera

indisponiacutevel da liberdaderdquo97

ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa

do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto

componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana

Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias

constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as

garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal

A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa

(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa

possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o

seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito

fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm

CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O

silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo

art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza

aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e

aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo

Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de

claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros

seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa

do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se

indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido

97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5

nordm19 (1987) p186

98 Op cit pp81-91

99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2007 Volume I p516

45

defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio

na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da

dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos

cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis

infraconstitucionais que a violem

Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia

uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do

ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do

exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o

fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder

puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo

princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um

conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do

arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101

A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade

pessoal constitucionalmente previsto

O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a

impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis

degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da

pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte

autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a

Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que

o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)

primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo

objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da

dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da

100 Op cit p 90

101 Op cit p 91

102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos

fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal

direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198

46

respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana

enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as

praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da

qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios

racismo)

Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser

ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos

crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes

de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou

enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave

integridade fiacutesica e moral da pessoa)104

O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa

mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a

respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder

legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via

da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da

investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou

moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash

art32ordm nordm8 CRP)

A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de

tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura

como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de

tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado

senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento

103 Idem ibidem p198

104 Idem ibidem p454

105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo

intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a

punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira

pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um

agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se

considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)

47

[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o

tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil

descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito

menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes

dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada

accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se

distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106

Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal

mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas

obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a

impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no

processo criminal107

Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir

fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus

corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana

integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato

do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur

que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na

imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos

parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do

processo equitativo do que com as restantes109

Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a

autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de

conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo

no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97

107 RISTORI Adriana Dias Paes p76

108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do

art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal

Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)

109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199

48

arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de

vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode

o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do

processordquo111

Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da

pessoa humana

Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana

e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto

da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser

meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio

ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu

fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade

humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de

Direitordquo112 113

Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a

dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana

justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual

e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo

contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur

comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da

plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem

como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como

111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41

113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO

DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade

humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo

efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para

o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas

humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um

Estado de Direito Democraacutetico

49

objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos

processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114

32 Fundamento constitucional de natureza processual

Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um

fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que

a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito

Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas

relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente

processualrdquo116

Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores

divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem

entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da

estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com

aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser

ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de

defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria

Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos

nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial

114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores

desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo

tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64

116 Idem ibidem p63

117 Idem ibidem pp68-69

118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e

3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial

uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez

referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo

Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo

50

declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos

seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente

enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo

essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como

lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal

admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que

adiante aludiremos

MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo

da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de

defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a

partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de

natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao

arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash

ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova

De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute

indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao

silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm

nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o

tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a

exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza

processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva

119 Op cit p103-104

120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais

Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio

Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da

estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e

de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio

e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio

prejuiacutezordquo

121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo

prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre

noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de

Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178

51

legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e

instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos

direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a

defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou

conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao

silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do

processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe

permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos

processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo

queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de

constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias

que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer

forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido

deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de

defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do

arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia

Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional

do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo

pode ser forccedilado a incriminar-se

Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido

se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como

conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em

detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do

122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516

123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p28

124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430

125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)

52

processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de

custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo

de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento

criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o

estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126

A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de

tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro

sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de

um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social

juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute

impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da

presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se

impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a

acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo

da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado

como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e

equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128

O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o

processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo

nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a

sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo

A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do

arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre

participaccedilatildeo

O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais

Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos

126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518

127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60

128 Idem ibidem p59

129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p9

53

direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos

nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual

eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm

nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios

admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua

posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5

CRP)

A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do

arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto

ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo

princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos

os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a

utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua

decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de

uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante

a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa

a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e

sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das

declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como

fundamento do direito ao silecircncio

Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo

prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar

satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do

processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo

130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429

131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf

VILELA Alexandra op cit p95 e ss

132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a

tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo

134 Op cit pp132-133

54

pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser

encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a

presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de

que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo

eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio

Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se

autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo

contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em

desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado

com a presunccedilatildeo da inocecircncia136

A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e

do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de

comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se

autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de

inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo

ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees

susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao

arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que

serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados

com a sua culpa

135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de

inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016

Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25

55

c) A garantia de um processo equitativo

Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma

causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo

equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave

justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave

sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute

especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e

art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao

processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia

do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do

proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel

As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm

quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due

process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de

saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a

obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser

privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due

process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele

proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente

estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas

ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo

legal dos mesmos processos

Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na

Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo

legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas

138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP

139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina

2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando

estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de

exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal

a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado

segundo princiacutepios de justiccedila)

140 Idem ibidem paacuteg493

56

tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos

vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual

Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma

decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma

decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o

direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de

pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e

independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual

conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o

direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda

o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela

contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e

contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado

deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees

judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das

sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados

em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do

processo142

E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito

criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente

Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez

tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o

contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e

da noccedilatildeo de processo equitativo

No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no

art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel

com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave

instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo

proibiccedilotildees de prova entre outras

141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415

142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501

143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150

57

Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo

estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave

dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do

contraditoacuterio144 e a igualdade de armas

Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do

processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo

No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o

nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez

eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao

silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que

demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes

Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147

No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais

franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria

(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no

estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos

de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca

domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos

no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas

autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular

de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea

qualquer extrato bancaacuterio

Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos

documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo

garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido

144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os

testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit p523

145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

58

sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo

montada contra si

O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a

condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora

natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os

documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele

proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que

as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo

podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em

permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1

da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a

presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149

No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo

probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo

tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)

por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde

estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do

IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no

momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio

ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido

advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas

consequecircncias

Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos

juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do

exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto

natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida

que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient

lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave

fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient

justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point

contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

59

satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo

de processo justo150

No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi

chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo

(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash

Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise

mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos

interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no

procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal

cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia

(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num

processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas

atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa

medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152

Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela

sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo

como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o

enquadramento nas garantias de defesa

150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police

questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair

procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom

151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v

United Kingdom

152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para

prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125

60

61

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare

Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur

(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da

sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como

corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao

silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do

nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas

Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma

visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito

por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees

doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees

potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de

154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos

do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da

Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais

tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29

155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss

156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a

auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-

43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins

SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica

Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44

Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer

afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo

157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel

em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser

condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g

documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou

ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo

Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

62

documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio entre outras

O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar

a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo

tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o

arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a

questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua

responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao

silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo

representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159

CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos

e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito

brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer

caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas

capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a

impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a

intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da

reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de

tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar

juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do

acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-

incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova

de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria

[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do

158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United

Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused

person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to

incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo

159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30

160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo

significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos

normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma

63

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se

relacionemrdquo161

Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta

posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito

desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um

processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas

preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de

fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente

obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma

colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162

A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute

comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a

concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do

conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute

autoincriminadoras

O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o

arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias

probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado

(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de

sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163

Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou

meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente

imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume

natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos

uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito

interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos

atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material

ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar

(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo

161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43

162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21

64

ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio

uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito

Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de

recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em

muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos

limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de

coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede

constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do

conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de

outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz

social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer

limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em

diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado

comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse

na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente

e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver

Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts

that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v

United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right

to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46

Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of

inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do

Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295

de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos

todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz

op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm

142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-

dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio

especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de

Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash

Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo

tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e

garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e

nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74

165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias

no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406

65

Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal

validade normativa e validade material

A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre

validade temporal validade material e validade normativa166

A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo

o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao

Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167

Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu

dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos

166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072

167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana

da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito

ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser

assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel

da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista

civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese

o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante

qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito

vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa

resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no

processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um

dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer

espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos

sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio

geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os

procedimentos criminais independentemente do tipo de crime

168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico

Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183

Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente

influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal

constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como

constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja

inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem

sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH

admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no

66

anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os

direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende

esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo

equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa

criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no

encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos

demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no

processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a

acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de

ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios

Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a

dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal

todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando

formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de

haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias

incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo

de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de

um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH

no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o

conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para

acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeordquo

169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland

SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a

witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged

was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1

That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It

may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal

offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo

No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa

criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos

alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que

se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na

substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo

67

aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de

lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta

primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas

formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa

seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)

segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da

sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o

caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e

repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo

apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza

criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do

criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173

Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se

intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo

autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto

mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de

validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo

O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode

ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a

uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um

crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua

constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the

provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both

concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be

examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States

The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would

generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks

incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a

punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at

stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all

require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the

subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo

173 COSTA Joana op cit pp127-128

174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23

68

art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste

caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da

anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa

relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou

que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o

caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito

ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)

Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes

forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo

de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no

art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes

satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua

responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido

tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem

Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se

deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual

responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe

forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em

falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente

poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os

parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele

viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal

por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada

nos termos do art 364ordm al b) do CP

Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash

temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento

eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no

decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da

sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio

do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188

176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o

caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

69

autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da

monografia que nos comprometemos a responder posteriormente

Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da

personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas

fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma

perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a

comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio

Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos

da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas

na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu

estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-

se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou

quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178

O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta

determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise

sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o

caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o

direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias

de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova

confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo

que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo

MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126

178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o

acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo

179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo

180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao

silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as

manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP

que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais

existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da

atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e

art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de

base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio

estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da

70

Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a

possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa

verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS

ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el

procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay

que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega

sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por

supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado

p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico

como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute

mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido

teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado

psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como

cuando se lo confronta con un testigordquo

Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser

conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser

considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou

quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade

livre do arguidordquo183

Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm

CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do

CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas

de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]

sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9

do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida

de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135

181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133

182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees

prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames

(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do

Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito

ao silecircncio

183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176

anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430

71

lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a

diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou

obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser

compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo

Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas

legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando

alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas

normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias

ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta

questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da

atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo

se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da

personalidade187

184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP

185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber

se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e

aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)

encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a

recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos

parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao

referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a

utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo

seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo

Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de

amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm

0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta

mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias

entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade

judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode

por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo

Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser

aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado

186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo

187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros

2003 I Volume p870

Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a

72

Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da

prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei

Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura

coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que

devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da

integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento

delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas

corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora

facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com

o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para

obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de

sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de

alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda

que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito

Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de

novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova

mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo

nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da

sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados

elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser

assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm

CPP

Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a

possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam

cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o

processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a

busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este

todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz

(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo

188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit

p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido

nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico

Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora

descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo

189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362

73

Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado

indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade

pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma

total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila

Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo

com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva

no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as

autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a

exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito

processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio

meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)

Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever

geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor

agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)

atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)

prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos

125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um

dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191

Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios

de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova

[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a

de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo

do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se

190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio

Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255

192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316

193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658

74

como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica

vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195

Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que

tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito

constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse

motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam

garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na

CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que

devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do

CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver

expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo

exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o

enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em

concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos

proibidosrdquo197

Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm

nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de

obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si

mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua

apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios

de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para

investigar e recolher meios de prova198

De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos

171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade

material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que

ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo

195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658

196 Cf op cit p255

197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua

proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256

198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio

FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361

199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os

segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a

75

que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios

que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi

praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1

estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo

do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame

eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios

materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do

circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se

apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios

pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos

vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade

judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os

indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201

Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de

prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um

lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou

menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de

coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc

constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202

Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais

sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser

alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de

vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo

representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a

tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende

a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita

medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua

conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a

detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit p 420

200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870

201 SILVA Germano Marques op cit p236

202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439

203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)

76

utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo

preventivardquo204

Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e

quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo

contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como

parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e

jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo

Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o

que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem

proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que

forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de

fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um

alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei

atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo

extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita

demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios

fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de

assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave

liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206

Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de

modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias

(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e

direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal

(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas

204 Cf Ac TC nordm 2282007

205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento

p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os

MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas

Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento

na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3

ald) do CPP

206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes

77

tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de

diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207

Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS

que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um

meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser

entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de

coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a

restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente

imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade

pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames

em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208

A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito

a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de

substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a

obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do

estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos

casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm

nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando

ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de

agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel

ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver

indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees

referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade

social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico

adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se

mostrar necessaacuteria (nordm3)

207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de

2009 p12

208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]

209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)

210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar

necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo

211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro

78

Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo

de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os

exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como

esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do

Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que

sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e

consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite

fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo

acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o

arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a

questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo

suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio

artigo 61ordm)rdquo

CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita

(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo

existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que

imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm

nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular

Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame

devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe

estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo

213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para

determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004

ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de

autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo

de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua

realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser

compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo

Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a

recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa

bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora

tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia

214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame

para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua

presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia

qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo

menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo

79

adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na

lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a

um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que

resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215

A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se

extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por

demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216

Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames

ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do

arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e

aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo

A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se

pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida

pelo nemo tenetur

O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou

accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash

apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo

permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo

podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido

maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais

ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219

215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18

216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo

217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash

setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana

218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales

como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No

obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen

corporalrdquo [itaacutelicos nossos]

Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e

ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073

Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss

219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da

influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um

80

O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de

submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos

mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur

uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido

admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de

periciardquo220

No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-

se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria

atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A

produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do

acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo

acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra

a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante

entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a

participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras

Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou

agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo

das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)

Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse

compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo

Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva

(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina

fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso

a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do

princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a

invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas

hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59

220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]

221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma

voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo

da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem

significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

[itaacutelicos nossos]

222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64

223 Cf Op cit p316

81

germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia

portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo

eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida

e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja

meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do

arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar

uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem

pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se

agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se

torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento

tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo

do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo

chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o

reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou

manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta

linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se

para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228

224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa

op Cit pp127-128

225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit

p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit

pp98-99

Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos

ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas

as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss

Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter

afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma

mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como

obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de

colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato

Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos

classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de

marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo

fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo

sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo

226 Op cit pp103-104

227 PINTO Lara Sofia op cit p99

228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131

82

Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande

vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode

ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo

podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute

que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo

O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da

vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo

tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do

sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230

Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela

vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o

direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes

coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente

colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231

229 Op cit p368

230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -

op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007

ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en

los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o

expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra

la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto

del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen

los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier

Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13

[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar

231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the

will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and

elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of

compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a

warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo

mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo

y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros

intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad

de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo

83

O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh

v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo

tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas

advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o

acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de

documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material

corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o

TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime

grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave

recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo

de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo

duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234

No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu

acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina

acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do

arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila

do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do

arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do

sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de

saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui

nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se

confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que

independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar

como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que

232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102

ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused

person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not

extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which

has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or

voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a

recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido

233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila

234 COSTA Joana op cit p157

84

pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-

incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como

AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente

acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao

silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da

vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas

natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem

ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as

declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois

natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo

mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que

razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob

ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva

ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo

Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a

conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a

aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do

arguido

Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio

da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237

235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora

processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se

a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis

em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo

afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito

ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal

(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que

respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira

linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo

em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e

adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional

nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

ponto 7)

