A “intercomunicabilidade probatória” entre o procedimento ...
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Universidade do MinhoEscola de Direito
Telma Sofia Martins Ribeiro
janeiro de 2017
A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal
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017
Telma Sofia Martins Ribeiro
janeiro de 2017
A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal
Trabalho efetuado sob a orientaccedilatildeo daProfessora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro
Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Mestrado em Direito Judiciaacuterio
Universidade do MinhoEscola de Direito
ii
DECLARACcedilAtildeO
Nome Telma Sofia Martins Ribeiro
Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom
Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute
13072017
Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro
Ano de conclusatildeo 2017
Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio
Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE
INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE
COMPROMETE
UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________
iii
AGRADECIMENTO
Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente
por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e
empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade
profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta
monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento
cientiacutefico
Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou
para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um
muito mas muito obrigada
Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e
para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos
momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que
idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem
Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que
sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A
minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para
mim
iv
v
RESUMO
O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo
penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute
legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual
penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente
reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo
legal de cooperar no procedimento tributaacuterio
O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do
nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas
nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos
constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de
natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do
estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso
de violaccedilatildeo do princiacutepio
Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em
mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo
analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees
acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em
que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento
ilegiacutetimo desse dever
Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente
colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e
jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens
e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito
normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria
inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute
obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das
informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres
de colaboraccedilatildeo
vi
vii
ABSTRACT
The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of
information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under
and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there
is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not
contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo
tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax
procedure
The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur
se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content
historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of
Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions
and finally the legal consequences in case of breach of the principle
Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax
matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the
framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical
implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the
consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty
Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed
of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence
intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out
to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur
(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed
solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings
(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information
tax inspection under collaborative duties
viii
ix
IacuteNDICE
RESUMO v
ABSTRACT vii
SIGLAS E ABREVIATURAS xiii
INTRODUCcedilAtildeO 17
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare
39
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43
32 Fundamento constitucional de natureza processual 49
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51
c) A garantia de um processo equitativo 55
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade
normativa e validade material 65
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98
44Dever de advertecircncia 101
x
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e
obrigaccedilotildees acessoacuterias 109
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio
da colaboraccedilatildeo 118
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137
xi
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a
inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria 154
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176
REFLEXAtildeO FINAL 183
CONCLUSOtildeES 185
BIBLIOGRAFIA 191
JURISPRUDEcircNCIA 203
xii
xiii
SIGLAS E ABREVIATURAS
ss ndash seguintes
Ac ndash Acoacuterdatildeo
AR ndash Assembleia da Repuacuteblica
AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria
ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
BCE - Banco Central Europeu
CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos
CC ndash Coacutedigo Civil
CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios
CE - Comissatildeo Europeia
CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem
CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios
CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis
CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado
CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios
CP ndash Coacutedigo Penal
CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo
CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal
CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio
CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa
DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo
DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees
DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo
DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria
DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
xiv
DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros
DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras
DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras
DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais
DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico
DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais
DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
DL ndash Decreto-Lei
DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais
FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional
GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland
GNR ndash Guarda Nacional Republicana
IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas
IRA - Irish Republican Army
IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado
LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria
MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico
ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas
PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos
PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila
seacutec ndash Seacuteculo
TC ndash Tribunal Constitucional
xv
TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia
UE ndash Uniatildeo Europeia
UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes
xvi
17
INTRODUCcedilAtildeO
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do
aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao
processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e
que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem
as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da
monografia que nos propusemos a realizar
Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso
quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes
tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do
processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento
administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria
Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de
benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo
tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O
problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado
perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo
Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja
a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer
elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a
18
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos
solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de
colaboraccedilatildeo
Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis
a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a
intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil
atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados
como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje
consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em
ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que
tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute
neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial
relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia
a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto
Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo
principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que
ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute
em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como
eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees
tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL
nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo
Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na
resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um
estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo
especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada
extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute
sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas
e praacuteticas que os mesmos comportam
1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47
19
O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta
documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente
indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que
podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo
auto-inculpaccedilatildeo
ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo
interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como
procedimentalrdquo2
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou
inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com
a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria
para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica
acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo
person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da
Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do
princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina
e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual
penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz
naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou
direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de
inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5
2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45
3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132
4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como
decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos
oportunidade de desenvolver no seio da monografia
5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
20
O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do
nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio
mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido
tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)
Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no
ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao
conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes
Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta
um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as
questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez
que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as
temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o
direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos
constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta
determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda
parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial
no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito
entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e
internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico
21
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare
O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica
de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem
diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo
processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido
Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se
conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como
arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7
FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o
estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos
primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres
ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])
autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua
decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se
maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual
Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o
arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a
6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424
7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao
interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura
superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa
a favor da pessoa interrogada (arguido)
8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p 9
22
todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento
dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que
tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao
respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido
enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede
a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido
declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da
sua livre personalidade
Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do
nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo
autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria
incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir
para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no
que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo
em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O
que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo
seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14
9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430
10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua
proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se
accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur
11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131
12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham
exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo
reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente
prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia
MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico
de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal
Coimbra Almedina 2010 p118
A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido
A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise
14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121
23
COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o
cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees
de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam
valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir
toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave
superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no
essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana
(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta
senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de
declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo
penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo
arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)
No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo
positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa
o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si
imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade
de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema
pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17
Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser
feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado
(art61ordm nordm1 ald) CPP)
O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo
contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio
de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas
seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou
15 Idem ibidem pp117-120
16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual
Penal) pp74-80
17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121
24
apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de
aplicaccedilatildeo
Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que
ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar
ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse
motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo
contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo
Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao
silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por
privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe
sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a
pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que
contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a
extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios
tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que
suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132
19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo
versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In
BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da
prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104
20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia
Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular
que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo
penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo
21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS
Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e
Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da
proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar
para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a
declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor
de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo
25
precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o
princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida
reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas
neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas
A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de
modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex
buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua
maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair
frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a
recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em
autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio
nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de
prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos
aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de
ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros
O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e
pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute
somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo
calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional
22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127
23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de
2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em
httphudocechrcoeint (link) [em linha]
24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA
etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa
que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo
25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21
26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo
de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao
silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange
o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a
colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o
meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes
de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido
26
abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de
um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja
todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize
vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo
Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido
estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo
O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar
para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a
prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29
Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute
mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer
calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir
o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender
exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao
silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute
vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor
incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as
manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou
comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo
com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)
eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo
27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf
Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da
Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de
incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de
manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em
linha]
30 Op cit p 52
31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa
Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136
32 Idem ibidem
27
LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera
que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de
uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao
silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e
dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena
de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos
cidadatildeosrdquo 33
Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido
como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade
para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o
escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir
quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui
objecto do processo34
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo
do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais
concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas
inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e
desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)
Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de
matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da
verdade material
33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso
34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27
35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)
p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op
cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133
36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss
28
A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal
inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais
de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do
indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava
como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias
processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe
sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total
impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos
probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)
Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime
disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem
admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura
Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo
penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII
e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)
O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e
desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo
do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA
RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente
o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse
conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento
da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a
Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal
procedimento obter a confissatildeo do acusado
Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por
Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici
37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade
material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos
representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos
que lhe satildeo imputados
38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61
39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35
29
Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos
processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com
verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do
lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em
submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um
segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o
considerava culpadordquo40
Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do
Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O
procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi
aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se
serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas
No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era
a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova
central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste
paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse
inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a
verdade que incidia sobre o acusado
Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre
Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a
alterar-se
No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos
naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se
constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a
puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer
medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se
40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137
41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62
42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64
30
Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o
indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo
inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu
direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal
torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa
espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas
consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria
afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval
Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade
julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo
necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje
ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)
eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil
CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal
apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-
se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema
por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes
estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los
intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los
interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio
cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio
del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto
del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por
parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de
investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial
que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y
de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque
soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44
43 Idem ibidem
44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1
ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122
31
Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de
armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a
autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as
partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas
caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos
assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash
que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio
PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45
Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra
com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-
Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e
aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental
reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)
Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria
na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare
45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico
desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado
contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador
do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a
condenaccedilatildeo do acusado
46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we
send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma
de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36
47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era
influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores
onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os
procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o
processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que
metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute
acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se
tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou
incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute
incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer
confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas
(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93
32
O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que
surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em
instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do
arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu
surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao
crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio
Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o
mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu
aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a
partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo
de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua
vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs
aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o
indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo
Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito
que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their
defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este
princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da
obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the
Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with
respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo
48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37
49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123
50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100
51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio
encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento
que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se
verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente
e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o
arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este
panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado
porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39
33
Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos
em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da
assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior
conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)
Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em
documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo
mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em
17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment
(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que
ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O
entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de
duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo
do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54
Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito
contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o
poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de
declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes
de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da
responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao
suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a
estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido
A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos
tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia
[em linha] Disponiacutevel em
httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075
ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido
que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte
porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no
sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22
53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104
55 Idem Ibidem
34
mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da
doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees
voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees
forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession
doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar
a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial
O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se
destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-
incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia
americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash
tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado
Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos
estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia
ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com
vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente
admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e
56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]
Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)
por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio
policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se
fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em
audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado
A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do
advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal
do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo
da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes
e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo
ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o
perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais
de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo
57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os
direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114
58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a
guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo
tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio
deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode
voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op
cit pp 104-114
35
portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como
uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito
o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais
sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the
determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following
minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess
guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o
nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de
fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP
mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um
processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com
a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo
14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de
uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60
Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do
direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de
1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de
julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61
O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas
limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo
59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de
um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente
todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o
conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo
numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo
acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm
devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo
60 Idem ibidem
61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14
36
pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929
acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu
incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves
segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode
evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu
pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao
art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de
responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63
ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao
silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse
remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo
de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito
pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como
demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65
A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um
controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu
Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute
verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa
inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade
de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de
proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao
silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da
proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66
62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933
Volume 4 pp158 e ss
63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160
64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem
autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa
mesma valoraccedilatildeo contra reum
65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13
66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14
37
Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a
obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido
(art342ordm nordm2 CPP)
O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a
oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na
redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao
arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais
Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta
atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves
perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes
criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas
declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia
previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees
previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal
O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos
antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de
defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto
pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs
O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres
processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo
responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e
sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)
comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
68 Era o seguinte o teor do preceito
ldquoArtigo 342ordm
1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de
nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo
2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal
que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal
3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer
incorrer em responsabilidade penalrdquo
38
exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em
responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)
Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as
garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de
que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70
para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos
direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo
penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao
silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de
inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da
questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus
antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao
silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido
O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo
art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a
obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o
arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de
prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo
se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido
poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu
tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos
referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda
mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda
natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a
comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72
69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a
resposta com verdade sobre os antecedentes criminais
70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm
do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)
pp105-106
A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma
presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA
39
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se
ipsum accusare
Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo
tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs
Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73
Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio
entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for
retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)
para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar
declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as
garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que
constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do
arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)
72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os
autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro
interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil
mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo
Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e
ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime
prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes
aos antecedentes criminais
73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea
comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al
detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2
Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la
acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba
pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos
en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo
74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos
entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo
75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por
comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute
mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos
El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute
justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda
especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en
ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la
autoricerdquo
76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a
presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of
War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in
40
estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a
autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo
expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma
uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo
impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a
doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza
constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em
geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79
A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees
legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do
princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos
anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o
direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao
arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm
nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o
legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e
any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property
be taken for public use without just compensationrdquo
77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125
78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)
p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil
Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado
princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos
69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo
79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20
81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder
a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles
prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for
necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia
desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico
nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os
factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a
recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]
41
perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do
silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como
forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei
processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de
advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do
arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos
previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas
obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que
ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos
interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada
natildeo podem ser utilizadas como provardquo85
O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves
testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando
alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de
responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento
que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito
legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo
interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo
de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86
Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia
natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)
donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio
83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido
84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou
um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se
necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA
constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do
defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial
em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de
poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo
85 Itaacutelico nosso
86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as
pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si
mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20
42
Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo
tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais
limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que
natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios
de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de
caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana
natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias
processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no
segundo pode sofrer limitaccedilotildees
A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira
vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos
fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal
(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na
doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente
processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios
nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de
defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio
do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou
ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da
estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a
maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores
optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas
87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) p58
88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123
89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595
90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) pp69-72
91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ
(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28
92 PALMA Maria Fernanda op cit p103
93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit
(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss
PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133
43
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)
A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos
fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da
personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente
na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de
personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante
GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95
2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo
violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes
1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal
respeitaacute-la e protegecirc-la
19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia
O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento
da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de
defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito
geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de
prova contra si proacuteprio96
A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana
justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial
de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a
impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por
consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a
mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo
94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im
Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de
entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63
95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die
Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist
unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem
Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa
96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125
44
indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por
ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de
personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do
legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera
indisponiacutevel da liberdaderdquo97
ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa
do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto
componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana
Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias
constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as
garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal
A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa
(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa
possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o
seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito
fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm
CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O
silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo
art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza
aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e
aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo
Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de
claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros
seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa
do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se
indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido
97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5
nordm19 (1987) p186
98 Op cit pp81-91
99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2007 Volume I p516
45
defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio
na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da
dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos
cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis
infraconstitucionais que a violem
Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia
uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do
ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do
exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o
fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder
puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo
princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um
conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do
arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101
A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade
pessoal constitucionalmente previsto
O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a
impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis
degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da
pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte
autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a
Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que
o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)
primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo
objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da
dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da
100 Op cit p 90
101 Op cit p 91
102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos
fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal
direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198
46
respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana
enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as
praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da
qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios
racismo)
Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser
ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos
crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes
de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou
enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave
integridade fiacutesica e moral da pessoa)104
O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa
mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a
respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder
legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via
da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da
investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou
moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash
art32ordm nordm8 CRP)
A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de
tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura
como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de
tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado
senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento
103 Idem ibidem p198
104 Idem ibidem p454
105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da
Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo
intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a
punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira
pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um
agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se
considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)
47
[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o
tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil
descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito
menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes
dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada
accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se
distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106
Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal
mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas
obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a
impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no
processo criminal107
Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir
fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus
corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana
integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato
do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur
que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na
imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos
parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do
processo equitativo do que com as restantes109
Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a
autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de
conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo
no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97
107 RISTORI Adriana Dias Paes p76
108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do
art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal
Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)
109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199
48
arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de
vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode
o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do
processordquo111
Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da
pessoa humana
Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana
e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto
da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser
meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio
ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu
fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade
humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de
Direitordquo112 113
Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a
dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana
justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual
e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo
contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur
comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da
plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem
como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como
111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41
113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO
DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade
humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo
efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para
o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas
humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um
Estado de Direito Democraacutetico
49
objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos
processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114
32 Fundamento constitucional de natureza processual
Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um
fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que
a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito
Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas
relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente
processualrdquo116
Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores
divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem
entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da
estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com
aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser
ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de
defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria
Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos
nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial
114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores
desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo
tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64
116 Idem ibidem p63
117 Idem ibidem pp68-69
118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e
3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial
uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez
referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo
Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo
50
declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos
seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente
enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo
essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como
lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal
admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que
adiante aludiremos
MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo
da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de
defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a
partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de
natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao
arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash
ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova
De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute
indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao
silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm
nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o
tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a
exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza
processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva
119 Op cit p103-104
120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais
Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio
Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da
estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e
de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio
e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio
prejuiacutezordquo
121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo
prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre
noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de
Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178
51
legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e
instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos
direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a
defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou
conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao
silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do
processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe
permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos
processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo
queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de
constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias
que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer
forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido
deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de
defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do
arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia
Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional
do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo
pode ser forccedilado a incriminar-se
Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido
se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como
conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em
detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do
122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516
123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p28
124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430
125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)
52
processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de
custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo
de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento
criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o
estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126
A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de
tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro
sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de
um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social
juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute
impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da
presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se
impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a
acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo
da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado
como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e
equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128
O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o
processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo
nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a
sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo
A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do
arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre
participaccedilatildeo
O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais
Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos
126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518
127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60
128 Idem ibidem p59
129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p9
53
direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos
nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual
eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm
nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios
admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua
posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5
CRP)
A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do
arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto
ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo
princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos
os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a
utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua
decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de
uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante
a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa
a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e
sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das
declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como
fundamento do direito ao silecircncio
Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo
prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar
satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do
processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo
130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429
131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf
VILELA Alexandra op cit p95 e ss
132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a
tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo
134 Op cit pp132-133
54
pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser
encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a
presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de
que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo
eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio
Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se
autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo
contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em
desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado
com a presunccedilatildeo da inocecircncia136
A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e
do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de
comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se
autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de
inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo
ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees
susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao
arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que
serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados
com a sua culpa
135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de
inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016
Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25
55
c) A garantia de um processo equitativo
Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma
causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo
equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave
justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave
sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute
especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e
art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao
processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia
do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do
proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel
As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm
quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due
process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de
saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a
obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser
privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due
process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele
proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente
estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas
ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo
legal dos mesmos processos
Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na
Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo
legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas
138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP
139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina
2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando
estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de
exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal
a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado
segundo princiacutepios de justiccedila)
140 Idem ibidem paacuteg493
56
tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos
vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual
Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma
decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma
decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o
direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de
pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e
independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual
conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o
direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda
o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela
contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e
contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado
deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees
judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das
sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados
em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do
processo142
E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito
criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente
Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez
tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o
contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e
da noccedilatildeo de processo equitativo
No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no
art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel
com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave
instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo
proibiccedilotildees de prova entre outras
141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415
142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501
143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150
57
Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo
estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave
dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do
contraditoacuterio144 e a igualdade de armas
Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do
processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo
No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o
nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez
eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao
silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que
demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes
Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147
No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais
franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria
(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no
estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos
de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca
domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos
no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas
autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular
de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea
qualquer extrato bancaacuterio
Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos
documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo
garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido
144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os
testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit p523
145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
58
sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo
montada contra si
O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a
condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora
natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os
documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele
proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que
as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo
podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em
permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1
da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a
presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149
No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo
probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo
tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)
por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde
estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do
IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no
momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio
ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido
advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas
consequecircncias
Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos
juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do
exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto
natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida
que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient
lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave
fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient
justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point
contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
59
satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo
de processo justo150
No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi
chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo
(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash
Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise
mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos
interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no
procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal
cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia
(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num
processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas
atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa
medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152
Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela
sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo
como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o
enquadramento nas garantias de defesa
150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police
questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair
procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom
151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v
United Kingdom
152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para
prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125
60
61
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare
Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur
(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da
sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como
corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao
silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do
nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas
Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma
visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito
por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees
doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees
potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de
154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos
do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da
Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais
tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29
155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss
156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a
auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-
43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins
SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica
Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44
Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer
afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo
157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel
em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser
condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g
documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou
ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo
Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
62
documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio entre outras
O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar
a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo
tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o
arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a
questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua
responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao
silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo
representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos
e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito
brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer
caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas
capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a
impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a
intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da
reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de
tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar
juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do
acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-
incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova
de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria
[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do
158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United
Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused
person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to
incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo
159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30
160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo
significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos
normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma
63
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se
relacionemrdquo161
Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta
posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito
desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um
processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas
preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de
fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente
obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma
colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162
A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute
comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a
concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do
conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute
autoincriminadoras
O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o
arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias
probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado
(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de
sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163
Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou
meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente
imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume
natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos
uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito
interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos
atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material
ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar
(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo
161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43
162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21
64
ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio
uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito
Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de
recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em
muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos
limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de
coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede
constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do
conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de
outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz
social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer
limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em
diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado
comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse
na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente
e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver
Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts
that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v
United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right
to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46
Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of
inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do
Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295
de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos
todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz
op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm
142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-
dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio
especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de
Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash
Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo
tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e
garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo
da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e
nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74
165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias
no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406
65
Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal
validade normativa e validade material
A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre
validade temporal validade material e validade normativa166
A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo
o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao
Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167
Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos
166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072
167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana
da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito
ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser
assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel
da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista
civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese
o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante
qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito
vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa
resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no
processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um
dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer
espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos
sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio
geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os
procedimentos criminais independentemente do tipo de crime
168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico
Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183
Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente
influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal
constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como
constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja
inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem
sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH
admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no
66
anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os
direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende
esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo
equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa
criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no
encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos
demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no
processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a
acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de
ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios
Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a
dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal
todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando
formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de
haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias
incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo
de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de
um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH
no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o
conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para
acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeordquo
169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland
SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a
witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged
was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1
That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It
may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal
offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo
No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa
criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos
alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que
se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na
substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo
67
aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de
lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta
primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas
formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa
seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)
segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da
sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o
caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e
repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo
apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza
criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do
criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173
Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se
intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo
autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto
mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de
validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo
O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode
ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a
uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um
crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua
constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the
provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both
concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be
examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States
The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would
generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks
incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a
punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at
stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all
require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the
subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo
173 COSTA Joana op cit pp127-128
174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23
68
art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste
caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da
anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa
relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou
que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o
caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito
ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)
Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes
forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo
de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no
art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes
satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua
responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido
tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem
Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se
deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual
responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe
forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em
falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente
poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os
parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele
viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal
por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada
nos termos do art 364ordm al b) do CP
Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash
temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento
eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no
decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da
sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio
do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188
176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o
caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
69
autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da
monografia que nos comprometemos a responder posteriormente
Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da
personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas
fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma
perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a
comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio
Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos
da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas
na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu
estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-
se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou
quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178
O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta
determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise
sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o
caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o
direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias
de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova
confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo
que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo
MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126
178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o
acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo
179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo
180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao
silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as
manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP
que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais
existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da
atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e
art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de
base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio
estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da
70
Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a
possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa
verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS
ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el
procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay
que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega
sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por
supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado
p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico
como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute
mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido
teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado
psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como
cuando se lo confronta con un testigordquo
Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser
conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser
considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou
quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade
livre do arguidordquo183
Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm
CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do
CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas
de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]
sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9
do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida
de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135
181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133
182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees
prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames
(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do
Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito
ao silecircncio
183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176
anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430
71
lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a
diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou
obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser
compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo
Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas
legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando
alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas
normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias
ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta
questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da
atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo
se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da
personalidade187
184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP
185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber
se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e
aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)
encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a
recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos
parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao
referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a
utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo
seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo
Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de
amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm
0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta
mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias
entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade
judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode
por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo
Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser
aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado
186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo
187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros
2003 I Volume p870
Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a
72
Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da
prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei
Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura
coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que
devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da
integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento
delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas
corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora
facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com
o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para
obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de
sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de
alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda
que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito
Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de
novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova
mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo
nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da
sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados
elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser
assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm
CPP
Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a
possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam
cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o
processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a
busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este
todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz
(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo
188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit
p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido
nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico
Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora
descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo
189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362
73
Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado
indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade
pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma
total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila
Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo
com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva
no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as
autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a
exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito
processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio
meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)
Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever
geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor
agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)
atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)
prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos
125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um
dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191
Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios
de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova
[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a
de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo
do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se
190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio
Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255
192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316
193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658
74
como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica
vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195
Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que
tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito
constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse
motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam
garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na
CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que
devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do
CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver
expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo
exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o
enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em
concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos
proibidosrdquo197
Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm
nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de
obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si
mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua
apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios
de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para
investigar e recolher meios de prova198
De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos
171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade
material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que
ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo
195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658
196 Cf op cit p255
197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua
proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256
198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio
FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361
199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os
segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a
75
que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios
que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi
praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1
estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo
do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame
eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios
materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do
circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se
apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios
pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos
vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade
judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os
indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201
Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de
prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um
lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou
menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de
coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc
constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202
Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais
sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser
alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de
vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo
representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a
tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende
a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita
medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua
conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a
detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit p 420
200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870
201 SILVA Germano Marques op cit p236
202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439
203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)
76
utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo
preventivardquo204
Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e
quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo
contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como
parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e
jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo
Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o
que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem
proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que
forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de
fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um
alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei
atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo
extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita
demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios
fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de
assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave
liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206
Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de
modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias
(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e
direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal
(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas
204 Cf Ac TC nordm 2282007
205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento
p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os
MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas
Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento
na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3
ald) do CPP
206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes
77
tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de
diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207
Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS
que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um
meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser
entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de
coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a
restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente
imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade
pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames
em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208
A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito
a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de
substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a
obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do
estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos
casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm
nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando
ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de
agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel
ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver
indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees
referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade
social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico
adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se
mostrar necessaacuteria (nordm3)
207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de
2009 p12
208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]
209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)
210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar
necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo
211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro
78
Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo
de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os
exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como
esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do
Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que
sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e
consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite
fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo
acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o
arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a
questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo
suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio
artigo 61ordm)rdquo
CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita
(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo
existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que
imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm
nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular
Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame
devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe
estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo
213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para
determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004
ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de
autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo
de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua
realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser
compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo
Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a
recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa
bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora
tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia
214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame
para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua
presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia
qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo
menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo
79
adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na
lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a
um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que
resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215
A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se
extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por
demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216
Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames
ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do
arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e
aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo
A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se
pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida
pelo nemo tenetur
O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou
accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash
apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo
permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo
podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido
maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais
ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219
215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18
216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo
217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash
setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana
218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales
como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No
obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen
corporalrdquo [itaacutelicos nossos]
Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e
ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073
Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss
219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da
influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um
80
O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de
submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos
mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur
uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido
admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de
periciardquo220
No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-
se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria
atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A
produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do
acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo
acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra
a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante
entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a
participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras
Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou
agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo
das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)
Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse
compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo
Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva
(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina
fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso
a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do
princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a
invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas
hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59
220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]
221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma
voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo
da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem
significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
[itaacutelicos nossos]
222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64
223 Cf Op cit p316
81
germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia
portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo
eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida
e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja
meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do
arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar
uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem
pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se
agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se
torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento
tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo
do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo
chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o
reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou
manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta
linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se
para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228
224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa
op Cit pp127-128
225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit
p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit
pp98-99
Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos
ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas
as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss
Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter
afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma
mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como
obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de
colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato
Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos
classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de
marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo
fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo
sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo
226 Op cit pp103-104
227 PINTO Lara Sofia op cit p99
228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131
82
Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande
vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode
ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo
podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute
que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo
O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da
vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo
tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do
sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230
Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela
vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o
direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes
coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente
colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231
229 Op cit p368
230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -
op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007
ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en
los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o
expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra
la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto
del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen
los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier
Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13
[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar
231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the
will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and
elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of
compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a
warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo
mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo
y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros
intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad
de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo
83
O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh
v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo
tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas
advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o
acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de
documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material
corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o
TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime
grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave
recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo
de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo
duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234
No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu
acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina
acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do
arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila
do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do
arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do
sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de
saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui
nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se
confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que
independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar
como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que
232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102
ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused
person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not
extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which
has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or
voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a
recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido
233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila
234 COSTA Joana op cit p157
84
pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-
incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como
AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente
acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao
silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da
vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas
natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem
ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as
declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois
natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo
mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que
razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob
ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva
ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo
Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a
conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a
aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do
arguido
Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio
da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237
235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora
processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se
a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis
em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo
afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito
ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal
(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que
respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira
linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo
em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e
adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional
nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
ponto 7)
236 Cf op cit p24
237 Cf op cit p23
85
fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica
dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos
afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de
documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando
dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo
entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela
compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios
conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos
direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio
da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos
VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa
Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada
situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente
protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma
ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do
nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias
fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si
mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre
autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria
eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes
implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)
O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito
de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e
direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o
238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299
239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)
pp1270 e ss
240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300
241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil
estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores
por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais
elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76
Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com
intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior
parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300
86
mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos
Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo
tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses
valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de
outro bem em jogo
O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional
admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da
mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito
produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de
variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma
prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um
criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em
conflito
Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos
valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos
direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo
e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244
A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o
conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa
segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de
direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos
valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas
circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246
Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em
termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all
or nothingrdquo ndash op cit p 23
243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301
244 Cf Idem ibidem
245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303
246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303
87
concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor
comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio
total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou
da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247
Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem
construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na
prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)
Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois
de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que
um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro
(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto
podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador
Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas
as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir
para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade
pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de
valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave
obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais
contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o
direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade
na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de
intimidade da vida privada
O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade
corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais
preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea
da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274
248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem
249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este
respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave
integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das
pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo
comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de
outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo
88
como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas
contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252
Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas
normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de
exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo
nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a
possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a
muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia
constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades
e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm
nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em
decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda
de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)
for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo
18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir
a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da
Constituiccedilatildeo)
A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade
pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer
meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos
ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees
agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de
alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores
admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave
reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e
integridade fiacutesica de terceiros253
251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino
disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de
dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins
criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264
253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o
mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode
deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia
89
Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de
circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a
adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente
pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em
condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes
ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos
diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave
conduccedilatildeo
Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila
rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor
e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo
do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez
art292ordm do Coacutedigo Penal254
Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser
acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova
dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a
satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo
das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez
aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para
afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma
intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio
todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na
caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a
conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a
tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de
deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual
estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no
excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave
realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo
254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011
relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013
256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira
Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013
90
elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem
proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257
Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo
Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de
autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita
no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou
psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por
regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade
um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas
quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo
da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na
colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode
considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos
cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo
de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele
direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258
Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da
concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se
ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da
estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado
fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios
do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees
257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]
258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]
259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23
PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26
260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash
recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a
integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou
princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas
se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam
independentemente da vontade do sujeito
Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o
criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses
91
parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei
preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao
princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim
para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma
lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo
entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores
juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento
do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a
necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263
O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo
da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos
restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da
restriccedilatildeo ao nemo tenetur
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees
justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na
impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a
261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]
262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31
263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo
e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade
da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo
fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de
eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como
acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a
condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por
aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da
medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia
probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais
relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo
264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem
reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas
circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra
a sua vontade)rdquo
92
restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em
lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)
No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo
tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade
(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos
(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de
acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar
exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas
(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo
tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito
de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas
pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia
previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei
nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM
Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel
sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja
superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio
da proporcionalidade]rdquo265
O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas
legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de
natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo
obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais
de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem
inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas
obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios
subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou
a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando
essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o
exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266
265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21
266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36
93
Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma
forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor
constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da
prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa
prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)
ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou
direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute
considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de
desobediecircncia
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir
Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do
direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade
de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do
silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao
silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio
de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270
Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo
267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido
pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa
desfavorecerrdquo
269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud
ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute
reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais
meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches
nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido
do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido
juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o
arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou
parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS
Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP
BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua
incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de
culpardquo
270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449
94
pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico
jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271
ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave
livre apreciaccedilatildeo da prova272
No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA
defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de
defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o
desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee
o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou
negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade
O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a
determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273
Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente
desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero
ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou
desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou
parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio
tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar
consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de
circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)
271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861
272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit
p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do
silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo
273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub
Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido
de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo
MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 ponto II
274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique
qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo
do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com
o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular
o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo
275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
95
O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto
a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias
que as regras da experiecircncia comum permitam
No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio
e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a
que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em
julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o
silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de
ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a
possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas
consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de
esclarecimento sobre os factos a si imputados
O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa
em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal
que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem
claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na
avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto
comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma
decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem
qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por
inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma
276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in
particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are
absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or
alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper
compulsionrsquordquo
277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely
or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally
obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from
him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two
extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be
answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should
necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed
out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent
on this pointrdquo
96
explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de
acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder
estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um
raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por
inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de
inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo
de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do
arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo
Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido
renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados
remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis
no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova
por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida
tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o
facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior
credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da
experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o
arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior
credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente
a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)
O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes
enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a
concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas
para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente
retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode
impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham
Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo
que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova
formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a
responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo
podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos
278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150
97
casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio
contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos
suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e
deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como
instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar
alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo
probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma
seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo
Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves
perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de
existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido
pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento
eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que
sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a
mentir280
Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal
direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos
em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever
moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia
juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir
que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido
ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721
280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo
tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na
doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto
de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente
tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O
interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES
op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo
apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a
uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode
declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo
281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente
tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo
282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance
praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo
98
nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por
isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285
Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento
considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um
processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos
inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um
ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel
Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash
que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade
(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada
indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas
O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de
direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos
e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo
com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais
salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma
limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais
compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo
283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451
284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se
autoincriminadora
285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de
2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento
juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a
inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito
Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)
286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP
287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss
288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as
pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo
agraves pessoas coletivas
99
que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel
de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente
os mesmos termos e amplitude em ambos os casos
Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas
pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum
accusare
Vejamos
Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do
princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios
independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo
constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave
partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada
pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa
agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289
Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas
coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes
(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio
que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser
titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos
fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas
privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter
direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a
competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo
exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas
puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114
Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de
aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de
interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou
de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op
cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss
289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e
concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179
290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas
da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137
291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns
sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o
cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento
dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de
100
ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se
podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em
processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido
[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292
Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos
natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza
das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo
documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade
econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur
292 Idem ibidem
293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas
coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees
impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com
contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487
disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas
coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de
uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma
infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave
disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio
expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que
os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como
sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar
contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as
ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves
pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio
das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm
nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da
concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo
testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito
de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia
Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de
salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o
Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa
evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter
determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por
conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de
acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas
as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua
posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento
anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave
empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34
101
de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295
44 Dever de advertecircncia
Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve
resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz
cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de
Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal
recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o
arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e
esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e
natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no
CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio
total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees
o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se
antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298
Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina
com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o
294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em
si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as
ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com
esses lugares e com essas coisasrdquo
295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42
296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria
insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse
conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos
resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o
autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a
invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta
processual ase adotarrdquo ndash p227
297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela
da Costa op cit (parecer) p39
298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules
que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia
HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222
102
depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar
depor300
Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em
caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de
advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da
violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a
formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado
da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e
autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do
nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum
accusare satildeo na verdade realidades interdependentes
A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao
incumprimento do dever de advertecircncia
Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo
ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se
inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo
de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees
prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu
autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como
ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur
299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento
1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas
a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido
b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em
condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo
300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas
autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a
faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente
mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo
301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da
Costa op cit p84
103
se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do
direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria
inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve
ser a mais forte possiacutevelrdquo302
A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta
eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo
daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que
sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim
um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem
aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a
proacutepria incriminaccedilatildeo304
Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele
qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A
nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante
intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O
argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que
em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim
os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo
tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e
esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em
prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as
declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo
prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de
advertecircncia ou esclarecimento305
Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo
tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem
303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel
Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit
p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43
304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio
305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36
306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127
104
com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante
tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra
soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas
sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral
autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou
da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308
Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE
haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309
eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o
qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a
proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova
cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar
que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito
embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos
da nulidade do ato
Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do
CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo
servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais
quase como se natildeo existisse)311
Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute
somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros
meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida
Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem
como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-
distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
307 Idem ibidem
308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a
devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia
Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447
309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193
310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss
311 Idem ibidem
312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss
313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas
consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo
105
probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos
documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos
proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica
se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de
afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo
objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315
Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia
dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave
consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao
art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato
com a nulidade ele eacute apenas irregular316
deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais
meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree
(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este
entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit
p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o
efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp
32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194
Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da
jurisprudecircncia
Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do
efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of
the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel
em
httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905
Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver
SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40
314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves
declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS
Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in
Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de
Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina
2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17
nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op
cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous
treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode
frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de
prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos
disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321
316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p
359
106
107
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza
juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um
devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo
encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se
sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos
estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito
Privado
Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e
simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de
cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso
exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres
para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se
encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do
contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo
tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois
que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss
318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute
sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o
conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que
significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter
tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre
outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas
a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada
cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)
108
categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou
outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo
juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor
ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)
cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os
dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento
da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria
tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo
juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o
contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo
concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a
prestaccedilatildeo de imposto
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321
alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo
de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres
acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar
e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322
319 Cf Art397ordm CC
320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de
Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011
p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o
direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um
determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal
como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal
natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos
negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para
satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA
umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que
apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por
acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11
321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e
os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15
322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss
109
A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo
(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo
exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a
custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324
Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica
tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua
complexidade325
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo
principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias
Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa
As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um
determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo
juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos
eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326
A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de
um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do
conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327
De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto
da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o
facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de
sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente
323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss
324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16
325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L
Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal
2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de
Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal
Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss
326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra
Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49
327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss
110
em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma
tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de
mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees
financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao
trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos
aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o
contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute
suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo
existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas
uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330
A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma
abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo
tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de
pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos
acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de
emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e
entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante
328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo
mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e
tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss
329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute
de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar
atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT
330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o
sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos
exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de
ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que
natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da
entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio
pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a
mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs
grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf
ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular
trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal
Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto
de estudo
111
superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante
os casosrdquo331
Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da
obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou
demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas
porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros
moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere
a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo
que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os
deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram
autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave
praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees
legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo
acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia
pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336
Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa
relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e
das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto
significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de
pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na
lei
331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10
332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo
333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee
aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees
que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31
334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do
sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de
documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo
335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20
336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32
337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11
112
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria
Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da
LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o
pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos
declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de
cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto
em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que
estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais
accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340
Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios
que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a
declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar
o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar
recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e
os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar
periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o
dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1
da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade
que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um
comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere
Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica
como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e
ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La
declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a
estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala
maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo
339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79
340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os
deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por
outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como
objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
341 Idem ibidem
113
A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo
pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e
de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre
obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente
formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo
de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em
ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e
situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma
posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343
Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias
tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema
de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos
uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos
necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de
uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida
preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento
patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que
muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados
pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e
cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo
juriacutedica tributaacuteria346
342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e
executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op
cit pp253-254
343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27
344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130
345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT
ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos
rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal
sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos
sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias
346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47
114
Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela
lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo
pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347
O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada
complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica
exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades
contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees
especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um
modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades
sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina
estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa
enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes
(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)
A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de
determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar
um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os
particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado
por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas
contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no
ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-
pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo
conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto
prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave
Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres
esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e
auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas
347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss
348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de
uma diacutevida tributaacuteria
349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56
350 Idem ibidem
115
O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos
contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme
prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo
tributaacuteria e contribuintes
No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios
textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei
Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees
acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da
obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos
previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354
351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode
suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e
efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de
avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT
352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre
contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais
sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de
cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo
paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as
relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte
ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA
CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que
estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)
Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais
ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave
obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na
exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp
57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254
354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo
1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo
2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que
personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital
exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo
116
O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja
que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo
normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que
existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros
(art59ordm nordm1 da LGT)
Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria
para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular
e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais
interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria
esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo
de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao
exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se
observem356
Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento
esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo
os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a
administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e
a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como
sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4
da LGT
Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos
referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade
inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo
modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria
de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos
355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110
356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT
357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT
117
comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta
solicitados358
Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja
simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem
apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do
dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica
Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia
do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de
determinadas tarefas de imposto
Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)
declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos
declarados
No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que
seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que
recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos
iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos
Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz
remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo
tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram
de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo
Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da
prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere
(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os
factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres
358 Cf Art48ordm RCPITA
118
acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de
cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos
rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto
encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais
deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de
entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)
obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade
(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de
cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de
entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da
declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir
faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada
(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais
obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a
sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o
subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo
Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo
tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os
princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da
celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O
objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a
realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva
359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss
360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte
361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-
administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de
uma vontade jurisdicional
119
daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do
art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material
Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria
implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na
sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois
apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido
apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo
ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta
iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade
contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por
qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)
que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material
vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio
daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou
mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash
prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364
Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute
o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como
estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos
Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e
absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade
362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da
Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor
total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as
pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios
constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a
capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre
a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit
(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss
363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112
364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44
120
processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material
subjacenterdquo365
As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que
assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios
princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da
igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que
tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo
equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de
cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo
365 SOUSA Rui Correia ibidem
366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o
preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O
princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em
diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o
desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a
tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o
art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo
legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta
op cit pp 137 e ss
O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a
imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da
mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios
fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142
Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees
acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei
O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio
material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo
encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em
sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num
procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido
formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual
de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de
2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash
Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M
Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal
Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em
httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit
pp137 e ss
367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio
368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84
121
com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se
verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o
pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica
A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades
contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade
vertical)369
A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva
permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais
Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de
pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de
declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos
passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva
quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser
considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se
de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias
(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo
do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade
contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades
detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os
deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm
maior capacidade de prestaccedilatildeo371
369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154
370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166
371 Idem ibidem p169
122
123
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo
Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se
aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo
Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que
natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees
tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos
elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de
factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para
fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames
teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o
ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com
o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas
tributaacuteriasrdquo375
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou
terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que
eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio
das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num
controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da
372 Cf Art 4ordm do RCPITA
373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA
374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA
375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12
376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)
p164
124
Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo
lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as
normas de incidecircncia tributaacuteria certas
A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma
funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees
funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo
fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento
tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios
contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer
com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que
busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e
controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute
efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria
Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca
dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria
Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos
princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os
princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores
da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem
bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na
administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo
377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento
Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011
Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss
378 Cf Art 2ordm do RGIT
379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30
380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167
381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30
125
tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio
da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e
igualdade)382
A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo
oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da
obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho
das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio
supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo
deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes
concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios
relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar
desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria
de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes
fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de
investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com
382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183
NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss
383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar
um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute
verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento
Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de
Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash
roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19
Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio
Coimbra Coimbra Editora 2009 p372
Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva
SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa
tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do
Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que
implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte
natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em
consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de
arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios
de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) p19
384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45
126
base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de
irregularidadesrdquo385 386
Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral
eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos
arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na
restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva
pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da
vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave
propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da
inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a
AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs
dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a
medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica
se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a
adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que
melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada
na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do
considerado juridicamente aceitaacutevel)389
O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito
da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem
385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185
386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria
estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo
tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo
tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio
no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010
387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio
Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)
388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo
tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados
pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre
outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)
389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163
127
ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os
contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)
na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os
objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou
prossigam os fins pretendidos390
Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei
Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento
inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo
de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas
ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia
o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem
afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este
princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do
procedimento que lhes digam respeito392
A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito
passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os
factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de
inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm
da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado
Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85
391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como
esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a
AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de
proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel
392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir
que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento
nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando
devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento
tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos
sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-
126
128
ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar
partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem
acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma
decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de
evitar futuros conflitos de pretensotildees393
Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de
colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do
RCPITA)
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo
Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado
que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394
Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao
inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o
acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem
juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer
todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria
relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos
relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do
RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396
393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57
394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo
de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder
395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100
396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves
instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das
129
Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em
termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na
inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este
dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-
tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em
variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside
nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de
entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc
Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de
cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria
instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos
mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos
relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos
estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de
empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade
puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o
desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das
entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas
funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)
Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos
dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros
com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados
indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos
contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das
accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de
processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros
Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais
entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo
63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise
laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para
apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos
sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre
que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees
agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou
internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees
de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito
nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas
de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT
397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss
130
Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a
entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso
agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio
ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo
quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios
para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos
determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio
dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem
praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA
donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que
sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua
atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar
designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou
uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)
Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos
inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e
compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum
a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a
relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)
Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito
passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um
representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o
cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta
atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes
legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos
atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do
398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados
tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm
do RCPITA
131
sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material
(art54ordm nordm1 RCPITA)
Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a
cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo
Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do
procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos
por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente
necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para
com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com
antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1
e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa
notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)
Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a
exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400
aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo
Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado
pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos
sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto
leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever
O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo
sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves
desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA
400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65
132
colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o
infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal
nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos
passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando
ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da
leirdquo
Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos
funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a
AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de
responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos
mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito
pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica
Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei
diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da
aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos
gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei
prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente
impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art
14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo
bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave
coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas
para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)
A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste
paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou
presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de
cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo
realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros
elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de
401 Idem ibidem pp175-176
402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A
quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss
133
boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo
apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo
colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da
mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos
vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo
ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos
seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos
fiscalmente relevantesrdquo403
O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a
administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos
elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe
satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma
recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma
presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees
aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406
Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um
caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos
princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte
403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295
404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito
incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com
a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees
Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No
entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as
suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a
avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos
rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -
Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel
Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss
405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69
406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade
material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195
407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303
134
natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a
Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408
Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de
cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo
de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia
art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas
contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo
Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do
dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo
cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em
que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras
limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas
que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave
pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas
precedentemente mencionadas411
Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo
do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever
408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten
tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-
constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola
Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes
Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando
natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por
existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms
87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo
409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48
410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174
411 SAacute Liliana da Silva op cit p130
135
de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime
Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida
iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e
garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de
oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a
diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com
base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda
como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos
funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)
Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa
em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois
tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o
princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a
mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia
ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave
ou injustordquo413 414
Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de
documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees
entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo
412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de
competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada
pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA
413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2010 p767
414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento
Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a
recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de
colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou
dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou
descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas
[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do
direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)
Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo
136
ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres
e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes
a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais
Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio
em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a
colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)
137
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem
verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o
dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em
colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais
ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de
colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo
penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um
crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129
416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo
Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137
417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169
418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o
contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo
tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT
138
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte
O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual
consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e
mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas
O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado
eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela
Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco
caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de
fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar
com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou
documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do
dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do
inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo
em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do
arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se
ipsum accusare420
Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo
Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na
virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que
ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos
indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder
419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o
caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado
a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares
supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do
processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores
mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da
concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp
199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash
Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS
Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56
420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149
139
de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se
tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute
impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel
a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a
transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria
condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-
dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423
O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou
coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma
soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo
Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer
apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro
lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando
os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de
um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento
sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo
421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148
422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52
423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127
424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la
articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a
eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute
contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do
sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na
preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de
ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo
o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso
Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave
Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do
obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales
140
autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na
generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de
declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do
arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425
Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de
forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash
que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos
de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute
aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia
desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para
o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo
dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os
documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas
pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se
incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por
exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado
tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del
sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade
do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja
essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este
grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo
inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia
depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais
ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo
tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la
imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar
contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis
Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf
425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho
a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)
enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma
qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos
426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo
estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica
verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o
indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria
427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el
proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em
httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF
141
livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo
desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)
Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o
nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o
princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo
tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo
para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem
relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito
inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade
dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do
sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente
ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a
invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na
opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo
que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a
posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante
perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou
criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova
dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos
aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da
428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35
429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten
tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de
conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido
consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios
Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf
ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento
concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo
utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario
responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de
voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de
terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente
sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a
no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros
dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo
142
determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas
implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que
os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam
determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente
permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter
autoincriminador
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades
competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees
Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo
das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito
por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que
se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica
Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria
Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de
inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e
Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de
acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As
direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria
e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou
designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas
desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo
da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de
dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430
430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103
143
Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das
Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e
a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei
referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de
Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que
integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da
LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de
poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)
Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade
denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as
entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade
Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo
que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura
de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da
estrutura de serviccedilos regionais e locais
Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a
incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos
de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees
A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que
lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do
territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de
acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a
accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se
encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os
controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional
prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos
iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433
431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo
432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro
433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)
144
Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de
Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos
centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434
No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo
destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e
agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais
eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439
434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm
435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente
designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-
Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea
da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria
e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo
tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos
manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de
inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a
respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades
orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de
contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com
os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar
pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar
e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a
metodologia em vigorrdquo
436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por
DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo
com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo
437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da
gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila
tributaacuteriardquo
438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011
439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro
ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de
Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees
Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees
Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A
Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas
145
O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial
determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para
desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia
esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de
competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses
casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos
passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo
considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC
Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades
orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo
Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)
que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho
nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos
contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos
contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees
efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos
de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da
Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441
Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal
portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus
do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os
atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam
aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe
assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja
Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm
as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]
440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97
441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012
146
sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder
do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que
entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a
delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)
Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo
penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia
criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a
cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo
ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP
No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da
administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos
oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o
MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo
geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas
competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos
processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes
aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a
ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e
na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no
exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas
que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor
da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por
crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas
entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3
do RGIT)
Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo
das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de
442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas
de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes
ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal
e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)
443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691
444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT
147
investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na
medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades
No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de
dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees
tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender
uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual
tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo
penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas
especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que
nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o
Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445
Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia
do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com
competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do
RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou
por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia
(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do
crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da
administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos
mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)
Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito
por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a
todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e
termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio
apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos
interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e
445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126
446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis
447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia
delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida
ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo
448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss
148
funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que
isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos
oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito
seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua
competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da
instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a
Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo
dos crimes tributaacuterios
Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo
evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no
que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de
informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos
funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em
inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das
informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas
garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo
administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a
invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em
desconformidade com a Constituiccedilatildeo450
Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir
sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo
tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal
cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute
449 Idem ibidem
450 SAacute Liliana da Silva op cit p149
149
vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua
aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito
Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute
exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou
procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que
termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade
ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e
concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio
o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem
451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46
452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material
Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)
[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo
SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-
64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a
despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da
CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a
sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo
privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de
processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op
cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no
caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal
stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal
Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das
garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave
atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo
tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila
v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo
pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os
direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia
de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao
tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal
Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)
[em linha]
No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE
Manuel da Costa op cit pp46-49
Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito
de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias
empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de
informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo
150
obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam
uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453
Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual
o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o
conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada
Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os
trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The
Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de
ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a
qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs
Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o
conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH
um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual
enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo
formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur
Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa
do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses
autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos
sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do
artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos
factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir
em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de
uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave
empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash
(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)
453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146
454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976
455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal
contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do
nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito
interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo
e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)
456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997
457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento
em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo
na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos
458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]
151
em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos
assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse
servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave
circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de
um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio
do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo
de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa
prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno
que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor
aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o
estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh
Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada
apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em
excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo
incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos
natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido
autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a
instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade
Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito
interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por
conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que
na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja
a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada
obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao
privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma
459 COSTA Joana op cit pp123
460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending
against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him
54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding
within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give
information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself
incriminatingrdquo
461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the
Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act
152
maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os
respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente
afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao
silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de
lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica
ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-
se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do
veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio
O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo
do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and
MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para
obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio
pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em
processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a
invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH
No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da
aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees
tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos
procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e
invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo
pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para
prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute
to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a
sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does
not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo
462 COSTA Joana op cit p129
463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento
penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo
para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES
Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no
autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72
153
preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute
atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute
que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela
gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem
acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465
Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste
entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466
Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que
concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do
processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta
instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita
ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de
prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria
Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare
facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos
rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que
podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos
patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara
satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da
CRP)467
Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo
sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se
abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais
464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment
to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo
465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
466 Cf Op cit p22
467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de
concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244
154
eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do
nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se
exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-
los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de
determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo
tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em
inspeccedilatildeo tributaacuteria
A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo
quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo
assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito
passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou
documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o
esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos
Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia
processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o
contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a
desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre
que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um
processo ou procedimento sancionatoacuterio
Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria
incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel
se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional
O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito
corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da
presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece
155
(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela
consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se
exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e
regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado
no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na
Constituiccedilatildeo Portuguesa469
Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o
nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo
a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para
determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face
ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que
assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo
de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o
aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes
dele Mas natildeo se procede dessa forma
Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais
Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo
para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de
contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e
social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos
dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da
comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias
processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos
468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes
de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais
formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da
Constituiccedilatildeo materialrdquo
469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366
470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da
prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de
Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt
156
um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do
contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees
Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram
assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito
atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta
e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos
Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando
os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades
administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou
atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos
cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de
documentos fiscalmente relevantes471
Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de
direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual
depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas
comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude
e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos
cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A
doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de
interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando
uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos
interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da
prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um
princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia
471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos
normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela
falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH
Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do
ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na
sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo
472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo
157
constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio
inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo
A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de
inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos
do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo
agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute
harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar
pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo
forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que
acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave
presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses
direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473
Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo
sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de
utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao
abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do
princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a
utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade
e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute
diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores
que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir
para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse
obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza
tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas
decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto
473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA
RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid
2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss
158
com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave
fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios
O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como
o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo
como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo
tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute
natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e
a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha
uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito
natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475
Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais
destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e
manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso
de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de
autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio
contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave
circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o
contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem
indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos
elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo
colaborar
475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de
criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse
desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del
contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo
Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto
Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e
interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de
colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a
igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo
e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos
que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das
desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo
476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -
Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10
159
Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde
logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a
informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e
transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute
se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido
infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o
risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas
circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada
qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e
um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do
contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash
consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo
Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao
suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos
tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro
lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos
funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante
complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente
conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora
exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar
do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito
tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar
Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que
ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de
477 Op cit pp276 e 284
160
contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo
penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria
para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem
a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir
esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou
processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em
inspeccedilatildeo)
Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio
estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do
nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento
para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as
atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas
pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das
informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479
Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no
processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria
ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo
qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o
incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480
478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria
y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar
penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse
debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se
assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria
480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA
RODRIGUEZ Rafael op cit p270
161
Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se
defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa
inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo
conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela
tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos
a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo
penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente
fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481
Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo
nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do
processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo
mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de
tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com
a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo
tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente
aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos
pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de
informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados
contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal
ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483
Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres
de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que
481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke
482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves
exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos
483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador
Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de
12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
162
aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais
restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria
destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute
deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer
a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior
utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de
indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como
veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades
comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse
prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do
princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade
probatoacuteria485
Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo
tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos
processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade
torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das
realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das
infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash
considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das
infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi
estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que
natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado
comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo
484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]
todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo
arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou
poderes de supervisatildeordquo (p110)
486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284
487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss
163
finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial
em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material
proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal
onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido
enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito
ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488
Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo
tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de
passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos
fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o
sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio
de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia
a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos
solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as
que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo
funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave
partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo
penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e
constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do
sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante
veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual
Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a
colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a
natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio
poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com
a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e
488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27
489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208
490 Idem ibidem pp209 e ss
164
agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a
manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora
al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el
sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente
inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade
diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a
correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a
comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a
praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade
entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do
nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo
penal
A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em
processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo
sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um
inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma
questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491
Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em
constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e
controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento
de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de
comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito
491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos
pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101
e ss
165
(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de
fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e
tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo
inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio
Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe
solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de
instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o
poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se
eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito
ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492
Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e
garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer
informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que
ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur
O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que
circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa
intercomunicabilidade probatoacuteria
A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur
se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente
impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo
tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal
natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram
recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de
uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o
transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a
imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo
492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135
166
processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa
do processo penal portuguecircs493
Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do
Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional
ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal
posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de
cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo
tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do
art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de
gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de
2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou
que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos
indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto
agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo
constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de
assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar
expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria
Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495
ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo
Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem
prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem
proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo
proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta
493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012
494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e
argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional
495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem
natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo
vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de
investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua
destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173
496 Op cit pp 332 e ss
167
em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor
que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo
constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do
CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente
previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das
circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis
de serem utilizados em processo penal posterior
Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser
constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa
requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo
fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime
tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf
parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o
seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender
passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []
assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm
Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por
qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees
que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como
consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como
prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497
FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de
contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora
ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash
conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um
497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de
2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a
sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos
termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto
designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo
498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no
mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores
Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3
do CdVM)
168
vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a
ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo
sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo
ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de
supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o
cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500
Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo
compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do
estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser
obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-
arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash
em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade
decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor
O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com
uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees
tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo
normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena
da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo
obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do
proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no
aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo
499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave
entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia
exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O
aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do
princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf
Op cit (parecer) p49
500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281
169
contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz
agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao
processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo
autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute
livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade
livre e esclarecida)
Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la
perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen
suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de
proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al
procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no
declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente
el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de
sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a
efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea
atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las
sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo
de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la
voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo
Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o
princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a
questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de
colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de
verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se
natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute
a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir
para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el
procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10
170
Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a
questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou
direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica
dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o
outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503
Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de
interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo
de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas
apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em
nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o
regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado
abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como
noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento
dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a
antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo
reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua
funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do
abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em
503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte
da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo
legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na
ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo
facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante
veremos
504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como
sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade
configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer
outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao
silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria
Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-
incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de
investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica
Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94
505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]
506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a
imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed
natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo
penalrdquo ndash p45
171
instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da
abertura do processo penal tributaacuterio)507
Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em
torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de
documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais
instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo
de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou
inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em
colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir
e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a
condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo
consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando
em causa a justiccedila do processo
Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a
sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-
se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos
investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo
equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de
ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode
ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente
autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter
autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo
507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209
508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos
abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -
durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de
Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de
inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a
existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal
Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe
executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em
caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos
prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no
processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo
172
para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento
ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio
segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na
garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria
autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em
tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito
de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510
Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem
sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a
invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash
salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem
genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa
vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das
obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo
da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios
(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a
prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a
inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)
Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na
perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este
argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que
transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar
509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to
remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -
such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the
prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to
otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo
510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest
in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the
present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness
contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal
offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers
compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo
173
com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a
impunidade
Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e
perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico
hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los
tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511
Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto
elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam
inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que
na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses
aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes
e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo
equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto
natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo
tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema
fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute
simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser
instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que
se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento
sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob
coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as
garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513
Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes
coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada
pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave
actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela
autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma
processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo
512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss
513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
p145
174
suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a
CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees
tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre
exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar
o caacutelculo do imposto
Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a
intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa
argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou
opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que
podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem
independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre
outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as
declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute
descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da
justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material
probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num
processo penal516
Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores
proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo
natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio
ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito
constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se
514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152
515 Cf Paraacutegrafo 69
516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
pp147-148
175
ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e
presunccedilatildeo da inocecircncia517
Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo
permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e
consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material
obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo
penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova
ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia
do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros
elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees
detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas
quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo
apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo
voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones
tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el
procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero
iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a
principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no
auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su
intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se
utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes
de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no
debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una
517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo
ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y
el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos
adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11
176
eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en
un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos
Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a
soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos
processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute
uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que
as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se
apresenta sem qualquer desvantagem)
No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e
respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com
esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo
da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo
tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a
compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma
vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o
poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual
consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel
mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele
natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521
519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299
520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito
tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada
com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo
belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)
admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam
atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)
521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave
separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para
a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens
juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e
177
Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de
colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer
inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a
comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum
accusare
Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar
uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica
dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo
afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a
separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os
procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade
entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento
do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio
das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e
informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a
investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo
contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas
natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais
de obtenccedilatildeo probatoacuteria
Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas
acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que
alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para
laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema
juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e
social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais
pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da
atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da
admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de
tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade
522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54
523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106
178
(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da
alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito
sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio
tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune
as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de
recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)
nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais
ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera
da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel
Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo
de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias
poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o
investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer
todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa
soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo
processual
Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de
procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica
das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees
que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros
domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de
evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito
normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar
exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525
Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees
preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe
524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162
525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54
179
alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se
confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres
de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria
condenaccedilatildeo
A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do
suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse
momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo
ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa
constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o
art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem
respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites
previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar
informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre
tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do
CPA)
Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula
de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o
indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas
processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)
A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da
inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes
teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse
Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o
nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo
anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que
esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum
accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196
180
interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para
que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento
dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua
sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal
de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o
direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da
AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os
autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT
podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova
protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da
proacutepria condenaccedilatildeo
As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento
inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias
processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o
indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores
antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o
procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a
edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas
anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal
cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente
afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os
direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a
servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do
oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar
jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal
por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser
utilizados em posterior processo penal
527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50
528 Cf Op cit pp56-57
529 Cf Idem pp58-59
181
Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por
parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo
como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a
comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo
de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente
(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que
soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode
construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se
Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo
tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as
exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e
da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade
probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns
inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare
abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o
dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante
da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a
AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo
do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se
conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das
infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus
direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de
exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar
isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a
prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os
deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos
Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a
propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico
530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
p195
531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
182
sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e
considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria
entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada
em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do
indiviacuteduo
Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas
proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que
apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute
permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas
normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas
proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a
enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade
fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532
E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo
inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade
probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que
a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da
sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma
utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total
desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os
princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo
seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da
autoincriminaccedilatildeo
No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico
portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio
soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo
532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133
183
REFLEXAtildeO FINAL
Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute
absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas
obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo
do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado
O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da
dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida
por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute
reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em
que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e
poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo
(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou
posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees
ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal
deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado
Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar
da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur
contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no
sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um
ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo
necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade
probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute
constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos
processos
A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo
com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas
no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo
utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo
184
indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida
e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios
constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a
integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para
considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo
tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova
agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de
decisatildeo do indiviacuteduo
185
CONCLUSOtildeES
I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa
segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou
seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a
sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao
silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo
satildeo corolaacuterios que se interligam
II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo
tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais
autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais
incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas
para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio
III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se
ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo
penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino
Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos
IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal
circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a
sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo
constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num
plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que
asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre
noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)
art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)
V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica
debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana
Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A
primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais
como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm
186
CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende
um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e
seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no
texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos
circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur
cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza
processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em
princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz
juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa
humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma
mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se
defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente
amparo de natureza processual
VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum
accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua
compreensatildeo e alcance
VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo
exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo
- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O
nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso
ordenamento juriacutedico
VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o
Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e
ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em
alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual
(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as
testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos
entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento
da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas
187
sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute
de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo
expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no
art61ordm nordm3 ald) do CPP
XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da
concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente
com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes
tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se
pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias
coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel
autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia
constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo
de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos
ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou
concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes
harmonizando-os entre si concretamente
XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para
resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores
em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio
recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash
prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido
XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute
o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende
diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana
com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na
sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse
sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos
ou interesses de valor social e constitucional prevalecente
188
XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar
previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e
devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da
CRP
XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua
posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser
juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico
na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo
de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a
infraccedilatildeo
XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir
XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica
proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que
atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da
pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de
todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral
(art32ordm nordm8 da CRP)
XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada
nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de
pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram
em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos
preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou
administrativas
XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute
obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da
inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e
demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade
XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e
natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar
189
esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de
incumprimento ilegiacutetimo deste dever
XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de
colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao
cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa
situaccedilatildeo
XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de
oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente
entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal
por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da
informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute
legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal
XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias
dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito
no processo penal tributaacuterio
XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos
respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar
aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do
Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio
XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a
informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou
precisamente a sua razatildeo de ser
XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal
seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo
investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar
totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo
190
equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria
de cada indiviacuteduo
XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa
de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos
sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios
constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos
contribuintes no subsequente processo penal
XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de
uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se
verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos
em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever
de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a
intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva
separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres
de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de
qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja
interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por
violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado
continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas
poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e
aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal
posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo
autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o
chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)
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- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm30404 de 5 de maio de 2004 relatado pelo
Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
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Paulo Mota Pinto disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm12707 de 27 de fevereiro de 2007 relatado pela
Conselheira Helena Brito httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo
Conselheiro Gil Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora
Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link)
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- Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira
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Supremo Tribunal de Justiccedila
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- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002
relator Desembargador Oliveira Mendes disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de
2007 relator Desembargador Gabriel Catarino disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em
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Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora
- Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro
de 2011 relator Desembargador Martinho Cardoso disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)
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Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees
- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de
2007 relator Desembargador Cruz Bucho disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de
marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva disponiacutevel em httpwwwdgsipt
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- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de
janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador Antoacutenio Condesso disponiacutevel em
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Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto
- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 0546541 de 3 de maio de 2006
relatora Desembargadora Alice Santos disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009
relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link)
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- Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro
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Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia
- Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro
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Tribunal Constitucional Espanhol
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Supremo Tribunal Americano
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- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
-
Telma Sofia Martins Ribeiro
janeiro de 2017
A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquoentre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteriae o processo penal
Trabalho efetuado sob a orientaccedilatildeo daProfessora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro
Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Mestrado em Direito Judiciaacuterio
Universidade do MinhoEscola de Direito
ii
DECLARACcedilAtildeO
Nome Telma Sofia Martins Ribeiro
Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom
Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute
13072017
Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro
Ano de conclusatildeo 2017
Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio
Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE
INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE
COMPROMETE
UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________
iii
AGRADECIMENTO
Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente
por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e
empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade
profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta
monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento
cientiacutefico
Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou
para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um
muito mas muito obrigada
Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e
para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos
momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que
idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem
Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que
sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A
minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para
mim
iv
v
RESUMO
O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo
penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute
legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual
penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente
reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo
legal de cooperar no procedimento tributaacuterio
O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do
nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas
nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos
constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de
natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do
estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso
de violaccedilatildeo do princiacutepio
Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em
mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo
analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees
acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em
que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento
ilegiacutetimo desse dever
Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente
colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e
jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens
e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito
normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria
inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute
obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das
informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres
de colaboraccedilatildeo
vi
vii
ABSTRACT
The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of
information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under
and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there
is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not
contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo
tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax
procedure
The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur
se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content
historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of
Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions
and finally the legal consequences in case of breach of the principle
Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax
matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the
framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical
implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the
consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty
Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed
of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence
intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out
to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur
(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed
solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings
(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information
tax inspection under collaborative duties
viii
ix
IacuteNDICE
RESUMO v
ABSTRACT vii
SIGLAS E ABREVIATURAS xiii
INTRODUCcedilAtildeO 17
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare
39
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43
32 Fundamento constitucional de natureza processual 49
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51
c) A garantia de um processo equitativo 55
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade
normativa e validade material 65
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98
44Dever de advertecircncia 101
x
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e
obrigaccedilotildees acessoacuterias 109
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio
da colaboraccedilatildeo 118
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137
xi
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a
inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria 154
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176
REFLEXAtildeO FINAL 183
CONCLUSOtildeES 185
BIBLIOGRAFIA 191
JURISPRUDEcircNCIA 203
xii
xiii
SIGLAS E ABREVIATURAS
ss ndash seguintes
Ac ndash Acoacuterdatildeo
AR ndash Assembleia da Repuacuteblica
AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria
ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
BCE - Banco Central Europeu
CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos
CC ndash Coacutedigo Civil
CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios
CE - Comissatildeo Europeia
CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem
CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios
CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis
CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado
CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios
CP ndash Coacutedigo Penal
CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo
CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal
CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio
CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa
DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo
DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees
DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo
DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria
DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
xiv
DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros
DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras
DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras
DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais
DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico
DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais
DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
DL ndash Decreto-Lei
DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais
FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional
GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland
GNR ndash Guarda Nacional Republicana
IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas
IRA - Irish Republican Army
IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado
LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria
MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico
ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas
PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos
PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila
seacutec ndash Seacuteculo
TC ndash Tribunal Constitucional
xv
TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia
UE ndash Uniatildeo Europeia
UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes
xvi
17
INTRODUCcedilAtildeO
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do
aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao
processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e
que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem
as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da
monografia que nos propusemos a realizar
Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso
quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes
tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do
processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento
administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria
Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de
benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo
tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O
problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado
perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo
Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja
a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer
elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a
18
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos
solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de
colaboraccedilatildeo
Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis
a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a
intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil
atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados
como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje
consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em
ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que
tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute
neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial
relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia
a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto
Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo
principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que
ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute
em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como
eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees
tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL
nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo
Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na
resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um
estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo
especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada
extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute
sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas
e praacuteticas que os mesmos comportam
1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47
19
O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta
documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente
indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que
podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo
auto-inculpaccedilatildeo
ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo
interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como
procedimentalrdquo2
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou
inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com
a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria
para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica
acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo
person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da
Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do
princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina
e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual
penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz
naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou
direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de
inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5
2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45
3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132
4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como
decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos
oportunidade de desenvolver no seio da monografia
5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
20
O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do
nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio
mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido
tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)
Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no
ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao
conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes
Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta
um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as
questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez
que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as
temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o
direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos
constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta
determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda
parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial
no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito
entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e
internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico
21
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare
O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica
de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem
diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo
processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido
Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se
conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como
arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7
FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o
estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos
primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres
ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])
autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua
decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se
maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual
Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o
arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a
6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424
7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao
interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura
superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa
a favor da pessoa interrogada (arguido)
8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p 9
22
todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento
dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que
tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao
respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido
enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede
a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido
declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da
sua livre personalidade
Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do
nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo
autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria
incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir
para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no
que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo
em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O
que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo
seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14
9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430
10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua
proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se
accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur
11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131
12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham
exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo
reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente
prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia
MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico
de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal
Coimbra Almedina 2010 p118
A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido
A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise
14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121
23
COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o
cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees
de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam
valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir
toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave
superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no
essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana
(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta
senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de
declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo
penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo
arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)
No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo
positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa
o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si
imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade
de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema
pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17
Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser
feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado
(art61ordm nordm1 ald) CPP)
O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo
contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio
de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas
seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou
15 Idem ibidem pp117-120
16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual
Penal) pp74-80
17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121
24
apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de
aplicaccedilatildeo
Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que
ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar
ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse
motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo
contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo
Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao
silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por
privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe
sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a
pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que
contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a
extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios
tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que
suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132
19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo
versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In
BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da
prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104
20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia
Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular
que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo
penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo
21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS
Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e
Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da
proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar
para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a
declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor
de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo
25
precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o
princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida
reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas
neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas
A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de
modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex
buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua
maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair
frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a
recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em
autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio
nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de
prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos
aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de
ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros
O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e
pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute
somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo
calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional
22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127
23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de
2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em
httphudocechrcoeint (link) [em linha]
24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA
etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa
que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo
25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21
26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo
de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao
silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange
o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a
colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o
meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes
de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido
26
abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de
um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja
todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize
vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo
Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido
estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo
O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar
para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a
prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29
Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute
mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer
calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir
o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender
exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao
silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute
vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor
incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as
manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou
comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo
com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)
eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo
27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf
Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da
Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de
incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de
manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em
linha]
30 Op cit p 52
31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa
Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136
32 Idem ibidem
27
LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera
que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de
uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao
silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e
dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena
de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos
cidadatildeosrdquo 33
Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido
como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade
para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o
escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir
quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui
objecto do processo34
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo
do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais
concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas
inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e
desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)
Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de
matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da
verdade material
33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso
34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27
35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)
p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op
cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133
36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss
28
A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal
inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais
de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do
indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava
como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias
processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe
sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total
impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos
probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)
Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime
disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem
admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura
Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo
penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII
e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)
O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e
desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo
do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA
RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente
o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse
conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento
da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a
Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal
procedimento obter a confissatildeo do acusado
Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por
Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici
37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade
material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos
representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos
que lhe satildeo imputados
38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61
39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35
29
Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos
processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com
verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do
lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em
submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um
segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o
considerava culpadordquo40
Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do
Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O
procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi
aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se
serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas
No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era
a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova
central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste
paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse
inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a
verdade que incidia sobre o acusado
Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre
Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a
alterar-se
No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos
naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se
constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a
puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer
medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se
40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137
41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62
42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64
30
Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o
indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo
inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu
direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal
torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa
espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas
consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria
afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval
Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade
julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo
necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje
ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)
eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil
CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal
apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-
se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema
por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes
estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los
intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los
interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio
cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio
del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto
del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por
parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de
investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial
que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y
de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque
soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44
43 Idem ibidem
44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1
ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122
31
Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de
armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a
autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as
partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas
caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos
assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash
que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio
PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45
Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra
com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-
Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e
aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental
reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)
Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria
na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare
45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico
desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado
contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador
do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a
condenaccedilatildeo do acusado
46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we
send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma
de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36
47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era
influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores
onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os
procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o
processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que
metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute
acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se
tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou
incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute
incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer
confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas
(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93
32
O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que
surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em
instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do
arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu
surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao
crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio
Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o
mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu
aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a
partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo
de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua
vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs
aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o
indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo
Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito
que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their
defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este
princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da
obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the
Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with
respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo
48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37
49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123
50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100
51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio
encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento
que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se
verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente
e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o
arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este
panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado
porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39
33
Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos
em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da
assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior
conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)
Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em
documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo
mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em
17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment
(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que
ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O
entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de
duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo
do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54
Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito
contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o
poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de
declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes
de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da
responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao
suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a
estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido
A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos
tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia
[em linha] Disponiacutevel em
httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075
ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido
que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte
porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no
sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22
53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104
55 Idem Ibidem
34
mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da
doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees
voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees
forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession
doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar
a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial
O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se
destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-
incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia
americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash
tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado
Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos
estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia
ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com
vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente
admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e
56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]
Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)
por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio
policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se
fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em
audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado
A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do
advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal
do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo
da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes
e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo
ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o
perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais
de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo
57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os
direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114
58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a
guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo
tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio
deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode
voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op
cit pp 104-114
35
portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como
uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito
o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais
sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the
determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following
minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess
guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o
nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de
fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP
mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um
processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com
a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo
14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de
uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60
Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do
direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de
1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de
julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61
O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas
limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo
59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de
um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente
todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o
conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo
numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo
acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm
devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo
60 Idem ibidem
61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14
36
pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929
acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu
incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves
segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode
evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu
pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao
art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de
responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63
ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao
silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse
remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo
de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito
pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como
demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65
A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um
controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu
Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute
verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa
inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade
de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de
proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao
silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da
proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66
62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933
Volume 4 pp158 e ss
63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160
64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem
autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa
mesma valoraccedilatildeo contra reum
65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13
66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14
37
Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a
obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido
(art342ordm nordm2 CPP)
O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a
oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na
redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao
arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais
Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta
atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves
perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes
criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas
declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia
previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees
previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal
O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos
antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de
defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto
pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs
O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres
processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo
responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e
sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)
comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
68 Era o seguinte o teor do preceito
ldquoArtigo 342ordm
1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de
nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo
2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal
que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal
3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer
incorrer em responsabilidade penalrdquo
38
exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em
responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)
Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as
garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de
que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70
para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos
direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo
penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao
silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de
inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da
questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus
antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao
silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido
O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo
art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a
obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o
arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de
prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo
se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido
poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu
tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos
referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda
mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda
natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a
comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72
69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a
resposta com verdade sobre os antecedentes criminais
70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm
do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)
pp105-106
A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma
presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA
39
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se
ipsum accusare
Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo
tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs
Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73
Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio
entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for
retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)
para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar
declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as
garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que
constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do
arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)
72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os
autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro
interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil
mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo
Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e
ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime
prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes
aos antecedentes criminais
73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea
comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al
detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2
Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la
acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba
pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos
en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo
74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos
entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo
75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por
comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute
mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos
El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute
justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda
especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en
ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la
autoricerdquo
76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a
presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of
War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in
40
estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a
autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo
expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma
uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo
impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a
doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza
constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em
geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79
A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees
legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do
princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos
anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o
direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao
arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm
nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o
legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e
any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property
be taken for public use without just compensationrdquo
77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125
78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)
p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil
Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado
princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos
69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo
79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20
81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder
a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles
prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for
necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia
desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico
nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os
factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a
recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]
41
perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do
silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como
forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei
processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de
advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do
arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos
previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas
obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que
ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos
interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada
natildeo podem ser utilizadas como provardquo85
O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves
testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando
alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de
responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento
que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito
legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo
interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo
de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86
Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia
natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)
donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio
83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido
84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou
um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se
necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA
constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do
defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial
em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de
poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo
85 Itaacutelico nosso
86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as
pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si
mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20
42
Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo
tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais
limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que
natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios
de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de
caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana
natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias
processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no
segundo pode sofrer limitaccedilotildees
A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira
vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos
fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal
(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na
doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente
processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios
nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de
defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio
do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou
ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da
estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a
maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores
optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas
87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) p58
88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123
89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595
90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) pp69-72
91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ
(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28
92 PALMA Maria Fernanda op cit p103
93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit
(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss
PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133
43
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)
A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos
fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da
personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente
na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de
personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante
GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95
2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo
violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes
1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal
respeitaacute-la e protegecirc-la
19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia
O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento
da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de
defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito
geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de
prova contra si proacuteprio96
A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana
justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial
de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a
impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por
consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a
mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo
94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im
Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de
entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63
95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die
Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist
unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem
Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa
96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125
44
indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por
ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de
personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do
legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera
indisponiacutevel da liberdaderdquo97
ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa
do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto
componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana
Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias
constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as
garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal
A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa
(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa
possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o
seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito
fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm
CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O
silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo
art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza
aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e
aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo
Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de
claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros
seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa
do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se
indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido
97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5
nordm19 (1987) p186
98 Op cit pp81-91
99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2007 Volume I p516
45
defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio
na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da
dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos
cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis
infraconstitucionais que a violem
Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia
uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do
ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do
exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o
fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder
puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo
princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um
conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do
arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101
A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade
pessoal constitucionalmente previsto
O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a
impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis
degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da
pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte
autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a
Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que
o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)
primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo
objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da
dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da
100 Op cit p 90
101 Op cit p 91
102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos
fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal
direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198
46
respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana
enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as
praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da
qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios
racismo)
Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser
ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos
crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes
de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou
enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave
integridade fiacutesica e moral da pessoa)104
O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa
mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a
respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder
legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via
da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da
investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou
moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash
art32ordm nordm8 CRP)
A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de
tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura
como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de
tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado
senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento
103 Idem ibidem p198
104 Idem ibidem p454
105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da
Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo
intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a
punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira
pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um
agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se
considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)
47
[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o
tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil
descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito
menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes
dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada
accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se
distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106
Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal
mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas
obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a
impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no
processo criminal107
Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir
fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus
corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana
integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato
do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur
que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na
imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos
parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do
processo equitativo do que com as restantes109
Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a
autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de
conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo
no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97
107 RISTORI Adriana Dias Paes p76
108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do
art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal
Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)
109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199
48
arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de
vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode
o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do
processordquo111
Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da
pessoa humana
Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana
e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto
da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser
meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio
ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu
fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade
humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de
Direitordquo112 113
Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a
dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana
justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual
e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo
contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur
comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da
plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem
como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como
111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41
113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO
DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade
humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo
efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para
o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas
humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um
Estado de Direito Democraacutetico
49
objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos
processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114
32 Fundamento constitucional de natureza processual
Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um
fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que
a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito
Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas
relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente
processualrdquo116
Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores
divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem
entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da
estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com
aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser
ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de
defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria
Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos
nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial
114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores
desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo
tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64
116 Idem ibidem p63
117 Idem ibidem pp68-69
118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e
3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial
uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez
referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo
Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo
50
declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos
seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente
enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo
essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como
lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal
admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que
adiante aludiremos
MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo
da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de
defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a
partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de
natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao
arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash
ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova
De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute
indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao
silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm
nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o
tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a
exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza
processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva
119 Op cit p103-104
120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais
Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio
Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da
estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e
de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio
e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio
prejuiacutezordquo
121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo
prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre
noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de
Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178
51
legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e
instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos
direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a
defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou
conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao
silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do
processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe
permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos
processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo
queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de
constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias
que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer
forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido
deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de
defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do
arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia
Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional
do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo
pode ser forccedilado a incriminar-se
Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido
se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como
conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em
detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do
122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516
123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p28
124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430
125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)
52
processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de
custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo
de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento
criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o
estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126
A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de
tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro
sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de
um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social
juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute
impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da
presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se
impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a
acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo
da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado
como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e
equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128
O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o
processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo
nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a
sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo
A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do
arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre
participaccedilatildeo
O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais
Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos
126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518
127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60
128 Idem ibidem p59
129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p9
53
direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos
nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual
eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm
nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios
admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua
posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5
CRP)
A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do
arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto
ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo
princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos
os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a
utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua
decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de
uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante
a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa
a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e
sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das
declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como
fundamento do direito ao silecircncio
Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo
prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar
satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do
processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo
130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429
131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf
VILELA Alexandra op cit p95 e ss
132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a
tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo
134 Op cit pp132-133
54
pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser
encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a
presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de
que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo
eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio
Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se
autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo
contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em
desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado
com a presunccedilatildeo da inocecircncia136
A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e
do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de
comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se
autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de
inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo
ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees
susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao
arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que
serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados
com a sua culpa
135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de
inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016
Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25
55
c) A garantia de um processo equitativo
Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma
causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo
equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave
justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave
sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute
especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e
art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao
processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia
do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do
proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel
As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm
quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due
process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de
saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a
obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser
privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due
process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele
proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente
estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas
ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo
legal dos mesmos processos
Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na
Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo
legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas
138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP
139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina
2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando
estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de
exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal
a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado
segundo princiacutepios de justiccedila)
140 Idem ibidem paacuteg493
56
tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos
vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual
Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma
decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma
decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o
direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de
pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e
independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual
conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o
direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda
o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela
contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e
contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado
deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees
judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das
sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados
em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do
processo142
E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito
criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente
Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez
tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o
contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e
da noccedilatildeo de processo equitativo
No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no
art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel
com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave
instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo
proibiccedilotildees de prova entre outras
141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415
142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501
143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150
57
Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo
estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave
dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do
contraditoacuterio144 e a igualdade de armas
Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do
processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo
No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o
nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez
eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao
silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que
demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes
Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147
No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais
franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria
(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no
estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos
de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca
domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos
no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas
autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular
de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea
qualquer extrato bancaacuterio
Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos
documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo
garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido
144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os
testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit p523
145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
58
sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo
montada contra si
O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a
condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora
natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os
documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele
proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que
as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo
podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em
permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1
da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a
presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149
No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo
probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo
tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)
por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde
estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do
IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no
momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio
ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido
advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas
consequecircncias
Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos
juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do
exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto
natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida
que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient
lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave
fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient
justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point
contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
59
satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo
de processo justo150
No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi
chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo
(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash
Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise
mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos
interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no
procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal
cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia
(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num
processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas
atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa
medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152
Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela
sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo
como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o
enquadramento nas garantias de defesa
150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police
questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair
procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom
151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v
United Kingdom
152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para
prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125
60
61
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare
Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur
(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da
sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como
corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao
silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do
nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas
Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma
visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito
por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees
doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees
potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de
154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos
do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da
Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais
tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29
155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss
156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a
auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-
43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins
SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica
Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44
Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer
afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo
157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel
em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser
condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g
documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou
ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo
Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
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documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio entre outras
O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar
a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo
tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o
arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a
questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua
responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao
silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo
representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos
e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito
brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer
caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas
capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a
impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a
intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da
reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de
tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar
juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do
acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-
incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova
de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria
[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do
158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United
Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused
person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to
incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo
159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30
160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo
significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos
normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma
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princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se
relacionemrdquo161
Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta
posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito
desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um
processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas
preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de
fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente
obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma
colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162
A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute
comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a
concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do
conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute
autoincriminadoras
O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o
arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias
probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado
(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de
sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163
Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou
meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente
imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume
natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos
uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito
interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos
atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material
ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar
(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo
161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43
162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21
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ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio
uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito
Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de
recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em
muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos
limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de
coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede
constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do
conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de
outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz
social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer
limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em
diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado
comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse
na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente
e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver
Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts
that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v
United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right
to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46
Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of
inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do
Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295
de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos
todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz
op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm
142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-
dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio
especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de
Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash
Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo
tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e
garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo
da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e
nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74
165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias
no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406
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Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal
validade normativa e validade material
A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre
validade temporal validade material e validade normativa166
A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo
o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao
Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167
Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos
166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072
167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana
da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito
ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser
assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel
da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista
civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese
o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante
qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito
vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa
resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no
processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um
dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer
espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos
sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio
geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os
procedimentos criminais independentemente do tipo de crime
168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico
Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183
Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente
influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal
constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como
constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja
inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem
sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH
admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no
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anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os
direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende
esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo
equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa
criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no
encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos
demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no
processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a
acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de
ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios
Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a
dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal
todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando
formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de
haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias
incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo
de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de
um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH
no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o
conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para
acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeordquo
169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland
SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a
witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged
was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1
That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It
may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal
offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo
No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa
criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos
alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que
se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na
substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo
67
aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de
lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta
primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas
formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa
seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)
segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da
sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o
caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e
repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo
apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza
criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do
criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173
Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se
intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo
autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto
mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de
validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo
O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode
ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a
uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um
crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua
constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the
provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both
concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be
examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States
The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would
generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks
incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a
punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at
stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all
require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the
subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo
173 COSTA Joana op cit pp127-128
174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23
68
art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste
caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da
anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa
relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou
que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o
caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito
ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)
Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes
forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo
de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no
art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes
satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua
responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido
tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem
Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se
deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual
responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe
forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em
falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente
poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os
parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele
viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal
por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada
nos termos do art 364ordm al b) do CP
Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash
temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento
eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no
decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da
sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio
do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188
176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o
caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
69
autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da
monografia que nos comprometemos a responder posteriormente
Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da
personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas
fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma
perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a
comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio
Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos
da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas
na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu
estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-
se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou
quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178
O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta
determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise
sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o
caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o
direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias
de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova
confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo
que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo
MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126
178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o
acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo
179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo
180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao
silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as
manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP
que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais
existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da
atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e
art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de
base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio
estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da
70
Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a
possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa
verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS
ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el
procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay
que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega
sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por
supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado
p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico
como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute
mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido
teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado
psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como
cuando se lo confronta con un testigordquo
Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser
conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser
considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou
quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade
livre do arguidordquo183
Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm
CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do
CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas
de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]
sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9
do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida
de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135
181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133
182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees
prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames
(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do
Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito
ao silecircncio
183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176
anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430
71
lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a
diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou
obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser
compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo
Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas
legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando
alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas
normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias
ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta
questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da
atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo
se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da
personalidade187
184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP
185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber
se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e
aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)
encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a
recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos
parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao
referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a
utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo
seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo
Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de
amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm
0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta
mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias
entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade
judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode
por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo
Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser
aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado
186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo
187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros
2003 I Volume p870
Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a
72
Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da
prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei
Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura
coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que
devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da
integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento
delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas
corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora
facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com
o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para
obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de
sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de
alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda
que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito
Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de
novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova
mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo
nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da
sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados
elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser
assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm
CPP
Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a
possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam
cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o
processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a
busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este
todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz
(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo
188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit
p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido
nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico
Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora
descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo
189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362
73
Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado
indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade
pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma
total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila
Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo
com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva
no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as
autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a
exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito
processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio
meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)
Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever
geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor
agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)
atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)
prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos
125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um
dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191
Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios
de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova
[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a
de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo
do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se
190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio
Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255
192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316
193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658
74
como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica
vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195
Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que
tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito
constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse
motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam
garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na
CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que
devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do
CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver
expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo
exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o
enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em
concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos
proibidosrdquo197
Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm
nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de
obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si
mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua
apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios
de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para
investigar e recolher meios de prova198
De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos
171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade
material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que
ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo
195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658
196 Cf op cit p255
197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua
proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256
198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio
FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361
199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os
segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a
75
que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios
que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi
praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1
estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo
do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame
eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios
materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do
circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se
apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios
pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos
vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade
judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os
indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201
Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de
prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um
lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou
menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de
coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc
constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202
Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais
sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser
alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de
vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo
representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a
tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende
a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita
medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua
conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a
detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit p 420
200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870
201 SILVA Germano Marques op cit p236
202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439
203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)
76
utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo
preventivardquo204
Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e
quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo
contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como
parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e
jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo
Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o
que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem
proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que
forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de
fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um
alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei
atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo
extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita
demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios
fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de
assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave
liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206
Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de
modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias
(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e
direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal
(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas
204 Cf Ac TC nordm 2282007
205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento
p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os
MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas
Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento
na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3
ald) do CPP
206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes
77
tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de
diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207
Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS
que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um
meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser
entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de
coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a
restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente
imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade
pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames
em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208
A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito
a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de
substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a
obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do
estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos
casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm
nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando
ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de
agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel
ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver
indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees
referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade
social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico
adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se
mostrar necessaacuteria (nordm3)
207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de
2009 p12
208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]
209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)
210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar
necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo
211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro
78
Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo
de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os
exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como
esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do
Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que
sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e
consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite
fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo
acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o
arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a
questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo
suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio
artigo 61ordm)rdquo
CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita
(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo
existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que
imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm
nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular
Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame
devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe
estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo
213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para
determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004
ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de
autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo
de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua
realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser
compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo
Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a
recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa
bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora
tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia
214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame
para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua
presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia
qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo
menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo
79
adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na
lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a
um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que
resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215
A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se
extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por
demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216
Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames
ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do
arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e
aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo
A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se
pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida
pelo nemo tenetur
O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou
accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash
apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo
permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo
podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido
maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais
ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219
215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18
216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo
217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash
setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana
218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales
como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No
obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen
corporalrdquo [itaacutelicos nossos]
Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e
ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073
Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss
219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da
influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um
80
O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de
submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos
mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur
uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido
admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de
periciardquo220
No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-
se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria
atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A
produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do
acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo
acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra
a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante
entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a
participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras
Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou
agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo
das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)
Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse
compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo
Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva
(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina
fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso
a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do
princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a
invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas
hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59
220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]
221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma
voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo
da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem
significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
[itaacutelicos nossos]
222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64
223 Cf Op cit p316
81
germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia
portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo
eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida
e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja
meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do
arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar
uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem
pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se
agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se
torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento
tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo
do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo
chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o
reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou
manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta
linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se
para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228
224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa
op Cit pp127-128
225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit
p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit
pp98-99
Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos
ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas
as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss
Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter
afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma
mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como
obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de
colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato
Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos
classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de
marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo
fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo
sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo
226 Op cit pp103-104
227 PINTO Lara Sofia op cit p99
228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131
82
Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande
vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode
ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo
podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute
que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo
O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da
vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo
tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do
sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230
Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela
vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o
direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes
coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente
colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231
229 Op cit p368
230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -
op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007
ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en
los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o
expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra
la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto
del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen
los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier
Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13
[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar
231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the
will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and
elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of
compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a
warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo
mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo
y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros
intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad
de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo
83
O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh
v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo
tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas
advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o
acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de
documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material
corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o
TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime
grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave
recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo
de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo
duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234
No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu
acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina
acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do
arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila
do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do
arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do
sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de
saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui
nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se
confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que
independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar
como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que
232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102
ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused
person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not
extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which
has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or
voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a
recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido
233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila
234 COSTA Joana op cit p157
84
pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-
incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como
AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente
acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao
silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da
vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas
natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem
ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as
declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois
natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo
mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que
razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob
ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva
ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo
Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a
conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a
aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do
arguido
Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio
da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237
235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora
processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se
a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis
em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo
afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito
ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal
(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que
respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira
linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo
em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e
adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional
nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
ponto 7)
236 Cf op cit p24
237 Cf op cit p23
85
fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica
dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos
afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de
documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando
dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo
entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela
compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios
conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos
direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio
da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos
VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa
Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada
situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente
protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma
ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do
nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias
fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si
mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre
autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria
eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes
implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)
O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito
de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e
direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o
238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299
239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)
pp1270 e ss
240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300
241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil
estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores
por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais
elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76
Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com
intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior
parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300
86
mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos
Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo
tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses
valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de
outro bem em jogo
O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional
admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da
mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito
produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de
variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma
prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um
criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em
conflito
Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos
valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos
direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo
e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244
A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o
conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa
segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de
direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos
valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas
circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246
Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em
termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all
or nothingrdquo ndash op cit p 23
243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301
244 Cf Idem ibidem
245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303
246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303
87
concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor
comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio
total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou
da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247
Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem
construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na
prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)
Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois
de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que
um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro
(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto
podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador
Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas
as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir
para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade
pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de
valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave
obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais
contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o
direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade
na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de
intimidade da vida privada
O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade
corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais
preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea
da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274
248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem
249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este
respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave
integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das
pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo
comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de
outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo
88
como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas
contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252
Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas
normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de
exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo
nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a
possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a
muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia
constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades
e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm
nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em
decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda
de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)
for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo
18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir
a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da
Constituiccedilatildeo)
A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade
pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer
meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos
ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees
agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de
alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores
admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave
reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e
integridade fiacutesica de terceiros253
251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino
disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de
dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins
criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264
253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o
mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode
deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia
89
Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de
circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a
adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente
pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em
condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes
ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos
diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave
conduccedilatildeo
Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila
rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor
e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo
do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez
art292ordm do Coacutedigo Penal254
Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser
acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova
dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a
satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo
das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez
aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para
afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma
intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio
todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na
caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a
conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a
tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de
deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual
estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no
excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave
realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo
254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011
relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013
256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira
Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013
90
elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem
proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257
Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo
Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de
autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita
no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou
psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por
regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade
um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas
quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo
da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na
colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode
considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos
cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo
de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele
direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258
Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da
concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se
ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da
estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado
fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios
do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees
257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]
258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]
259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23
PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26
260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash
recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a
integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou
princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas
se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam
independentemente da vontade do sujeito
Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o
criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses
91
parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei
preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao
princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim
para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma
lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo
entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores
juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento
do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a
necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263
O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo
da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos
restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da
restriccedilatildeo ao nemo tenetur
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees
justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na
impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a
261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]
262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31
263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo
e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade
da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo
fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de
eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como
acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a
condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por
aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da
medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia
probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais
relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo
264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem
reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas
circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra
a sua vontade)rdquo
92
restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em
lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)
No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo
tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade
(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos
(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de
acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar
exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas
(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo
tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito
de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas
pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia
previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei
nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM
Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel
sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja
superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio
da proporcionalidade]rdquo265
O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas
legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de
natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo
obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais
de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem
inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas
obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios
subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou
a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando
essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o
exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266
265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21
266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36
93
Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma
forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor
constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da
prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa
prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)
ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou
direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute
considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de
desobediecircncia
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir
Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do
direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade
de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do
silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao
silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio
de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270
Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo
267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido
pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa
desfavorecerrdquo
269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud
ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute
reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais
meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches
nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido
do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido
juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o
arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou
parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS
Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP
BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua
incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de
culpardquo
270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449
94
pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico
jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271
ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave
livre apreciaccedilatildeo da prova272
No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA
defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de
defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o
desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee
o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou
negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade
O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a
determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273
Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente
desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero
ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou
desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou
parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio
tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar
consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de
circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)
271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861
272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit
p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do
silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo
273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub
Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido
de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo
MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 ponto II
274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique
qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo
do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com
o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular
o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo
275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
95
O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto
a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias
que as regras da experiecircncia comum permitam
No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio
e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a
que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em
julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o
silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de
ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a
possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas
consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de
esclarecimento sobre os factos a si imputados
O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa
em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal
que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem
claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na
avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto
comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma
decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem
qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por
inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma
276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in
particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are
absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or
alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper
compulsionrsquordquo
277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely
or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally
obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from
him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two
extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be
answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should
necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed
out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent
on this pointrdquo
96
explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de
acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder
estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um
raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por
inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de
inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo
de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do
arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo
Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido
renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados
remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis
no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova
por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida
tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o
facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior
credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da
experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o
arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior
credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente
a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)
O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes
enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a
concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas
para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente
retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode
impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham
Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo
que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova
formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a
responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo
podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos
278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150
97
casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio
contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos
suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e
deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como
instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar
alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo
probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma
seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo
Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves
perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de
existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido
pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento
eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que
sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a
mentir280
Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal
direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos
em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever
moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia
juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir
que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido
ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721
280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo
tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na
doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto
de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente
tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O
interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES
op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo
apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a
uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode
declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo
281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente
tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo
282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance
praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo
98
nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por
isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285
Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento
considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um
processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos
inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um
ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel
Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash
que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade
(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada
indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas
O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de
direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos
e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo
com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais
salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma
limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais
compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo
283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451
284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se
autoincriminadora
285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de
2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento
juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a
inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito
Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)
286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP
287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss
288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as
pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo
agraves pessoas coletivas
99
que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel
de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente
os mesmos termos e amplitude em ambos os casos
Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas
pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum
accusare
Vejamos
Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do
princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios
independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo
constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave
partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada
pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa
agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289
Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas
coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes
(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio
que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser
titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos
fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas
privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter
direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a
competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo
exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas
puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114
Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de
aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de
interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou
de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op
cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss
289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e
concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179
290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas
da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137
291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns
sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o
cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento
dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de
100
ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se
podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em
processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido
[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292
Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos
natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza
das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo
documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade
econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur
292 Idem ibidem
293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas
coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees
impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com
contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487
disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas
coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de
uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma
infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave
disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio
expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que
os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como
sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar
contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as
ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves
pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio
das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm
nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da
concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo
testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito
de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia
Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de
salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o
Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa
evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter
determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por
conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de
acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas
as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua
posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento
anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave
empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34
101
de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295
44 Dever de advertecircncia
Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve
resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz
cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de
Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal
recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o
arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e
esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e
natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no
CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio
total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees
o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se
antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298
Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina
com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o
294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em
si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as
ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com
esses lugares e com essas coisasrdquo
295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42
296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria
insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse
conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos
resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o
autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a
invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta
processual ase adotarrdquo ndash p227
297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela
da Costa op cit (parecer) p39
298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules
que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia
HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222
102
depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar
depor300
Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em
caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de
advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da
violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a
formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado
da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e
autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do
nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum
accusare satildeo na verdade realidades interdependentes
A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao
incumprimento do dever de advertecircncia
Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo
ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se
inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo
de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees
prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu
autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como
ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur
299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento
1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas
a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido
b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em
condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo
300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas
autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a
faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente
mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo
301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da
Costa op cit p84
103
se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do
direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria
inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve
ser a mais forte possiacutevelrdquo302
A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta
eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo
daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que
sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim
um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem
aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a
proacutepria incriminaccedilatildeo304
Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele
qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A
nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante
intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O
argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que
em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim
os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo
tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e
esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em
prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as
declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo
prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de
advertecircncia ou esclarecimento305
Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo
tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem
303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel
Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit
p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43
304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio
305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36
306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127
104
com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante
tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra
soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas
sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral
autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou
da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308
Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE
haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309
eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o
qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a
proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova
cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar
que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito
embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos
da nulidade do ato
Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do
CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo
servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais
quase como se natildeo existisse)311
Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute
somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros
meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida
Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem
como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-
distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
307 Idem ibidem
308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a
devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia
Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447
309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193
310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss
311 Idem ibidem
312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss
313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas
consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo
105
probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos
documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos
proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica
se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de
afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo
objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315
Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia
dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave
consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao
art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato
com a nulidade ele eacute apenas irregular316
deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais
meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree
(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este
entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit
p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o
efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp
32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194
Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da
jurisprudecircncia
Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do
efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of
the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel
em
httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905
Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver
SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40
314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves
declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS
Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in
Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de
Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina
2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17
nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op
cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous
treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode
frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de
prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos
disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321
316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p
359
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107
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza
juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um
devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo
encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se
sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos
estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito
Privado
Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e
simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de
cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso
exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres
para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se
encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do
contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo
tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois
que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss
318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute
sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o
conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que
significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter
tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre
outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas
a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada
cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)
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categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou
outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo
juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor
ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)
cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os
dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento
da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria
tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo
juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o
contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo
concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a
prestaccedilatildeo de imposto
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321
alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo
de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres
acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar
e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322
319 Cf Art397ordm CC
320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de
Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011
p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o
direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um
determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal
como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal
natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos
negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para
satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA
umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que
apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por
acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11
321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e
os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15
322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss
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A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo
(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo
exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a
custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324
Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica
tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua
complexidade325
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo
principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias
Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa
As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um
determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo
juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos
eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326
A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de
um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do
conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327
De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto
da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o
facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de
sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente
323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss
324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16
325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L
Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal
2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de
Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal
Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss
326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra
Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49
327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss
110
em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma
tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de
mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees
financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao
trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos
aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o
contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute
suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo
existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas
uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330
A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma
abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo
tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de
pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos
acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de
emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e
entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante
328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo
mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e
tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss
329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute
de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar
atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT
330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o
sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos
exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de
ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que
natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da
entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio
pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a
mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs
grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf
ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular
trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal
Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto
de estudo
111
superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante
os casosrdquo331
Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da
obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou
demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas
porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros
moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere
a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo
que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os
deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram
autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave
praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees
legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo
acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia
pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336
Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa
relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e
das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto
significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de
pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na
lei
331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10
332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo
333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee
aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees
que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31
334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do
sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de
documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo
335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20
336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32
337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11
112
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria
Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da
LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o
pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos
declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de
cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto
em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que
estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais
accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340
Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios
que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a
declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar
o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar
recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e
os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar
periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o
dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1
da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade
que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um
comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere
Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica
como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e
ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La
declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a
estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala
maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo
339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79
340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os
deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por
outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como
objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
341 Idem ibidem
113
A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo
pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e
de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre
obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente
formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo
de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em
ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e
situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma
posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343
Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias
tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema
de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos
uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos
necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de
uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida
preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento
patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que
muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados
pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e
cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo
juriacutedica tributaacuteria346
342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e
executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op
cit pp253-254
343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27
344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130
345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT
ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos
rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal
sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos
sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias
346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47
114
Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela
lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo
pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347
O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada
complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica
exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades
contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees
especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um
modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades
sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina
estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa
enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes
(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)
A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de
determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar
um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os
particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado
por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas
contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no
ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-
pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo
conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto
prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave
Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres
esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e
auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas
347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss
348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de
uma diacutevida tributaacuteria
349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56
350 Idem ibidem
115
O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos
contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme
prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo
tributaacuteria e contribuintes
No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios
textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei
Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees
acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da
obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos
previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354
351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode
suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e
efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de
avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT
352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre
contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais
sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de
cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo
paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as
relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte
ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA
CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que
estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)
Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais
ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave
obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na
exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp
57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254
354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo
1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo
2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que
personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital
exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo
116
O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja
que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo
normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que
existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros
(art59ordm nordm1 da LGT)
Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria
para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular
e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais
interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria
esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo
de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao
exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se
observem356
Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento
esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo
os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a
administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e
a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como
sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4
da LGT
Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos
referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade
inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo
modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria
de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos
355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110
356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT
357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT
117
comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta
solicitados358
Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja
simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem
apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do
dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica
Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia
do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de
determinadas tarefas de imposto
Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)
declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos
declarados
No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que
seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que
recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos
iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos
Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz
remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo
tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram
de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo
Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da
prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere
(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os
factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres
358 Cf Art48ordm RCPITA
118
acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de
cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos
rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto
encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais
deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de
entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)
obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade
(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de
cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de
entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da
declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir
faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada
(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais
obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a
sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o
subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo
Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo
tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os
princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da
celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O
objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a
realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva
359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss
360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte
361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-
administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de
uma vontade jurisdicional
119
daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do
art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material
Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria
implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na
sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois
apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido
apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo
ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta
iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade
contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por
qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)
que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material
vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio
daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou
mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash
prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364
Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute
o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como
estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos
Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e
absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade
362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da
Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor
total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as
pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios
constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a
capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre
a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit
(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss
363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112
364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44
120
processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material
subjacenterdquo365
As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que
assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios
princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da
igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que
tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo
equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de
cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo
365 SOUSA Rui Correia ibidem
366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o
preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O
princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em
diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o
desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a
tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o
art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo
legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta
op cit pp 137 e ss
O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a
imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da
mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios
fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142
Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees
acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei
O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio
material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo
encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em
sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num
procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido
formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual
de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de
2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash
Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M
Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal
Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em
httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit
pp137 e ss
367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio
368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84
121
com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se
verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o
pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica
A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades
contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade
vertical)369
A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva
permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais
Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de
pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de
declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos
passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva
quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser
considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se
de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias
(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo
do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade
contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades
detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os
deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm
maior capacidade de prestaccedilatildeo371
369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154
370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166
371 Idem ibidem p169
122
123
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo
Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se
aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo
Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que
natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees
tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos
elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de
factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para
fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames
teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o
ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com
o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas
tributaacuteriasrdquo375
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou
terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que
eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio
das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num
controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da
372 Cf Art 4ordm do RCPITA
373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA
374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA
375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12
376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)
p164
124
Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo
lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as
normas de incidecircncia tributaacuteria certas
A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma
funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees
funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo
fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento
tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios
contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer
com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que
busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e
controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute
efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria
Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca
dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria
Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos
princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os
princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores
da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem
bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na
administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo
377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento
Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011
Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss
378 Cf Art 2ordm do RGIT
379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30
380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167
381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30
125
tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio
da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e
igualdade)382
A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo
oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da
obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho
das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio
supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo
deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes
concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios
relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar
desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria
de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes
fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de
investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com
382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183
NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss
383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar
um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute
verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento
Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de
Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash
roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19
Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio
Coimbra Coimbra Editora 2009 p372
Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva
SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa
tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do
Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que
implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte
natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em
consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de
arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios
de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) p19
384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45
126
base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de
irregularidadesrdquo385 386
Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral
eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos
arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na
restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva
pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da
vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave
propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da
inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a
AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs
dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a
medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica
se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a
adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que
melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada
na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do
considerado juridicamente aceitaacutevel)389
O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito
da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem
385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185
386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria
estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo
tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo
tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio
no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010
387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio
Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)
388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo
tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados
pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre
outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)
389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163
127
ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os
contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)
na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os
objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou
prossigam os fins pretendidos390
Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei
Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento
inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo
de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas
ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia
o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem
afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este
princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do
procedimento que lhes digam respeito392
A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito
passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os
factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de
inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm
da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado
Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85
391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como
esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a
AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de
proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel
392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir
que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento
nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando
devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento
tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos
sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-
126
128
ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar
partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem
acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma
decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de
evitar futuros conflitos de pretensotildees393
Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de
colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do
RCPITA)
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo
Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado
que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394
Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao
inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o
acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem
juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer
todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria
relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos
relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do
RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396
393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57
394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo
de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder
395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100
396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves
instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das
129
Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em
termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na
inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este
dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-
tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em
variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside
nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de
entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc
Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de
cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria
instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos
mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos
relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos
estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de
empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade
puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o
desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das
entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas
funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)
Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos
dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros
com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados
indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos
contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das
accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de
processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros
Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais
entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo
63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise
laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para
apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos
sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre
que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees
agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou
internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees
de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito
nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas
de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT
397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss
130
Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a
entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso
agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio
ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo
quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios
para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos
determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio
dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem
praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA
donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que
sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua
atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar
designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou
uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)
Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos
inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e
compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum
a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a
relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)
Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito
passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um
representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o
cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta
atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes
legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos
atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do
398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados
tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm
do RCPITA
131
sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material
(art54ordm nordm1 RCPITA)
Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a
cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo
Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do
procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos
por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente
necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para
com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com
antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1
e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa
notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)
Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a
exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400
aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo
Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado
pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos
sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto
leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever
O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo
sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves
desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA
400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65
132
colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o
infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal
nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos
passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando
ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da
leirdquo
Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos
funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a
AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de
responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos
mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito
pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica
Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei
diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da
aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos
gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei
prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente
impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art
14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo
bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave
coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas
para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)
A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste
paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou
presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de
cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo
realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros
elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de
401 Idem ibidem pp175-176
402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A
quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss
133
boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo
apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo
colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da
mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos
vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo
ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos
seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos
fiscalmente relevantesrdquo403
O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a
administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos
elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe
satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma
recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma
presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees
aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406
Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um
caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos
princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte
403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295
404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito
incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com
a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees
Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No
entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as
suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a
avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos
rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -
Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel
Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss
405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69
406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade
material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195
407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303
134
natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a
Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408
Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de
cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo
de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia
art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas
contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo
Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do
dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo
cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em
que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras
limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas
que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave
pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas
precedentemente mencionadas411
Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo
do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever
408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten
tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-
constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola
Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes
Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando
natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por
existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms
87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo
409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48
410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174
411 SAacute Liliana da Silva op cit p130
135
de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime
Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida
iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e
garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de
oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a
diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com
base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda
como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos
funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)
Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa
em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois
tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o
princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a
mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia
ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave
ou injustordquo413 414
Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de
documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees
entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo
412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de
competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada
pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA
413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2010 p767
414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento
Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a
recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de
colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou
dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou
descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas
[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do
direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)
Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo
136
ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres
e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes
a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais
Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio
em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a
colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)
137
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem
verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o
dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em
colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais
ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de
colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo
penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um
crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129
416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo
Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137
417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169
418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o
contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo
tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT
138
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte
O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual
consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e
mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas
O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado
eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela
Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco
caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de
fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar
com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou
documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do
dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do
inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo
em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do
arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se
ipsum accusare420
Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo
Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na
virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que
ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos
indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder
419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o
caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado
a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares
supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do
processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores
mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da
concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp
199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash
Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS
Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56
420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149
139
de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se
tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute
impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel
a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a
transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria
condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-
dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423
O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou
coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma
soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo
Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer
apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro
lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando
os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de
um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento
sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo
421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148
422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52
423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127
424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la
articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a
eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute
contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do
sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na
preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de
ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo
o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso
Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave
Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do
obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales
140
autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na
generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de
declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do
arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425
Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de
forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash
que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos
de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute
aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia
desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para
o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo
dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os
documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas
pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se
incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por
exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado
tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del
sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade
do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja
essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este
grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo
inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia
depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais
ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo
tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la
imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar
contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis
Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf
425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho
a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)
enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma
qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos
426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo
estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica
verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o
indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria
427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el
proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em
httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF
141
livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo
desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)
Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o
nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o
princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo
tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo
para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem
relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito
inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade
dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do
sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente
ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a
invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na
opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo
que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a
posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante
perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou
criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova
dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos
aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da
428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35
429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten
tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de
conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido
consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios
Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf
ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento
concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo
utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario
responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de
voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de
terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente
sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a
no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros
dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo
142
determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas
implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que
os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam
determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente
permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter
autoincriminador
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades
competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees
Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo
das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito
por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que
se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica
Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria
Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de
inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e
Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de
acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As
direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria
e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou
designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas
desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo
da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de
dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430
430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103
143
Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das
Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e
a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei
referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de
Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que
integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da
LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de
poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)
Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade
denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as
entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade
Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo
que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura
de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da
estrutura de serviccedilos regionais e locais
Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a
incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos
de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees
A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que
lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do
territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de
acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a
accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se
encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os
controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional
prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos
iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433
431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo
432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro
433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)
144
Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de
Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos
centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434
No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo
destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e
agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais
eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439
434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm
435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente
designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-
Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea
da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria
e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo
tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos
manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de
inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a
respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades
orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de
contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com
os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar
pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar
e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a
metodologia em vigorrdquo
436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por
DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo
com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo
437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da
gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila
tributaacuteriardquo
438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011
439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro
ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de
Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees
Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees
Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A
Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas
145
O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial
determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para
desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia
esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de
competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses
casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos
passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo
considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC
Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades
orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo
Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)
que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho
nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos
contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos
contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees
efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos
de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da
Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441
Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal
portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus
do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os
atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam
aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe
assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja
Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm
as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]
440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97
441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012
146
sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder
do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que
entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a
delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)
Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo
penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia
criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a
cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo
ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP
No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da
administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos
oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o
MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo
geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas
competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos
processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes
aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a
ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e
na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no
exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas
que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor
da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por
crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas
entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3
do RGIT)
Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo
das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de
442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas
de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes
ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal
e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)
443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691
444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT
147
investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na
medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades
No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de
dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees
tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender
uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual
tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo
penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas
especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que
nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o
Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445
Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia
do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com
competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do
RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou
por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia
(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do
crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da
administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos
mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)
Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito
por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a
todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e
termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio
apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos
interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e
445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126
446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis
447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia
delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida
ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo
448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss
148
funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que
isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos
oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito
seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua
competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da
instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a
Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo
dos crimes tributaacuterios
Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo
evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no
que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de
informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos
funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em
inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das
informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas
garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo
administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a
invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em
desconformidade com a Constituiccedilatildeo450
Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir
sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo
tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal
cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute
449 Idem ibidem
450 SAacute Liliana da Silva op cit p149
149
vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua
aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito
Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute
exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou
procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que
termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade
ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e
concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio
o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem
451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46
452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material
Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)
[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo
SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-
64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a
despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da
CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a
sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo
privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de
processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op
cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no
caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal
stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal
Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das
garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave
atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo
tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila
v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo
pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os
direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia
de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao
tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal
Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)
[em linha]
No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE
Manuel da Costa op cit pp46-49
Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito
de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias
empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de
informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo
150
obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam
uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453
Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual
o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o
conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada
Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os
trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The
Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de
ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a
qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs
Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o
conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH
um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual
enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo
formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur
Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa
do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses
autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos
sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do
artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos
factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir
em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de
uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave
empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash
(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)
453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146
454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976
455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal
contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do
nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito
interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo
e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)
456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997
457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento
em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo
na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos
458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]
151
em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos
assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse
servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave
circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de
um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio
do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo
de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa
prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno
que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor
aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o
estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh
Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada
apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em
excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo
incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos
natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido
autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a
instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade
Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito
interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por
conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que
na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja
a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada
obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao
privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma
459 COSTA Joana op cit pp123
460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending
against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him
54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding
within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give
information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself
incriminatingrdquo
461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the
Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act
152
maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os
respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente
afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao
silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de
lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica
ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-
se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do
veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio
O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo
do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and
MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para
obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio
pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em
processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a
invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH
No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da
aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees
tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos
procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e
invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo
pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para
prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute
to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a
sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does
not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo
462 COSTA Joana op cit p129
463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento
penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo
para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES
Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no
autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72
153
preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute
atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute
que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela
gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem
acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465
Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste
entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466
Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que
concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do
processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta
instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita
ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de
prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria
Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare
facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos
rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que
podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos
patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara
satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da
CRP)467
Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo
sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se
abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais
464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment
to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo
465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
466 Cf Op cit p22
467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de
concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244
154
eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do
nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se
exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-
los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de
determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo
tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em
inspeccedilatildeo tributaacuteria
A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo
quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo
assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito
passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou
documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o
esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos
Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia
processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o
contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a
desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre
que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um
processo ou procedimento sancionatoacuterio
Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria
incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel
se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional
O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito
corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da
presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece
155
(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela
consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se
exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e
regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado
no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na
Constituiccedilatildeo Portuguesa469
Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o
nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo
a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para
determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face
ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que
assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo
de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o
aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes
dele Mas natildeo se procede dessa forma
Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais
Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo
para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de
contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e
social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos
dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da
comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias
processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos
468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes
de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais
formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da
Constituiccedilatildeo materialrdquo
469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366
470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da
prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de
Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt
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um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do
contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees
Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram
assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito
atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta
e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos
Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando
os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades
administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou
atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos
cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de
documentos fiscalmente relevantes471
Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de
direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual
depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas
comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude
e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos
cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A
doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de
interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando
uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos
interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da
prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um
princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia
471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos
normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela
falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH
Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do
ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na
sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo
472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo
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constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio
inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo
A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de
inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos
do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo
agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute
harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar
pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo
forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que
acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave
presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses
direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473
Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo
sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de
utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao
abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do
princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a
utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade
e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute
diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores
que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir
para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse
obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza
tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas
decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto
473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA
RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid
2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss
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com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave
fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios
O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como
o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo
como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo
tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute
natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e
a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha
uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito
natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475
Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais
destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e
manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso
de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de
autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio
contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave
circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o
contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem
indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos
elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo
colaborar
475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de
criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse
desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del
contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo
Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto
Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e
interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de
colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a
igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo
e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos
que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das
desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo
476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -
Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10
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Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde
logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a
informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e
transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute
se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido
infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o
risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas
circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada
qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e
um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do
contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash
consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo
Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao
suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos
tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro
lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos
funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante
complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente
conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora
exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar
do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito
tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar
Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que
ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de
477 Op cit pp276 e 284
160
contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo
penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria
para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem
a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir
esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou
processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em
inspeccedilatildeo)
Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio
estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do
nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento
para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as
atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas
pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das
informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479
Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no
processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria
ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo
qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o
incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480
478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria
y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar
penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse
debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se
assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria
480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA
RODRIGUEZ Rafael op cit p270
161
Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se
defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa
inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo
conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela
tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos
a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo
penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente
fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481
Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo
nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do
processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo
mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de
tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com
a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo
tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente
aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos
pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de
informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados
contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal
ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483
Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres
de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que
481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke
482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves
exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos
483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador
Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de
12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
162
aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais
restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria
destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute
deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer
a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior
utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de
indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como
veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades
comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse
prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do
princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade
probatoacuteria485
Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo
tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos
processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade
torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das
realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das
infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash
considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das
infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi
estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que
natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado
comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo
484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]
todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo
arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou
poderes de supervisatildeordquo (p110)
486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284
487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss
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finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial
em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material
proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal
onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido
enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito
ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488
Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo
tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de
passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos
fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o
sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio
de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia
a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos
solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as
que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo
funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave
partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo
penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e
constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do
sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante
veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual
Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a
colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a
natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio
poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com
a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e
488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27
489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208
490 Idem ibidem pp209 e ss
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agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a
manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora
al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el
sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente
inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade
diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a
correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a
comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a
praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade
entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do
nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo
penal
A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em
processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo
sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um
inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma
questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491
Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em
constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e
controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento
de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de
comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito
491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos
pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101
e ss
165
(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de
fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e
tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo
inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio
Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe
solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de
instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o
poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se
eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito
ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492
Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e
garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer
informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que
ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur
O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que
circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa
intercomunicabilidade probatoacuteria
A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur
se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente
impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo
tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal
natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram
recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de
uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o
transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a
imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo
492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135
166
processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa
do processo penal portuguecircs493
Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do
Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional
ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal
posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de
cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo
tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do
art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de
gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de
2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou
que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos
indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto
agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo
constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de
assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar
expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria
Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495
ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo
Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem
prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem
proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo
proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta
493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012
494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e
argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional
495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem
natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo
vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de
investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua
destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173
496 Op cit pp 332 e ss
167
em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor
que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo
constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do
CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente
previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das
circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis
de serem utilizados em processo penal posterior
Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser
constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa
requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo
fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime
tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf
parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o
seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender
passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []
assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm
Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por
qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees
que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como
consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como
prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497
FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de
contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora
ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash
conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um
497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de
2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a
sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos
termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto
designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo
498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no
mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores
Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3
do CdVM)
168
vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a
ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo
sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo
ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de
supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o
cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500
Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo
compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do
estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser
obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-
arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash
em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade
decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor
O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com
uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees
tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo
normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena
da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo
obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do
proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no
aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo
499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave
entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia
exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O
aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do
princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf
Op cit (parecer) p49
500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281
169
contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz
agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao
processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo
autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute
livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade
livre e esclarecida)
Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la
perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen
suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de
proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al
procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no
declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente
el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de
sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a
efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea
atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las
sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo
de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la
voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo
Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o
princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a
questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de
colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de
verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se
natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute
a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir
para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el
procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10
170
Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a
questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou
direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica
dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o
outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503
Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de
interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo
de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas
apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em
nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o
regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado
abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como
noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento
dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a
antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo
reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua
funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do
abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em
503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte
da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo
legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na
ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo
facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante
veremos
504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como
sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade
configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer
outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao
silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria
Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-
incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de
investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica
Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94
505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]
506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a
imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed
natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo
penalrdquo ndash p45
171
instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da
abertura do processo penal tributaacuterio)507
Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em
torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de
documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais
instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo
de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou
inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em
colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir
e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a
condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo
consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando
em causa a justiccedila do processo
Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a
sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-
se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos
investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo
equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de
ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode
ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente
autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter
autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo
507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209
508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos
abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -
durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de
Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de
inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a
existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal
Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe
executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em
caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos
prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no
processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo
172
para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento
ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio
segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na
garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria
autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em
tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito
de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510
Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem
sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a
invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash
salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem
genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa
vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das
obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo
da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios
(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a
prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a
inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)
Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na
perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este
argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que
transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar
509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to
remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -
such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the
prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to
otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo
510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest
in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the
present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness
contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal
offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers
compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo
173
com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a
impunidade
Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e
perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico
hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los
tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511
Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto
elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam
inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que
na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses
aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes
e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo
equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto
natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo
tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema
fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute
simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser
instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que
se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento
sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob
coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as
garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513
Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes
coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada
pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave
actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela
autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma
processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo
512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss
513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
p145
174
suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a
CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees
tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre
exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar
o caacutelculo do imposto
Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a
intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa
argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou
opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que
podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem
independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre
outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as
declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute
descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da
justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material
probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num
processo penal516
Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores
proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo
natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio
ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito
constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se
514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152
515 Cf Paraacutegrafo 69
516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
pp147-148
175
ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e
presunccedilatildeo da inocecircncia517
Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo
permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e
consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material
obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo
penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova
ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia
do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros
elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees
detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas
quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo
apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo
voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones
tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el
procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero
iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a
principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no
auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su
intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se
utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes
de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no
debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una
517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo
ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y
el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos
adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11
176
eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en
un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos
Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a
soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos
processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute
uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que
as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se
apresenta sem qualquer desvantagem)
No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e
respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com
esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo
da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo
tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a
compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma
vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o
poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual
consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel
mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele
natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521
519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299
520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito
tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada
com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo
belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)
admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam
atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)
521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave
separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para
a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens
juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e
177
Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de
colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer
inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a
comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum
accusare
Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar
uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica
dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo
afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a
separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os
procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade
entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento
do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio
das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e
informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a
investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo
contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas
natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais
de obtenccedilatildeo probatoacuteria
Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas
acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que
alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para
laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema
juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e
social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais
pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da
atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da
admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de
tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade
522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54
523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106
178
(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da
alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito
sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio
tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune
as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de
recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)
nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais
ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera
da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel
Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo
de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias
poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o
investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer
todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa
soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo
processual
Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de
procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica
das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees
que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros
domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de
evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito
normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar
exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525
Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees
preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe
524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162
525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54
179
alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se
confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres
de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria
condenaccedilatildeo
A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do
suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse
momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo
ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa
constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o
art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem
respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites
previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar
informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre
tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do
CPA)
Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula
de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o
indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas
processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)
A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da
inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes
teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse
Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o
nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo
anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que
esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum
accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196
180
interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para
que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento
dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua
sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal
de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o
direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da
AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os
autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT
podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova
protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da
proacutepria condenaccedilatildeo
As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento
inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias
processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o
indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores
antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o
procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a
edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas
anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal
cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente
afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os
direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a
servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do
oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar
jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal
por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser
utilizados em posterior processo penal
527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50
528 Cf Op cit pp56-57
529 Cf Idem pp58-59
181
Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por
parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo
como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a
comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo
de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente
(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que
soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode
construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se
Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo
tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as
exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e
da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade
probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns
inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare
abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o
dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante
da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a
AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo
do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se
conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das
infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus
direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de
exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar
isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a
prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os
deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos
Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a
propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico
530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
p195
531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
182
sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e
considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria
entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada
em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do
indiviacuteduo
Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas
proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que
apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute
permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas
normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas
proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a
enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade
fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532
E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo
inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade
probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que
a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da
sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma
utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total
desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os
princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo
seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da
autoincriminaccedilatildeo
No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico
portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio
soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo
532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133
183
REFLEXAtildeO FINAL
Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute
absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas
obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo
do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado
O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da
dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida
por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute
reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em
que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e
poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo
(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou
posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees
ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal
deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado
Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar
da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur
contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no
sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um
ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo
necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade
probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute
constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos
processos
A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo
com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas
no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo
utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo
184
indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida
e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios
constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a
integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para
considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo
tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova
agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de
decisatildeo do indiviacuteduo
185
CONCLUSOtildeES
I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa
segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou
seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a
sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao
silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo
satildeo corolaacuterios que se interligam
II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo
tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais
autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais
incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas
para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio
III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se
ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo
penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino
Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos
IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal
circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a
sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo
constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num
plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que
asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre
noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)
art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)
V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica
debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana
Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A
primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais
como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm
186
CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende
um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e
seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no
texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos
circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur
cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza
processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em
princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz
juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa
humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma
mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se
defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente
amparo de natureza processual
VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum
accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua
compreensatildeo e alcance
VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo
exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo
- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O
nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso
ordenamento juriacutedico
VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o
Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e
ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em
alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual
(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as
testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos
entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento
da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas
187
sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute
de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo
expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no
art61ordm nordm3 ald) do CPP
XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da
concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente
com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes
tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se
pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias
coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel
autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia
constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo
de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos
ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou
concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes
harmonizando-os entre si concretamente
XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para
resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores
em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio
recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash
prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido
XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute
o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende
diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana
com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na
sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse
sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos
ou interesses de valor social e constitucional prevalecente
188
XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar
previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e
devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da
CRP
XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua
posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser
juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico
na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo
de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a
infraccedilatildeo
XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir
XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica
proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que
atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da
pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de
todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral
(art32ordm nordm8 da CRP)
XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada
nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de
pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram
em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos
preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou
administrativas
XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute
obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da
inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e
demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade
XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e
natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar
189
esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de
incumprimento ilegiacutetimo deste dever
XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de
colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao
cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa
situaccedilatildeo
XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de
oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente
entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal
por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da
informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute
legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal
XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias
dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito
no processo penal tributaacuterio
XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos
respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar
aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do
Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio
XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a
informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou
precisamente a sua razatildeo de ser
XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal
seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo
investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar
totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo
190
equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria
de cada indiviacuteduo
XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa
de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos
sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios
constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos
contribuintes no subsequente processo penal
XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de
uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se
verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos
em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever
de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a
intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva
separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres
de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de
qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja
interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por
violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado
continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas
poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e
aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal
posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo
autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o
chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)
191
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[em linha]
- Paacutegina 1
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DECLARACcedilAtildeO
Nome Telma Sofia Martins Ribeiro
Endereccedilo eletroacutenico telmaribeiro_10hotmailcom
Nuacutemero do Cartatildeo de Cidadatildeo 14042436 emitido pela Repuacuteblica Portuguesa vaacutelido ateacute
13072017
Tiacutetulo da Dissertaccedilatildeo A ldquointercomunicabilidade probatoacuteriardquo entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Orientadora Professora Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro
Ano de conclusatildeo 2017
Designaccedilatildeo do Mestrado Mestrado em Direito Judiciaacuterio
Eacute AUTORIZADA A REPRODUCcedilAtildeO INTEGRAL DESTA DISSERTACcedilAtildeO APENAS PARA EFEITOS DE
INVESTIGACcedilAtildeO MEDIANTE DECLARACcedilAtildeO ESCRITA DO INTERESSADO QUE A TAL SE
COMPROMETE
UNIVERSIDADE DO MINHO ______ ASSINATURA __________________________________
iii
AGRADECIMENTO
Dirijo o meu profundo agradecimento agrave Doutora Flaacutevia Noversa Loureiro primeiramente
por ter aceitado percorrer a meu lado esta longa e desafiante caminhada de trabalho e
empenho Um sincero e sentido obrigada por toda a dedicaccedilatildeo compromisso disponibilidade
profissionalismo demonstrados desde o primeiro minuto em que aceitou ser orientadora desta
monografia As palavras satildeo parcas para agradecer toda a partilha de sabedoria e conhecimento
cientiacutefico
Agrave minha colega e amiga Silvana Andrade que natildeo sendo seu este trabalho demonstrou
para comigo uma inestimaacutevel preocupaccedilatildeo e auxiacutelio na investigaccedilatildeo e redaccedilatildeo deste estudo Um
muito mas muito obrigada
Agrave Diana Barros e Flaacutevia Martins que por serem acima de tudo companheiras de vida e
para o resto da vida deram-me sempre o alento o acircnimo a forccedila em natildeo desistir nos
momentos em que nem sempre as nossas expetativas e metas satildeo alcanccediladas da maneira que
idealizamos A voacutes que a vida vos ofereccedila aquilo que de melhor ela tem
Por uacuteltimo um enorme obrigada aos meus pais e irmatildeo por fazerem de mim aquilo que
sou por me acompanharam em todo este percurso acadeacutemico e ao longo da minha vida A
minha pequenez natildeo tem sequer palavras para agradecer a grandeza que voacutes representais para
mim
iv
v
RESUMO
O presente estudo respeita agrave suscetibilidade do aproveitamento probatoacuterio em processo
penal de informaccedilotildees fornecidas pelo arguido no curso do procedimento administrativo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo e sob o cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo a que estaacute
legalmente obrigado Em cena encontramos um aparente conflito entre a garantia processual
penal do arguido em natildeo contribuir coativamente para a proacutepria incriminaccedilatildeo (comummente
reconduzido agrave expressatildeo latina nemo tenetur se ipsum accusare) e o cumprimento da obrigaccedilatildeo
legal de cooperar no procedimento tributaacuterio
O presente trabalho estaacute assim dividido em trecircs partes Parte I respeita agrave anaacutelise do
nemo tenetur se ipsum accusare e a todas as questotildees relevantes a ele associadas
nomeadamente o seu significado e conteuacutedo a origem histoacuterica os fundamentos
constitucionais de natureza substantiva ou material e os fundamentos constitucionais de
natureza processual a determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo a suscetibilidade do
estabelecimento de restriccedilotildees ao nemo tenetur e por fim as consequecircncias juriacutedicas em caso
de violaccedilatildeo do princiacutepio
Parte II estabelece uma breve e sucinta abordagem aos deveres de colaboraccedilatildeo em
mateacuteria tributaacuteria de modo mais especiacutefico no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Satildeo
analisadas mateacuterias como o enquadramento dos deveres de cooperaccedilatildeo enquanto obrigaccedilotildees
acessoacuterias da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria a concretizaccedilatildeo praacutetica do dever de colaboraccedilatildeo (em
que atos se materializa) bem como as consequecircncias associadas aos casos de incumprimento
ilegiacutetimo desse dever
Por fim na Parte III investigamos e tentamos oferecer a soluccedilatildeo ao problema inicialmente
colocado do aproveitamento probatoacuterio Satildeo enumeradas as posiccedilotildees doutrinais e
jurisprudenciais proacutes e contras a essa intercomunicabilidade probatoacuteria bem como as vantagens
e criacuteticas que tradicionalmente satildeo apontadas a essas posiccedilotildees a determinaccedilatildeo do acircmbito
normativo de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur (saber se o princiacutepio eacute invocaacutevel no curso da proacutepria
inspeccedilatildeo tributaacuteria) e a apresentaccedilatildeo da soluccedilatildeo proposta que ndash defendemos noacutes - passaraacute
obrigatoriamente pela separaccedilatildeo efetiva dos processos (penal e procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria) e por uma absoluta impossibilidade do aproveitamento no processo penal das
informaccedilotildees coativamente fornecidas pelo arguido em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de deveres
de colaboraccedilatildeo
vi
vii
ABSTRACT
The present study concerns the susceptibility of probative use in criminal proceedings of
information provided by the accused during the administrative procedure of tax inspection under
and in compliance with the duty of collaboration to which he is legally bound On the scene there
is an apparent conflict between the criminal procedural guarantee of the defendant in not
contributing either to the incrimination itself (commonly referred to as the latin term nemo
tenetur se ipsum accusare) and to complying with the legal obligation to cooperate in the tax
procedure
The present work is divided into three parts Part I concerns the analysis of nemo tenetur
se ipsum accusare and all relevant issues associated with it namely its meaning and content
historical origin substantive or substantive constitutional grounds and constitutional grounds of
Determination of its scope the susceptibility of the establishment of nemo tenetur restrictions
and finally the legal consequences in case of breach of the principle
Part II establishes a brief and succinct approach to the duties of collaboration in tax
matters more specifically in the procedure of tax inspection It examines matters such as the
framework of cooperation duties as ancillary obligations of the tax legal relationship the practical
implementation of the duty of collaboration (in which acts it materializes) as well as the
consequences associated with cases of illegitimate failure to fulfil this duty
Finally in Part III we investigate and try to offer the solution to the problem initially posed
of probative use The doctrinal and jurisprudential positions and pros and cons of this evidence
intercommunication as well as the advantages and criticisms which are traditionally pointed out
to these positions are the determination of the normative scope of application of nemo tenetur
(whether the principle can be invoked in the course of the And the presentation of the proposed
solution which we argue will inevitably involve the effective separation of the proceedings
(criminal and tax inspection procedure) and the absolute impossibility of using the information
tax inspection under collaborative duties
viii
ix
IacuteNDICE
RESUMO v
ABSTRACT vii
SIGLAS E ABREVIATURAS xiii
INTRODUCcedilAtildeO 17
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare 21
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 27
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se ipsum accusare
39
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva) 43
32 Fundamento constitucional de natureza processual 49
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria 49
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia 51
c) A garantia de um processo equitativo 55
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare 61
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade
normativa e validade material 65
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur 91
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir 93
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas 98
44Dever de advertecircncia 101
x
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare 102
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria 107
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo principal e
obrigaccedilotildees acessoacuterias 109
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria 112
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei 115
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o subprinciacutepio corolaacuterio
da colaboraccedilatildeo 118
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria 123
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria 124
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo 128
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo 131
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo 134
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal 137
xi
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades competentes para a
inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees 142
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare 148
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria 154
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal 164
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos 176
REFLEXAtildeO FINAL 183
CONCLUSOtildeES 185
BIBLIOGRAFIA 191
JURISPRUDEcircNCIA 203
xii
xiii
SIGLAS E ABREVIATURAS
ss ndash seguintes
Ac ndash Acoacuterdatildeo
AR ndash Assembleia da Repuacuteblica
AT ndash Administraccedilatildeo Tributaacuteria
ATA ndash Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
BCE - Banco Central Europeu
CADH ndash Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos
CC ndash Coacutedigo Civil
CdVM ndash Coacutedigo de Valores Mobiliaacuterios
CE - Comissatildeo Europeia
CEDH ndash Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem
CEJ ndash Centro de Estudos Judiciaacuterios
CIMT ndash Coacutedigo do imposto Municipal sobre as Transaccedilotildees Onerosas de Imoacuteveis
CIRS ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
CIVA ndash Coacutedigo do Imposto sobre o Valor Acrescentado
CMVM ndash Comissatildeo do Mercado de Valores Mobiliaacuterios
CP ndash Coacutedigo Penal
CPA ndash Coacutedigo do Procedimento Administrativo
CPP ndash Coacutedigo de Processo Penal
CPPT ndash Coacutedigo de Procedimento e Processo Tributaacuterio
CRP ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa
DEC - Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo
DEI - Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees
DGAIEC - Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo
DGAT - Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria
DGCI - Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
xiv
DGITA - Direccedilatildeo-Geral de Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros
DIBIF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras
DIEF - Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras
DIFAE - Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees Especiais
DPAT - Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico
DSIFAE - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais
DSPCIT - Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
DL ndash Decreto-Lei
DUDH ndash Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
EBF ndash Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais
FMI - Fundo Monetaacuterio Internacional
GG - Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland
GNR ndash Guarda Nacional Republicana
IGF - Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas
IRA - Irish Republican Army
IRC ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
IRS ndash Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
IVA ndash Imposto sobre o Valor Acrescentado
LGT ndash Lei Geral Tributaacuteria
MP ndash Ministeacuterio Puacuteblico
ONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas
PIDCP ndash Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Poliacuteticos
PNAITA - Plano Nacional de Atividades da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RCPITA ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira
RGIT ndash Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
STJ ndash Supremo Tribunal de Justiccedila
seacutec ndash Seacuteculo
TC ndash Tribunal Constitucional
xv
TEDH ndash Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
TJUE ndash Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia
UE ndash Uniatildeo Europeia
UGC - Unidade dos Grandes Contribuintes
xvi
17
INTRODUCcedilAtildeO
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte Trata-se de uma questatildeo juriacutedica (a do
aproveitamento probatoacuterio de provas produzidas em momento e instacircncias anteriores ao
processo penal) de extrema pertinecircncia teoacuterica e praacutetica que tem surgido nos nossos tribunais e
que ainda hoje natildeo eacute capaz de oferecer uma resposta cabal e uniforme As opiniotildees divergem
as posiccedilotildees satildeo bastantes e conflituantes entre si motivos que consideramos fundamentais da
monografia que nos propusemos a realizar
Ademais com a criminalidade econoacutemica que tatildeo afamadamente preenche o nosso
quotidiano a relevacircncia da questatildeo ainda se enaltece Natildeo raras as vezes a investigaccedilatildeo destes
tipos de iliacutecitos criminais inicia-se fora ou melhor em momento anterior agrave instauraccedilatildeo formal do
processo penal junto de autoridades administrativas como eacute o caso de procedimento
administrativo de inspeccedilatildeo tributaacuteria regulado no Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e na Lei Geral Tributaacuteria
Em cena encontramos um aparente confronto entre o dever de colaboraccedilatildeo com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria a que o inspecionado estaacute obrigado no plano do procedimento de
inspeccedilatildeo tributaacuteria sob pena de sofrer eventuais prejuiacutezos (como eacute o caso da revogaccedilatildeo de
benefiacutecios fiscais concedidos) e o princiacutepio essencial das garantias de defesa do arguido nemo
tenetur se ipsum accusare (ou princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou natildeo auto inculpaccedilatildeo) O
problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado eacute colocado
perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela Administraccedilatildeo
Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco de que caso haja
a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal fornecer
elementos que contribuem para a sua auto inculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar com a
18
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou documentos
solicitados) correr seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do dever de
colaboraccedilatildeo
Nas sociedades contemporacircneas caracterizadas por diversos tipos de impostos aplicaacuteveis
a uma multiplicidade de atividades e situaccedilotildees juriacutedicas verifica-se com grande frequecircncia a
intervenccedilatildeo do proacuteprio sujeito passivo na aplicaccedilatildeo das normas tributaacuterias Natildeo se torna difiacutecil
atualmente percecionar que grande nuacutemero dos atos que tradicionalmente eram perspetivados
como administrativos ndash praticados pelos serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash satildeo hoje
consignados ao proacuteprio contribuinte ou a outras entidades privadas podendo mesmo falar-se em
ldquoprivatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteriardquo1 ndash lembramos sinteticamente os casos em que
tarefas como liquidaccedilatildeo ou cobranccedila de tributos se deslocam para a esfera do contribuinte Eacute
neste plano tambeacutem que os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte assumem especial
relevacircncia aparecendo o contribuinte como uma espeacutecie de ldquoagente administrativordquo que auxilia
a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na realizaccedilatildeo de determinadas tarefas de imposto
Geralmente os deveres de colaboraccedilatildeo do contribuinte giram em torno da obrigaccedilatildeo
principal de pagar imposto ndash sendo que cada tipo de imposto prevecirc um conjunto de tarefas que
ao abrigo da colaboraccedilatildeo permitem quantificar e determinar a diacutevida tributaacuteria - mas casos haacute
em que os deveres de colaboraccedilatildeo natildeo utilizam esta veste assumindo outras finalidades como
eacute o caso dos deveres de cooperaccedilatildeo de caraacutecter informativo que tecircm por objeto natildeo situaccedilotildees
tributaacuterias singulares mas esquemas ou atuaccedilotildees de planeamento fiscal contidos no DL
nordm292008 de 25 de fevereiro ou principalmente os deveres de colaboraccedilatildeo associados ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria que pretendem assegurar a eficaacutecia da proacutepria inspeccedilatildeo
Face agrave incidecircncia e implicacircncia que os deveres de cooperaccedilatildeo tributaacuteria assumem na
resoluccedilatildeo da questatildeo central da presente monografia entendemos por necessaacuterio elaborar um
estudo sobre os mesmos quer a niacutevel geral (no plano do direito tributaacuterio) quer de um modo
especial em concreto no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Dada a jaacute alargada
extensatildeo da monografia advertimos que o estudo realizado sobre os deveres de colaboraccedilatildeo eacute
sucinto e geneacuterico natildeo abrangendo uma anaacutelise aprofundada de todas as implicacircncias teoacutericas
e praacuteticas que os mesmos comportam
1 ROCHA Joaquim Freitas - Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 p47
19
O problema surge quando ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo o sujeito passivo apresenta
documentos que uma vez confrontados com a declaraccedilatildeo de IRS exemplificativamente
indiciam fortemente que foram omitidos nesta factos relativos agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria que
podem subsumir-se ao crime de fraude fiscal do art103ordm do Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias (RGIT) e nessa medida como tal situaccedilatildeo se compatibiliza com o princiacutepio da natildeo
auto-inculpaccedilatildeo
ldquoA resposta a esta questatildeo passa por determinar se o processo administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pela praacutetica de crime ou contra-ordenaccedilatildeo fiscal estatildeo
interligados ou decorrem em separado tanto do ponto de vista substantivo como
procedimentalrdquo2
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare ou direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ou
inculpaccedilatildeo remonta as suas origens ao direito anglo-saxoacutenico3 em meados do ano de 1679 com
a Magna Charta mais concretamente agrave viragem do modelo processual de estrutura inquisitoacuteria
para um processo de estrutura acusatoacuteria A Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos da Ameacuterica
acabaria tambeacutem por intermeacutedio da V Amendment (1791) - 5ordf Emenda- por declarar que ldquoNo
person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
Mais proacuteximo de noacutes o princiacutepio nemo tenetur viria a ser integrado no art6ordm da
Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem4 e art14ordm do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Poliacuteticos Na ordem juriacutedica portuguesa natildeo encontramos uma consagraccedilatildeo legal direta do
princiacutepio em causa nem na Constituiccedilatildeo nem no Coacutedigo de Processo Penal Todavia a Doutrina
e Jurisprudecircncia satildeo unacircnimes em admitir a vigecircncia daquele princiacutepio no direito processual
penal portuguecircs como tambeacutem satildeo concordes em considerar a sua origem e matriz
naturalmente constitucional ldquoDecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou
direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de
inocecircncia em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo5
2 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p45
3 ANDRADE Manuel da Costa ndash ldquoSobre as proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo Coimbra Coimbra Editora 1992 p120 - 132
4 A jurisprudecircncia do Tribunal de Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem defendido a emanaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur como
decorrecircncia do direito a um processo equitativo (art6ordm CEDH) Cfr Ac Saunders 17-12-1996 Ac Funke 2521993 Questatildeo que teremos
oportunidade de desenvolver no seio da monografia
5 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
20
O Coacutedigo Processo Penal conteacutem diversas disposiccedilotildees legais que retundam em torno do
nemo tenetur refira-se a este propoacutesito a tiacutetulo meramente exemplificativo o direito ao silecircncio
mencionado no art61ordm nordm1 alc) tendo o legislador proibido a sua valoraccedilatildeo contra o arguido
tanto em caso de silecircncio total ou parcial (art343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos CPP respetivamente)
Todavia natildeo eacute o reconhecimento legal e constitucional do princiacutepio e a sua vigecircncia no
ordenamento juriacutedico portuguecircs que levanta problemas atualmente as questotildees atinentes ao
conteuacutedo e alcance do direito da natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo as mais debatidas e importantes
Optaacutemos por dividir a presente monografia em trecircs partes Uma primeira que apresenta
um estudo aprofundado doutrinal e jurisprudencialmente sustentado e denso sobre todas as
questotildees associadas ao princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare uma vez
que toda a investigaccedilatildeo tem-no como ponto de partida e base do estudo abordamos as
temaacuteticas relativas agrave origem histoacuterica do nemo tenetur aos seus corolaacuterios (nomeadamente o
direito ao silecircncio a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo) os seus fundamentos
constitucionais materiais e processuais bem como as implicaccedilotildees em torno da concreta
determinaccedilatildeo dos seus acircmbitos de aplicaccedilatildeo De uma forma mais geneacuterica e sucinta a segunda
parte da Dissertaccedilatildeo inclui o estudo referente aos deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria em especial
no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Na terceira parte redirecionamos as nossas atenccedilotildees para a este ldquoaparenterdquo conflito
entre o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
dissecando algumas das soluccedilotildees jaacute apresentadas pela Doutrina e Jurisprudecircncia nacional e
internacional e por fim pela tentativa de solucionar este problema juriacutedico
21
PARTE I ndash O PRINCIacutePIO NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
CAPIacuteTULO I ndash NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE ENQUADRAMENTO ORIGEM
E FUNDAMENTOS CONSITUCIONAIS
1 Significado do nemo tenetur se ipsum accusare
O arguido eacute em processo penal a pessoa sobre a qual recaem fortes suspeitas da praacutetica
de uma infraccedilatildeo criminal suficientemente provada6 Entre arguido suspeito ou agente existem
diferenccedilas de entre as quais a mais relevante seraacute a aquisiccedilatildeo de determinada posiccedilatildeo
processual a de sujeito processual que apenas cabe ao arguido
Agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo como arguido deve ser dada extrema importacircncia pois a ela se
conexionam efeitos processuais penais que permitem distinguir o tratamento da pessoa como
arguido da do tratamento como mera testemunha ou outro participante processual7
FIGUEIREDO DIAS no estudo desenvolvido acerca dos sujeitos processuais realccedila que o
estatuto de sujeito processual distingue-se dos demais participantes processuais pois que aos
primeiros satildeo concedidos ldquodireitos (que surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres
ou de ofiacutecios de direito puacuteblico [como acontece no caso do juiz ou Ministeacuterio Puacuteblico])
autoacutenomos de conformaccedilatildeo da concreta tramitaccedilatildeo do processo como um todo em vista da sua
decisatildeo finalrdquo8 direitos que no plano do arguido no processual penal portuguecircs encontram-se
maioritariamente previstos nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP O arguido eacute um sujeito processual
Contrariamente ao que se verificava na estrutura inquisitoacuteria do processo penal onde o
arguido era encarado como mero ldquoobjetordquo do processo (de quem apenas se pretendia obter ndash a
6 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p 424
7 Cf exemplificativamente as regras de interrogatoacuterio ou inquiriccedilatildeo nos diferentes casos o art141ordm CPP refere as premissas referentes ao
interrogatoacuterio do arguido e por sua vez o art138ordm CPP estabelece as normas para a inquiriccedilatildeo de testemunhas Numa primeira leitura
superficial e simplista constata-se desde logo a complexidade do primeiro em relaccedilatildeo ao segundo atestada com as maiores exigecircncias de defesa
a favor da pessoa interrogada (arguido)
8 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p 9
22
todo o custo ndash a sua confissatildeo e com isso a descoberta da verdade material) e com o advento
dos ideais revolucionaacuterios liberalistas importava assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que
tutelasse o seu direito de defesa isto eacute a limitaccedilatildeo da descoberta da verdade material ao
respeito dos direitos fundamentais do arguido Este eacute o fundamento do tratamento do arguido
enquanto sujeito processual em detrimento da conceccedilatildeo como objeto do processo que impede
a utilizaccedilatildeo de medidas probatoacuterias ou coativas com o fim uacuteltimo de extrair do arguido
declaraccedilotildees autoincriminadoras9 devendo antes todos os atos processuais serem expressatildeo da
sua livre personalidade
Eacute neste particular aspeto que se apresenta com extremo interesse o princiacutepio juriacutedico do
nemo tenetur se ipsum accusare10 (ou princiacutepio garantiacutestico da natildeo autoincriminaccedilatildeo ou da natildeo
autoinculpaccedilatildeo11) segundo o qual ningueacutem deve ser obrigado a contribuir para a proacutepria
incriminaccedilatildeo12 isto eacute ldquoo arguido natildeo pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir
para a sua condenaccedilatildeo sc a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesardquo quer no
que concerne aos factos atinentes agrave questatildeo da culpa ou da medida da pena ndash natildeo existindo
em qualquer caso um dever de colaboraccedilatildeo nem sequer dever de verdade sobre o arguido13 O
que se exige eacute que ldquoqualquer contributo do arguido que resulte em desfavor da sua posiccedilatildeo
seja uma afirmaccedilatildeo esclarecida e livre de auto[-]responsabilidaderdquo14
9 Idem (Direito Processual penal) pp429-430
10 Outras terminologias satildeo tambeacutem utilizadas mas na sua essecircncia reconduzem-se ao mesmo sentido material ndash de natildeo contribuir para a sua
proacutepria incriminaccedilatildeo Satildeo elas nemo tenetur se ipsum prodere nemo tenetur se detegere nemo tenetur edere contra se nemo tenetur se
accusare nemo testis contra si ipsum nemo tenetur turpidunem saum ou simplesmente nemo tenetur
11 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 Nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) p131
12 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova Coimbra Almedina 2009 p38 ndash ldquoembora natildeo tenham
exactamente o mesmo conteuacutedo o direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo estatildeo incindivelmente ligados natildeo lhe sendo
reconhecido o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente
prejudicar na medida em que contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
13 ANDRADE Manuel da Costa ndash Sobre as proibiccedilotildees de prova em processo penal Coimbra Coimbra Editora 1992 p121 Com a mesma ideia
MENEZES Sofia Saraiva de ndash O direito ao silecircncio a verdade por traacutes do mito (Parecer) In BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico
de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal
Coimbra Almedina 2010 p118
A propoacutesito da natildeo-imposiccedilatildeo da obrigaccedilatildeo de dizer a verdade a doutrina discute se existe um acolhimento a um direito agrave mentira pelo arguido
A questatildeo eacute controversa de modo que deixaremos para momento posterior a sua anaacutelise
14 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p121
23
COSTA ANDRADE no seu ensaio acerca das proibiccedilotildees de prova adverte para o
cumprimento fulcral deste princiacutepio no processo penal15 Ora inerente ao regime das proibiccedilotildees
de prova estaacute a ideia de limitar a busca da verdade material falamos de limites que representam
valores intransponiacuteveis irrenunciaacuteveis cuja desconsideraccedilatildeo no processo penal faraacute regredir
toda a evoluccedilatildeo histoacuterica no desenvolvimento do direito e processo penal justo (referimos agrave
superaccedilatildeo do modelo inquisitorial para o modelo acusatoacuterio) Esses valores reconduzem-se no
essencial ao respeito pelos direitos fundamentais sobretudo o da dignidade da pessoa humana
(ao que nos interessa do arguido) ndash que o processo penal tambeacutem teraacute de observar16 Nesta
senda de ideias aspeto relevante na temaacutetica das proibiccedilotildees de prova eacute a liberdade de
declaraccedilatildeo enquanto direito decorrente da dignidade da pessoa humana que em processo
penal eacute reivindicado ainda que com algumas diferenccedilas de amplitude e alcance tanto pelo
arguido como por outros participantes processuais (testemunhas peritos viacutetima assistente)
No que ao arguido respeita esta liberdade de declaraccedilatildeo assume uma dupla dimensatildeo
positiva (possibilitando ao arguido o direito de intervenccedilatildeo e declaraccedilatildeo em abono da sua defesa
o que implica a cedecircncia de oportunidade para o mesmo se pronunciar sobre os factos contra si
imputados) e negativa (que veda todas as tentativas de obtenccedilatildeo de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias seja por meios enganosos ou coativos) Eacute agrave dimensatildeo negativa da liberdade
de declaraccedilatildeo que COSTA ANDRADE associa o nemo tenetur se ipsum accusare aspeto de extrema
pertinecircncia para a mateacuteria de proibiccedilotildees de prova17
Do exposto resulta claro que o estudo do nemo tenetur se ipsum accusare natildeo poderaacute ser
feito sem ter em consideraccedilatildeo o direito ao silecircncio do arguido processualmente assegurado
(art61ordm nordm1 ald) CPP)
O direito ao silecircncio estaacute incindivelmente relacionado com o direito de cada um a natildeo
contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo ambos bolem com a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova que como adiante veremos natildeo eacute iliacutecita (o arguido pode ser meio
de prova) mas natildeo pode com isso pretender a extraccedilatildeo de declaraccedilotildees incriminadoras Mas
seratildeo o direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo realidades distintas ou
15 Idem ibidem pp117-120
16 Por esse motivo se entende ser o processo penal ldquodireito constitucional aplicadordquo Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual
Penal) pp74-80
17 ANDRADE Manuel da Costa - op cit pp120-121
24
apenas expressotildees diferentes para referir-se agrave mesma realidade e com o mesmo acircmbito de
aplicaccedilatildeo
Muito embora os seus conteuacutedos possam sobrepor-se ou confundir-se a verdade eacute que
ambos apresentam conteuacutedos distintos18 - alguma doutrina e jurisprudecircncia tendem a equiparar
ou a abordar indistintamente estas duas realidades o que natildeo se nos afigura correto por esse
motivo entendemos necessaacuterio precisar e estabelecer a fronteira entre ambas de modo a natildeo
contribuir negligentemente para o propagar dessa confusatildeo
Pegando na deixa de FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE19o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare comporta dois vetores ou corolaacuterios em que o mesmo se materializa direito ao
silecircncio e prerrogativa20 contra a autoincriminaccedilatildeo21 (no mundo anglo-saxoacutenico conhecido por
privilege against self-incrimination) que natildeo tecircm o mesmo conteuacutedo mas se interligam ldquonatildeo lhe
sendo reconhecido [ao arguido] o direito a manter-se em silecircncio o arguido seria obrigado a
pronunciar-se revelando informaccedilotildees que o podem eventualmente prejudicar na medida em que
contribuem para a sua condenaccedilatildeordquo
Para aferirmos o conceito do princiacutepio nemo tenetur teremos primeiramente de definir a
extensatildeo dos seus corolaacuterios pois que o princiacutepio assumiraacute o significado que os seus corolaacuterios
tomarem Importa advertir que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio que
suscita dificuldades mas e sobretudo a compreensatildeo da sua definiccedilatildeo e alcance isto eacute ldquoa 18 RAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p132
19 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash Poderes de Supervisatildeo Direito ao silecircncio e provas proibidas (Parecer) In DIAS Jorge
de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova p38 PINTO Lara Sofia ndash Privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo
versus colaboraccedilatildeo do arguido ndash Case of study revelaccedilatildeo coactiva da password para desencriptaccedilatildeo de dados - resistance is futile (Parecer) In
BELEZA Teresa Pizarro (coord) PINTO Frederico de Lacerda da Costa (coord) ndash Prova Criminal e direito de defesa estudos sobre teoria da
prova e garantias de defesa em processo penal Coimbra Almedina 2010 p104
20 A este propoacutesito discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquoprerrogativardquo contra a autoincriminaccedilatildeo ou ldquodireitordquo agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Cf RAMOS Vacircnia
Costa op citp133 A autora privilegia o termo ldquoprerrogativardquo por se tratar da atribuiccedilatildeo de um direito a uma categoria de sujeitos em particular
que estatildeo numa mesma posiccedilatildeo ldquoprerrogativa que [hellip] consiste no direito atribuiacutedo aos sujeitos suspeitos de terem cometido uma infracccedilatildeo
penal arguidos num processo penal ou mesmo apenas objecto de procedimentos dos quais possa resultar a sua incriminaccedilatildeordquo
21 Uma outra questatildeo terminoloacutegica nos surge neste ponto devemos utilizar a expressatildeo autoincriminaccedilatildeo ou auto-inculpaccedilatildeo Tal como RAMOS
Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e
Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p 176 ldquo[d]oravante utilizar-se-aacute por facilidade de expressatildeo o termo composto ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo ldquoAuto-incriminaccedilatildeordquo deve todavia entender-se aqui num sentido amplo incluindo a contribuiccedilatildeo para o estabelecimento da
proacutepria responsabilidade por infracccedilotildees criminais ou contra-ordenacionais de direito administrativo sancionatoacuterio A expressatildeo ldquoauto-
incriminaccedilatildeordquo eacute poreacutem em bom rigor espeacutecie do geacutenero ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo significa o direito a natildeo colaborar
para a proacutepria qualificaccedilatildeo como autor de um crime O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo abrange mais amplamente o direito a natildeo contribuir para a
declaraccedilatildeo ou pronuacutencia da sua culpa no qual se inclui o direito a natildeo contribuir para o estabelecimento da proacutepria responsabilidade como autor
de contra-ordenaccedilatildeo A expressatildeo ldquoauto-inculpaccedilatildeordquo acentua ainda a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur a todo o direito punitivo [hellip]rdquo
25
precisa demarcaccedilatildeo da respectiva aacuterea de tutelardquo22 ndash determinar o que realmente incorpora o
princiacutepio nemo tenetur e a sua extensatildeo Sendo esta a questatildeo mais tensa duvidosa e discutida
reservamos infra um momento singular e exclusivo para o seu tratamento deixando-nos apenas
neste momento com consideraccedilotildees geneacutericas
A prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo pode ser entendida numa abrangecircncia ampla de
modo a incorporar todos as manifestaccedilotildees de cooperaccedilatildeo incriminatoacuteria com a justiccedila (pex
buscas entrega de documentos exames sanguiacuteneos) Contudo natildeo deve ser entendida na sua
maacutexima amplitude de recusa a qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena desta uacuteltima sair
frustrada apenas eacute um direito a natildeo colaborar para a sua autoincriminaccedilatildeo o que permite a
recusa de fornecimento de prova testemunhal documental ou real que se traduza em
autoincriminaccedilatildeo23 A questatildeo neste plano menos paciacutefica diz respeito agrave aplicaccedilatildeo do princiacutepio
nemo tenetur e sobretudo da prerrogativa contra autoincriminaccedilatildeo nos exames e diligecircncias de
prova realizadas atraveacutes e contra a vontade do arguido e utilizando o seu corpo ndash referimo-nos
aos exames de sangue urina ou saliva frequentemente concretizados para efeitos de anaacutelise de
ADN colheitas de ar expirado (vulgarmente conhecido por ldquosopro no balatildeordquo) entre outros
O direito ao silecircncio24 constitui o nuacutecleo essencial e quase absoluto25 do nemo tenetur e
pode ser entendido em duas dimensotildees numa dimensatildeo restritiva ou minimalista que abarcaraacute
somente a liberdade de declaraccedilatildeo numa aceccedilatildeo tambeacutem restritiva (isto eacute decidir ficar ou natildeo
calado)26 ou numa dimensatildeo ampla27 que natildeo abrange somente o sentido comunicacional
22 ANDRADE Manuel da Costa op cit p127
23 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
Mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit p109 Acoacuterdatildeo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) JB v Switzerland de 3 de maio de
2001 paraacutegrafo 64 disponiacutevel em
httphudocechrcoeint (link) [em linha]
24 Cf RISTORI Adriana Dias Paes ndash Sobre o silecircncio do arguido no interrogatoacuterio no processo penal portuguecircs Coimbra Almedina 2007 p96 ldquoA
etimologia da palavra silecircncio eacute dupla deriva tanto do termo latino silentium significando a abstenccedilatildeo do ato de falar o estado de uma pessoa
que se cala quanto de outro termo latino sileo es ere ni exprimindo a situaccedilatildeo daquele que natildeo revela o seu pensamentordquo
25 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa - O direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contra-
ordenacional portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 2009 p21
26 Defendendo esta aceccedilatildeo PINTO Frederico de Lacerda da Costa ndash Supervisatildeo do mercado legalidade da prova e direito de defesa em processo
de Contra-Ordenaccedilatildeo (Parecer) In DIAS Jorge de Figueiredo [et al] ndash Supervisatildeo direito ao silecircncio e legalidade da prova P95 ndash ldquoo direito ao
silecircncio abrange apenas e soacute o direito a natildeo responder a perguntas ou prestar declaraccedilotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e natildeo abrange
o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em seu poderrdquo PINTO Lara Sofia op cit p109 ldquoo direito ao silecircncio apenas abara a
colaboraccedilatildeo do arguido na sua incriminaccedilatildeo atraveacutes de declaraccedilotildees sobre os fatos que lhe satildeo imputados Portanto apenas estaacute em causa o
meio de prova por declaraccedilotildeesrdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm37298 de 13 de maio de 1998 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes
de Almeida disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] - ldquoUm dos direitos que o processo penal reconhece ao arguido
26
abarcaraacute a declaraccedilatildeo efetuada por outros meios como a entrega de documentos indicaccedilatildeo de
um qualquer facto (por exemplo local da arma do crime entrega da arma do crime) ou seja
todas as formas autoincriminatoacuterias de cooperaccedilatildeo do arguido no processo28 embora se utilize
vulgarmente a expressatildeo direito ao silecircncio para abranger toda esta dimensatildeo
Todavia independentemente da aceccedilatildeo que se adopte sem o direito ao silecircncio o arguido
estaria obrigado a cooperar muitas das vezes fornecendo a proacutepria incriminaccedilatildeo
O direito do arguido ao silecircncio previsto no art61ordm do CPP parece apenas se reportar
para uma dimensatildeo restritiva ou seja para aqueles casos em que o arguido eacute solicitado a
prestar declaraccedilotildees verbais colocando-se por isso num plano de ldquooralidade processualrdquo29
Cremos tal como CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD30 e alguma doutrina portuguesa jaacute
mencionada31 que numa aceccedilatildeo teoacuterica e abstracta ldquoa perspectiva do direito de permanecer
calado eacute sob certo ponto de vista restrita pois compreende unicamente a proibiccedilatildeo de compelir
o acusado a testemunhar contra si proacutepriordquo Tal natildeo significa contudo equiparar e entender
exclusivamente o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare nesta vertente restritiva do direito ao
silecircncio ndash ldquomaior amplitude possui o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo segundo o qual eacute
vedado obrigar a apresentaccedilatildeo de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor
incriminatoacuteriordquo32 Como adiante veremos estatildeo tambeacutem sob a eacutegide do nemo tenetur as
manifestaccedilotildees natildeo-verbais incriminatoacuterias para aleacutem das manifestaccedilotildees verbais ou
comunicacionais que diretamente se relacionam com o direito ao silecircncio e num plano reflexo
com o nemo tenetur (enquanto princiacutepio que tem o direito ao silecircncio como corolaacuterio)
eacute o direito ao silecircncio que consta do artigo 61ordm nordm 1 aliacutenea c) do CPP e que se traduz no direito de o arguido natildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo
27 RAMOS Vacircnia Costa op cit p133
28 Partilhando esta aceccedilatildeo do direito ao silecircncio GARRETT Francisco de Almeida - Sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias de prova e outros temas 1ordf
Ed Porto Fronteira do Caos 2007 pp19 e ss RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp96-97 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da
Costa op cit (parecer) pp43-44 GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de
incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquo[o] natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de
manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
29 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento p 43 disponiacutevel em (link) httpwwwbibliotecadigitalufmgbr [em
linha]
30 Op cit p 52
31 Cf SAacute Liliana da Silva ndash O dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte versus o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa
Ano 27 Nordm107 (julho ndash setembro 2006) p136
32 Idem ibidem
27
LILIANA DA SILVA SAacute numa interpretaccedilatildeo teleoloacutegica ou finaliacutestica do art61ordm CPP considera
que ldquoembora natildeo se possa falar num verdadeiro direito ao silecircncio dado que natildeo se trata de
uma vontade expressa oralmente somos da opiniatildeo [hellip] que a invocaccedilatildeo deste direito [ao
silecircncio] natildeo esteja dependente dos meios utilizados mas dos fins que se pretendem alcanccedilar e
dos interesses que sejam postos em causa designadamente o da auto-incriminaccedilatildeo sob pena
de esses expedientes serem utilizados como forma de contornar um direito fundamental dos
cidadatildeosrdquo 33
Em conclusatildeo tudo isto se relacionada com a necessidade de se conceber o arguido
como sujeito processual soacute se pode falar de um verdadeiro sujeito processual com legitimidade
para intervir e conformar com eficaacutecia o processo penal quando o arguido dotado e sob o
escopo da liberdade de declaraccedilatildeo e autorresponsabilidade tiver a total faculdade para decidir
quando como e se presta declaraccedilotildees ou como toma posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui
objecto do processo34
2 Origens histoacutericas do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
A doutrina portuguesa reconduz a origem do nemo tenetur se ipsum accusare agrave transiccedilatildeo
do processo penal inquisitoacuterio para o processo penal estruturalmente acusatoacuterio35 mais
concretamente agraves reformas verificadas no Reino Unido no seacutec XVII36 como reaccedilatildeo agraves praacuteticas
inquisitoacuterias dos tribunais eclesiaacutesticos (que utilizavam procedimentos excessivamente crueacuteis e
desumanos por forma a obter a confissatildeo dos acusados)
Como eacute conhecimento assente em toda a comunidade juriacutedica o processo penal de
matriz inquisitoacuteria colocava toda a forccedila de um Estado totalitaacuterio ao serviccedilo da investigaccedilatildeo da
verdade material
33 SAacute Liliana da Silva op cit p136 itaacutelico nosso
34 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p122 e DIAS Jorge de Figueiredo op cit (ldquoSobre os sujeitos processuaishellip) p27
35 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal)
p450 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de provahellip) p123 PINTO Lara Sofia op cit p100 MENEZES Sofia Saraiva op
cit p 119 SAacute Liliana da Silva op cit p133
36 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100 e ss
28
A supremacia do Estado sobre o indiviacuteduo eacute caracteriacutestica essencial do processo penal
inquisitoacuterio uma supremacia que se fazia demonstrar pela prevalecircncia dos interesses estaduais
de perseguiccedilatildeo ao crime perante uma derrogaccedilatildeo por completo de quaisquer direitos do
indiviacuteduo-acusado A forccedila punitiva estadual era depositada na figura do juiz que funcionava
como representante do Estado no processo penal e que era titular de todas as competecircncias
processuais o juiz inquiria acusava e julgava O reacuteu era um mero objeto do processo natildeo lhe
sendo reconhecida qualidade de sujeito processual subsequentemente uma total
impossibilidade de intervir no processo para o exerciacutecio da sua defesa (seja carrear elementos
probatoacuterios ou a sua versatildeo sobre os factos)
Como o objetivo primordial do processo penal inquisitoacuterio era a perseguiccedilatildeo ao crime
disfarccediladacamuflada de descoberta da verdade material37 natildeo seria de estranhar que fossem
admitidos todos e quaisquer meios para atingir essa ldquoverdaderdquo onde se incluiacutea a tortura
Descrito de uma maneira bastante sucinta foi este modelo processual ie um processo
penal de estrutura inquisitoacuteria que vigorou na maior parte dos paiacuteses europeus nos seacuteculos XVII
e XVIII38 incluindo Portugal por influecircncia do processo penal canoacutenico (inquisitoacuterio)
O processo penal de estrutura inquisitoacuteria deve a grande maioria das suas origens e
desenvolvimentos ao direito canoacutenico ndash direito que surge no seacuteculo IV aquando da cristianizaccedilatildeo
do Impeacuterio Romano do Ocidente e que convivia ao lado do direito romano Como refere ADRIANA
RISTORI39 em meados do seacuteculo XII constata-se o apogeu do direito canoacutenico e simultaneamente
o processo penal canoacutenico torna-se inquisitoacuterio iniciado ex officio pelo juiz que tivesse
conhecimento de uma infracccedilatildeo com atos secretos para salvaguarda do bom desenvolvimento
da investigaccedilatildeo A 15 de Maio de 1252 com Inocecircncio IV a tortura eacute permitida e eacute aplicada a
Inquisiccedilatildeo ndash instituiccedilatildeo criada em 1216 por Inocecircncio III para combater a heresia visando tal
procedimento obter a confissatildeo do acusado
Em 1582 foi publicada a mais ceacutelebre compilaccedilatildeo de direito canoacutenico realizada por
Graciano monge de Bolonha o Corpus iuris canonici
37 Referimo-nos a uma falsa descoberta da verdade material pois o que se pretendia no processo inquisitoacuterio era tudo menos uma verdade
material jaacute que esta natildeo poderaacute existir sem a observacircncia e respeito dos direitos de defesa do arguido por parte do Estado e os seus oacutergatildeos
representativos Natildeo se pode falar numa descoberta da verdade material sem o processo dar a possibilidade do acusado defender-se dos factos
que lhe satildeo imputados
38 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2004 p61
39 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp30-35
29
Com o Conciacutelio de Latratildeo introduziu-se uma regra particularmente relevante em termos
processuais penais o juramento de verita dicenda que obrigava o acusado a responder com
verdade e honestidade a todos os quesitos do tribunal ldquoO sistema [processual penal] era o do
lsquojuramento ex officiorsquo ou lsquojuiacutezo de Deusrsquo praticado pelos Tribunais da Igreja que consistia em
submeter os suspeitos de heresia apoacutes terem jurado dizer a verdade [verita dicenda] a um
segundo juramento onde atestavam a sua inocecircncia Se o suspeito vacilasse era porque Deus o
considerava culpadordquo40
Todo este procedimento e conceccedilatildeo do processo penal levado a cabo pelos Tribunais do
Santo Ofiacutecio da Inquisiccedilatildeo foi largamente difundido e natildeo tardou a ser adotado pelos Estados O
procedimento canoacutenico que inicialmente era utilizado apenas para as ofensas agrave religiatildeo foi
aproveitado pelos Estados laicos totalitaacuterios durante os seacuteculos XVII e XVIII que muito se
serviram dele para impor e afirmar as suas conceccedilotildees absolutistas
No processo inquisitoacuterio como referimos anteriormente um dos primordiais objetivos era
a imediata puniccedilatildeo do acusado e a confissatildeo encarada como ldquoregina probationum41rdquo a prova
central ou prova rainha conducente agrave descoberta da verdade A tortura aparecia neste
paracircmetro como o meio necessaacuterio e uacutetil para obter a confissatildeo do acusado que se alegasse
inocente Ora num processo com todas estas caracteriacutesticas faacutecil eacute de concluir que o princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare natildeo tinha qualquer importacircncia face agrave obrigaccedilatildeo de dizer a
verdade que incidia sobre o acusado
Com a propagaccedilatildeo dos ideais liberais que defendiam uma conceccedilatildeo relacional entre
Estado e Indiviacuteduo diferente da anterior o paradigma estrutural do processo penal comeccedila a
alterar-se
No centro da problemaacutetica estaacute o ldquoindividuo autoacutenomo dotado com os seus direitos
naturais originaacuterios e inalienaacuteveisrdquo42 O processo penal apresenta-se como o ldquolocalrdquo onde se
constata uma oposiccedilatildeo de interesses e vontades de um lado o Estado que reivindica para si a
puniccedilatildeo das infraccedilotildees penais do outro lado por sua vez o indiviacuteduo que quer evitar qualquer
medida privativa ou restritiva da liberdade e portanto exige defender-se
40 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro ndash dezembro 2006) pp136-137
41 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p62
42 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem p64
30
Nesse sentido para que a lide seja justa exige-se uma igualdade de armas ldquopor isso o
indiviacuteduo natildeo pode ser abandonado ao poder do Estado [tal como acontecia no processo
inquisitoacuterio] antes tem de surgir como verdadeiro lsquosujeitorsquo do processo armado com o seu
direito de defesa e com as suas garantias individuais Deste modo o direito processual penal
torna-se em uma ordenaccedilatildeo limitadora do poder do Estado em favor do indiviacuteduo acusado numa
espeacutecie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadatildeordquo43 Todas estas
consideraccedilotildees serviram de mote a que o processo penal tomasse uma estrutura acusatoacuteria
afastando as matrizes inquisitoacuterias da idade medieval
Um processo penal de estrutura acusatoacuteria assenta na separaccedilatildeo entre a entidade
julgadora e a entidade que investiga (e consequentemente acusa) ou seja estas satildeo
necessariamente entidades distintas O processo penal de estrutura acusatoacuteria ldquopurordquo que hoje
ainda encontramos em grande parte dos paiacuteses anglo-saxoacutenicos (como o processo penal inglecircs)
eacute um processo de partes bastante proacuteximo do processo civil
CLAUS ROXIN a propoacutesito do estudo da posiccedilatildeo juriacutedica dos sujeitos no processo penal