236 Cf op cit p24

237 Cf op cit p23

85

fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica

dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos

afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de

documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando

dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo

entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela

compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios

conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos

direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio

da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos

VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa

Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada

situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente

protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma

ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do

nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias

fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si

mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre

autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria

eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes

implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)

O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito

de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e

direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o

238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299

239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)

pp1270 e ss

240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300

241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil

estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores

por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais

elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76

Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com

intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior

parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300

86

mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos

Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo

tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses

valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de

outro bem em jogo

O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional

admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da

mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito

produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de

variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma

prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um

criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em

conflito

Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos

valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos

direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo

e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244

A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o

conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa

segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de

direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos

valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas

circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246

Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em

termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all

or nothingrdquo ndash op cit p 23

243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301

244 Cf Idem ibidem

245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303

246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303

87

concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor

comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio

total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou

da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247

Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem

construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na

prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)

Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois

de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que

um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro

(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto

podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador

Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas

as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir

para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade

pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de

valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave

obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais

contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o

direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade

na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de

intimidade da vida privada

O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade

corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais

preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea

da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274

248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem

249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este

respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave

integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das

pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo

comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de

outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo

88

como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas

contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252

Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas

normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de

exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo

nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a

possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a

muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia

constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades

e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm

nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em

decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda

de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)

for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo

18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir

a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da

Constituiccedilatildeo)

A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade

pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer

meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos

ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees

agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de

alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores

admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave

reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e

integridade fiacutesica de terceiros253

251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino

disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de

dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins

criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264

253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o

mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode

deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia

89

Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de

circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a

adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente

pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em

condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes

ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos

diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave

conduccedilatildeo

Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila

rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor

e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo

do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez

art292ordm do Coacutedigo Penal254

Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser

acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova

dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a

satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo

das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez

aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para

afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma

intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio

todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na

caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a

conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a

tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de

deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual

estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no

excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave

realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo

254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011

relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013

256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira

Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013

90

elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem

proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257

Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo

Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de

autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita

no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou

psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por

regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade

um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas

quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo

da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na

colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode

considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos

cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo

de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele

direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258

Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da

concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se

ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da

estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado

fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios

do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees

257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]

258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]

259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23

PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos

da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26

260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash

recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a

integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou

princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas

se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam

independentemente da vontade do sujeito

Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o

criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses

91

parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei

preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao

princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim

para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma

lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo

entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores

juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento

do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a

necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263

O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo

da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos

restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da

restriccedilatildeo ao nemo tenetur

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees

justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na

impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a

261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]

262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade

de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31

263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo

e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade

da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo

fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de

eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como

acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a

condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por

aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da

medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia

probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais

relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo

264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem

reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas

circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra

a sua vontade)rdquo

92

restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em

lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)

No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo

tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade

(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos

(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de

acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar

exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas

(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo

tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito

de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas

pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia

previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei

nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM

Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel

sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja

superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio

da proporcionalidade]rdquo265

O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas

legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de

natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo

obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais

de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem

inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas

obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios

subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou

a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando

essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o

exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266

265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21

266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36

93

Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma

forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor

constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da

prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa

prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)

ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou

direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute

considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de

desobediecircncia

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir

Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do

direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade

de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do

silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao

silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio

de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270

Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo

267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido

pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa

desfavorecerrdquo

269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud

ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute

reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais

meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches

nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido

do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido

juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o

arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou

parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS

Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP

BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua

incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de

culpardquo

270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449

94

pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico

jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271

ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave

livre apreciaccedilatildeo da prova272

No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA

defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de

defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o

desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee

o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou

negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade

O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a

determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273

Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente

desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero

ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou

desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou

parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio

tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar

consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de

circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)

271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861

272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit

p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do

silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo

273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub

Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido

de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo

MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 ponto II

274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique

qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo

do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com

o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular

o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo

275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

95

O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto

a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias

que as regras da experiecircncia comum permitam

No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio

e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a

que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em

julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o

silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de

ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a

possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas

consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de

esclarecimento sobre os factos a si imputados

O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa

em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal

que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem

claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na

avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto

comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma

decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem

qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por

inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma

276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in

particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are

absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or

alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper

compulsionrsquordquo

277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely

or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally

obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from

him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two

extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be

answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should

necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed

out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent

on this pointrdquo

96

explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de

acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder

estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um

raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por

inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de

inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo

de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do

arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo

Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido

renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados

remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis

no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova

por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida

tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o

facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior

credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da

experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o

arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior

credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente

a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)

O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes

enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a

concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas

para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente

retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode

impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham

Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo

que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova

formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a

responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo

podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos

278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150

97

casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio

contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos

suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e

deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como

instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar

alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo

probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma

seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo

Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves

perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de

existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido

pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento

eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que

sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a

mentir280

Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal

direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos

em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever

moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia

juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir

que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido

ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721

280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo

tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na

doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto

de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente

tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O

interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES

op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo

apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a

uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode

declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo

281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente

tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo

282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance

praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo

98

nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por

isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285

Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento

considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um

processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos

inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um

ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel

Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash

que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade

(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada

indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas

O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de

direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos

e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo

com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais

salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma

limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais

compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo

283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451

284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se

autoincriminadora

285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de

2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento

juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a

inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito

Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)

286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP

287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss

288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as

pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo

agraves pessoas coletivas

99

que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel

de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente

os mesmos termos e amplitude em ambos os casos

Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas

pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum

accusare

Vejamos

Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do

princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios

independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo

constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave

partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada

pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa

agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289

Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas

coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes

(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio

que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser

titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos

fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas

privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter

direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a

competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo

exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas

puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114

Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de

aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de

interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou

de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op

cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss

289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e

concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179

290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas

da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137

291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns

sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o

cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento

dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de

100

ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se

podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em

processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido

[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292

Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos

natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza

das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo

documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade

econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur

292 Idem ibidem

293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas

coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees

impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com

contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487

disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas

coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de

uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma

infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave

disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio

expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que

os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como

sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar

contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as

ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves

pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio

das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm

nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da

concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo

testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito

de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia

Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de

salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o

Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa

evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter

determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por

conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de

acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas

as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua

posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento

anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave

empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34

101

de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295

44 Dever de advertecircncia

Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve

resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz

cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de

Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal

recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o

arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e

esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e

natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no

CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio

total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees

o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se

antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298

Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina

com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o

294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em

si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as

ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com

esses lugares e com essas coisasrdquo

295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42

296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria

insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse

conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos

resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o

autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a

invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta

processual ase adotarrdquo ndash p227

297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela

da Costa op cit (parecer) p39

298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules

que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia

HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222

102

depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar

depor300

Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em

caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de

advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da

violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a

formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado

da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e

autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do

nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum

accusare satildeo na verdade realidades interdependentes

A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao

incumprimento do dever de advertecircncia

Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo

ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se

inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo

de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees

prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu

autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como

ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur

299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento

1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas

a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido

b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em

condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo

300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas

autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a

faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente

mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo

301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da

Costa op cit p84

103

se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do

direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria

inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve

ser a mais forte possiacutevelrdquo302

A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta

eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo

daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que

sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim

um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem

aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a

proacutepria incriminaccedilatildeo304

Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele

qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A

nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante

intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O

argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que

em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim

os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo

tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e

esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em

prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as

declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo

prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de

advertecircncia ou esclarecimento305

Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo

tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem

303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel

Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit

p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43

304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio

305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36

306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127

104

com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante

tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra

soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas

sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral

autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou

da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308

Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE

haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309

eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o

qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a

proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova

cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar

que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito

embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos

da nulidade do ato

Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do

CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo

servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais

quase como se natildeo existisse)311

Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute

somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros

meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida

Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem

como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-

distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

307 Idem ibidem

308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a

devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia

Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447

309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193

310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss

311 Idem ibidem

312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss

313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas

consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo

105

probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos

documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos

proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica

se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de

afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo

objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315

Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia

dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave

consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao

art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato

com a nulidade ele eacute apenas irregular316

deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais

meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree

(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este

entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit

p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o

efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp

32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194

Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da

jurisprudecircncia

Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do

efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of

the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel

em

httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905

Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver

SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40

314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves

declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS

Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in

Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de

Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina

2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17

nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op

cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous

treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode

frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de

prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos

disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321

316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p

359

106

107

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza

juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um

devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo

encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se

sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos

estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito

Privado

Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e

simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de

cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso

exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres

para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se

encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do

contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo

tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois

que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss

318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute

sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o

conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que

significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter

tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre

outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas

a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada

cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)

108

categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou

outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo

juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor

ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)

cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os

dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento

da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria

tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo

juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o

contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo

concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a

prestaccedilatildeo de imposto

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321

alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo

de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres

acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar

e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322

319 Cf Art397ordm CC

320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de

Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011

p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o

direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um

determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal

como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal

natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos

negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para

satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA

umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que

apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por

acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11

321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e

os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15

322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss

109

A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo

(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo

exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a

custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324

Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica

tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua

complexidade325

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo

principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias

Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa

As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um

determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo

juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos

eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326

A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de

um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do

conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327

De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto

da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o

facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de

sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente

323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss

324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16

325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L

Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal

2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de

Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal

Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss

326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra

Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49

327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss

110

em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma

tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de

mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees

financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao

trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos

aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o

contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute

suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo

existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas

uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330

A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma

abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo

tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de

pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos

acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de

emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e

entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante

328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo

mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e

tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss

329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute

de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar

atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT

330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o

sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos

exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de

ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que

natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da

entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio

pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a

mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs

grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf

ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular

trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal

Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto

de estudo

111

superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante

os casosrdquo331

Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da

obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou

demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas

porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros

moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere

a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo

que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os

deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram

autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave

praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees

legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo

acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia

pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336

Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa

relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e

das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto

significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de

pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na

lei

331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10

332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo

333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee

aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees

que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31

334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do

sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de

documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo

335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20

336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32

337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11

112

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria

Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da

LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o

pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos

declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de

cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto

em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que

estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais

accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340

Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios

que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a

declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar

o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar

recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e

os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar

periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o

dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1

da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade

que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um

comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere

Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica

como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e

ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La

declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a

estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala

maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo

339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79

340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os

deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por

outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como

objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

341 Idem ibidem

113

A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo

pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e

de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre

obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente

formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo

de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em

ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e

situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma

posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343

Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias

tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema

de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos

uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos

necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de

uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida

preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento

patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que

muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados

pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e

cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo

juriacutedica tributaacuteria346

342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e

executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op

cit pp253-254

343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27

344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130

345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT

ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos

rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal

sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos

sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias

346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47

114

Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela

lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo

pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347

O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada

complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica

exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades

contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees

especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um

modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades

sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina

estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa

enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes

(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)

A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de

determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar

um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os

particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado

por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas

contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no

ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-

pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo

conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto

prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave

Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres

esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e

auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas

347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss

348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de

uma diacutevida tributaacuteria

349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56

350 Idem ibidem

115

O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos

contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme

prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo

tributaacuteria e contribuintes

No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios

textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei

Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees

acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da

obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos

previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354

351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode

suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e

efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de

avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT

352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre

contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais

sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos

Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de

cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo

paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as

relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte

ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA

CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que

estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)

Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais

ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave

obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na

exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp

57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254

354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo

1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo

2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que

personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital

exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo

116

O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja

que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo

normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que

existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros

(art59ordm nordm1 da LGT)

Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria

para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular

e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais

interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria

esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo

de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao

exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se

observem356

Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento

esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo

os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a

administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e

a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como

sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4

da LGT

Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos

referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade

inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo

modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria

de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos

355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110

356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT

357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT

117

comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta

solicitados358

Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja

simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem

apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do

dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica

Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia

do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de

determinadas tarefas de imposto

Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)

declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos

declarados

No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que

seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que

recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos

iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos

Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz

remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo

tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram

de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo

Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da

prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere

(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os

factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres

358 Cf Art48ordm RCPITA

118

acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de

cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos

rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto

encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais

deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de

entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)

obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade

(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de

cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de

entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da

declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir

faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada

(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais

obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a

sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o

subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo

Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo

tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os

princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da

celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O

objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a

realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva

359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss

360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte

361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-

administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de

uma vontade jurisdicional

119

daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do

art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material

Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria

implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na

sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois

apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido

apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo

ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta

iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade

contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por

qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)

que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material

vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio

daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou

mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash

prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364

Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute

o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como

estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos

Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e

absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade

362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da

Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor

total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as

pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios

constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a

capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre

a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit

(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss

363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112

364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44

120

processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material

subjacenterdquo365

As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que

assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios

princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da

igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que

tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo

equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de

cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo

365 SOUSA Rui Correia ibidem

366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o

preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O

princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em

diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o

desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a

tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o

art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo

legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta

op cit pp 137 e ss

O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a

imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da

mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios

fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142

Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees

acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei

O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio

material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo

encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em

sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num

procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido

formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual

de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de

2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash

Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M

Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal

Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em

httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit

pp137 e ss

367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio

368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84

121

com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se

verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o

pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica

A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades

contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade

vertical)369

A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva

permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais

Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de

pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de

declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos

passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva

quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser

considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se

de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias

(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo

do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade

contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades

detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os

deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm

maior capacidade de prestaccedilatildeo371

369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154

370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166

371 Idem ibidem p169

122

123

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo

Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se

aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo

Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que

natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees

tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos

elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de

factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para

fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames

teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o

ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com

o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas

tributaacuteriasrdquo375

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou

terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que

eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio

das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num

controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da

372 Cf Art 4ordm do RCPITA

373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA

374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA

375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12

376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)

p164

124

Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo

lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as

normas de incidecircncia tributaacuteria certas

A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma

funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees

funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo

fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento

tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios

contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer

com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que

busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e

controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute

efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria

Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca

dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria

Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos

princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os

princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores

da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem

bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na

administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo

377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento

Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011

Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss

378 Cf Art 2ordm do RGIT

379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30

380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167

381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30

125

tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio

da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e

igualdade)382

A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo

oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da

obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho

das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio

supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo

deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes

concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios

relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar

desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria

de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes

fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de

investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com

382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183

NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss

383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar

um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute

verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento

Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de

Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash

roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19

Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio

Coimbra Coimbra Editora 2009 p372

Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das

necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva

SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa

tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do

Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que

implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte

natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em

consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de

arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios

de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) p19

384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45

126

base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de

irregularidadesrdquo385 386

Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral

eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos

arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na

restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva

pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da

vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave

propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da

inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a

AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs

dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a

medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica

se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a

adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que

melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada

na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do

considerado juridicamente aceitaacutevel)389

O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito

da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem

385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185

386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria

estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo

tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo

tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio

no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010

387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio

Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)

388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo

tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados

pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre

outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)

389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163

127

ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os

contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)

na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os

objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou

prossigam os fins pretendidos390

Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei

Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento

inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo

de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas

ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia

o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem

afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este

princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do

procedimento que lhes digam respeito392

A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito

passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os

factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de

inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm

da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado

Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85

391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como

esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a

AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de

proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel

392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir

que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento

nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando

devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento

tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos

sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-

126

128

ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar

partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem

acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma

decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de

evitar futuros conflitos de pretensotildees393

Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de

colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do

RCPITA)

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo

Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado

que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394

Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao

inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o

acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem

juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer

todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria

relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos

relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do

RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396

393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57

394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo

de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder

395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100

396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves

instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das

129

Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em

termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na

inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este

dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-

tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em

variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside

nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de

entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc

Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de

cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria

instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos

mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos

relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos

estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de

empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade

puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o

desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das

entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas

funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)

Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos

dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros

com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados

indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos

contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das

accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de

processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros

Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais

entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo

63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise

laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para

apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos

sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre

que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees

agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou

internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees

de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito

nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas

de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT

397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss

130

Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a

entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso

agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio

ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo

quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios

para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos

determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio

dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem

praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA

donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que

sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua

atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar

designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou

uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)

Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos

inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e

compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum

a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a

relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)

Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito

passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um

representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o

cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta

atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes

legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos

atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do

398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados

tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm

do RCPITA

131

sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material

(art54ordm nordm1 RCPITA)

Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a

cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo

Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do

procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos

por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente

necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para

com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com

antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1

e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa

notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)

Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a

exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400

aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo

Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado

pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos

sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto

leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever

O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo

sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves

desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA

400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65

132

colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o

infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal

nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos

passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando

ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da

leirdquo

Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos

funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a

AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de

responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos

mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito

pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica

Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei

diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da

aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos

gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei

prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente

impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art

14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo

bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave

coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas

para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)

A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste

paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou

presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de

cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo

realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros

elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de

401 Idem ibidem pp175-176

402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A

quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss

133

boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo

apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo

colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da

mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos

vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo

ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos

seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos

fiscalmente relevantesrdquo403

O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a

administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos

elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe

satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma

recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma

presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees

aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406

Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um

caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos

princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte

403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295

404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito

incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com

a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees

Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No

entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as

suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a

avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos

rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -

Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel

Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss

405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69

406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade

material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195

407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303

134

natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a

Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408

Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de

cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo

de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia

art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas

contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo

Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do

dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo

cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em

que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras

limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas

que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave

pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas

precedentemente mencionadas411

Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo

do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever

408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten

tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-

constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola

Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes

Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando

natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por

existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms

87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo

409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48

410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174

411 SAacute Liliana da Silva op cit p130

135

de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime

Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida

iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e

garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de

oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a

diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com

base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda

como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos

funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)

Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa

em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois

tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o

princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a

mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia

ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave

ou injustordquo413 414

Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de

documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees

entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo

412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de

competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada

pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA

413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2010 p767

414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento

Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a

recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de

colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou

dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou

descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas

[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do

direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)

Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo

136

ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres

e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes

a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais

Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio

em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a

colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)

137

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem

verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o

dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em

colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais

ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de

colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo

penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um

crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129

416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo

Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137

417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169

418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o

contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo

tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT

138

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte

O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual

consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e

mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas

O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado

eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela

Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco

caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de

fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar

com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou

documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do

dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do

inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo

em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do

arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se

ipsum accusare420

Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo

Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na

virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que

ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos

indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder

419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o

caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado

a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares

supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do

processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores

mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da

concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp

199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash

Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS

Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56

420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149

139

de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se

tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute

impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel

a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a

transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria

condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-

dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423

O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou

coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma

soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo

Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer

apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro

lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando

os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de

um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento

sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo

421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148

422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52

423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127

424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la

articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a

eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute

contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do

sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na

preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de

ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo

o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso

Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave

Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do

obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales

140

autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na

generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de

declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do

arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425

Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de

forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash

que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos

de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute

aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia

desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para

o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo

dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os

documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas

pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se

incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por

exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado

tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del

sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade

do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja

essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este

grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo

inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia

depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais

ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo

tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la

imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar

contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis

Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf

425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho

a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)

enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma

qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos

426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo

estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica

verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o

indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria

427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el

proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em

httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF

141

livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo

desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)

Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o

nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o

princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo

tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo

para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem

relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito

inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade

dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do

sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente

ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a

invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na

opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo

que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a

posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante

perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou

criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova

dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos

aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da

428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35

429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten

tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de

conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido

consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios

Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf

ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento

concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo

utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario

responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de

voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de

terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente

sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a

no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros

dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo

142

determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas

implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que

os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam

determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente

permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter

autoincriminador

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades

competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees

Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo

das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito

por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que

se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica

Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria

Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de

inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e

Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de

acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As

direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria

e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou

designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas

desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo

da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de

dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430

430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103

143

Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das

Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e

a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei

referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de

Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que

integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da

LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de

poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)

Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade

denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as

entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade

Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo

que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura

de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da

estrutura de serviccedilos regionais e locais

Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a

incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos

de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees

A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que

lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do

territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de

acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a

accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se

encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os

controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional

prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos

iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433

431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo

432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro

433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)

144

Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de

Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos

centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434

No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo

destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e

agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais

eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439

434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm

435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente

designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-

Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea

da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria

e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo

tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos

manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de

inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a

respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades

orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de

contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com

os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar

pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar

e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a

metodologia em vigorrdquo

436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por

DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo

com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo

437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da

gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila

tributaacuteriardquo

438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011

439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro

ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de

Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees

Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees

Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A

Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas

145

O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial

determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para

desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia

esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de

competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses

casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos

passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo

considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC

Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades

orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo

Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)

que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho

nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos

contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos

contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees

efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos

de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da

Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441

Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal

portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus

do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os

atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam

aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe

assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja

Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm

as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]

440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97

441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012

146

sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder

do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que

entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a

delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)

Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo

penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia

criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a

cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo

ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP

No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da

administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos

oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o

MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo

geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas

competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos

processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes

aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a

ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e

na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no

exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas

que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor

da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por

crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas

entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3

do RGIT)

Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo

das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de

442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas

de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes

ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal

e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)

443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691

444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT

147

investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na

medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades

No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de

dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees

tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender

uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual

tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo

penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas

especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que

nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o

Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445

Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia

do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com

competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do

RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou

por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia

(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do

crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da

administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos

mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)

Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito

por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a

todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e

termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio

apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos

interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e

445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126

446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis

447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia

delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida

ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo

448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss

148

funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que

isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos

oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito

seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua

competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da

instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a

Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo

dos crimes tributaacuterios

Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo

evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no

que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de

informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos

funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em

inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das

informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas

garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo

administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a

invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em

desconformidade com a Constituiccedilatildeo450

Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir

sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo

tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal

cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute

449 Idem ibidem

450 SAacute Liliana da Silva op cit p149

149

vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua

aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito

Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute

exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou

procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que

termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade

ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e

concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio

o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem

451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46

452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material

Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)

[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo

SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-

64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a

despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da

CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a

sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo

privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de

processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op

cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no

caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal

stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal

Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das

garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave

atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo

tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila

v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo

pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os

direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia

de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao

tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal

Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)

[em linha]

No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE

Manuel da Costa op cit pp46-49

Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito

de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias

empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de

informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo

150

obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam

uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453

Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual

o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o

conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada

Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os

trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The

Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de

ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a

qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs

Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o

conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH

um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual

enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo

formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur

Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa

do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses

autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos

sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do

artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos

factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir

em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de

uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave

empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash

(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)

453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146

454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976

455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal

contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do

nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito

interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo

e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)

456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997

457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento

em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo

na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos

458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]

151

em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos

assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse

servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave

circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de

um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio

do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo

de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa

prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno

que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor

aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o

estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh

Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada

apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em

excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo

incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos

natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido

autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a

instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade

Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito

interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por

conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que

na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja

a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada

obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao

privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma

459 COSTA Joana op cit pp123

460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending

against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him

54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding

within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give

information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself

incriminatingrdquo

461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the

Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act

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maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os

respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente

afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao

silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de

lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica

ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-

se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do

veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio

O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo

do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and

MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para

obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio

pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em

processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a

invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH

No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da

aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees

tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos

procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e

invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo

pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para

prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute

to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a

sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does

not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo

462 COSTA Joana op cit p129

463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento

penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo

para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES

Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no

autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72

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preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute

atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute

que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela

gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem

acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465

Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste

entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466

Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que

concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do

processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta

instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita

ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de

prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria

Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare

facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos

rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que

podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos

patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara

satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da

CRP)467

Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo

sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se

abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais

464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment

to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo

465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

466 Cf Op cit p22

467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de

concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244

154

eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do

nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se

exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-

los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de

determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo

tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em

inspeccedilatildeo tributaacuteria

A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo

quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo

assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito

passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou

documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o

esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos

Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia

processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o

contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a

desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre

que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um

processo ou procedimento sancionatoacuterio

Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria

incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel

se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional

O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito

corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da

presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece

155

(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela

consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se

exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e

regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado

no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na

Constituiccedilatildeo Portuguesa469

Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o

nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo

a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para

determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face

ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que

assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo

de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o

aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes

dele Mas natildeo se procede dessa forma

Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais

Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo

para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de

contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e

social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos

dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da

comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias

processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos

468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes

de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais

formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da

Constituiccedilatildeo materialrdquo

469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366

470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da

prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de

Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt

156

um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do

contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees

Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram

assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito

atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta

e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos

Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando

os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades

administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou

atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos

cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de

documentos fiscalmente relevantes471

Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de

direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual

depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas

comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude

e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos

cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A

doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de

interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando

uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos

interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da

prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um

princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia

471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos

normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela

falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH

Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do

ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na

sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo

472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo

157

constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio

inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo

A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de

inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos

do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo

agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute

harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar

pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo

forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que

acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave

presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses

direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473

Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo

sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de

utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao

abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do

princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a

utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade

e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute

diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores

que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir

para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse

obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza

tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas

decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto

473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA

RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid

2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss

158

com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave

fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios

O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como

o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo

como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo

tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute

natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e

a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha

uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito

natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475

Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais

destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e

manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso

de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de

autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio

contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave

circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o

contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem

indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos

elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo

colaborar

475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de

criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse

desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del

contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo

Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto

Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e

interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente

protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de

colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a

igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo

e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos

que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das

desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo

476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -

Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10

159

Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde

logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a

informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e

transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute

se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido

infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o

risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas

circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada

qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e

um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do

contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash

consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo

Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao

suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos

tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro

lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos

funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante

complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente

conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora

exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar

do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito

tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar

Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que

ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de

477 Op cit pp276 e 284

160

contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo

penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria

para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem

a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir

esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou

processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em

inspeccedilatildeo)

Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio

estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do

nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento

para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as

atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas

pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das

informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479

Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no

processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria

ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo

qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o

incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480

478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria

y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar

penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse

debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se

assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria

480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA

RODRIGUEZ Rafael op cit p270

161

Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se

defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa

inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo

conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela

tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos

a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo

penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente

fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481

Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo

nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do

processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo

mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de

tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com

a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo

tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente

aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos

pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de

informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados

contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal

ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483

Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres

de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que

481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke

482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves

exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos

483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador

Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de

12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

162

aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais

restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria

destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute

deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer

a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior

utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de

indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como

veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades

comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse

prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do

princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade

probatoacuteria485

Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo

tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos

processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade

torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das

realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das

infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash

considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das

infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi

estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que

natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado

comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo

484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]

todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo

arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou

poderes de supervisatildeordquo (p110)

486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284

487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss

163

finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial

em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material

proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal

onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido

enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito

ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488

Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo

tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de

passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos

fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o

sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio

de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia

a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos

solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as

que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo

funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave

partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo

penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e

constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do

sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante

veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual

Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a

colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a

natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio

poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com

a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e

488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27

489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208

490 Idem ibidem pp209 e ss

164

agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a

manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora

al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el

sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente

inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade

diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a

correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a

comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a

praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade

entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do

nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo

penal

A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em

processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo

sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um

inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma

questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491

Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em

constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e

controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento

de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de

comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito

491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos

pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101

e ss

165

(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de

fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e

tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo

inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio

Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe

solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de

instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o

poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se

eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito

ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492

Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e

garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer

informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que

ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur

O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que

circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa

intercomunicabilidade probatoacuteria

A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur

se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente

impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo

tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal

natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram

recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de

uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o

transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a

imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo

492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135

166

processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa

do processo penal portuguecircs493

Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do

Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional

ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal

posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de

cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo

tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do

art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de

gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de

2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou

que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos

indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto

agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo

constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de

assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar

expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria

Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495

ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo

Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem

prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem

proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo

proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta

493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012

494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e

argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional

495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem

natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo

vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de

investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua

destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173

496 Op cit pp 332 e ss

167

em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor

que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo

constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do

CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente

previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das

circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis

de serem utilizados em processo penal posterior

Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser

constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa

requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo

fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime

tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf

parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o

seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender

passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []

assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm

Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por

qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees

que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como

consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como

prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497

FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de

contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora

ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash

conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um

497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de

2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a

sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos

termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto

designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo

498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no

mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores

Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3

do CdVM)

168

vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a

ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo

sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo

ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de

supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o

cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500

Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo

compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do

estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser

obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-

arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash

em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade

decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor

O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com

uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees

tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo

normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena

da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo

obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do

proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no

aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo

499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave

entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia

exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O

aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do

princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf

Op cit (parecer) p49

500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281

169

contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz

agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao

processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo

autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute

livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade

livre e esclarecida)

Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la

perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen

suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de

proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al

procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no

declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente

el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de

sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a

efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea

atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las

sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo

de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la

voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo

Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o

princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a

questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de

colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de

verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se

natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute

a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir

para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el

procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10

170

Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a

questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou

direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica

dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o

outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503

Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de

interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo

de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas

apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em

nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o

regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado

abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como

noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento

dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a

antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo

reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua

funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do

abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em

503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte

da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo

legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na

ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo

facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante

veremos

504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como

sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade

configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer

outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao

silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria

Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-

incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de

investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica

Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94

505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]

506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a

imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed

natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo

penalrdquo ndash p45

171

instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da

abertura do processo penal tributaacuterio)507

Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia

do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em

torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de

documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais

instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo

de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou

inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em

colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir

e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a

condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo

consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando

em causa a justiccedila do processo

Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a

sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-

se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos

investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo

equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de

ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode

ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente

autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter

autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo

507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209

508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos

abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -

durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de

Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de

inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a

existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal

Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe

executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em

caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos

prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no

processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo

172

para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento

ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio

segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na

garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria

autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em

tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito

de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510

Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem

sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a

invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash

salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem

genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa

vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das

obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo

da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios

(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a

prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a

inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)

Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na

perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este

argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que

transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar

509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to

remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -

such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the

prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to

otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo

510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest

in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the

present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness

contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal

offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers

compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo

173

com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a

impunidade

Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e

perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico

hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los

tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511

Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto

elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam

inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que

na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses

aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes

e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo

equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto

natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo

tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema

fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute

simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser

instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que

se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento

sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob

coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as

garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513

Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes

coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada

pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave

actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela

autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma

processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo

512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss

513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

p145

174

suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a

CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees

tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre

exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar

o caacutelculo do imposto

Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a

intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa

argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou

opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que

podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem

independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre

outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as

declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute

descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da

justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material

probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num

processo penal516

Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores

proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo

natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio

ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito

constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se

514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152

515 Cf Paraacutegrafo 69

516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

pp147-148

175

ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e

presunccedilatildeo da inocecircncia517

Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo

permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e

consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material

obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo

penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova

ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia

do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros

elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees

detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas

quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo

apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo

voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones

tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el

procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero

iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a

principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no

auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su

intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se

utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes

de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no

debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una

517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo

ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y

el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos

adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11

176

eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en

un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos

Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a

soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos

processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute

uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que

as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se

apresenta sem qualquer desvantagem)

No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e

respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com

esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo

da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo

tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a

compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma

vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o

poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual

consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel

mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele

natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521

519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299

520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito

tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada

com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo

belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)

admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam

atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)

521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave

separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para

a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens

juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e

177

Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de

colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer

inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a

comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum

accusare

Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar

uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica

dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo

afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a

separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os

procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade

entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento

do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio

das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e

informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a

investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo

contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas

natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais

de obtenccedilatildeo probatoacuteria

Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas

acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que

alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para

laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema

juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e

social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais

pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da

atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da

admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de

tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade

522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54

523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106

178

(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da

alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito

sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio

tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune

as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de

recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)

nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais

ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera

da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel

Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo

de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias

poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o

investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer

todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa

soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo

processual

Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de

procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica

das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees

que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros

domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de

evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito

normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar

exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525

Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees

preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe

524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162

525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54

179

alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se

confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres

de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria

condenaccedilatildeo

A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do

suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse

momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo

ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa

constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o

art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem

respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites

previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar

informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre

tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do

CPA)

Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula

de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o

indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas

processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)

A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da

inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes

teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse

Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o

nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo

anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que

esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum

accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196

180

interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para

que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento

dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua

sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal

de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o

direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da

AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os

autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT

podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova

protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da

proacutepria condenaccedilatildeo

As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento

inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias

processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o

indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores

antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o

procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a

edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas

anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal

cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente

afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os

direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a

servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do

oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar

jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal

por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser

utilizados em posterior processo penal

527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50

528 Cf Op cit pp56-57

529 Cf Idem pp58-59

181

Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por

parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo

como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a

comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo

de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente

(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que

soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode

construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se

Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo

tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as

exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e

da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade

probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns

inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare

abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o

dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante

da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a

AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo

do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se

conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das

infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus

direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de

exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar

isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a

prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os

deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos

Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a

propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico

530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

p195

531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

182

sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e

considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria

entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada

em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do

indiviacuteduo

Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas

proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que

apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute

permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas

normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas

proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a

enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade

fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532

E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo

inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade

probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que

a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da

sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma

utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total

desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os

princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo

seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da

autoincriminaccedilatildeo

No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico

portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio

soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo

532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133

183

REFLEXAtildeO FINAL

Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute

absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas

obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo

do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado

O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da

dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida

por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute

reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em

que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e

poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo

(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou

posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees

ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal

deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado

Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar

da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur

contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no

sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um

ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo

necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade

probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute

constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos

processos

A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo

com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas

no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo

utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo

184

indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida

e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios

constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a

integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para

considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo

tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova

agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de

decisatildeo do indiviacuteduo

185

CONCLUSOtildeES

I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa

segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou

seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a

sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao

silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo

satildeo corolaacuterios que se interligam

II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo

tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais

autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais

incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas

para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio

III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se

ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo

penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino

Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos

IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal

circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a

sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo

constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num

plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que

asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre

noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)

art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)

V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica

debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana

Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A

primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais

como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm

186

CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende

um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e

seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no

texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos

circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur

cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza

processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em

princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz

juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa

humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma

mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se

defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente

amparo de natureza processual

VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum

accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua

compreensatildeo e alcance

VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo

exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo

- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O

nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso

ordenamento juriacutedico

VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o

Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e

ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em

alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual

(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as

testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos

entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento

da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas

187

sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute

de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo

expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no

art61ordm nordm3 ald) do CPP

XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da

concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente

com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes

tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se

pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias

coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel

autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia

constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo

de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos

ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou

concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes

harmonizando-os entre si concretamente

XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para

resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores

em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio

recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash

prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido

XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute

o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende

diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana

com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na

sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse

sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos

ou interesses de valor social e constitucional prevalecente

188

XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar

previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e

devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da

CRP

XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua

posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser

juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico

na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo

de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a

infraccedilatildeo

XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir

XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica

proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que

atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da

pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de

todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral

(art32ordm nordm8 da CRP)

XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada

nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de

pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram

em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos

preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou

administrativas

XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute

obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da

inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e

demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade

XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e

natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar

189

esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de

incumprimento ilegiacutetimo deste dever

XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de

colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao

cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa

situaccedilatildeo

XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de

oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente

entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal

por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da

informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute

legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal

XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias

dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito

no processo penal tributaacuterio

XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos

respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar

aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do

Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio

XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a

informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou

precisamente a sua razatildeo de ser

XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal

seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo

investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar

totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo

190

equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria

de cada indiviacuteduo

XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa

de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos

sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios

constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos

contribuintes no subsequente processo penal

XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de

uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos

resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se

verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos

em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever

de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a

intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva

separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres

de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de

qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja

interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por

violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado

continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas

poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e

aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal

posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo

autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o

chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)

191

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ERCHAMBER]itemid[001-78135] (link) [em linha]

Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia

- Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro

de 1989 processo nordm 37487 disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]

Tribunal Constitucional Espanhol

- Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales

(link) [em linha]

Supremo Tribunal Americano

- Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link)

[em linha]

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Page 3: A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento ...

ii

DECLARACcedilAtildeO

Nome Telma Sofia Martins Ribeiro

Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom

Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute

13072017

Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro

Ano de conclusatildeo 2017

Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio

Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE

INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE

COMPROMETE

UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________

iii

AGRADECIMENTO

Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente

por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e

empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade

profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta

monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento

cientiacutefico

Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou

para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um

muito mas muito obrigada

Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e

para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos

momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que

idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem

Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que

sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A

minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para

mim

iv

v

RESUMO

O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo

penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute

legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual

penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente

reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo

legal de cooperar no procedimento tributaacuterio

O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do

nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas

nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos

constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de

natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do

estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso

de violaccedilatildeo do princiacutepio

Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em

mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo

analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees

acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em

que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento

ilegiacutetimo desse dever

Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente

colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e

jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens

e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito

normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria

inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute

obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das

informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres

de colaboraccedilatildeo

vi

vii

ABSTRACT

The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of

information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under

and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there

is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not

contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo

tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax

procedure

The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur

se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content

historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of

Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions

and finally the legal consequences in case of breach of the principle

Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax

matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the

framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical

implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the

consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty

Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed

of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence

intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out

to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur

(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed

solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings

(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information

tax inspection under collaborative duties

viii

ix

IacuteNDICE

RESUMO v

ABSTRACT vii

SIGLAS E ABREVIATURAS xiii

INTRODUCcedilAtildeO 17

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare

39

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43

32 Fundamento constitucional de natureza processual 49

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51

c) A garantia de um processo equitativo 55

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade

normativa e validade material 65

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98

44Dever de advertecircncia 101

x

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e

obrigaccedilotildees acessoacuterias 109

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio

da colaboraccedilatildeo 118

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137

xi

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a

inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria 154

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176

REFLEXAtildeO FINAL 183

CONCLUSOtildeES 185

BIBLIOGRAFIA 191

JURISPRUDEcircNCIA 203

xii

xiii

SIGLAS E ABREVIATURAS

ss ndash seguintes

Ac ndash Acoacuterdatildeo

AR ndash Assembleia da Repuacuteblica

AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria

ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

BCE - Banco Central Europeu

CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos

CC ndash Coacutedigo Civil

CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios

CE - Comissatildeo Europeia

CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem

CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios

CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis

CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado

CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios

CP ndash Coacutedigo Penal

CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo

CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal

CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio

CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo

DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees

DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo

DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria

DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

xiv

DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros

DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras

DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras

DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais

DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico

DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais

DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

DL ndash Decreto-Lei

DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais

FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional

GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland

GNR ndash Guarda Nacional Republicana

IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas

IRA - Irish Republican Army

IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas

IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado

LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria

MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico

ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas

PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos

PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira

RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila

seacutec ndash Seacuteculo

TC ndash Tribunal Constitucional

xv

TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia

UE ndash Uniatildeo Europeia

UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes

xvi

17

INTRODUCcedilAtildeO

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do

aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao

processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e

que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem

as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da

monografia que nos propusemos a realizar

Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso

quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes

tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do

processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento

administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria

Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de

inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de

benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo

tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O

problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado

perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo

Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja

a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer

elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a

18

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos

solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de

colaboraccedilatildeo

Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis

a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a

intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil

atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados

como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje

consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em

ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que

tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute

neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial

relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia

a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto

Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo

principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que

ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute

em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como

eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees

tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL

nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo

Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na

resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um

estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo

especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada

extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute

sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas

e praacuteticas que os mesmos comportam

1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47

19

O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta

documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente

indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que

podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo

auto-inculpaccedilatildeo

ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo

interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como

procedimentalrdquo2

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou

inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com

a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria

para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica

acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo

person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da

Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e

Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do

princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina

e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual

penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz

naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou

direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de

inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5

2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45

3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132

4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como

decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos

oportunidade de desenvolver no seio da monografia

5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

20

O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do

nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio

mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido

tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)

Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no

ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao

conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes

Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta

um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as

questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez

que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as

temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o

direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos

constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta

determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda

parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial

no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito

entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e

internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico

21

PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM

E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS

1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare

O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica

de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem

diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo

processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido

Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se

conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como

arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7

FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o

estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos

primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres

ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])

autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua

decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se

maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual

Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o

arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a

6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424

7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao

interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura

superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa

a favor da pessoa interrogada (arguido)

8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p 9

22

todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento

dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que

tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao

respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido

enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede

a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido

declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da

sua livre personalidade

Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do

nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo

autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria

incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir

para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no

que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo

em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O

que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo

seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14

9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430

10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua

proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se

accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur

11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131

12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham

exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo

reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente

prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia

MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico

de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal

Coimbra Almedina 2010 p118

A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido

A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise

14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121

23

COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o

cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees

de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam

valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir

toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave

superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no

essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana

(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta

senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de

declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo

penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo

arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)

No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo

positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa

o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si

imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade

de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema

pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17

Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser

feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado

(art61ordm nordm1 ald) CPP)

O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo

contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio

de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas

seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou

15 Idem ibidem pp117-120

16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual

Penal) pp74-80

17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121

24

apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de

aplicaccedilatildeo

Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que

ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar

ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse

motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo

contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo

Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao

silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por

privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe

sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a

pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que

contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo

Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a

extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios

tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que

suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132

19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge

de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo

versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In

BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da

prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104

20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia

Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular

que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo

penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo

21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS

Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e

Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da

proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-

incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar

para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a

declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor

de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo

25

precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o

princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida

reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas

neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas

A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de

modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex

buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua

maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair

frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a

recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em

autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio

nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de

prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos

aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de

ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros

O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e

pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute

somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo

calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional

22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127

23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de

2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em

httphudocechrcoeint (link) [em linha]

24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA

etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa

que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo

25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-

ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21

26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo

de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao

silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange

o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a

colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o

meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes

de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido

26

abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de

um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja

todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize

vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo

Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido

estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo

O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar

para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a

prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29

Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute

mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer

calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir

o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender

exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao

silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute

vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor

incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as

manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou

comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo

com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)

eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo

27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133

28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf

Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da

Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de

incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de

manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em

linha]

30 Op cit p 52

31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa

Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136

32 Idem ibidem

27

LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera

que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de

uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao

silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e

dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena

de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos

cidadatildeosrdquo 33

Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido

como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade

para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o

escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir

quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui

objecto do processo34

2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo

do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais

concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas

inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e

desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)

Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de

matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da

verdade material

33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso

34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27

35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)

p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op

cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133

36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss

28

A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal

inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais

de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do

indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava

como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias

processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe

sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total

impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos

probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)

Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime

disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem

admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura

Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo

penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII

e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)

O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e

desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo

do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA

RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente

o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse

conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento

da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a

Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal

procedimento obter a confissatildeo do acusado

Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por

Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici

37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade

material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos

representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos

que lhe satildeo imputados

38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61

39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35

29

Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos

processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com

verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do

lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em

submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um

segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o

considerava culpadordquo40

Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do

Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O

procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi

aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se

serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas

No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era

a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova

central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste

paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse

inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a

verdade que incidia sobre o acusado

Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre

Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a

alterar-se

No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos

naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se

constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a

puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer

medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se

40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137

41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62

42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64

30

Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o

indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo

inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu

direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal

torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa

espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas

consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria

afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval

Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade

julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo

necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje

ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)

eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil

CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal

apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-

se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema

por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes

estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los

intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los

interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio

cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio

del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto

del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por

parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de

investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial

que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y

de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque

soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44

43 Idem ibidem

44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1

ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122

31

Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de

armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a

autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as

partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas

caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos

assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash

que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio

PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45

Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra

com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-

Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e

aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental

reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)

Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria

na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio

nemo tenetur se ipsum accusare

45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico

desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado

contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador

do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a

condenaccedilatildeo do acusado

46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we

send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma

de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36

47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era

influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores

onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os

procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o

processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que

metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute

acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se

tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou

incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute

incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer

confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas

(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93

32

O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que

surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em

instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do

arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu

surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao

crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio

Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o

mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu

aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a

partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo

de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua

vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs

aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o

indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo

Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito

que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their

defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este

princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da

obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the

Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with

respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo

48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37

49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123

50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100

51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash

Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio

encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento

que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se

verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente

e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o

arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este

panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado

porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39

33

Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos

em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da

assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior

conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)

Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em

documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo

mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em

17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment

(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que

ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O

entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de

duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo

do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54

Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito

contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o

poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de

declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes

de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da

responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao

suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a

estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido

A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos

tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia

[em linha] Disponiacutevel em

httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075

ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido

que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte

porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no

sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22

53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo

54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104

55 Idem Ibidem

34

mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da

doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees

voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees

forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession

doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar

a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial

O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se

destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-

incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia

americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash

tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado

Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos

estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia

ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com

vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente

admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e

56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]

Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)

por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio

policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se

fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em

audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado

A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do

advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal

do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo

da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes

e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo

ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o

perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais

de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo

57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os

direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114

58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a

guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo

tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio

deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode

voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op

cit pp 104-114

35

portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como

uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito

o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais

sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the

determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following

minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess

guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o

nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de

fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP

mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um

processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com

a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo

14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de

uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60

Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do

direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de

1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de

julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61

O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas

limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo

59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de

um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente

todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o

conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo

numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo

acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm

devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo

60 Idem ibidem

61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14

36

pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929

acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu

incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves

segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode

evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu

pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao

art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de

responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63

ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao

silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse

remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo

de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito

pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como

demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65

A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um

controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu

Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute

verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa

inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade

de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de

proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao

silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da

proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66

62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933

Volume 4 pp158 e ss

63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160

64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem

autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa

mesma valoraccedilatildeo contra reum

65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13

66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14

37

Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a

obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido

(art342ordm nordm2 CPP)

O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a

oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na

redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao

arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais

Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta

atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves

perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes

criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas

declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia

previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees

previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal

O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos

antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de

defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto

pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs

O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres

processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo

responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e

sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)

comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

68 Era o seguinte o teor do preceito

ldquoArtigo 342ordm

1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de

nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo

2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal

que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal

3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer

incorrer em responsabilidade penalrdquo

38

exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em

responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)

Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as

garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de

que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70

para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos

direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo

penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao

silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de

inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da

questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus

antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao

silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido

O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo

art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a

obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o

arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de

prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo

se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido

poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu

tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos

referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda

mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda

natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a

comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72

69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a

resposta com verdade sobre os antecedentes criminais

70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm

do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)

pp105-106

A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma

presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA

39

3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se

ipsum accusare

Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo

tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs

Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73

Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio

entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for

retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)

para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar

declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as

garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que

constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do

arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)

72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os

autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro

interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil

mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo

Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e

ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime

prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes

aos antecedentes criminais

73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea

comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al

detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2

Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la

acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba

pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos

en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo

74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos

entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo

75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por

comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute

mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos

El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute

justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda

especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en

ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la

autoricerdquo

76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a

presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of

War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in

40

estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a

autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo

expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma

uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo

impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a

doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza

constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em

geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79

A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees

legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do

princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos

anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o

direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao

arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm

nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o

legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e

any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property

be taken for public use without just compensationrdquo

77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125

78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)

p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil

Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado

princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos

69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo

79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125

80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20

81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder

a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles

prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for

necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia

desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico

nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os

factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a

recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]

41

perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do

silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como

forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei

processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de

advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do

arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos

previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas

obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que

ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos

interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada

natildeo podem ser utilizadas como provardquo85

O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves

testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando

alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de

responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento

que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito

legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo

interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo

de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86

Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia

natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)

donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio

83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido

84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou

um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se

necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA

constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do

defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial

em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de

poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo

85 Itaacutelico nosso

86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as

pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si

mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20

42

Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo

tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais

limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que

natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios

de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de

caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana

natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias

processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no

segundo pode sofrer limitaccedilotildees

A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira

vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos

fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal

(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na

doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente

processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios

nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de

defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio

do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou

ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da

estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a

maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores

optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas

87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) p58

88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123

89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595

90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte II) pp69-72

91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ

(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28

92 PALMA Maria Fernanda op cit p103

93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit

(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss

PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133

43

31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)

A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos

fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da

personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente

na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de

personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante

GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95

2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo

violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes

1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal

respeitaacute-la e protegecirc-la

19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia

O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento

da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de

defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito

geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de

prova contra si proacuteprio96

A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana

justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial

de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a

impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por

consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a

mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo

94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im

Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de

entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63

95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die

Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist

unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem

Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa

96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125

44

indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por

ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de

personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do

legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera

indisponiacutevel da liberdaderdquo97

ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa

do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto

componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana

Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias

constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as

garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal

A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa

(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa

possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o

seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito

fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm

CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O

silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo

art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza

aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e

aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo

Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de

claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros

seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa

do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se

indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido

97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5

nordm19 (1987) p186

98 Op cit pp81-91

99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2007 Volume I p516

45

defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio

na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da

dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos

cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis

infraconstitucionais que a violem

Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia

uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do

ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do

exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o

fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder

puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo

princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um

conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do

arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101

A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade

pessoal constitucionalmente previsto

O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a

impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis

degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da

pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte

autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a

Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que

o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)

primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo

objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da

dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da

100 Op cit p 90

101 Op cit p 91

102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos

fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal

direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198

46

respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana

enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as

praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da

qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios

racismo)

Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser

ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos

crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes

de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou

enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave

integridade fiacutesica e moral da pessoa)104

O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa

mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a

respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder

legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via

da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da

investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou

moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash

art32ordm nordm8 CRP)

A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de

tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura

como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de

tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado

senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento

103 Idem ibidem p198

104 Idem ibidem p454

105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da

Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo

intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a

punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira

pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um

agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se

considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)

47

[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o

tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil

descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito

menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes

dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada

accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se

distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106

Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal

mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas

obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a

impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no

processo criminal107

Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir

fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus

corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana

integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato

do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur

que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na

imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos

parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do

processo equitativo do que com as restantes109

Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a

autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de

conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo

no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97

107 RISTORI Adriana Dias Paes p76

108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do

art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal

Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)

109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107

110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199

48

arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de

vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode

o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do

processordquo111

Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da

pessoa humana

Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana

e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto

da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser

meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio

ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu

fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade

humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de

Direitordquo112 113

Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a

dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana

justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual

e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo

contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur

comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da

plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem

como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como

111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41

113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO

DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade

humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo

efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para

o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas

humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um

Estado de Direito Democraacutetico

49

objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos

processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114

32 Fundamento constitucional de natureza processual

Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um

fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que

a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito

Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas

relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente

processualrdquo116

Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores

divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem

entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da

estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com

aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser

ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de

defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo

a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria

Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos

nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial

114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13

115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores

desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo

tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64

116 Idem ibidem p63

117 Idem ibidem pp68-69

118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e

3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial

uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez

referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo

Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo

50

declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a

obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos

seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente

enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo

essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como

lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal

admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que

adiante aludiremos

MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo

da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de

defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a

partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de

natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao

arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash

ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova

De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute

indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao

silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm

nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o

tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a

exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza

processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva

119 Op cit p103-104

120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais

Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio

Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da

estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e

de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio

e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio

prejuiacutezordquo

121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo

prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre

noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de

Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178

51

legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e

instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos

direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a

defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou

conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao

silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do

processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe

permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos

processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo

queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de

constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias

que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer

forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido

deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de

defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do

arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais

b) A presunccedilatildeo de inocecircncia

Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional

do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo

pode ser forccedilado a incriminar-se

Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido

se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como

conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em

detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do

122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516

123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p28

124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430

125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem

(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)

52

processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de

custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo

de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento

criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o

estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126

A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de

tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro

sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de

um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social

juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute

impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da

presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se

impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a

acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo

da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado

como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e

equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128

O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o

processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo

nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a

sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo

A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do

arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre

participaccedilatildeo

O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais

Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos

126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518

127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60

128 Idem ibidem p59

129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) p9

53

direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos

nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual

eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm

nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios

admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua

posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5

CRP)

A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do

arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto

ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo

princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos

os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a

utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua

decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de

uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante

a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa

a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e

sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas

feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das

declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como

fundamento do direito ao silecircncio

Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo

prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar

satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do

processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo

130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429

131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf

VILELA Alexandra op cit p95 e ss

132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito

Processual Penal) pp27-28

133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a

tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo

134 Op cit pp132-133

54

pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser

encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a

presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de

que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo

eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio

Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se

autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo

contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em

desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado

com a presunccedilatildeo da inocecircncia136

A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e

do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de

comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se

autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de

inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo

ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees

susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo

A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao

arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que

serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados

com a sua culpa

135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de

inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016

Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25

55

c) A garantia de um processo equitativo

Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma

causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo

equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave

justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave

sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute

especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e

art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao

processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia

do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do

proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel

As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm

quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due

process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de

saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a

obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser

privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due

process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele

proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente

estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas

ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo

legal dos mesmos processos

Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na

Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo

legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas

138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP

139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina

2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando

estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de

exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal

a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado

segundo princiacutepios de justiccedila)

140 Idem ibidem paacuteg493

56

tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos

vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual

Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma

decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma

decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o

direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de

pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e

independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual

conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o

direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda

o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela

contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e

contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado

deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees

judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das

sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados

em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do

processo142

E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito

criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente

Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez

tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o

contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e

da noccedilatildeo de processo equitativo

No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no

art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel

com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave

instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo

proibiccedilotildees de prova entre outras

141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415

142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501

143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150

57

Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo

estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave

dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do

contraditoacuterio144 e a igualdade de armas

Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do

processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo

No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o

nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez

eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao

silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que

demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes

Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147

No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais

franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria

(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no

estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos

de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca

domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos

no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas

autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular

de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea

qualquer extrato bancaacuterio

Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos

documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo

garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido

144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os

testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit p523

145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

58

sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo

montada contra si

O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a

condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora

natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os

documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele

proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que

as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo

podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em

permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1

da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a

presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149

No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo

probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo

tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)

por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde

estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do

IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no

momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio

ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido

advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas

consequecircncias

Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos

juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do

exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto

natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida

que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo

148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient

lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave

fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient

justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point

contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France

59

satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo

de processo justo150

No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi

chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees

autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo

(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash

Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise

mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos

interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no

procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal

cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia

(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num

processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas

atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa

medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152

Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela

sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo

como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o

enquadramento nas garantias de defesa

150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police

questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair

procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom

151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v

United Kingdom

152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the

prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or

oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6

para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo

153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para

prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125

60

61

CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO

PENAL PORTUGUEcircS

4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare

Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur

(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da

sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como

corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao

silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do

nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas

Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma

visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito

por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees

doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees

potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de

154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos

do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da

Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais

tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29

155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss

156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum

accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a

auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-

43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins

SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica

Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44

Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer

afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo

157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel

em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser

condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g

documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou

ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo

Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

62

documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio entre outras

O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar

a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo

tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o

arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a

questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua

responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao

silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo

representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159

CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos

e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito

brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer

caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas

capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a

impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a

intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da

reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de

tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar

juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do

acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-

incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova

de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria

[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do

158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United

Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused

person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to

incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo

159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30

160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo

significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos

normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma

63

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se

relacionemrdquo161

Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta

posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito

desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um

processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas

preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de

fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente

obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma

colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162

A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute

comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a

concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do

conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute

autoincriminadoras

O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o

arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias

probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado

(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de

sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163

Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou

meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente

imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume

natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos

uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito

interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos

atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material

ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar

(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo

161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43

162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em

wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21

64

ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio

uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito

Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de

recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em

muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos

limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de

coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede

constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do

conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de

outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz

social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer

limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em

diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado

comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse

na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente

e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver

Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts

that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v

United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right

to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46

Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of

inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do

Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295

de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos

todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz

op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm

142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-

dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio

especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de

Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash

Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo

tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e

garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e

nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74

165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias

no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406

65

Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur

41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal

validade normativa e validade material

A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre

validade temporal validade material e validade normativa166

A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo

o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao

Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167

Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu

dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos

166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072

167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana

da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito

ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser

assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel

da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista

civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese

o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante

qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito

vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa

resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no

processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um

dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer

espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos

sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio

geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os

procedimentos criminais independentemente do tipo de crime

168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico

Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183

Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente

influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal

constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como

constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja

inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem

sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH

admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no

66

anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os

direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende

esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo

equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa

criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no

encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos

demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no

processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a

acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de

ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios

Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a

dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal

todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando

formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de

haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias

incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo

de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de

um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH

no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o

conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para

acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-

incriminaccedilatildeordquo

169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland

SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a

witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged

was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1

That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It

may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal

offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo

No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa

criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos

alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que

se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na

substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo

67

aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de

lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta

primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas

formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa

seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)

segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da

sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o

caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e

repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo

apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza

criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do

criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173

Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se

intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo

autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto

mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de

validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo

O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode

ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a

uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um

crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua

constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]

172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the

provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both

concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be

examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States

The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would

generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks

incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a

punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at

stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all

require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the

subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo

173 COSTA Joana op cit pp127-128

174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23

68

art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste

caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da

anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa

relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou

que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o

caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito

ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)

Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes

forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo

de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no

art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes

satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua

responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido

tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem

Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se

deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual

responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe

forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em

falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente

poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os

parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele

viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal

por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada

nos termos do art 364ordm al b) do CP

Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash

temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento

eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no

decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da

sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio

do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188

176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o

caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

69

autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da

monografia que nos comprometemos a responder posteriormente

Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da

personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas

fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma

perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a

comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio

Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos

da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas

na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu

estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-

se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou

quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178

O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta

determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise

sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o

caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o

direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias

de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova

confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo

que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo

MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126

178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o

acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo

179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo

180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao

silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as

manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP

que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais

existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da

atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e

art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de

base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio

estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da

70

Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a

possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa

verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS

ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el

procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay

que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega

sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por

supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado

p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico

como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute

mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido

teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado

psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como

cuando se lo confronta con un testigordquo

Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser

conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser

considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou

quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade

livre do arguidordquo183

Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm

CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do

CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas

de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]

sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9

do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida

de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135

181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133

182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees

prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames

(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do

Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito

ao silecircncio

183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176

anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430

71

lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a

diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou

obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser

compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo

Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas

legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando

alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas

normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias

ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta

questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da

atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo

se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da

personalidade187

184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP

185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber

se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e

aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)

encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a

recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista

Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos

parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao

referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a

utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo

seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo

Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de

amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm

0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta

mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias

entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade

judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode

por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo

Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser

aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado

186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo

187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros

2003 I Volume p870

Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a

72

Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da

prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei

Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura

coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que

devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da

integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento

delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas

corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora

facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com

o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para

obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de

sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de

alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda

que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito

Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de

novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova

mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo

nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da

sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados

elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser

assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm

CPP

Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a

possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam

cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o

processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a

busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este

todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz

(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo

188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit

p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido

nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico

Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora

descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo

189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362

73

Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado

indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade

pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma

total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila

Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo

com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva

no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as

autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a

exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito

processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio

meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)

Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever

geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor

agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)

atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)

prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos

125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um

dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191

Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios

de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova

[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a

de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo

do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se

190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em

httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio

Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255

192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316

193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658

74

como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica

vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195

Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que

tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito

constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse

motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam

garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na

CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que

devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do

CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver

expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo

exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o

enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em

concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos

proibidosrdquo197

Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm

nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de

obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si

mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua

apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios

de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para

investigar e recolher meios de prova198

De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos

171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal

Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade

material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que

ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo

195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658

196 Cf op cit p255

197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua

proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256

198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio

FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361

199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os

segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a

75

que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios

que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi

praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1

estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo

do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame

eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios

materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do

circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se

apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios

pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos

vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade

judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os

indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201

Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de

prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um

lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou

menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de

coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc

constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202

Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais

sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser

alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de

vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo

representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a

tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende

a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita

medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua

conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a

detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo

Pinto op cit p 420

200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870

201 SILVA Germano Marques op cit p236

202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439

203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)

76

utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo

preventivardquo204

Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e

quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo

contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como

parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e

jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo

Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o

que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem

proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que

forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de

fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um

alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei

atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo

extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita

demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios

fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de

assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave

liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206

Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de

modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias

(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e

direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal

(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas

204 Cf Ac TC nordm 2282007

205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento

p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os

MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas

Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento

na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3

ald) do CPP

206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes

77

tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de

diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207

Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS

que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um

meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser

entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de

coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a

restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente

imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade

pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames

em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208

A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito

a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de

substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a

obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do

estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos

casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm

nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando

ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de

agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel

ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver

indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees

referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade

social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico

adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se

mostrar necessaacuteria (nordm3)

207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de

2009 p12

208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]

209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)

210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar

necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo

211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro

78

Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo

de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os

exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como

esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do

Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que

sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e

consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite

fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo

acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o

arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a

questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo

suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio

artigo 61ordm)rdquo

CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita

(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo

existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que

imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm

nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular

Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame

devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe

estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo

213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para

determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004

ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de

autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo

de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua

realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser

compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo

Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a

recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa

bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora

tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia

214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame

para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua

presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia

qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo

menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo

79

adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na

lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a

um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que

resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215

A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se

extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por

demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216

Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames

ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum

accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do

arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame

revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e

aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo

A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se

pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida

pelo nemo tenetur

O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou

accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash

apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo

permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo

podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido

maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais

ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219

215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18

216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo

217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash

setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana

218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales

como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No

obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen

corporalrdquo [itaacutelicos nossos]

Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e

ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073

Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss

219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da

influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um

80

O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de

submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos

mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur

uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido

admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de

periciardquo220

No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-

se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria

atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A

produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do

princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do

acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo

acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra

a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante

entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a

participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras

Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou

agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo

das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)

Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse

compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo

Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva

(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina

fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso

a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do

princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a

invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas

hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59

220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]

221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma

voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo

da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem

significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo

[itaacutelicos nossos]

222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64

223 Cf Op cit p316

81

germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia

portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo

eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida

e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja

meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do

arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar

uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem

pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se

agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se

torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento

tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo

do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo

chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o

reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou

manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta

linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se

para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228

224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa

op Cit pp127-128

225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit

p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit

pp98-99

Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos

ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas

as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss

Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter

afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma

mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como

obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de

colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato

Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos

classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de

marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo

fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo

sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo

226 Op cit pp103-104

227 PINTO Lara Sofia op cit p99

228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131

82

Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande

vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode

ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo

podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute

que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo

O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da

vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo

tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do

sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230

Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela

vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o

direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes

coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente

colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231

229 Op cit p368

230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -

op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007

ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido

Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en

los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o

expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra

la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto

del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen

los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier

Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13

[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar

231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the

will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and

elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of

compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a

warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo

mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo

y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros

intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad

de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo

83

O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh

v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo

tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas

advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o

acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de

documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material

corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o

TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime

grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave

recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo

de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo

duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234

No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu

acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina

acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do

arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila

do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do

arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do

sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de

saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui

nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se

confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que

independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar

como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que

232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102

ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused

person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not

extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which

has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or

voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo

Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a

recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido

233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila

234 COSTA Joana op cit p157

84

pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-

incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como

AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente

acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao

silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da

vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas

natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem

ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as

declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois

natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo

mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que

razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob

ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva

ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo

Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a

conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a

aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do

arguido

Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio

da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237

235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora

processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de

Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se

a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis

em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo

afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito

ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal

(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que

respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira

linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo

em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e

adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional

nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

ponto 7)

236 Cf op cit p24

237 Cf op cit p23

85

fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica

dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos

afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de

documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando

dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo

entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela

compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios

conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos

direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio

da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos

VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa

Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada

situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente

protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma

ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do

nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias

fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si

mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre

autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria

eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes

implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)

O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito

de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e

direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o

238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299

239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)

pp1270 e ss

240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300

241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil

estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores

por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais

elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76

Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com

intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior

parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300

86

mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos

Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo

tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses

valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de

outro bem em jogo

O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional

admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da

mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito

produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de

variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma

prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um

criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em

conflito

Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos

valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos

direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo

e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244

A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o

conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa

segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de

direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos

valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas

circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246

Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em

termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all

or nothingrdquo ndash op cit p 23

243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301

244 Cf Idem ibidem

245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303

246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303

87

concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor

comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio

total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou

da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247

Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem

construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na

prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)

Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois

de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que

um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro

(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto

podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador

Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas

as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir

para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade

pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de

valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave

obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais

contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o

direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade

na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de

intimidade da vida privada

O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade

corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais

preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea

da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274

248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem

249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este

respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave

integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das

pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo

comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de

outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo

88

como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas

contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252

Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas

normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de

exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo

nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a

possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a

muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia

constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades

e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm

nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em

decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda

de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)

for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo

18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir

a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da

Constituiccedilatildeo)

A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade

pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer

meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos

ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees

agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de

alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores

admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave

reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e

integridade fiacutesica de terceiros253

251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino

disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de

dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins

criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264

253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o

mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode

deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia

89

Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de

circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a

adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente

pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em

condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes

ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos

diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave

conduccedilatildeo

Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila

rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor

e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo

do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez

art292ordm do Coacutedigo Penal254

Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser

acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova

dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a

satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo

das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez

aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para

afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma

intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio

todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na

caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a

conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a

tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de

deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual

estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no

excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave

realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo

254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011

relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013

256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira

Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013

90

elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem

proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257

Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo

Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de

autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita

no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou

psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por

regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade

um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas

quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo

da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na

colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode

considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos

cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo

de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele

direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258

Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da

concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se

ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da

estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado

fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios

do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees

257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]

258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]

259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23

PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos

da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26

260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash

recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a

integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou

princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas

se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam

independentemente da vontade do sujeito

Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o

criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses

91

parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei

preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao

princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim

para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma

lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo

entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores

juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento

do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a

necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263

O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo

da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos

restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da

restriccedilatildeo ao nemo tenetur

42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur

O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees

justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na

impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a

261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]

262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade

de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31

263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo

e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade

da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo

fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de

eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como

acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a

condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por

aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da

medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia

probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais

relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo

264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem

reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas

circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra

a sua vontade)rdquo

92

restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em

lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)

No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo

tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade

(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos

(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de

acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar

exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas

(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo

tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito

de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas

pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia

previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei

nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM

Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel

sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja

superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio

da proporcionalidade]rdquo265

O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas

legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de

natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo

obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais

de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem

inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas

obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios

subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou

a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando

essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o

exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266

265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21

266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36

93

Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma

forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor

constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da

prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa

prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)

ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou

direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute

considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de

desobediecircncia

43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir

Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do

direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade

de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do

silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao

silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio

de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270

Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo

267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126

268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido

pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa

desfavorecerrdquo

269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud

ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute

reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais

meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches

nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido

do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido

juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o

arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou

parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS

Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP

BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua

incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de

culpardquo

270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449

94

pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico

jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271

ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave

livre apreciaccedilatildeo da prova272

No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA

defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de

defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o

desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee

o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou

negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade

O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a

determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273

Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente

desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero

ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou

desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou

parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio

tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar

consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de

circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)

271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861

272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit

p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do

silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo

273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub

Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido

de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo

MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de

Justiccedila nordm142014 ponto II

274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique

qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo

do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com

o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular

o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo

275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129

95

O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto

a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias

que as regras da experiecircncia comum permitam

No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio

e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a

que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em

julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o

silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de

ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a

possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas

consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de

esclarecimento sobre os factos a si imputados

O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa

em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal

que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem

claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na

avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto

comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma

decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem

qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por

inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma

276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in

particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are

absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or

alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper

compulsionrsquordquo

277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely

or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally

obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from

him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two

extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be

answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should

necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed

out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent

on this pointrdquo

96

explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de

acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder

estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um

raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por

inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de

inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo

de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do

arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo

Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido

renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados

remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis

no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova

por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida

tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o

facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior

credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da

experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o

arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior

credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente

a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)

O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes

enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a

concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas

para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente

retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode

impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham

Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo

que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova

formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a

responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo

podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos

278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150

97

casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio

contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos

suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e

deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como

instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar

alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo

probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma

seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo

Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves

perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de

existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido

pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento

eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que

sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a

mentir280

Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal

direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos

em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever

moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia

juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir

que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido

ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721

280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo

tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na

doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto

de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente

tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O

interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES

op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo

apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a

uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode

declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo

281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente

tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo

282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance

praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo

98

nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por

isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285

Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento

considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um

processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos

inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um

ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel

Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash

que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade

(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada

indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira

43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas

O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de

direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos

e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo

com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais

salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma

limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais

compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo

283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451

284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se

autoincriminadora

285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de

2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento

juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a

inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito

Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)

286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP

287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss

288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as

pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo

agraves pessoas coletivas

99

que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel

de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente

os mesmos termos e amplitude em ambos os casos

Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas

pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum

accusare

Vejamos

Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do

princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios

independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo

constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave

partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada

pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa

agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289

Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas

coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes

(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio

que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser

titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos

fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas

privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter

direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a

competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo

exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas

puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114

Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de

aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de

interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou

de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op

cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss

289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e

concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179

290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas

da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137

291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns

sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o

cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento

dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de

100

ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se

podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em

processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido

[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292

Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos

natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza

das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo

documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade

econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur

292 Idem ibidem

293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas

coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees

impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com

contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias

O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487

disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas

coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de

uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma

infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave

disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio

expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que

os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como

sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar

contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as

ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves

pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio

das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm

nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da

concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo

testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito

de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia

Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de

salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o

Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa

evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter

determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por

conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de

acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas

as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua

posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento

anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave

empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34

101

de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas

limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295

44 Dever de advertecircncia

Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve

resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz

cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de

Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal

recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o

arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e

esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e

natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no

CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio

total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees

o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se

antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298

Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina

com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o

294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em

si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as

ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com

esses lugares e com essas coisasrdquo

295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42

296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria

insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse

conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos

resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o

autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a

invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta

processual ase adotarrdquo ndash p227

297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela

da Costa op cit (parecer) p39

298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules

que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia

HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222

102

depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar

depor300

Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em

caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida

5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de

advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da

violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a

formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado

da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e

autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do

nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum

accusare satildeo na verdade realidades interdependentes

A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao

incumprimento do dever de advertecircncia

Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo

ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se

inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo

de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees

prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu

autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como

ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur

299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento

1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas

a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido

b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em

condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo

300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas

autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a

faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente

mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo

301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da

Costa op cit p84

103

se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do

direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria

inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve

ser a mais forte possiacutevelrdquo302

A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta

eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo

daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que

sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim

um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem

aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a

proacutepria incriminaccedilatildeo304

Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele

qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A

nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante

intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O

argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que

em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim

os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo

tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e

esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em

prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as

declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo

prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de

advertecircncia ou esclarecimento305

Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo

tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem

303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel

Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit

p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43

304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a

autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio

305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36

306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127

104

com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante

tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra

soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas

sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral

autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou

da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308

Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE

haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309

eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o

qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a

proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova

cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar

que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito

embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos

da nulidade do ato

Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do

CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo

servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais

quase como se natildeo existisse)311

Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute

somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros

meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida

Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem

como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-

distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo

307 Idem ibidem

308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a

devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia

Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447

309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193

310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss

311 Idem ibidem

312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss

313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas

consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo

105

probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos

documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos

proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica

se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de

afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo

objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315

Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia

dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave

consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao

art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato

com a nulidade ele eacute apenas irregular316

deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais

meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree

(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este

entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit

p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o

efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp

32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194

Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da

jurisprudecircncia

Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do

efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of

the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel

em

httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905

Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver

SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40

314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves

declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS

Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in

Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de

Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina

2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17

nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op

cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous

treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode

frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de

prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos

disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321

316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p

359

106

107

PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM

ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM

GERAL

1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza

juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um

devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo

encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se

sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos

estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito

Privado

Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e

simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de

cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso

exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres

para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se

encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do

contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo

tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois

que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss

318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute

sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o

conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que

significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter

tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre

outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas

a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada

cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)

108

categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou

outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo

juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor

ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)

cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os

dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento

da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria

tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo

juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o

contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo

concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a

prestaccedilatildeo de imposto

A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321

alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo

de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres

acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar

e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322

319 Cf Art397ordm CC

320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de

Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011

p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o

direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um

determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal

como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal

natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos

negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para

satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA

umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que

apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por

acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11

321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e

os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15

322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss

109

A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo

(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo

exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a

custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324

Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica

tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua

complexidade325

11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo

principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias

Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa

As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um

determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo

juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos

eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326

A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de

um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do

conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327

De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto

da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o

facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de

sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente

323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss

324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16

325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L

Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal

2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de

Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal

Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss

326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra

Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49

327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss

110

em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma

tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de

mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees

financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao

trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos

aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o

contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute

suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo

existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas

uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330

A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma

abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo

tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de

pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos

acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de

emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e

entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante

328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo

mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e

tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss

329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute

de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar

atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT

330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o

sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos

exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de

ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que

natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da

entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio

pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a

mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs

grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf

ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular

trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal

Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto

de estudo

111

superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante

os casosrdquo331

Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da

obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou

demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas

porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros

moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere

a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria

engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo

que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os

deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram

autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave

praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees

legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo

acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia

pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336

Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa

relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e

das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto

significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de

pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na

lei

331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10

332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo

333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee

aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees

que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31

334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do

sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de

documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo

335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20

336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32

337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11

112

2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria

Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da

LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o

pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos

declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de

cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto

em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que

estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais

accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340

Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios

que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a

declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar

o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar

recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e

os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar

periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o

dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1

da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade

que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um

comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere

Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica

como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e

ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La

declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a

estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala

maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo

339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79

340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os

deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por

outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como

objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

341 Idem ibidem

113

A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo

pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e

de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre

obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente

formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo

de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em

ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e

situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma

posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343

Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias

tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema

de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos

uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos

necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de

uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida

preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento

patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que

muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados

pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e

cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo

juriacutedica tributaacuteria346

342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e

executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op

cit pp253-254

343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27

344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130

345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT

ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos

rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal

sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos

sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias

346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47

114

Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela

lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo

pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347

O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada

complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica

exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades

contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees

especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um

modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades

sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina

estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa

enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes

(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)

A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de

determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar

um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os

particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado

por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas

contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no

ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-

pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo

conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto

prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave

Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres

esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e

auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas

347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss

348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de

uma diacutevida tributaacuteria

349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56

350 Idem ibidem

115

O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos

contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme

prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo

tributaacuteria e contribuintes

No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios

textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353

21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei

Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees

acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da

obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos

previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do

Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354

351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode

suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e

efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de

avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT

352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre

contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais

sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos

Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245

353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de

cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo

paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as

relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte

ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA

CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que

estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)

Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais

ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave

obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na

exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp

57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254

354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo

1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo

2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que

personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital

exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo

116

O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja

que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo

normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que

existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros

(art59ordm nordm1 da LGT)

Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria

para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular

e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais

interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a

prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria

esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo

de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao

exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se

observem356

Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento

esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo

os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a

administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e

a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como

sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4

da LGT

Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos

referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade

inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo

modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria

de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos

355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110

356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT

357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT

117

comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta

solicitados358

Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja

simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem

apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do

dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica

Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia

do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de

determinadas tarefas de imposto

Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)

declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos

declarados

No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que

seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que

recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos

iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos

Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz

remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo

tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram

de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo

Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da

prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere

(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os

factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres

358 Cf Art48ordm RCPITA

118

acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de

cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos

rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto

encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais

deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de

entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)

obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade

(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de

cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de

entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da

declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir

faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada

(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais

obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a

sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia

3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o

subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo

Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo

tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os

princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da

celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O

objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a

realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva

359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss

360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte

361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-

administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de

uma vontade jurisdicional

119

daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do

art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material

Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria

implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na

sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois

apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido

apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo

ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta

iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade

contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por

qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)

que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material

vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio

daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou

mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash

prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364

Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute

o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como

estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos

Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e

absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade

362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da

Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor

total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as

pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios

constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a

capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre

a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit

(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss

363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112

364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44

120

processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material

subjacenterdquo365

As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que

assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios

princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da

igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que

tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo

equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de

cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo

365 SOUSA Rui Correia ibidem

366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o

preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O

princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em

diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o

desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a

tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o

art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo

legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta

op cit pp 137 e ss

O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a

imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da

mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios

fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142

Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees

acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei

O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio

material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo

encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em

sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num

procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido

formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual

de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de

2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]

Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash

Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M

Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal

Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em

httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit

pp137 e ss

367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio

368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84

121

com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se

verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o

pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica

A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades

contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade

vertical)369

A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva

permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais

Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de

pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de

declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos

passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva

quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser

considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se

de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias

(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo

do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade

contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades

detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os

deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm

maior capacidade de prestaccedilatildeo371

369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154

370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166

371 Idem ibidem p169

122

123

CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA

1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo

Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se

aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo

Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees

Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que

natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees

tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos

elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de

factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para

fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames

teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o

ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com

o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas

tributaacuteriasrdquo375

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou

terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que

eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio

das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num

controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da

372 Cf Art 4ordm do RCPITA

373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA

374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA

375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12

376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)

p164

124

Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo

lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as

normas de incidecircncia tributaacuteria certas

A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma

funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees

funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo

fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento

tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios

contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer

com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que

busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e

controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute

efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria

Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca

dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria

Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos

princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os

princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores

da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem

bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na

administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo

377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento

Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011

Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss

378 Cf Art 2ordm do RGIT

379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30

380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167

381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30

125

tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio

da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e

igualdade)382

A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo

oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da

obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho

das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio

supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo

deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes

concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios

relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar

desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria

de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes

fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de

investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com

382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183

NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss

383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar

um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute

verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento

Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de

Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash

roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19

Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio

Coimbra Coimbra Editora 2009 p372

Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das

necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva

SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa

tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do

Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que

implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte

natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em

consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de

arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios

de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e

Processo Tributaacuterio) p19

384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45

126

base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de

irregularidadesrdquo385 386

Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral

eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos

arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na

restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva

pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da

vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave

propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da

inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a

AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs

dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a

medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica

se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a

adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que

melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada

na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do

considerado juridicamente aceitaacutevel)389

O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito

da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem

385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185

386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria

estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo

tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo

tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio

no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010

387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio

Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)

388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo

tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados

pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre

outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)

389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ

GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163

127

ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os

contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)

na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os

objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou

prossigam os fins pretendidos390

Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei

Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento

inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo

de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas

ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de

inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)

O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia

o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem

afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este

princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do

procedimento que lhes digam respeito392

A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito

passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os

factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de

inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm

da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado

Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85

391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como

esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a

AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de

proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel

392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir

que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento

nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando

devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento

tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos

sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-

126

128

ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar

partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem

acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma

decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de

evitar futuros conflitos de pretensotildees393

Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de

colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do

RCPITA)

111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo

Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado

que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394

Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao

inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o

acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem

juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer

todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria

relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos

relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do

RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396

393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57

394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo

de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder

395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100

396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves

instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das

129

Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em

termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na

inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este

dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-

tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em

variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside

nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo

dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de

entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc

Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de

cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria

instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos

mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos

relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos

estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de

empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade

puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o

desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das

entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave

aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas

funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)

Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos

dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros

com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados

indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos

contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das

accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de

processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros

Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais

entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo

63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise

laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para

apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos

sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre

que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees

agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou

internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees

de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito

nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas

de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT

397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss

130

Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a

entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso

agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio

ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo

quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios

para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos

determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio

dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem

praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA

donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que

sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua

atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar

designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou

uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)

Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos

inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e

compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum

a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a

relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)

Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito

passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um

representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o

cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta

atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes

legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos

atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do

398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa

(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados

tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm

do RCPITA

131

sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material

(art54ordm nordm1 RCPITA)

Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a

cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo

Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do

procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos

por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente

necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para

com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com

antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1

e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa

notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)

Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no

ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a

exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400

aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo

2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo

Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado

pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos

sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto

leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever

O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo

sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves

desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA

400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65

132

colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o

infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal

nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos

passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando

ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da

leirdquo

Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos

funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a

AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de

responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos

mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito

pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica

Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei

diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da

aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos

gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei

prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente

impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art

14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo

bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave

coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas

para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)

A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste

paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou

presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de

cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo

realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros

elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de

401 Idem ibidem pp175-176

402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A

quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss

133

boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo

apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo

colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da

mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de

cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos

vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo

ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos

seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos

fiscalmente relevantesrdquo403

O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a

administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos

elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe

satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma

recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma

presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees

aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406

Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um

caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos

princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte

403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295

404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito

incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com

a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees

Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No

entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as

suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a

avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos

rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -

Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel

Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss

405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69

406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade

material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195

407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303

134

natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a

Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408

Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de

cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo

de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia

art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas

contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)

21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo

Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do

dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo

cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em

que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras

limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas

que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave

pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de

cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas

precedentemente mencionadas411

Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo

do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever

408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da

obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten

tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-

constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola

Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes

Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando

natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por

existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms

87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo

409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48

410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174

411 SAacute Liliana da Silva op cit p130

135

de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime

Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida

iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e

garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de

oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a

diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com

base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda

como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos

funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)

Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa

em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois

tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o

princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a

mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia

ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave

ou injustordquo413 414

Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de

documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees

entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo

412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de

competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada

pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA

413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra

Editora 2010 p767

414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento

Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a

recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de

colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou

dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou

descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas

[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do

direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)

Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo

136

ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres

e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes

a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais

Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio

em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a

colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)

137

PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA

CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO

TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM

ACCUSARE

1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem

verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o

dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em

colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais

ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de

colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo

penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um

crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418

Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as

provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com

especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash

podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio

Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129

416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo

Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137

417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169

418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o

contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo

tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT

138

documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de

colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte

O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual

consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e

mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas

O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado

eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela

Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco

caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de

fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar

com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou

documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do

dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do

inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo

em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do

arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se

ipsum accusare420

Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo

Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na

virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que

ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos

indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder

419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o

caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado

a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares

supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do

processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores

mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da

concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp

199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash

Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS

Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56

420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149

139

de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se

tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421

Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute

impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel

a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a

transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria

condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-

dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423

O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare

aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou

coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma

soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo

Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer

apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro

lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando

os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de

um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento

sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo

421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148

422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52

423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127

424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la

articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a

eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute

contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do

sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na

preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de

ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo

o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso

Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave

Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do

obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales

140

autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na

generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de

declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do

arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425

Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de

forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash

que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos

de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute

aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia

desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para

o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo

dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os

documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas

pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se

incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por

exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado

tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del

sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade

do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja

essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este

grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo

inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia

depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais

ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo

tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la

imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar

contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis

Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf

425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho

a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)

enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma

qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos

426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo

estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica

verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o

indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria

427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el

proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em

httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF

141

livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo

desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)

Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o

nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o

princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo

tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo

para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem

relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito

inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade

dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do

sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente

ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a

invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na

opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo

que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a

posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante

perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios

obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou

criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova

dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos

aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da

428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35

429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten

tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de

conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido

consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios

Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf

ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento

concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo

utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario

responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de

voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de

terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente

sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a

no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros

dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo

142

determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas

implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que

os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam

determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente

permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter

autoincriminador

2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades

competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees

Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo

das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito

por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que

se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica

Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria

Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de

inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e

Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de

acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As

direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria

e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos

e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou

designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas

desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo

da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de

dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430

430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103

143

Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das

Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos

(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e

a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei

referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de

Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que

integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da

LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de

poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)

Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade

denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as

entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade

Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo

que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura

de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da

estrutura de serviccedilos regionais e locais

Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a

incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos

de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees

A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que

lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do

territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de

acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a

accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se

encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os

controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional

prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos

iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433

431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo

432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro

433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)

144

Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira

estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de

Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos

centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434

No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo

destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria

(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e

agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais

eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439

434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm

435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente

designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-

Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da

Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea

da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria

e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo

tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos

manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de

inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a

respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades

orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de

contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com

os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar

pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar

e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a

metodologia em vigorrdquo

436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por

DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo

com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo

437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da

gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila

tributaacuteriardquo

438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011

439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro

ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de

Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees

Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees

Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A

Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas

145

O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial

determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para

desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com

domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia

esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de

competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses

casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos

passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo

considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC

Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades

orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo

Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)

que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho

nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos

contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos

contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees

efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos

de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da

Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441

Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal

portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus

do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os

atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam

aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30

dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo

34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe

assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja

Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees

constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A

Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm

as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]

440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97

441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012

146

sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder

do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que

entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a

delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)

Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo

penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia

criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a

cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo

ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP

No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da

administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos

oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o

MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo

geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas

competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos

processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes

aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a

ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e

na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no

exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas

que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor

da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por

crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas

entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3

do RGIT)

Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo

das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de

442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas

de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes

ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal

e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)

443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691

444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT

147

investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na

medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades

No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de

dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees

tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender

uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual

tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo

penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas

especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que

nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o

Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445

Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia

do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com

competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do

RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou

por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia

(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do

crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da

administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos

mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)

Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito

por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a

todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e

termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio

apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos

interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e

445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126

446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis

447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia

delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida

ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo

448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss

148

funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que

isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos

oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito

seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua

competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da

instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a

Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo

dos crimes tributaacuterios

Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo

evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no

que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de

informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos

funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em

inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das

informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas

garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo

administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a

invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em

desconformidade com a Constituiccedilatildeo450

Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir

sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur

3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare

Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo

tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal

cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute

449 Idem ibidem

450 SAacute Liliana da Silva op cit p149

149

vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua

aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito

Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute

exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou

procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que

termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade

ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e

concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio

o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem

451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46

452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material

Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)

[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo

SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-

64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a

despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da

CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a

sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo

privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de

processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op

cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no

caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal

stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal

Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das

garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave

atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo

tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila

v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo

pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os

direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia

de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao

tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal

Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)

[em linha]

No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE

Manuel da Costa op cit pp46-49

Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito

de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias

empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de

informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo

150

obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam

uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453

Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual

o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o

conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada

Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os

trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The

Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de

ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a

qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs

Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o

conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH

um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual

enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo

formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur

Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa

do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses

autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos

sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do

artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos

factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir

em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de

uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave

empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash

(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)

453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146

454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976

455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal

contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do

nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito

interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo

e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)

456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997

457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento

em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo

na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos

458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em

httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]

151

em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos

assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse

servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave

circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de

um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio

do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo

de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa

prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno

que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor

aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o

estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh

Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada

apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em

excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo

incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos

natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido

autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a

instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade

Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito

interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por

conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que

na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja

a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada

obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao

privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma

459 COSTA Joana op cit pp123

460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending

against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him

54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding

within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give

information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself

incriminatingrdquo

461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the

Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act

152

maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os

respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente

afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao

silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de

lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica

ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-

se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do

veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio

O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo

do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and

MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para

obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio

pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em

processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a

invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH

No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da

aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees

tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos

procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e

invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo

pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para

prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute

to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a

sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does

not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo

462 COSTA Joana op cit p129

463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento

penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo

para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES

Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no

autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72

153

preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute

atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute

que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela

gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem

acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465

Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste

entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466

Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que

concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do

processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta

instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo

de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita

ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de

prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria

Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare

facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos

rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que

podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos

patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara

satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da

CRP)467

Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo

tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo

sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se

abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais

464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment

to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo

465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140

466 Cf Op cit p22

467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de

concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244

154

eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do

nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se

exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-

los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de

determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo

tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur

31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em

inspeccedilatildeo tributaacuteria

A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo

quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo

assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito

passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou

documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o

esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos

Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia

processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o

contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a

desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre

que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um

processo ou procedimento sancionatoacuterio

Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de

colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria

incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel

se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional

O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito

corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da

presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece

155

(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela

consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se

exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e

regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado

no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na

Constituiccedilatildeo Portuguesa469

Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o

nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo

a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para

determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face

ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que

assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo

de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o

aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes

dele Mas natildeo se procede dessa forma

Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais

Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo

para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de

contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e

social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da

mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos

dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da

comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias

processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos

468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes

de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais

formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da

Constituiccedilatildeo materialrdquo

469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366

470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da

prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de

Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt

156

um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do

contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees

Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram

assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito

atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta

e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos

Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando

os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades

administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou

atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos

cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de

documentos fiscalmente relevantes471

Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de

direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual

depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas

comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude

e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos

cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A

doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de

interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando

uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos

interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da

prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um

princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia

471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos

normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela

falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH

Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do

ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na

sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo

472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo

157

constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio

inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo

A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de

inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos

do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo

agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute

harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar

pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo

forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que

acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave

presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses

direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473

Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo

sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de

utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao

abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do

princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a

utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade

e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute

diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores

que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir

para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse

obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza

tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas

decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto

473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25

474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA

RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid

2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss

158

com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave

fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios

O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como

o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo

como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo

tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute

natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e

a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha

uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito

natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475

Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais

destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e

manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso

de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de

autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio

contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave

circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o

contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem

indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos

elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo

colaborar

475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de

criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse

desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del

contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo

Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto

Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e

interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente

protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de

colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a

igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo

e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos

que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das

desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo

476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -

Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10

159

Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo

do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde

logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a

informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e

transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute

se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido

infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o

risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas

circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada

qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de

deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e

um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do

contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash

consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo

Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao

suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos

tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro

lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos

funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante

complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente

conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora

exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar

do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito

tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave

natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar

Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que

ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de

477 Op cit pp276 e 284

160

contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do

nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo

penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria

para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem

a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir

esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou

processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em

inspeccedilatildeo)

Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio

estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do

nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento

para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as

atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas

pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das

informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479

Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no

processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria

ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo

qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o

incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480

478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria

y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar

penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse

debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se

assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria

480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA

RODRIGUEZ Rafael op cit p270

161

Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se

defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa

inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo

conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela

tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos

a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo

penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente

fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481

Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo

nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do

processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo

mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de

tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com

a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo

tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente

aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos

pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de

informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados

contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal

ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483

Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres

de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees

fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que

481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke

482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves

exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos

483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador

Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de

12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]

162

aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais

restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria

destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute

deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer

a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior

utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de

indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como

veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades

comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse

prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do

princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade

probatoacuteria485

Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo

tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos

processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade

torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo

tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das

realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das

infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash

considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das

infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi

estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que

natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado

comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo

484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]

todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo

arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou

poderes de supervisatildeordquo (p110)

486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284

487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss

163

finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial

em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material

proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal

onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido

enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito

ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488

Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo

tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de

passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos

fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o

sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio

de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia

a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum

accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos

solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as

que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo

funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave

partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo

penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e

constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do

sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante

veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual

Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a

colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a

natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio

poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com

a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e

488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27

489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208

490 Idem ibidem pp209 e ss

164

agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a

manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora

al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el

sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente

inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade

diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a

correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a

comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a

praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade

entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do

nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria

4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo

penal

A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em

processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo

sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um

inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo

tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma

questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491

Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em

constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e

controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento

de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de

comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito

491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos

pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101

e ss

165

(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de

fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e

tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo

inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio

Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe

solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de

instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o

poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se

eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito

ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492

Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e

garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer

informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que

ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur

O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que

circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa

intercomunicabilidade probatoacuteria

A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur

se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente

impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo

tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal

natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram

recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de

uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade

prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o

transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a

imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo

492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135

166

processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa

do processo penal portuguecircs493

Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do

Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional

ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal

posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de

cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo

tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do

art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de

gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de

2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou

que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos

indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto

agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo

constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de

assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar

expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria

Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495

ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo

Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem

prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem

proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo

proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta

493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012

494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e

argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional

495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem

natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo

vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de

investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua

destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173

496 Op cit pp 332 e ss

167

em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor

que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo

constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do

CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente

previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das

circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis

de serem utilizados em processo penal posterior

Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser

constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa

requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo

fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime

tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf

parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o

seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender

passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []

assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm

Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por

qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees

que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como

consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como

prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497

FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de

contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora

ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash

conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um

497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de

2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a

sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos

termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto

designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo

498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no

mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores

Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3

do CdVM)

168

vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a

ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo

sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo

ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de

supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o

cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500

Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo

compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo

equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do

estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser

obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-

arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash

em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade

decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor

O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com

uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees

tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo

normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena

da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo

obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do

proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no

aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo

499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave

entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia

exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O

aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do

princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf

Op cit (parecer) p49

500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013

501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281

169

contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz

agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao

processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo

autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute

livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade

livre e esclarecida)

Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la

perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen

suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de

proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al

procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no

declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente

el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de

sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a

efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea

atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las

sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo

de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la

voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo

Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o

princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a

questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de

colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de

verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se

natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute

a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir

para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo

502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el

procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10

170

Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a

questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou

direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica

dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o

outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503

Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de

interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo

de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas

apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em

nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o

regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado

abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como

noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento

dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a

antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo

reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua

funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do

abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em

503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte

da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo

legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na

ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo

facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante

veremos

504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como

sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade

configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer

outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao

silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria

Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-

incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de

investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica

Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94

505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]

506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a

imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed

natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo

penalrdquo ndash p45

171

instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da

abertura do processo penal tributaacuterio)507

Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia

do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em

torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de

documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais

instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo

de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou

inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em

colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir

e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a

condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo

consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando

em causa a justiccedila do processo

Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a

sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-

se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos

investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo

equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de

ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode

ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente

autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter

autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo

507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209

508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos

abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -

durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de

Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de

inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a

existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal

Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe

executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em

caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos

prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no

processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo

172

para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento

ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio

segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na

garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria

autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em

tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito

de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510

Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem

sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a

invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash

salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem

genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa

vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das

obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo

da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios

(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a

prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a

inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)

Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na

perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este

argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que

transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar

509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to

remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -

such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the

prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to

otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo

510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest

in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the

present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness

contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal

offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers

compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo

173

com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a

impunidade

Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e

perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico

hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los

tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511

Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto

elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam

inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que

na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses

aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes

e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo

equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto

natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo

tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema

fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute

simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser

instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo

Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que

se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento

sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob

coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as

garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513

Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes

coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada

pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave

actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela

autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma

processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo

512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss

513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

p145

174

suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a

CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees

tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre

exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar

o caacutelculo do imposto

Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a

intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo

autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa

argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou

opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o

direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que

podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem

independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre

outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as

declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute

descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da

justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material

probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num

processo penal516

Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores

proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo

natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio

ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito

constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se

514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152

515 Cf Paraacutegrafo 69

516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)

pp147-148

175

ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e

presunccedilatildeo da inocecircncia517

Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo

permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e

consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades

tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material

obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo

penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova

ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia

do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros

elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees

detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas

quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo

apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo

voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones

tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el

procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten

aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero

iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a

principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no

auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su

intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se

utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes

de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no

debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una

517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo

ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)

518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y

el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos

adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11

176

eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en

un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519

5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos

Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a

soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos

processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute

uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que

as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se

apresenta sem qualquer desvantagem)

No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e

respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com

esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo

da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo

tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a

compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma

vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o

poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual

consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel

mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele

natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521

519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299

520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito

tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada

com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo

belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)

admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam

atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)

521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave

separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para

a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens

juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e

177

Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de

colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer

inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a

comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum

accusare

Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar

uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica

dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo

afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a

separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os

procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade

entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento

do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio

das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e

informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a

investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo

contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas

natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais

de obtenccedilatildeo probatoacuteria

Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade

probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas

acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que

alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo

tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para

laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema

juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e

social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais

pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da

atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da

admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de

tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade

522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54

523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106

178

(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da

alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito

sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio

tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune

as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de

recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)

nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais

ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera

da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel

Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de

fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo

de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias

poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o

investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer

todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa

soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo

processual

Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de

procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica

das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos

deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees

que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros

domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de

evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito

normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar

exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525

Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees

preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe

524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162

525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54

179

alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se

confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres

de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria

condenaccedilatildeo

A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do

suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse

momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo

ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa

constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o

art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave

inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem

respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de

personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites

previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar

informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre

tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do

CPA)

Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula

de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o

indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas

processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)

A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da

inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes

teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse

Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o

nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo

anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que

esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo

subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum

accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196

180

interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para

que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento

dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua

sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal

de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o

direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da

AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os

autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT

podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova

protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da

proacutepria condenaccedilatildeo

As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento

inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias

processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o

indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores

antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o

procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a

edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas

anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal

cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente

afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os

direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a

servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do

oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar

jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal

por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser

utilizados em posterior processo penal

527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido

no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50

528 Cf Op cit pp56-57

529 Cf Idem pp58-59

181

Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por

parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo

como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a

comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo

de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente

(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que

soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode

construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se

Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo

tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as

exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e

da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade

probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns

inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare

abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o

dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante

da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a

AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo

do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se

conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das

infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus

direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de

exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar

isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao

cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a

prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os

deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos

Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a

propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico

530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)

p195

531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare

182

sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e

considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria

entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada

em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do

indiviacuteduo

Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas

proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que

apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute

permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas

normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas

proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a

enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade

fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532

E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo

inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade

probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que

a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da

sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma

utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total

desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os

princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo

seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da

autoincriminaccedilatildeo

No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico

portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio

soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo

532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133

183

REFLEXAtildeO FINAL

Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute

absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas

obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo

do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado

O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da

dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do

arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida

por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute

reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em

que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e

poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo

(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou

posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees

ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal

deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado

Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar

da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur

contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no

sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um

ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo

necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade

probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute

constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos

processos

A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo

com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas

no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo

utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo

184

indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida

e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios

constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a

integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para

considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo

tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova

agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de

decisatildeo do indiviacuteduo

185

CONCLUSOtildeES

I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa

segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou

seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a

sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao

silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo

satildeo corolaacuterios que se interligam

II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo

tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais

autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais

incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas

para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio

III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se

ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo

penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino

Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos

IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal

circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a

sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo

constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos

como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia

tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num

plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que

asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre

noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)

art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)

V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica

debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana

Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A

primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais

como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm

186

CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende

um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e

seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no

texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a

estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos

circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur

cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza

processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em

princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz

juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa

humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma

mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se

defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente

amparo de natureza processual

VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum

accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua

compreensatildeo e alcance

VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo

exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo

- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O

nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso

ordenamento juriacutedico

VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o

princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o

Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e

ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social

IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em

alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual

(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as

testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos

entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento

da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas

187

sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute

de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal

X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo

expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no

art61ordm nordm3 ald) do CPP

XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da

concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente

com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes

tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se

pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias

coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel

autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia

constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo

de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos

ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou

concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes

harmonizando-os entre si concretamente

XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na

distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores

constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para

resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores

em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio

recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash

prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido

XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute

o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende

diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana

com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na

sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse

sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos

ou interesses de valor social e constitucional prevalecente

188

XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar

previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e

devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da

CRP

XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua

posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado

como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser

juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico

na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo

de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a

infraccedilatildeo

XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir

XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica

proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que

atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da

pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de

todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral

(art32ordm nordm8 da CRP)

XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada

nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de

pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram

em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos

preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou

administrativas

XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute

norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e

AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute

obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da

inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e

demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade

XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e

natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar

189

esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de

incumprimento ilegiacutetimo deste dever

XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de

colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao

cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa

situaccedilatildeo

XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria

podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de

oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente

entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal

pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal

por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria

tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da

informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute

legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo

penal

XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias

dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito

no processo penal tributaacuterio

XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no

procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos

respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar

aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do

Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio

XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a

informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou

precisamente a sua razatildeo de ser

XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal

seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo

investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar

totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo

190

equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria

de cada indiviacuteduo

XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa

de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os

deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos

sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios

constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo

autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos

contribuintes no subsequente processo penal

XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de

uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos

resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se

verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos

em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever

de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a

intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva

separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal

XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres

de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de

qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja

interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por

violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado

continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a

Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas

poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e

aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal

posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo

autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o

chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)

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