apresenta uma sucinta e clara caracterizaccedilatildeo deste tipo de modelo processual penal baseando-
se no processo penal inglecircs ldquo[e]l proceso penal ingleacutes en su forma claacutesica [hellip] evita este dilema
por medio de la conformacioacuten del proceso penal como un procedimiento de partes El intereacutes
estatal en la persecucioacuten penal es salvaguardado por el representante de la acusacioacuten los
intereses del imputado los representa el defensor ambos realizan en lo esencial los
interrogatorios del acusado y de los testigos y por cierto en especial a traveacutes del interrogatorio
cruzado caracteriacutestico del proceso penal ingleacutes Por consiguiente las partes ejercen el dominio
del procedimiento y pueden tambieacuten (asiacute como en el proceso civil alemaacuten) disponer del objeto
del proceso por medio del desistimiento de la acusacioacuten o de la declaracioacuten de culpabilidad por
parte del acusado El juez no reuacutene los fundamentos de la sentencia a traveacutes de medidas de
investigacioacuten propias sino que dirige el juicio [hellip] soacutelo como una especie de aacuterbitro imparcial
que finalmente dicta la sentencia junto con el jurado sobre la base de los elementos de cargo y
de descargo reunidos por las ldquopartesrdquo Se habla aquiacute de un lsquoproceso acusatorio purorsquo porque
soacutelo los hechos alegados por la acusacioacuten pueden conducir a una condenardquo44
43 Idem ibidem
44 ROXIN Claus ndash Derecho procesal penal (trad de la 25ordf ed alemana de Gabriela E Coacuterdoba y Daniel R Pastor revisada por Julio B J Maier) 1
ordf Ed 2ordf Reimp Buenos Aires Editores del Puerto 2003 p122
31
Valem portanto neste modelo processual princiacutepios como o contraditoacuterio a igualdade de
armas o dispositivo (disponibilidade das partes sob o objeto do processo) a
autorresponsabilidade probatoacuteria (com a subsequente reparticcedilatildeo do oacutenus da prova entre as
partes) e a presunccedilatildeo da inocecircncia do acusado ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva Satildeo estas as linhas
caracterizadoras do processo penal acusatoacuterio que numa feiccedilatildeo mais antiga poderiacuteamos
assinalar como tendo como partes o arguido e o ofendido e numa feiccedilatildeo mais moderna e atual ndash
que ainda hoje se verifica em paiacuteses anglo-saxoacutenicos ndash o arguido e o Ministeacuterio
PuacuteblicoPromotor Puacuteblico45
Esta conceccedilatildeo processual penal ganha o seu maior predomiacutenio e influecircncia na Inglaterra
com a ideologia liberal que se propaga com a Magna Charta Libertatum46 (1215)de Joatildeo-se-
Terra quando paralelamente em toda a Europa Continental o processo inquisitoacuterio eacute difundido e
aplicado (soacute mais tarde com o apogeu dos ideais Iluministas47 eacute que a Europa continental
reivindicou as conceccedilotildees fundamentais do processo acusatoacuterio)
Como referimos eacute este momento de transiccedilatildeo da estrutura processual penal inquisitoacuteria
na Inglaterra para a estrutura acusatoacuteria que a doutrina aponta como a geacutenese do princiacutepio
nemo tenetur se ipsum accusare
45 Importa advertir que o Ministeacuterio Puacuteblico neste modelo processual penal natildeo desempenha a mesma funccedilatildeo que o Ministeacuterio Puacuteblico
desenvolve em Portugal no primeiro caso o Ministeacuterio Puacuteblico eacute parte processual quer ganhar a lide quer a condenaccedilatildeo do acusado
contrariamente no nosso paiacutes o Ministeacuterio Puacuteblico apresenta-se como representante dos interesses do Estado e da comunidade e colaborador
do tribunal na justa aplicaccedilatildeo do direito e na descoberta da verdade material (art53ordm Coacutedigo Processo Penal) natildeo prosseguindo sempre a
condenaccedilatildeo do acusado
46 ldquoNo free man shall be taken or imprisoned or disseised or outlawed or exiled or in any way destroyed nor will we go upon him nor will we
send upon him except by legal judgement of his peers or by the law of the landrdquo ndash garantia fundamental inscrita na Magna Charta como forma
de controlar os atos arbitraacuterios praticados pela Coroa Cf RISTORI Adriana Dias Paes op cit p36
47 Com o despoletar das Revoluccedilotildees Liberais mais concretamente com a Revoluccedilatildeo Francesa as legislaccedilotildees dos Estados que ateacute entatildeo era
influenciadas pelo pensamento canoacutenico-inquisitoacuterio comeccedilam a modificar-se sobretudo devido agraves criacuteticas apontadas por diversos pensadores
onde se destacam BECCARIA VOLTAIRE e HOBBES BECCARIA na sua obra ldquoDos delitos e das penasrdquo (1766) acaba mesmo por ridicularizar os
procedimentos baseados na tortura ldquo[u]ma crueldade consagrada pelo uso na maior parte das naccedilotildees eacute a tortura do reacuteu enquanto se forma o
processo ou para obrigaacute-lo a confessar um delito ou pelas contradiccedilotildees em que incorre ou para descoberta dos cuacutemplices ou para natildeo sei que
metafiacutesica e incompreensiacutevel purgaccedilatildeo da infacircmia ou finalmente por causa de outros delitos de que poderia ser culpado mas de que natildeo eacute
acusado Um homem natildeo pode ser dito reacuteu antes da sentenccedila do juiz nem a sociedade pode retirar-lhe a protecccedilatildeo puacuteblica senatildeo quando se
tenha decidido que ele violou os pactos com os quais essa protecccedilatildeo lhe foi concedida [hellip] Natildeo eacute novo este dilema o delito ou eacute certo ou
incerto se eacute certo natildeo lhe conveacutem outra pena senatildeo a estabelecida pela lei e inuacuteteis satildeo as torturas porque inuacutetil eacute a confissatildeo do reacuteu se eacute
incerto entatildeo natildeo deve torturar-se um inocente porque eacute inocente segundo as leis o homem cujos delitos natildeo estatildeo provados [hellip] eacute querer
confundir a ordem das coisas o exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusadordquo ndash Cf BECCARIA ndash Dos delitos e das penas
(trad Joseacute de Faria Costa) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1998 pp92-93
32
O princiacutepio apresenta-se como um elemento proacuteprio do processo penal acusatoacuterio que
surge como reaccedilatildeo aos processos de natureza inquisitoacuteria que transformavam o arguido em
instrumento da sua proacutepria condenaccedilatildeo48
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare entendido como a impossibilidade do
arguido ser fraudulentamente coagido a contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo tem pois o seu
surgimento associado agrave definiccedilatildeo de limites na busca da verdade material e na perseguiccedilatildeo ao
crime de modo a evitar a ocorrecircncia dos abusos que eram tiacutepicos do processo inquisitoacuterio
Se por um lado a doutrina eacute unacircnime em admitir a origem anglo-saxoacutenica do princiacutepio o
mesmo jaacute natildeo acontece todavia quanto agrave determinaccedilatildeo do momento preciso do seu
aparecimento Entre noacutes COSTA ANDRADE49 refere que o nemo tenetur triunfou no direito inglecircs a
partir de 1679 configurado como ldquocriteacuterio seguro de demarcaccedilatildeo e de fronteira entre o processo
de estrutura acusatoacuteria e as manifestaccedilotildees de processo inquisitoacuteriordquo LARA SOFIA PINTO50 por sua
vez associa o nascimento do nemo tenetur ao ano de 1641 data em que o Parlamento Inglecircs
aboliu o juramento ex officio pelos tribunais reconhecendo a doutrina da common law que o
indiviacuteduo natildeo pode ser encarado como instrumento abusivo da proacutepria condenaccedilatildeo
Por seu turno VAcircNIA COSTA RAMOS51 aponta o direito a ser assistido por advogado ndash direito
que foi garantido em 1836 pela lei Act of enabling persons indicted of Felony to make their
defence by Counsel or Attorney ndash como o nascimento real e concreto do nemo tenetur Este
princiacutepio reforccedilou-se com a consagraccedilatildeo positivada do direito ao silecircncio do suspeito e da
obrigaccedilatildeo do Juiz de Instruccedilatildeo informar o arguido desse direito em 1848 no Act to facilitate the
Performance of the Duties of Justices of the Peace out of Sessions within England and Wales with
respect to Persons charged with Indictable Offences Com o mesmo entendimento a Uniatildeo
48 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p37
49Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p123
50 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p100
51 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash
Parte I Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm 108 (outubro ndash dezembro 2006) pp137-138 Nas palavras da autora o princiacutepio
encontrava-se estabelecido na common law em meados do seacuteculo XVII com a aboliccedilatildeo do juramento ex officio e sobretudo com o argumento
que subjaz essa aboliccedilatildeo ndash o direito que o suspeito tinha em recusar a testemunhar contra si mesmo todavia esta existecircncia apenas se
verificava num plano abstracto jaacute que concretamente o suspeito continuava obrigado a no iniacutecio da audiecircncia se declarar culpado ou inocente
e a responder com verdade perante o Juiz de Instruccedilatildeo Tendo em conta que os jurados julgavam em funccedilatildeo das suas convicccedilotildees pessoais se o
arguido optasse por ficar calado o mesmo significava admitir a sua culpa Com o incremento do direito agrave assistecircncia por advogado este
panorama altera-se pois o acusador teria agora de se confrontar perante o advogado e natildeo perante o arguido que podia optar por ficar calado
porque outro (o advogado) respondia por si Com a mesma opiniatildeo RISTORI Adriana Dias Paes op cit p39
33
Europeia no Livro Verde da Comissatildeo sobre as garantias processuais dos suspeitos e arguidos
em procedimento penais na Uniatildeo Europeia COM (2003) 75 final52 reitera a importacircncia da
assistecircncia em processo penal do arguido por defensor de forma a tutelar um maior
conhecimento e exerciacutecio dos seus restantes direitos (de defesa)
Paulatinamente o princiacutepio veio a ser incorporado nos Estados de Direito modernos e em
documentos internacionais como princiacutepio essencial do processo penal O primeiro exemplo
mais relevante reporta-se agrave Constituiccedilatildeo Federal Americana ndash cujo texto original promulgado em
17 de Setembro de 1787 era omisso neste ponto ndash concretamente agrave sua V Amendment
(1791) que criou de forma inequiacutevoca o ldquoprivilege against self-incriminationrdquo declarando que
ldquoningueacutem eacute obrigado no processo criminal a ser testemunha contra si mesmordquo53 O
entendimento do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo sofreu vaacuterias mutaccedilotildees ao longo de
duzentos anos da Histoacuteria Americana - desde a sua ingressatildeo na Quinta Emenda ateacute agrave decisatildeo
do Supreme Court em 1966 no ceacutelebre caso Miranda v Arizona54
Seguindo de perto LARA SOFIA PINTO55 inicialmente este princiacutepio era visto como um direito
contra uma autoincriminaccedilatildeo induzida pelo Estado isto eacute o Estado apenas podia acionar o
poder punitivo quando existissem indiacutecios suficientes ndash estes natildeo podiam ser colhidos atraveacutes de
declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias (o Estado natildeo podia induzir o defendant a fazer declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias) ndash da praacutetica de um crime o que proibia a interrogaccedilatildeo do defendant antes
de haver uma acusaccedilatildeo e limitaccedilotildees ao interrogatoacuterio apoacutes a acusaccedilatildeo O oacutenus da prova da
responsabilidade penal estava assim do lado do Estado que por sua vez natildeo podia impor ao
suspeito a colaboraccedilatildeo para estabelecer essa responsabilidade Pretendia-se salvaguardar a
estrutura acusatoacuteria importada do Reino Unido
A partir de meados do seacuteculo XIX haacute um afrouxamento da estrutura acusatoacuteria pelos
tribunais americanos que comeccedilam a permitir detenccedilotildees e interrogatoacuterios feitos pela poliacutecia 52 Comissatildeo Europeia - Livro Verde da Comissatildeo - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na Uniatildeo Europeia
[em linha] Disponiacutevel em
httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTqid=1459459763758ampuri=CELEX52003DC0075
ldquoA questatildeo fundamental eacute provavelmente a que diz respeito agrave assistecircncia judiciaacuteria e agrave representaccedilatildeo por um defensor O suspeito ou arguido
que tem um advogado estaacute em situaccedilatildeo incontestavelmente mais favoraacutevel no que se refere ao exerciacutecio dos seus outros direitos em parte
porque as suas oportunidades para ser informado destes direitos satildeo maiores e tambeacutem porque um advogado prestaraacute a sua assistecircncia no
sentido de os seus direitos serem respeitadosrdquo ndash p22
53 Com o texto original ldquoNo person (hellip) shall be compelled in any criminal case to be witness against himselfrdquo
54 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp100-104
55 Idem Ibidem
34
mesmo natildeo havendo acusaccedilatildeo Tal verifica-se pela aceitaccedilatildeo na jurisprudecircncia americana da
doutrina probatoacuteria da confissatildeo (confession doctrine) que incidia sobre as confissotildees
voluntaacuterias ndash estas que detinham um maior grau de fiabilidade em detrimento das confissotildees
forccediladas ndash obtidas fora da audiecircncia Os tribunais americanos aplicavam esta confession
doctrine agraves declaraccedilotildees incriminatoacuterias obtidas pela poliacutecia nos interrogatoacuterios em vez de aplicar
a Quinta Emenda que colidia com esta praacutetica policial
O famoso caso Miranda v Arizona56 trouxe grandes modificaccedilotildees de entre as quais se
destaca a extensatildeo da aplicaccedilatildeo da Quinta Emenda inerentemente do privilege against self-
incrimination natildeo apenas agrave fase de julgamento (entendimento que reinava na jurisprudecircncia
americana) mas tambeacutem agraves fases anteriores ao julgamento inclusive interrogatoacuterios policiais ndash
tambeacutem aqui o indiviacuteduo deve ter o direito de optar entre falar ou manter-se calado
Na decisatildeo do caso Miranda v Arizona57 o Supreme Court dos Estados Unidos
estabeleceu os denominados Miranda Rights58 que pretendiam em suma impor a advertecircncia
ao indiviacuteduo antes do interrogatoacuterio policial dos seus direitos constitucionais de defesa com
vista a que uma eventual confissatildeo obtida neste momento processual fosse validamente
admitida ndash caso contraacuterio o natildeo respeito por estes direitos tornariam a confissatildeo inadmissiacutevel e
56 Cf O texto da US Supreme Court - Miranda v Arizona 384 US 436 (1966) Disponiacutevel em httpssupremejustiacom (link) [em linha]
Sinteticamente Ernesto Miranda foi detido em sua casa (a 13 de marccedilo 1963) e levado para um distrito policial de Phoenix (Estado de Arizona)
por ser suspeito de ter praticado o crime de rapto e violaccedilatildeo Em Phoenix a viacutetima foi identificada e Miranda foi submetido a interrogatoacuterio
policial realizado por dois agentes No termo do interrogatoacuterio os agentes tinham em sua posse uma confissatildeo assinada por Miranda onde se
fazia menccedilatildeo a uma claacuteusula que afirmava a realizaccedilatildeo voluntaacuteria da confissatildeo e com pleno conhecimento dos direitos legais do suspeito Em
audiecircncia os agentes admitiram que Miranda natildeo foi advertido antes do iniacutecio do interrogatoacuterio que teria direito agrave assistecircncia por um advogado
A confissatildeo foi admitida como prova sendo Miranda condenado pelos crimes que havia sido detido ndash embora tenha existido contestaccedilatildeo do
advogado de defesa por entender que os direitos constitucionais de Miranda natildeo tinham sido respeitados Interposto recurso o Supremo Tribunal
do Arizona confirmou a sentenccedila de condenaccedilatildeo confirmando a tese de natildeo ter ocorrido qualquer violaccedilatildeo dos direitos de Miranda na obtenccedilatildeo
da confissatildeo A 13 de junho de 1966 o Supreme Court dos Estados Unidos anulou a condenaccedilatildeo por entender que do depoimento dos agentes
e da confissatildeo de Miranda ficou claro que o reacuteu natildeo teria sido informado do direito agrave assistecircncia no interrogatoacuterio por advogado e o direito a natildeo
ser coagido agrave autoincriminaccedilatildeo Concluiu o tribunal embora existisse no iniacutecio da confissatildeo a claacuteusula que atestava a sua voluntariedade e o
perfeito conhecimento dos direitos legais tal natildeo implicava de forma imediata uma renuacutencia consciente e intencional aos direitos constitucionais
de defesa de Miranda por forma a validar a confissatildeo
57 Cf PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp103-104 RISTORI Adriana Dias Paes op cit pp43-44 e WARREN Earl ndash Homem prevenido os
direitos de Miranda Revista Sub Judice nordm12 (janeiro ndash julho 1998) pp104-114
58 De entre os direitos estipulados eacute relevante realccedilar ldquoa pessoa deve ser esclarecida antes de qualquer interrogatoacuterio de que tem direito a
guardar silecircncio que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ela no tribunal que tem o direito agrave presenccedila de um advogado e que se natildeo
tiver recursos para pagar um ser-lhe-aacute designado um antes de qualquer interrogatoacuterio se ela assim o desejar no decorrer do interrogatoacuterio
deve lhe ser dada oportunidade de exercer estes direitos depois de prestadas estas informaccedilotildees e concedida tal oportunidade a pessoa pode
voluntaacuteria e conscientemente renunciar a esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer um depoimentordquo ndash WARREN Earl op
cit pp 104-114
35
portanto natildeo atendiacutevel para efeitos de futura condenaccedilatildeo Os Miranda Rights funcionavam como
uma garantia procedimental do privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
Vigente na maioria dos ordenamentos juriacutedicos processuais penais dos Estados de Direito
o princiacutepio nemo tenetur estaacute tambeacutem inscrito em vaacuterios diplomas legislativos internacionais
sobre Direitos do Homem Realccedilamos desde jaacute o art14ordm III alg) do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Poliacuteticos (PIDCP) da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas (ONU) que dispotildee ldquo[i]n the
determination of any criminal charge against him everyone shall be entitled to the following
minimum guarantees in full equality not to be compelled to testify against himself or it confess
guiltrdquo bem como o art 6ordm da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) onde o
nemo tenetur aparece como corolaacuterio essencial do fair trial59 Tendo em conta que a definiccedilatildeo de
fair trial eacute abordada em vaacuterios instrumentos normativos internacionais como eacute o caso do PIDCP
mais concretamente no seu art14ordm que eacute mais extenso na enumeraccedilatildeo dos direitos para um
processo equitativo do que o art6ordm da CEDH o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
(TEDH) tende a complementar as disposiccedilotildees da CEDH com as do PIDCP ldquoAssim acontece com
a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo de forma expressa apenas prevista no Pacto no artigo
14 nordm3 alg) mas sem duacutevida implicitamente prevista no artigo 6ordm CEDH pois a proibiccedilatildeo de
uma autoincriminaccedilatildeo forccedilada como reconhece o TEDH eacute a essecircncia do fair trialrdquo60
Quanto agrave consagraccedilatildeo do princiacutepio no ordenamento juriacutedico portuguecircs na sua vertente do
direito ao silecircncio a primeira concretizaccedilatildeo legal surge com o Decreto de 28 de dezembro de
1910 onde se estabeleceu que o reacuteu natildeo poderia ser obrigado a responder em audiecircncia de
julgamento com exceccedilotildees agraves questotildees referentes agrave sua identidade61
O Coacutedigo de Processo Penal de 1929 consagrou igualmente o direito ao silecircncio apenas
limitado pela obrigaccedilatildeo do arguido ter de declarar com verdade relativamente agrave sua identificaccedilatildeo
59 RAMOS Vacircnia Costa op cit pp139-141 Partilhamos o conceito de fair trial apresentado pela autora que adverte para o facto de se tratar de
um conceito que apenas se pode determinar concretamente natildeo podendo recorrer-se uma definiccedilatildeo abstracta que elenque exaustivamente
todos os componentesrequisitos de um processo equitativo De todo o modo ainda eacute possiacutevel apresentar um rascunho geneacuterico sobre o
conceito de fair trial que contenderaacute obrigatoriamente com a ldquopossibilidade de os sujeitos processuais ndash as partes ndash defenderem a sua pretensatildeo
numa posiccedilatildeo natildeo inferior agrave dos outros sujeitosrdquo faculdade que se materializa nos princiacutepios do contraditoacuterio e da igualdade de armas ldquoNo
acircmbito do processo penal as garantias do processo equitativo do nordm1 do artigo 6ordm CEDH foram alvo de uma concretizaccedilatildeo no nordm3 do artigo 6ordm
devido agrave extrema importacircncia do princiacutepio nos processos daquela naturezardquo enumeraccedilatildeo que natildeo tem caraacutecter exaustivo
60 Idem ibidem
61 Para maiores desenvolvimentos consultar DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp9-14
36
pessoal e antecedentes criminais LUIacuteS OSOacuteRIO62 no comentaacuterio ao art280ordm do Coacutedigo de 1929
acaba por referir que existem duas espeacutecies de questotildees as que se destinam a identificar o reacuteu
incidindo sobre elas um dever de verdade e as que se destinam a instruir o processo Quanto agraves
segundas o reacuteu pode ficar calado recusar-se a responder ou ateacute mesmo mentir mas ldquonatildeo pode
evitar que o juiz tire do silecircncio ou da recusa as conclusotildees que [e]sse comportamento do reacuteu
pode autorizarrdquo Interessante tambeacutem eacute o facto de que o mesmo autor na mesma anotaccedilatildeo ao
art280ordm entende que o juiz natildeo era obrigado a avisar o arguido de que poderia deixar de
responder agrave segunda espeacutecie de questotildees63
ldquoAo longo deste periacuteodo agrave consagraccedilatildeo formal do nemo tenetur na vertente do direito ao
silecircncio natildeo correspondia poreacutem uma verdadeira realizaccedilatildeo efetiva Embora o arguido pudesse
remeter-se ao silecircncio durante o primeiro interrogatoacuterio e na audiecircncia nada impedia a utilizaccedilatildeo
de uma confissatildeo preacutevia como prova contra si mesmo que tivesse sido obtida com desrespeito
pela sua liberdade [hellip Ademais] admitia-se a valoraccedilatildeo negativa do silecircncio64 como
demonstraccedilatildeo de natildeo arrependimento ou mesmo como iacutendice de culpabilidade ou confissatildeordquo65
A isto somava-se a natildeo fundamentaccedilatildeo das decisotildees que consequentemente natildeo permitia um
controlo da sentenccedila a fim de perceber se a mesma estava ou natildeo baseada no silecircncio do reacuteu
Em 1987 com o novo e atual Coacutedigo de Processo Penal o direito ao silecircncio eacute
verdadeiramente consagrado no ordenamento juriacutedico portuguecircs pois para aleacutem da expressa
inscriccedilatildeo positiva no Coacutedigo (art61ordm nordm1 ald)) o direito eacute acompanhado pela impossibilidade
de valoraccedilatildeo negativa pelo julgador do silecircncio do arguido da estipulaccedilatildeo do regime de
proibiccedilotildees de prova ndash que impedem a utilizaccedilatildeo das provas obtidas em violaccedilatildeo ao direito ao
silecircncio ndash da obrigaccedilatildeo constitucionalmente estipulada de fundamentaccedilatildeo das decisotildees e da
proibiccedilatildeo de utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees anteriores do arguido66
62 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira ndash Comentaacuterio ao coacutedigo de processo penal portuguecircs Coimbra Coimbra Editora 1933
Volume 4 pp158 e ss
63 BATISTA Luiacutes Osoacuterio da Gama e Castro de Oliveira op cit p160
64 Num momento posterior da dissertaccedilatildeo analisaremos esta particular problemaacutetica da valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido pois que existem
autores que repudiam uma qualquer valoraccedilatildeo negativa (ou seja em desfavorecimento do arguido) do silecircncio e outros que admitem essa
mesma valoraccedilatildeo contra reum
65 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p13
66 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p 14
37
Tal como jaacute se verificava na legislaccedilatildeo anterior tambeacutem o Coacutedigo de 1987 manteacutem a
obrigatoriedade de responder com verdade agraves questotildees relativas agrave identidade do arguido
(art342ordm nordm2 CPP)
O Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 6959567 de 5 de Dezembro de 1995 teve a
oportunidade de abordar a questatildeo da inconstitucionalidade do art342ordm68 nordm2 CPP que na
redaccedilatildeo vigente agrave data da apreciaccedilatildeo judicial constitucional permitia o questionamento ao
arguido pelo juiz-presidente em audiecircncia de julgamento sobre os seus antecedentes criminais
Por sua vez o nordm3 do preceito legal em causa impunha (com a mesma redaccedilatildeo que consta
atualmente o nordm2 do art342 CPP) a advertecircncia pelo juiz-presidente ao arguido que agraves
perguntas feitas nomeadamente as referentes agrave identificaccedilatildeo pessoal e aos antecedentes
criminais deveria responder com verdade sendo que a falta de resposta ou a falsidade nas
declaraccedilotildees implicavam a responsabilidade penal do arguido pelos crimes de desobediecircncia
previsto e punido atualmente pelo art348ordm do Coacutedigo Penal e o crime de falsas declaraccedilotildees
previsto e punido atualmente pelo art348ordm-A do Coacutedigo Penal
O Tribunal foi interrogado sobre se o art342ordm nordm2 exigindo a resposta acerca dos
antecedentes criminais em audiecircncia violaria as garantias de defesa inscritas na Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa no art32ordm nordm1 nordm 2 e nordm 5 respectivamente o princiacutepio da plenitude de
defesa o princiacutepio da presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido o princiacutepio do contraditoacuterio (imposto
pela 2ordf parte do nordm5 do art32ordm CRP) e a estrutura acusatoacuteria do processo penal portuguecircs
O Tribunal Constitucional enquadrou a questatildeo suscitada no plano dos direitos e deveres
processuais reconhecidos ao arguido no nosso processo penal designadamente o direito a natildeo
responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e
sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que sobre elas prestar (art61ordm nordm1 ald) CPP)
comummente reconhecido por ldquodireito ao silecircnciordquo ndash que o proacuteprio Coacutedigo admite ter algumas 67 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 de 5 de dezembro de 1995 relatado pelo Conselheiro Viacutetor Nunes de Almeida disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
68 Era o seguinte o teor do preceito
ldquoArtigo 342ordm
1 O presidente comeccedila por perguntar ao arguido pelo seu nome filiaccedilatildeo freguesia e concelho de naturalidade data de
nascimento estado civil profissatildeo residecircncia e se necessaacuterio pede-lhe a exibiccedilatildeo de documento oficial bastante de identificaccedilatildeo
2 Em seguida o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal
que contra ele neste momento corra lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido se necessaacuterio o certificado de registo criminal
3 O presidente adverte o arguido de que a falta de resposta agraves perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer
incorrer em responsabilidade penalrdquo
38
exceccedilotildees como a que consta no art61ordm nordm3 alb) CPP (o dever processual do arguido em
responder com verdade agraves perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade69)
Todavia concluiu o Tribunal que o princiacutepio de que o processo penal asseguraraacute todas as
garantias de defesa ao arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquotem como conteuacutedo essencial a exigecircncia de
que o arguido seja tratado como sujeito e natildeo como objecto do procedimento penalrdquo70
para tal a Constituiccedilatildeo garante ao arguido um direito de defesa que se concretiza nos diversos
direitos processuais autoacutenomos que a lei prevecirc e que satildeo exercidos durante todo o processo
penal (onde se enquadra o direito a ser ouvido nos termos do art61ordm nordm1 al b) e o direito ao
silecircncio por forccedila do art61ordm nordm1 al d) ambos previstos no CPP) mas tambeacutem a presunccedilatildeo de
inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm2 CRP) Neste sentido o cerne da
questatildeo encontrava-se em saber se o dever de responder a perguntas sobre os seus
antecedentes criminais formuladas no iniacutecio da audiecircncia de julgamento violava o direito ao
silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido
O Tribunal Constitucional tomou posiccedilatildeo no sentido de verificar uma violaccedilatildeo pelo
art342ordm nordm2 CPP do princiacutepio constitucional das garantias de defesa por entender que a
obrigatoriedade de resposta agraves perguntas sobre os antecedentes criminais transformava o
arguido de sujeito em objeto do processo pois ficaria retirada ao arguido a possibilidade de
prestar declaraccedilotildees no momento que lhe conviesse tendo de prestar numa altura em que natildeo
se iniciaram sequer as diligecircncias probatoacuterias ou seja ldquosem qualquer possibilidade de o arguido
poder evitar eventual irradiaccedilatildeo daquelas declaraccedilotildees sobre o objecto do processordquo Entendeu
tambeacutem que a norma questionada viola o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia porque ldquoos factos
referentes aos antecedentes criminais e agrave pendecircncia de outros processos constituem ainda
mateacuteria da acusaccedilatildeo que o arguido natildeo pode ser coagido a revelar como tambeacutem porque ainda
natildeo estaacute feita a prova do facto tiacutepico iliacutecito e culposo no momento em que eacute exigida a
comunicaccedilatildeo daqueles factosrdquo71 72
69 Aquando deste acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional o art61ordm nordm3 alb) imponha para aleacutem das perguntas referentes agrave identidade do arguido a
resposta com verdade sobre os antecedentes criminais
70 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
71Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 14 onde se cita o estudo de PALMA Maria Fernanda - A constitucionalidade do artigo 342ordm
do Coacutedigo de Processo Penal (O direito ao silecircncio do arguido) Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 15 nordm60 (outubrodezembro 1994)
pp105-106
A autora adverte tambeacutem que ldquoo conhecimento dos antecedentes criminais e de outros processos pendentes pode criar no julgador uma
presunccedilatildeo empiacuterica de culpa do agenterdquo (p106) Quanto agrave violaccedilatildeo das garantias de defesa pelo art342ordm do CPP MARIA FERNANDA PALMA
39
3 Previsatildeo legal natureza e fundamentos constitucionais do nemo tenetur se
ipsum accusare
Haacute unanimidade na doutrina e jurisprudecircncia constitucional quanto agrave vigecircncia do nemo
tenetur no ordenamento juriacutedico portuguecircs
Contrariamente ao que sucede nas Constituiccedilotildees Espanhola (art17ordm nordm3 e 24ordm nordm2)73
Brasileira74 (art5ordm LXIII) Argentina75 (art18ordm) e Americana76 (5ordf Emenda) em que o princiacutepio
entende que ldquoo exerciacutecio da defesa implica uma relaccedilatildeo de diaacutelogo no tribunal que se deteriora na medida em que agrave posiccedilatildeo do arguido for
retirada a qualidade de sujeito sobrecarregando-a com deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo proacuteprios de uma fase de investigaccedilatildeordquo (p107)
para aleacutem que ldquoum respeito miacutenimo pelas garantias de defesa implicaraacute que nos termos do artigo 343ordm nordm1 o arguido possa prestar
declaraccedilotildees relativas ao objecto do processo em qualquer momento da audiecircnciardquo (p107) Conclui assim que o art342ordm viola tambeacutem as
garantias de defesa do arguido asseguradas pelo art32ordm nordm1 CRP pois abrangem os direitos de declaraccedilatildeo e silecircncio relativos aos factos que
constituem objecto do processo ldquoesta violaccedilatildeo verifica-se porque os antecedentes criminais [hellip] se repercutem no juiacutezo sobre a personalidade do
arguido manifestada no facto ndash e por conseguinte na culpa do facto que eacute indubitavelmente objecto do processordquo (p109)
72 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit criticam a pouca ousadia do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm69595 pois para os
autores o mesmo argumento que o Tribunal adotou para determinar a inconstitucionalidade do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade do arguido no iniacutecio do julgamento responder sobre os seus antecedentes criminais deveria igualmente valer para o primeiro
interrogatoacuterio do arguido ldquonatildeo soacute porque este faz entatildeo declaraccedilotildees para o processo a que mais tarde o juiz de julgamento teraacute acesso faacutecil
mas porque essas declaraccedilotildees satildeo feitas perante o juiz de instruccedilatildeo que pode dentro das suas competecircncias aplicar-lhe medida de coaccedilatildeo
Deste modo aleacutem de fornecer indiretamente indicaccedilotildees sobre os seus antecedentes criminais ao juiz de julgamento o arguido contribui direta e
ativamente para a criaccedilatildeo de uma imagem negativa a seu respeito perante a entidade competente para aplicar medidas de coaccedilatildeo (maxime
prisatildeo preventiva)rdquo ndash pp20-21 Atualmente com a redaccedilatildeo dada Lei nordm202013 o art141ordm CPP natildeo inclui no seu nordm3 as perguntas referentes
aos antecedentes criminais
73 ldquoArtiacuteculo 17 ndash Derecho a la libertad personal 3 Toda persona detenida debe ser informada de forma inmediata y de modo que le sea
comprensible de sus derechos y de las razones de su detencioacuten no pudiendo ser obligada a declarar Se garantiza la asistencia de abogado al
detenido en las diligencias policiales y judiciales en los teacuterminos que la ley establezcardquo ldquoArtiacuteculo 24 - Proteccioacuten judicial de los derechos 2
Asimismo todos tienen derecho al Juez ordinario predeterminado por la ley a la defensa y a la asistencia de letrado a ser informados de la
acusacioacuten formulada contra ellos a un proceso puacuteblico sin dilaciones indebidas y con todas las garantiacuteas a utilizar los medios de prueba
pertinentes para su defensa a no declarar contra siacute mismos a no confesarse culpables y a la presuncioacuten de inocencia La ley regularaacute los casos
en que por razoacuten de parentesco o de secreto profesional no se estaraacute obligado a declarar sobre hechos presuntamente delictivosrdquo
74 Reza assim o artigo 5ordm inciso LXIII da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil de 1988 ldquoo preso seraacute informado de seus direitos
entre os quais o de permanecer calado sendo-lhe assegurada a assistecircncia da famiacutelia e de advogadordquo
75 ldquoArtiacuteculo 18 Ninguacuten habitante de la Nacioacuten puede ser penado sin juicio previo fundado en ley anterior al hecho del proceso ni juzgado por
comisiones especiales o sacado de los jueces designados por la ley antes del hecho de la causa Nadie puede ser obligado a declarar contra siacute
mismo ni arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente Es inviolable la defensa en juicio de la persona y de los derechos
El domicilio es inviolable como tambieacuten la correspondencia epistolar y los papeles privados y una ley determinara en queacute casos y con queacute
justificativos podraacute procederse a su allanamiento y ocupacioacuten Quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas poliacuteticas toda
especie de tormento y los azotes Las caacuterceles de la Nacioacuten seraacuten sanas y limpias para seguridad y no para castigo de los reos detenidos en
ellas y toda medida que a pretexto de precaucioacuten conduzca a mortificarlos maacutes allaacute de lo que aquella exija haraacute responsable al juez que la
autoricerdquo
76 Fifth Amendment to the United States Constitution ldquoNo person shall be held to answer for a capital or otherwise infamous crime unless on a
presentment or indictment of a Grand Jury except in cases arising in the land or naval forces or in the Militia when in actual service in time of
War or public danger nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb nor shall be compelled in
40
estaacute explicitamente inscrito ndash seja na vertente de direito ao silecircncio ou na de privileacutegio contra a
autoincriminaccedilatildeo ndash na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa natildeo existe qualquer consagraccedilatildeo
expressa do nemo tenetur Todavia tal facto natildeo tem impedido a doutrina de de forma
uniacutessona admitir a sua vigecircncia em Portugal por entender verificar-se uma consagraccedilatildeo
impliacutecita do princiacutepio Tal como se constata num plano comparatiacutestico no direito germacircnico77 a
doutrina portuguesa natildeo discute a vigecircncia daquele princiacutepio nem a sua natureza
constitucional78 ldquo [d]ecisiva desde logo a tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
fundamentais como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia em
geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepiordquo79
A lei processual penal portuguesa por sua vez conteacutem um vasto conjunto de disposiccedilotildees
legais que asseguram as exigecircncias do princiacutepio nemo tenetur A consagraccedilatildeo expressa do
princiacutepio surge apenas no Coacutedigo Processo Penal na vertente de direito ao silecircncio Como vimos
anteriormente o nemo tenetur desdobra-se em dois grandes corolaacuterios ou vetores sendo o
direito ao silecircncio o mais importante80 Inicialmente o Coacutedigo de Processo Penal atribui ao
arguido um ldquototal e absolutordquo81 direito ao silecircncio nos termos dos art61ordm nordm1 ald) art141ordm
nordm4 ala) art343ordm nordm1 e 345ordm nordm182 todos do CPP ldquoUm direito em relaccedilatildeo ao qual o
legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejaacutevel e
any criminal case to be a witness against himself nor be deprived of life liberty or property without due process of law nor shall private property
be taken for public use without just compensationrdquo
77 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p125
78 Neste sentido ver ANDRADE Manuel da Costa ibidem p125 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer)
p39 RAMOS Vacircnia Costa ndash Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 28 nordm109 (janeiro ndash marccedilo 2007) p59 PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
RISTORI Adriana Paes Dias op cit p99 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1552007 de 2 de marccedilo de 2007 relatado pelo Conselheiro Gil
Galvatildeo disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] ponto 1215 ldquoEm primeiro lugar eacute inquestionaacutevel que o citado
princiacutepio [nemo tenetur] tem consagraccedilatildeo constitucional conforme resulta da jurisprudecircncia deste Tribunal (cf por exemplo os acoacuterdatildeos
69595 54297 3042004 e 1812005)rdquo
79 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125
80 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp19-20
81 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
82 Art 61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] d) Natildeo responder
a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees que acerca deles
prestarrdquo Art141ordm ldquo4 ndash Seguidamente o juiz informa o arguido a) Dos direitos referidos no nordm1 do artigo 61ordm explicando-lhe se isso for
necessaacuteriordquo Art343ordm nordm1 ldquoO presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declaraccedilotildees em qualquer momento da audiecircncia
desde que elas se refiram ao objecto do processo sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo [itaacutelico
nosso] Art345ordm nordm1 ldquoSe o arguido se dispuser a prestar declaraccedilotildees cada um dos juiacutezes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os
factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declaraccedilotildees prestadas O arguido pode espontaneamente ou a
recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa desfavorecerrdquo [itaacutelico nosso]
41
perverso privilegium odiosum proibindo a sua valoraccedilatildeo contra o arguidordquo83 quer se trate do
silecircncio total (art343ordm nordm1 CPP) quer do silecircncio parcial (art345ordm nordm1) Mais ainda como
forma de garantir a eficaacutecia e tutela do nemo tenetur na sua vertente de direito ao silecircncio a lei
processual impotildee agraves autoridades judiciaacuterias e aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal o dever de
advertecircncia ou indicaccedilatildeo e caso necessaacuterio de explicaccedilatildeo sobre os direitos processuais do
arguido (art58ordm nordm2 e nordm 4 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) art343ordm nordm1 todos
previstos no CPP84) Este dever de advertecircncia eacute garantido pela proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo das provas
obtidas mediante o seu desrespeito como consagra o art58ordm nordm5 do CPP ao prescrever que
ldquoa omissatildeo ou violaccedilatildeo das formalidades previstas nos nuacutemeros anteriores [ao que nos
interessa as mencionados no nordm2 e 4] implica que as declaraccedilotildees prestadas pela pessoa visada
natildeo podem ser utilizadas como provardquo85
O art132ordm nordm2 CPP atribui semelhantemente a titularidade do direito ao silecircncio agraves
testemunhas estipulando que ldquoa testemunha natildeo eacute obrigada a responder a perguntas quando
alegar que das respostas resulta a sua responsabilidade penalrdquo Assim face ao dever de
responder com verdade agraves perguntas que lhe forem feitas e agrave exigecircncia de prestar juramento
que incumbe agraves testemunhas de acordo com o art132ordm nordm1 CPP o nordm2 deste mesmo preceito
legal vem a funcionar como vaacutelvula de escape para aquelas situaccedilotildees em que o indiviacuteduo
interrogado ou a depor na qualidade de testemunha possa reagir contra a tentativa de extorsatildeo
de declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nessas circunstacircncias86
Apesar de natildeo se verificar a consagraccedilatildeo expressa na CRP a doutrina e jurisprudecircncia
natildeo hesitam em constatar o assento constitucional do princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare contudo discutem qual(ais) o(s) princiacutepio(s) ou o(s) preceito(s) constitucional(ais)
donde emana a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo e o direito ao silecircncio
83 ANDRADE Manuel da Costa op cit p126 Infra retomaremos o tema da valoraccedilatildeo pelo julgador do silecircncio do arguido
84 Art58ordm nordm2 ldquoA constituiccedilatildeo de arguido opera-se atraveacutes da comunicaccedilatildeo oral ou por escrito feita ao visado por uma autoridade judiciaacuteria ou
um oacutergatildeo de poliacutecia criminal de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicaccedilatildeo e se
necessaacuterio explicaccedilatildeo dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordm que por essa razatildeo passam a caber-lherdquo Art58ordm nordm4 ldquoA
constituiccedilatildeo de arguido implica a entrega sempre que possiacutevel no proacuteprio acto de documento de que constem a identificaccedilatildeo do processo e do
defensor se este tiver sido nomeado e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61ordmrdquo Art61ordm ldquo1 ndash O arguido goza em especial
em qualquer fase do processo e salvas as exceccedilotildees da lei dos direitos de [hellip] h) Ser informado pela autoridade judiciaacuteria ou pelo oacutergatildeo de
poliacutecia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer dos direitos que lhe assistemrdquo
85 Itaacutelico nosso
86 ldquoResulta daqui que no sistema processual penal portuguecircs eacute titular do direito ao silecircncio primeiramente o arguido e aleacutem dele todas as
pessoas que natildeo o sendo satildeo contudo orientadas ou pressionadas por agentes da administraccedilatildeo da justiccedila penal a declararem contra si
mesmasrdquo ndash Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p20
42
Salienta VAcircNIA COSTA RAMOS87 que determinar qual a prerrogativa que fundamenta o nemo
tenetur eacute extremamente importante pois permite definir as exigecircnciascontornos e eventuais
limitaccedilotildees que o princiacutepio possa ter ndash questotildees como a aplicaccedilatildeo do princiacutepio em processo que
natildeo o processo penal admissatildeo de restriccedilotildees alcance do princiacutepio (valeraacute para todos os meios
de prova ou somente por exemplo para a prova documental abrange apenas os atos de
caraacutecter comunicacional) pois que ldquoum direito que emana diretamente da dignidade humana
natildeo seraacute passiacutevel de sofrer as mesmas restriccedilotildees que um direito decorrente de garantias
processuaisrdquo no primeiro caso o direito teraacute tendencialmente uma natureza absoluta no
segundo pode sofrer limitaccedilotildees
A doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes a primeira
vulgarmente designada por substantiva ou material entende que o princiacutepio deriva de direitos
fundamentais como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal
(art25ordm CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) ndash corrente dominante na
doutrina alematilde88 a segunda corrente defende um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente
processualista ndash isto eacute o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios
nomeadamente o direito ao silecircncio teriam como fundamento as garantias processuais de
defesa89 reconhecidas no texto constitucional ao arguido de entre as quais se destacam princiacutepio
do processo equitativo90 (art20ordm nordm4 CRP) e presunccedilatildeo da inocecircncia91 (art32ordm nordm 2 CRP) ou
ateacute mesmo como projeccedilatildeo do princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico (art 2ordm CRP) e da
estrutura acusatoacuteria92 do processo penal (art32ordm nordm5 CRP) A corrente processualista eacute a
maioritariamente seguida e defendida pela doutrina portuguesa93 ainda que os diversos autores
optem por fundamentar o princiacutepio em garantias processuais distintas
87 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) p58
88 Cf RAMOS Vacircnia Costa ibidem pp59-63 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp124-125 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p123
89 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595
90 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte II) pp69-72
91 SAacute Liliana da Silva op cit pp133-134 DIAS Jorge de Figueiredo - Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ
(org) Jornadas de Direito Processual Penal pp27-28
92 PALMA Maria Fernanda op cit p103
93 Seguindo a doutrina processualista ver DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit pp41-42 RAMOS Vacircnia Costa op cit
(Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69 e ss
PINTO Lara Sofia op cit (parecer) pp106-107 SAacute Liliana da Silva op cit p133
43
31 Fundamento constitucional material (corrente substantiva)
A corrente material fundamenta o princiacutepio nemo tenetur e os seus corolaacuterios nos direitos
fundamentais da dignidade da pessoa humana integridade pessoal e livre desenvolvimento da
personalidade sendo uma tese sobejamente acolhida no seio da doutrina alematilde Efetivamente
na doutrina germacircnica94 verifica-se o assento ou fundamento do nemo tenetur no direito geral de
personalidade inscrito no artigo 2 I Grundgesetz der Bundesrepublik Deutschland (doravante
GG) por referecircncia aos artigos 1I e 19 II GG95
2 I Todos tecircm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade salvo
violaccedilatildeo dos direitos de outrem e violaccedilatildeo da ordem constitucional ou costumes
1 I A dignidade humana eacute inviolaacutevel Constitui obrigaccedilatildeo de qualquer poder estatal
respeitaacute-la e protegecirc-la
19 II Em nenhum caso pode um direito fundamental ser afectado na sua essecircncia
O nemo tenetur eacute inserido no direito geral da liberdade ou direito ao livre desenvolvimento
da personalidade do art2 I GG ndash que eacute por sua vez o fundamento para qualquer direito de
defesa perante o Estado ndash como parte integrante da liberdade de accedilatildeo assegurada pelo direito
geral de liberdade Esta liberdade eacute posta em causa quando o indiviacuteduo eacute convertido em meio de
prova contra si proacuteprio96
A menccedilatildeo ao artigo 1 I GG que consagra o direito agrave dignidade da pessoa humana
justifica-se pois este direito eacute encarado naquela ordem como o fundamento e nuacutecleo essencial
de todos os demais direitos fundamentais Nesse sentido o art19 II GG ao dispor a
impossibilidade de afetaccedilatildeo do nuacutecleo essencial de um direito fundamental determina que por
consequecircncia em caso algum pode a dignidade da pessoa humana ser afetada jaacute que a
mesma constitui o nuacutecleo essencial de qualquer direito fundamental e por esse motivo
94 ROGALL ldquoDer Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst ein Beitrag zur Geltung des Satzes ldquoNemo tenetur se ipsum prodererdquo im
Strafprozeβ 1ordf ediccedilatildeo Duncker und Humblot Berlim 1977 apud RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de
entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp59-63
95 ldquoGrundgesetz der Bundesrepublik Deutschland 2 I Jeder hat das Recht auf die freie Entfaltung seiner Persoumlnlichkeit so weit er nicht die
Rechte anderer verletzt und nicht gegen die verfassungsmaumlszligige Ordnung oder das Sittengesetz verstoumlszligt 1 I Die Wuumlrde des Menschen ist
unantastbar Sie zu achten und zu schuumltzen ist Verpfl ichtung aller staatlichen Gewalt 19 II In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem
Wesensgehalt angetas tet werdenrdquo A traduccedilatildeo apresentada eacute nossa
96 ANDRADE Manuel da Costa op cit 125
44
indisponiacutevel agraves limitaccedilotildees do legislador ldquoO que acontece entatildeo eacute que o direito ao silecircncio por
ser a expressatildeo da prerrogativa contra a auto-incriminaccedilatildeo constitui um direito de
personalidade que por possuir a dignidade humana como seu nuacutecleo natildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo do
legislador soacute se admitiratildeo como legiacutetimas aquelas limitaccedilotildees que natildeo atinjam a esfera
indisponiacutevel da liberdaderdquo97
ADRIANA RISTORI98 considera a dignidade humana como fundamento da garantia de defesa
do arguido no processo penal e consequentemente a garantia do direito ao silecircncio ndash enquanto
componente da garantia de defesa ndash compartilharaacute o mesmo fundamento dignidade humana
Na senda do estudo da autora verificamos que no capiacutetulo I do tiacutetulo II da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica Portuguesa estatildeo mencionados os direitos liberdades e garantias
constitucionalmente protegidos pelo Estado Portuguecircs e entre eles no art32ordm encontramos as
garantias oferecidas a todos em especial ao arguido que intervecircm no processo penal
A primeira delas eacute a de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa
(art32ordm nordm1) isto eacute deve ser asseverada ao arguido a utilizaccedilatildeo de todos os meios de defesa
possiacuteveis e convenientes ao seu dispor a fim de este poder de forma eficaz e plena exercer o
seu direito de defesa perante o tribunal que o chama ndash obviamente tratando-se de um direito
fundamental o direito de defesa eacute passiacutevel de limitaccedilotildees nos termos da lei sobretudo do art18ordm
CRP (restriccedilotildees que devem ser proporcionais e natildeo afetarem o nuacutecleo essencial do direito) O
silecircncio do arguido inserir-se-ia no conteuacutedo constitucional da ampla defesa reconhecida pelo
art32ordm nordm1 CRP ao mencionar o vocaacutebulo ldquotodasrdquo ndash aspeto claro e demonstrativo da natureza
aberta desta disposiccedilatildeo constitucional que necessita da concreta e casuiacutestica interpretaccedilatildeo e
aplicaccedilatildeo do seu conteuacutedo
Como salientam CANOTILHO e MOREIRA99 ldquoeste preceito introdutoacuterio serve tambeacutem de
claacuteusula geral englobadora de todas as garantias que embora natildeo explicitadas nos nuacutemeros
seguintes hajam de decorrer do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos direitos de defesa
do arguido em processo criminal Em ldquotodas as garantias de defesardquo engloba-se
indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessaacuterios e adequados para o arguido
97 NETO Theodomiro Dias - O direito ao silecircncio nos direitos alematildeo e norte-americano Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Satildeo Paulo Ano 5
nordm19 (1987) p186
98 Op cit pp81-91
99 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital ndash Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada - artigos 1ordm a 107ordm 4ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2007 Volume I p516
45
defender a sua posiccedilatildeo e contrariar a acusaccedilatildeordquo Para justificar a incursatildeo do direito ao silecircncio
na disposiccedilatildeo constitucional em causa (art32ordm nordm1 CRP) a autora parte do princiacutepio da
dignidade humana previsto no art1ordm da CRP como um princiacutepio que natildeo se dirige somente aos
cidadatildeos mas tambeacutem ao Estado que o deve observar e cumprir de modo a natildeo criar leis
infraconstitucionais que a violem
Ora entende ADRIANA RISTORI que a escolha do arguido em permanecer calado evidencia
uma opccedilatildeo livre esclarecida consciente e autodeterminada em relaccedilatildeo ao Estado detentor do
ius puniendi que pretende tolher a sua liberdade Ademais o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare enquanto direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo traduz-se numa componente basilar do
exerciacutecio do direito de defesa (oponiacutevel ao Estado) que determina que ldquocolaborar ou natildeo com o
fim do processo penal eacute um ato que natildeo pode ser restringido limitado ou imposto pelo poder
puacuteblico sob risco de fazer do homem um objeto da accedilatildeo estatal o que eacute veemente vedado pelo
princiacutepio da dignidade humana [hellip]rdquo100 Conclui afirmando que ldquoembora seja difiacutecil elaborar um
conceito uniacutevoco de dignidade humana nela estaacute o fundamento para a garantia de defesa do
arguido no processo penal Consequentemente estaacute tambeacutem a garantia do direito ao silecircnciordquo101
A doutrina tambeacutem aponta correlaccedilotildees entre o nemo tenetur e o direito agrave integridade
pessoal constitucionalmente previsto
O art25ordm CRP consagra o direito agrave integridade pessoal (nordm1) ndash fiacutesica e moral ndash e a
impossibilidade em caso algum da submissatildeo do indiviacuteduo agrave tortura tratos ou penas crueacuteis
degradantes ou desumanos ndash comportamentos que cremos pela proacutepria tutela da dignidade da
pessoa humana seria absolutamente proibidos (natildeo obstante entendeu o legislador constituinte
autonomizar a total proibiccedilatildeo desses atos num preceito constitucional especiacutefico)102 ldquoAo basear a
Repuacuteblica na dignidade da pessoa humana a Constituiccedilatildeo explicita de forma inequiacutevoca que
o lsquopoderrsquo ou lsquodomiacuteniorsquo da Repuacuteblica teraacute de assentar em dois pressupostos ou precondiccedilotildees (1)
primeiro estaacute a pessoa humana e depois a organizaccedilatildeo poliacutetica (2) a pessoa eacute sujeito e natildeo
objecto eacute fim e natildeo meio de relaccedilotildees juriacutedico-sociais Nestes pressupostos radica a elevaccedilatildeo da
dignidade da pessoa humana a trave mestra de sustentaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo da Repuacuteblica e da
100 Op cit p 90
101 Op cit p 91
102 ldquo [A dignidade da pessoa humana] estaacute na base de concretizaccedilotildees do princiacutepio antroacutepico ou personicecircntrico inerente a muitos direitos
fundamentais (direito agrave vida direito ao desenvolvimento da personalidade direito agrave integridade fiacutesica e psiacutequica direito agrave identidade pessoal
direito agrave identidade geneacutetica)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p198
46
respectiva compreensatildeo da organizaccedilatildeo do poder poliacuteticordquo103 A dignidade da pessoa humana
enquanto bem e valor autoacutenomo exige respeito e proteccedilatildeo ela eacute a linha separativa contra as
praacuteticas religiosas poliacuteticas e sociais totalitaacuterias e as experiecircncias histoacutericas degradantes da
qualidade do ser humano (escravatura tortura nazismo estalinismo inquisiccedilatildeo genociacutedios
racismo)
Explicam CANOTILHO e MOREIRA que o direito agrave integridade pessoal consiste em natildeo ser
ofendido ou agredido no corpo ou no espiacuterito por meios fiacutesicos ou morais As penas ou tratos
crueacuteis degradantes ou desumanos tanto podem ferir a integridade fiacutesica das pessoas ndash atraveacutes
de agressotildees exemplificativamente ndash como a integridade moral - por via da humilhaccedilatildeo ou
enxovalho puacuteblico racial entre outros casos ndash ou ofensas mistas (simultaneamente ofensa agrave
integridade fiacutesica e moral da pessoa)104
O direito agrave integridade pessoal fiacutesica e moral vale naturalmente contra qualquer pessoa
mas tambeacutem contra o Estado (e poderes puacuteblicos em geral) que estaacute diretamente obrigado a
respeitaacute-lo em diversos planos Destacam-se a este respeito o plano legislativo (o poder
legislativo estatal em cumprimento ao direito de integridade pessoal estaacute impedido de por via
da lei penal aplicarcriar penas ou medidas crueacuteis degradantes ou desumanas) e o plano da
investigaccedilatildeo criminal (onde natildeo satildeo liacutecitas quaisquer praacuteticas atentatoacuterias agrave integridade fiacutesica ou
moral nem a tortura sob cominaccedilatildeo da nulidade das provas obtidas por esses recursos ndash
art32ordm nordm8 CRP)
A tortura105 autonomizada pela Constituiccedilatildeo surge como a forma mais grave de
tratamento cruel e desumano BECCARIA em meados do seacuteculo XVIII ridicularizava a tortura
como a maior crueldade empregue pelas naccedilotildees ldquoPortanto a sensaccedilatildeo de dor pode crescer de
tal modo que ocupando toda a sua sensibilidade natildeo deixe liberdade alguma para o torturado
senatildeo a de escolher o caminho mais curto naquele momento para se subtrair ao sofrimento
103 Idem ibidem p198
104 Idem ibidem p454
105 A Convenccedilatildeo contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Crueacuteis Desumanos ou Degradantes de 10 de dezembro de 1984 da
Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas define como tortura qualquer ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos fiacutesicos ou mentais satildeo
intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de nomeadamente obter dela ou de uma terceira pessoa informaccedilotildees ou confissotildees a
punir por um ato que ela ou uma terceira pessoa cometeu ou se suspeita que tenha cometido intimidar ou pressionar essa ou uma terceira
pessoa ou por qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminaccedilatildeo desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam infligidos por um
agente puacuteblico ou qualquer outra pessoa agindo a tiacutetulo oficial a sua instigaccedilatildeo ou com o seu consentimento expresso ou taacutecito (natildeo se
considerando tortura a dor ou sofrimento resultante de sanccedilotildees legiacutetimas)
47
[hellip] Entatildeo o inocente sensiacutevel declarar-se-aacute culpado quando julgar com isso fazer cessar o
tormento [hellip] O interrogatoacuterio de um reacuteu eacute feito para conhecer a verdade mas se eacute difiacutecil
descobrir esta verdade pelo ar pelo gesto pela fisionomia de um homem tranquilo muito
menos se descobriraacute num homem no qual as convulsotildees de dor alteram todos os sinais atraveacutes
dos quais na maior parte dos homens transparece por vezes mau grado seu a verdade Cada
accedilatildeo violenta confunde e faz desaparecer as diferenccedilas subtis dos objetos pelas quais se
distingue por vezes o verdadeiro do falsordquo106
Facilmente se conclui a estreita correlaccedilatildeo existente entre a tutela da integridade pessoal
mediante a proibiccedilatildeo da tortura e tratos crueacuteis e desumanos bem como a nulidade das provas
obtidas por esses meios com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare pois revela a
impossibilidade da utilizaccedilatildeo de qualquer desses meios para obter a colaboraccedilatildeo do arguido no
processo criminal107
Natildeo obstante o exposto a doutrina e jurisprudecircncia108 portuguesas tendem a atribuir
fundamento constitucional de natureza processual ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
o que natildeo significa a negaccedilatildeo da influecircncia do fundamento material no princiacutepio e seus
corolaacuterios ndash unicamente natildeo admite que princiacutepios como dignidade da pessoa humana
integridade pessoal ou desenvolvimento da personalidade sejam o fundamento direto e imediato
do nemo tenetur Em abono desta conclusatildeo destacamos a origem histoacuterica do nemo tenetur
que surge como obstaacuteculo a certos meacutetodos de investigaccedilatildeo inquisitorial que assentavam na
imposiccedilatildeo da colaboraccedilatildeo do arguido para a fundamentaccedilatildeo probatoacuteria da acusaccedilatildeo ndash o que nos
parecer ter mais que ver com questotildees de natureza processual essencialmente a garantia do
processo equitativo do que com as restantes109
Na sua dimensatildeo intriacutenseca a dignidade da pessoa humana relaciona-se com a
autonomia e liberdade individual o mesmo eacute dizer que ldquoarticula-se com a liberdade de
conformaccedilatildeo e orientaccedilatildeo da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoardquo110 Assim sendo
no que concerne ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios a utilizaccedilatildeo do 106 BECCARIA op cit p96-97
107 RISTORI Adriana Dias Paes p76
108 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 69595 que enquadrou o direito ao silecircncio enquanto direito que integra as garantias de defesa do
art32ordm nordm1 CRP cujo objectivo uacuteltimo eacute a proteccedilatildeo do arguido como sujeito do processo ndash posiccedilatildeo seguida por vaacuterios acoacuterdatildeos do Tribunal
Constitucional nordm 1552007 (jaacute mencionado) nordm1812005 (5 de abril de 2005)nordm 3042004 (de 5 de maio de 2004)
109 No mesmo sentido PINTO Lara Sofia op cit (parecer) p107
110 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p199
48
arguido como meio de prova seraacute sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisatildeo de
vontade em qualquer fase processual ldquosoacute no exerciacutecio de uma plena liberdade da vontade pode
o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante a mateacuteria que constitui objecto do
processordquo111
Cremos que eacute inegaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur no princiacutepio da dignidade da
pessoa humana
Em boa verdade ao reconhecer-se ao arguido prerrogativas como o direito ao silecircncio e agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo protegem-se direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana
e mais diretamente a liberdade individual pois que o arguido ldquonatildeo fica reduzido a mero objecto
da atividade probatoacuteria podendo recusar-se em nome da sua insindicaacutevel autonomia a ser
meio de prova de si mesmo Todavia reconhecer-se que estes direitos processuais satildeo um meio
ou forma de concretizar um determinado direito fundamental natildeo implica que este seja o seu
fundamento direto e imediato Desde logo se aponta que o proacuteprio conceito de dignidade
humana recobre de forma mediata toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de
Direitordquo112 113
Reiteramos novamente que com o exposto natildeo repudiamos a relaccedilatildeo existente entre a
dignidade da pessoa humana e o princiacutepio nemo tenetur a dignidade da pessoa humana
justifica a passagem do arguido da condiccedilatildeo de mero objeto do processo para sujeito processual
e da correspondente atribuiccedilatildeo de garantias de defesa para tutelar essa mesma posiccedilatildeo
contudo tal como demonstrou o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm 69595 o nemo tenetur
comporta uma dimensatildeo processual inegaacutevel que proveacutem do princiacutepio processual penal da
plenitude das garantias de defesa previsto constitucionalmente no art32ordm nordm1 CRP que tem
como conteuacutedo essencial a salvaguarda do tratamento do arguido como sujeito e natildeo como
111 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
112 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p41
113 A propoacutesito do fundamento juriacutedico do princiacutepio da audiecircncia no plano do estudo sobre os princiacutepios relativos agrave prossecuccedilatildeo penal FIGUEIREDO
DIAS na obra Direito processual penal (p154) afirma que nada obsta em fundamentar-se o princiacutepio da audiecircncia com o respeito pela dignidade
humana atraveacutes da exigecircncia de que o homem nas decisotildees judiciais natildeo seja tratado como objecto mas como sujeito que participa de modo
efetivo e eficaz no juiacutezo comunitaacuterio em que o processo se traduz Todavia e entendemos que o ensinamento aiacute demonstrado pode ser uacutetil para
o ldquoafastamentordquo da dignidade humana como fundamento direto do nemo tenetur vem o autor reiterar que ldquonatildeo poderemos omitir que a dignitas
humana eacute ela proacutepria fundamento de todos os princiacutepios constitucionais e em suma de todo o Direitordquo enquanto princiacutepio basilar de um
Estado de Direito Democraacutetico
49
objeto do processo garantindo-lhe a Constituiccedilatildeo com essa finalidade um leque de direitos
processuais autoacutenomos onde se insere o direito ao silecircncio114
32 Fundamento constitucional de natureza processual
Neste plano os autores e jurisprudecircncia atribuem ao nemo tenetur se ipsum accusare um
fundamento constitucional mas de natureza processual baseado nas garantias processuais que
a Lei Fundamental atribui ao arguido ldquoEssas garantias [hellip] satildeo inerentes ao Estado de Direito
Democraacutetico115 contemporacircneo E o nemo tenetur como direito protetor do cidadatildeo nas suas
relaccedilotildees com o Estado e os cidadatildeos assume uma configuraccedilatildeo caracterizadamente
processualrdquo116
Dentro desta corrente comummente designada de corrente processualista os autores
divergem quanto agrave garantia especiacutefica que subjaz ao princiacutepio Assim encontramos quem
entenda o nemo tenetur se ipsum accusare e respetivos corolaacuterios como uma projeccedilatildeo da
estrutura acusatoacuteria do processo penal e das garantias de defesa outros relacionam-no com
aspetos particulares deste tipo de processo como o eacute a presunccedilatildeo da inocecircncia ou o direito a ser
ouvido pelas autoridades judiciaacuterias117 outros ainda sem afastar a conexatildeo com as garantias de
defesa reconduzem o princiacutepio ao processo equitativo
a) As garantias de defesa e estrutura acusatoacuteria
Esta eacute uma posiccedilatildeo assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acoacuterdatildeos
nomeadamente no jaacute aqui referido e tratado acoacuterdatildeo nordm69595118 onde esta instacircncia judicial
114 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13
115 Uma parte da doutrina alematilde reconduz o nemo tenetur se ipsum accusare ao princiacutepio de Estado de Direito Democraacutetico Para maiores
desenvolvimentos ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo
tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) p64
116 Idem ibidem p63
117 Idem ibidem pp68-69
118 A mesma posiccedilatildeo eacute difundida noutras decisotildees do Tribunal Constitucional acoacuterdatildeo nordm1552007 (v ponto 1215) acoacuterdatildeos nordm1812005 e
3042004 quando se afirma que ldquo[a] justificaccedilatildeo do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial
uma ideia de proteccedilatildeo do proacuteprio arguido como decorrecircncia da vertente negativa da liberdade de declaraccedilatildeo e depoimento a que acima se fez
referecircncia e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare o tambeacutem chamado privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeordquo
Tambeacutem DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp41-42 reportam como fundamento imediato do nemo
50
declarou inconstitucional a antiga redaccedilatildeo do art342ordm nordm2 CPP quando impunha a
obrigatoriedade sob cominaccedilatildeo de sanccedilatildeo penal do arguido responder a perguntas relativas aos
seus antecedentes criminais por entender que violava o direito ao silecircncio previsto legalmente
enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido (art32ordm nordm1 CRP) ldquoo conteuacutedo
essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como
lsquosujeitorsquo do processo e natildeo como objectordquo Importa referir que nesta mesma decisatildeo o Tribunal
admitiu a relaccedilatildeo existente entre o direito ao silecircncio e a presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido que
adiante aludiremos
MARIA FERNANDA PALMA119 identifica o nemo tenetur se ipsum accusare como uma projeccedilatildeo
da estrutura acusatoacuteria120 do processo penal (mas tambeacutem como decorrecircncia das garantias de
defesa121) onde o arguido nunca seraacute objeto da investigaccedilatildeo mas sim sujeito processual e a
partir do momento em que se reduza o arguido a objeto do processo nega-se-lhe o ldquodireito de
natildeo colaborar de mentir ou de se calarrdquo ndash de outra forma negando-se a prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo objetiviza-se o arguido Salvaguardada a posiccedilatildeo de sujeito do processo ao
arguido natildeo podem ser impostos deveres de obediecircncia e colaboraccedilatildeo ndash salvo casos especiais ndash
ou de participaccedilatildeo coactiva na produccedilatildeo de prova
De facto partilhando de algumas consideraccedilotildees aqui apresentadas cremos que eacute
indubitaacutevel a fundamentaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare e dos seus vetores direito ao
silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo no plano das garantias de defesa do art32ordm
nordm1 CRP Ao mencionar que o processo penal ldquoassegura todas as garantias de defesardquo o
tenetur se ipsum accusare as garantias processuais previstas pela Constituiccedilatildeo em mateacuteria criminal no art32ordm cumprindo-se de igual modo a
exigecircncia constitucional de um processo penal equitativo (art20ordm nordm 4) ou seja concluem que o princiacutepio processual tem uma natureza
processual e soacute de forma mais afastada e mediata teraacute natureza material ou substantiva
119 Op cit p103-104
120 No mesmo sentido MACHADO Joacutenatas E M RAPOSO Vera L C - O Direito agrave natildeo Auto-Incriminaccedilatildeo e as Pessoas Colectivas Empresariais
Direitos Fundamentais e Justiccedila (Revista do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Mestrado e Doutoramento em Direito da PUCRS) Porto Alegre ndash Rio
Grande do Sul Ano 3 nordm8 (julho-setembro 2009) p16 - ldquoo direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo integra uma opccedilatildeo consciente de rejeiccedilatildeo da
estrutura inquisitorial do processo estrutura essa que dava ampla margem agrave interrogaccedilatildeo do arguido e agrave tentaccedilatildeo do uso de meios de pressatildeo e
de tortura fiacutesica e psicoloacutegica em ordem a obter ou forccedilar a confissatildeo O mesmo decorre igualmente dos princiacutepios processuais do contraditoacuterio
e da igualdade de armas agrave luz dos quais seria inaceitaacutevel que uma das partes pudesse compelir a outra a apresentar provas em seu proacuteprio
prejuiacutezordquo
121 Op cit p104 Ver tambeacutem PINTO Frederico de Lacerda da Costa op cit (parecer) p99 ndash ldquoA possibilidade de recurso ao silecircncio para natildeo
prestar declaraccedilotildees e como tal para natildeo ser confrontado com uma inquiriccedilatildeo que leve o arguido a declarar a sua culpabilidade soacute pode entre
noacutes reconduzir-se a uma dimensatildeo taacutectica do direito de defesa previsto no artigo 32ordm nordm1 da Constituiccedilatildeordquo No mesmo sentido de Frederico de
Lacerda da Costa Pinto encontramos ALBUQUERQUE Paulo Pinto de ndash Comentaacuterio do Coacutedigo de Processo Penal agrave luz da Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica e da Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem 3ordf Ed Lisboa Universidade Catoacutelica Editora 2009 p 178
51
legislador constituinte cria uma claacuteusula geral e aberta englobadora de todos os direitos e
instrumentos necessaacuterios para a efetiva tutela do princiacutepio da proteccedilatildeo global e completa dos
direitos de defesa122 do arguido em processo penal ndash isto eacute todos os meios precisos para a
defesa da posiccedilatildeo do arguido e para contraditar a acusaccedilatildeo bem como codeterminar ou
conformar a decisatildeo final do processo123 ndash onde se enquadra de entre outros o direito ao
silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
O mesmo resultado adveacutem do facto de encarar o arguido como sujeito e natildeo objeto do
processo penal ndash que como sabemos importa assegurar ao arguido uma posiccedilatildeo juriacutedica que lhe
permita uma participaccedilatildeo efetiva no processo em causa atraveacutes da concessatildeo de direitos
processuais autoacutenomos respeitados por todos os intervenientes processuais Todavia natildeo
queremos com isso afirmar que o arguido natildeo pode ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou de
constituir ele proacuteprio meio de prova ldquoquer dizer sim que as medidas coactivas e probatoacuterias
que sobre ele se exerccedilam natildeo poderatildeo nunca dirigir-se agrave extorsatildeo de declaraccedilotildees ou de qualquer
forma de auto-incriminaccedilatildeo e que pelo contraacuterio todos os actos processuais do arguido
deveratildeo ser expressatildeo da sua livre personalidaderdquo124 Nisto consiste ldquotodas as garantias de
defesardquo que a Constituiccedilatildeo menciona enquanto nuacutecleo essencial do direito de defesa do
arguido cujo nemo tenetur e seus corolaacuterios satildeo peccedilas essenciais
b) A presunccedilatildeo de inocecircncia
Existem autores que invocam a presunccedilatildeo da inocecircncia como fundamento constitucional
do nemo tenetur se ipsum accusare pela razatildeo loacutegica de que quem se presume inocente natildeo
pode ser forccedilado a incriminar-se
Determina o art32ordm nordm2125 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa que ldquotodo o arguido
se presume inocente ateacute ao tracircnsito em julgado da sentenccedila de condenaccedilatildeo [hellip]rdquo Como
conteuacutedo da presunccedilatildeo da inocecircncia apontar-se-aacute proibiccedilatildeo da inversatildeo do oacutenus da prova em
detrimento do arguido a preferecircncia pela sentenccedila de absolviccedilatildeo contra o arquivamento do
122 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p516
123 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p28
124 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp429-430
125 Outros diplomas internacionais tambeacutem consagram o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem
(art11ordm nordm1) Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos do Homem (art6ordm nordm2) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos (art14ordm nordm2)
52
processo exclusatildeo da fixaccedilatildeo da culpa em despachos de arquivamento natildeo incidecircncia de
custas sobre o arguido natildeo condenado proibiccedilatildeo de antecipaccedilatildeo de verdadeiras penas a tiacutetulo
de medidas cautelares proibiccedilatildeo de efeitos automaacuteticos da instauraccedilatildeo do procedimento
criminal natureza excecional das medidas de coaccedilatildeo sobretudo as limitativas da liberdade e o
estabelecimento do princiacutepio in dubio pro reo126
A presunccedilatildeo da inocecircncia pode assumir um duplo significado enquanto regra de
tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo ou como regra de juiacutezo127 No primeiro
sentido dado agrave presunccedilatildeo da inocecircncia postula-se o tratamento do sujeito embora acusado de
um crime como inocente ateacute agrave condenaccedilatildeo definitiva implicando a natildeo diminuiccedilatildeo social
juriacutedica ciacutevica moral e fiacutesica do indiviacuteduo em comparaccedilatildeo com outros cidadatildeos (eacute
impreterivelmente proibida a comparaccedilatildeo do acusado com o culpado) Na segunda aceccedilatildeo da
presunccedilatildeo verifica-se uma relaccedilatildeo proacutexima com as regras probatoacuterias no sentido de que se
impotildee a absolviccedilatildeo do arguido se a culpa natildeo ficar totalmente provada encontrando-se a
acusaccedilatildeo obrigada a carrear para o processo toda a prova da plena culpabilidade A presunccedilatildeo
da inocecircncia abarca assim estas duas dimensotildees pois ldquouma vez que considerar o acusado
como inocente equivale a dizer que a sanccedilatildeo penal soacute poderaacute aparecer depois da condenaccedilatildeo e
equivale tambeacutem a exigir que a culpabilidade seja provada de acordo com a leirdquo128
O arguido merece assim um tratamento igualitaacuterio a qualquer outra pessoa durante o
processo sem a diminuiccedilatildeo da sua posiccedilatildeo de inocente perante os demais Nessa medida natildeo
nos parece possiacutevel exigir-lhe qualquer colaboraccedilatildeo para a descoberta da verdade material ndash a
sua condiccedilatildeo de inocente natildeo se compatibiliza com a autoincriminaccedilatildeo
A influecircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia no processo penal traduz-se que a participaccedilatildeo do
arguido no processo seja sempre dependente da sua livre vontade agrave livre vontade alia-se a livre
participaccedilatildeo
O estatuto de sujeito processual distingue-se do dos demais participantes processuais
Como refere FIGUEIREDO DIAS129 ao arguido enquanto sujeito processual satildeo-lhe conferidos
126 CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p518
127 VILELA Alexandra - Consideraccedilotildees acerca da presunccedilatildeo da inocecircncia em Direito Processual Penal Coimbra Coimbra Editora 2005 pp58-60
128 Idem ibidem p59
129 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) p9
53
direitos que lhe permitem conformar o processo e que maioritariamente se encontram previstos
nos artigos 60ordm e 61ordm do CPP Ao arguido continua o autor este estatuto de sujeito processual
eacute-lhe conferido num duplo sentido [constitucional] atribuindo-lhe um direito de defesa (art32ordm
nordm1 CRP que como vimos anteriormente lhe faculta a possibilidade de exercer todos os meios
admissiacuteveis e necessaacuterios para codeterminar ou conformar a decisatildeo final e tutelar a sua
posiccedilatildeo130) e a presunccedilatildeo da inocecircncia ateacute ao tracircnsito em julgado da condenaccedilatildeo (art32ordm nordm5
CRP)
A presunccedilatildeo da inocecircncia assume imediatamente reflexos sobre o estatuto processual do
arguido como meio processual objeto de medidas de coaccedilatildeo131 ou como meio de prova Quanto
ao tratamento a outorgar ao arguido enquanto meio de prova FIGUEIREDO DIAS realccedila que ldquoo
princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia ligado agora diretamente ao princiacutepio ndash o primeiro de todos
os princiacutepios juriacutedico-constitucionais ndash da presunccedilatildeo da dignidade pessoal conduz a que a
utilizaccedilatildeo do arguido como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito pela sua
decisatildeo de vontade ndash tanto no inqueacuterito como na instruccedilatildeo ou no julgamento soacute no exerciacutecio de
uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posiccedilatildeo perante
a mateacuteria que constitui objecto da provardquo132 para concluir adiante que ldquonatildeo estaacute aqui em causa
a oacutebvia proibiccedilatildeo [art126ordm CPP] de meacutetodo inadmissiacuteveis de prova senatildeo que tambeacutem e
sobretudo o direito conferido ao arguido pelo art61ordm nordm al [d)] de ldquonatildeo responder a perguntas
feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das
declaraccedilotildees que acerca deles prestarrdquo133 Enquadra o autor a presunccedilatildeo da inocecircncia como
fundamento do direito ao silecircncio
Na mesma esteira LILIANA DA SILVA SAacute134 tambeacutem admite que o direito do arguido em natildeo
prestar declaraccedilotildees sobre os factos imputados e a natildeo fornecer prova que o possa incriminar
satildeo uma dupla consequecircncia da presunccedilatildeo de inocecircncia (e reflexamente da transformaccedilatildeo do
processo penal inquisitoacuterio em acusatoacuterio) de que ele beneficia eacute devido a ela que o arguido natildeo
130 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 429
131 Sobre as consequecircncias da presunccedilatildeo de inocecircncia sobre o estatuto do arguido enquanto meio processual objecto de medidas de coaccedilatildeo cf
VILELA Alexandra op cit p95 e ss
132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Sobre os sujeitos processuais no novo Coacutedigo de Processo Penal In CEJ (org) Jornadas de Direito
Processual Penal) pp27-28
133 No mesmo sentido VILELA Alexandra op cit pp95 e 120 ANDRADE Manuel da Costa op cit p125 quando afirma ldquodecisiva desde logo a
tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana a liberdade de acccedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
[itaacutelico nosso] em geral referenciados como a matriz juriacutedico-constitucional do princiacutepio [nemo tenetur]rdquo
134 Op cit pp132-133
54
pode suportar a ldquodupla veste de investigador e investigadordquo devendo as suas declaraccedilotildees ser
encaradas como manifestaccedilotildees do direito de defesa
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem135 reconhece a existecircncia de um nexo entre a
presunccedilatildeo de inocecircncia e outros direitos constitutivos de um processo equitativo no sentido de
que quando tais direitos satildeo violados tambeacutem eacute desrespeitada a presunccedilatildeo de inocecircncia Satildeo
eles o direito de natildeo se autoincriminar o direito de natildeo colaborar e o direito de guardar silecircncio
Veja-se o caso Saunders v United Kingdom onde o TEDH conclui que o direito de natildeo se
autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo
contra o acusado sem recorrer a provas obtidas atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em
desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa medida estaacute o direito intimamente relacionado
com a presunccedilatildeo da inocecircncia136
A Comissatildeo Europeia por sua vez na Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e
do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de inocecircncia e do direito de
comparecer em julgamento em processo penal137 tambeacutem entende o direito de natildeo se
autoincriminar e de natildeo colaborar como um aspecto importante do princiacutepio da presunccedilatildeo de
inocecircncia ndash direitos que tendencialmente satildeo apontados como corolaacuterios do processo equitativo
ndash natildeo devendo o suspeito ou arguido ser obrigado a apresentar prova ou a fornecer informaccedilotildees
susceptiacuteveis de levar agrave autoincriminaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre a presunccedilatildeo de inocecircncia e o nemo tenetur eacute evidente de que vale ao
arguido guardar silecircncio sem beneficiar da presunccedilatildeo de inocecircncia Do mesmo modo de que
serve presumir o arguido inocente e simultaneamente obrigaacute-lo a declarar factos relacionados
com a sua culpa
135Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
136 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
137 COMISSAtildeO EUROPEIA ndash Diretiva (UE) 2016343 do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao reforccedilo de certos aspetos da presunccedilatildeo de
inocecircncia e do direito de comparecer em tribunal em processo penal Bruxelas 9 de marccedilo de 2016
Disponiacutevel em httpeur-lexeuropaeulegal-contentPTTXTuri=CELEX3A32016L0343 (link) [em linha] Cf Considerandos 24 e 25
55
c) A garantia de um processo equitativo
Determina a Lei Fundamental do Estado Portuguecircs que ldquotodos tecircm direito a que uma
causa em que intervenham seja objeto de decisatildeo em prazo razoaacutevel e mediante processo
equitativordquo138 Tatildeo importante quanto a garantia de que todos os cidadatildeos possam aceder agrave
justiccedila (aos tribunais) eacute tambeacutem assegurar que o processo a que se aceda apresente quanto agrave
sua estrutura garantias de justiccedila O direito ao processo justo equitativo (fair trial)139 estaacute
especialmente consagrado nos art10ordm DUDH art14ordm nordm1 PIDCP e art6ordm nordm1 CEDH e
art20ordm nordm4 CRP sendo que na verdade todos os artigos acabam por consagrar o direito ao
processo equitativo que acaba por reconduzir agraves garantias da imparcialidade e independecircncia
do tribunal igualdade das partes de publicidade da audiecircncia do juiz legal ou natural e do
proferimento da decisatildeo num prazo razoaacutevel
As doutrinas caraterizadoras do direito a um processo equitativo (art20ordm nordm4 CRP) tecircm
quase sempre como ponto de partida a experiecircncia constitucional norte-americana do due
process of law (do processo devido em direito) A questatildeo que se coloca primordialmente eacute a de
saber qual eacute o alcance dado agrave expressatildeo due process of law Este apresenta-se como sendo a
obrigatoriedade da observacircncia de um tipo de processo legalmente previsto antes de algueacutem ser
privado da vida liberdade e da propriedade Mas como bem entende GOMES CANOTILHO140 o due
process of law pressupotildee que o processo legalmente previsto para a aplicaccedilatildeo de penas seja ele
proacuteprio um ldquoprocesso devidordquo obedecendo aos tracircmites procedimentais formalmente
estabelecidos na Constituiccedilatildeo ou plasmados em regras regimentais das assembleias legislativas
ndash dizer o direito segundo um processo justo pressupotildee que justo seja o procedimento de criaccedilatildeo
legal dos mesmos processos
Devemos entender o termo ldquoprocesso justo devido ou equitativordquo positivado na
Constituiccedilatildeo num sentido amplo ldquonatildeo soacute como um processo justo na sua conformaccedilatildeo
legislativa (exigecircncia de um procedimento legislativo devido na conformaccedilatildeo do processo) mas
138 Cf Artigo 20ordm nordm4 CRP
139 Sobre a noccedilatildeo de processo justo ver CANOTILHO J J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf Ed Coimbra Almedina
2003 p494 A qualificaccedilatildeo do processo como justo ou equitativa pode ter uma dupla aceccedilatildeo aceccedilatildeo processual (o processo seraacute justo quando
estaacute previamente especificado na lei ou seja a pessoa privada dos seus direitos fundamentais da vida liberdade e propriedade tem o direito de
exigir que essa privaccedilatildeo seja feita segundo um processo previsto na lei) e aceccedilatildeo substantiva ou material (mais do que exigir um processo legal
a pessoa privada dos seus direitos fundamentais tem o direito de reivindicar um processo materialmente justoadequado ou seja conformado
segundo princiacutepios de justiccedila)
140 Idem ibidem paacuteg493
56
tambeacutem como um processo materialmente informado pelos princiacutepios materiais da justiccedila nos
vaacuterios momentos processuaisrdquo141 ndash visando a proteccedilatildeo do arguido enquanto sujeito processual
Na densificaccedilatildeo das diretrizes do processo equitativo tecircm-se apontado o direito a uma
decisatildeo fundada no Direito (o direito agrave tutela jurisdicional natildeo se identifica com o direito a uma
decisatildeo favoraacutevel mas antes se reconduz ao direito de obter uma decisatildeo fundada no Direito) o
direito a pressupostos constitucionais materialmente adequados (evitar a exigecircncia legal de
pressupostos processuais desnecessaacuterios natildeo adequados e desproporcionais) imparcialidade e
independecircncia do Tribunal a garantia do contraditoacuterio (implica que a partesujeito processual
conheccedila que contra ela foi deduzida accedilatildeoacusaccedilatildeo ou requerida uma providecircncia e portanto o
direito a ser ouvido antes de ser tomada qualquer decisatildeo judicial com forccedila vinculativa e ainda
o direito de resposta ou seja o poder de tomar posiccedilatildeo sobre as condutas tomadas pela
contraparte no processo (responder ao ato processual da contraparte apresentar provas e
contraditar as provas contra si apresentadas) o direito agrave execuccedilatildeo das sentenccedilas ndash o Estado
deve fornecer todos os meios necessaacuterios e adequados para dar cumprimento agraves decisotildees
judiciais (mesmo que estas sejam proferidas contra si) ndash o direito agrave fundamentaccedilatildeo das
sentenccedilas o direito agrave prova (direito a apresentar prova sobre os factos apresentados e alegados
em juiacutezo) e a proteccedilatildeo juriacutedica eficaz e temporalmente adequada ndash direito agrave duraccedilatildeo razoaacutevel do
processo142
E assim tambeacutem o deve de ser no processo penal onde diante da praacutetica de um iliacutecito
criminal observando-se as regras do processo devido o titular da accedilatildeo penal ndash ordinariamente
Ministeacuterio Puacuteblico ndash tem o direito de deduzir acusaccedilatildeo contra o autor do delito que por sua vez
tem o direito de se defender contraditar todas as provas contra si apresentadas Daiacute que o
contraditoacuterio seja um dos aspetos mais relevantes da estrutura acusatoacuteria do processo penal143 e
da noccedilatildeo de processo equitativo
No acircmbito processual penal a Constituiccedilatildeo densifica a noccedilatildeo de processo equitativo no
art32ordm garantias de defesa presunccedilatildeo da inocecircncia julgamento em prazo curto compatiacutevel
com as garantias de defesa escolha e assistecircncia por defensor reserva do juiz em relaccedilatildeo agrave
instruccedilatildeo do processo estrutura acusatoacuteria princiacutepio do contraditoacuterio intervenccedilatildeo no processo
proibiccedilotildees de prova entre outras
141 CANOTILHO J J Gomes MOREIRA Vital op cit p415
142 CANOTILHO J J Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp498-501
143 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p150
57
Como jaacute tivemos oportunidade de referir inerente agrave noccedilatildeo abstrata de processo equitativo
estaacute a possibilidade de qualquer indiviacuteduo defender a sua pretensatildeo numa posiccedilatildeo paritaacuteria agrave
dos outros sujeitos daiacute que sejam corolaacuterios essenciais do processo equitativo o princiacutepio do
contraditoacuterio144 e a igualdade de armas
Face agrave ausecircncia de menccedilatildeo na Lei Constitucional seraacute o nemo tenetur um corolaacuterio do
processo equitativo O fundamento do nemo tenetur eacute o direito ao processo equitativo
No espectro europeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem reconduzido o
nemo tenetur agrave ideia de processo equitativo assegurado pelo art6ordm nordm1 CEDH que por sua vez
eacute integrado expressa e implicitamente por diversos elementos de entre os quais o direito ao
silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Foram trecircs essencialmente os acoacuterdatildeos que
demonstraram esta posiccedilatildeo jurisprudencial base das restantes decisotildees judiciais mais recentes
Funke v France145 Murray v United Kingdom146 e Saunders v United Kingdom147
No caso Funke o TEDH foi instado a pronunciar-se sobre a condenaccedilatildeo pelos tribunais
franceses do Sr Funke cidadatildeo alematildeo em multa (amende) e sanccedilatildeo pecuniaacuteria compulsoacuteria
(astreinte) por este se ter recusado a fornecer documentos extratos de contas bancaacuterias no
estrangeiro solicitados pelas autoridades aduaneiras que supostamente comprovariam iliacutecitos
de natureza fiscal e penal A condenaccedilatildeo surge na sequecircncia da realizaccedilatildeo de uma busca
domiciliaacuteria agrave habitaccedilatildeo do Sr Funke com o objetivo de recolher informaccedilatildeo sobre os seus ativos
no exterior (ldquopreacutecisions sur leurs avoirs agrave lrsquoeacutetrangerrdquo) no seguimento de dados fornecidos pelas
autoridades fiscais francesas No decurso da busca domiciliaacuteria o Sr Funke afirmou ser titular
de contas bancaacuterias no estrangeiro por razotildees familiares e profissionais mas que natildeo possuiacutea
qualquer extrato bancaacuterio
Junto do TEDH o Sr Funke alegou que a sua condenaccedilatildeo por recusar a divulgaccedilatildeo dos
documentos solicitados pelas autoridades aduaneiras violou o seu direito a um julgamento justo
garantido pelo art6ordm nordm1 CEDH e o direito de natildeo testemunhar contra si proacuteprio por ter sido
144 Mencionado no art32ordm nordm5 2ordf parte da CRP o arguido tem direito a ldquo[hellip] intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os
testemunhos depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos juriacutedicos trazidos ao processo[hellip]rdquo ndash CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit p523
145 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Funke v France de 25 de fevereiro de 1993 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
146 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Murray v United Kingdom de 8 de fevereiro 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
147 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Saunders v United Kingdom de 17 de dezembro de 1996 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
58
sujeito a um procedimento criminal com o fim de o obrigar a cooperar numa investigaccedilatildeo
montada contra si
O TEDH veio a constatar que as autoridades francesas aduaneiras procuraram a
condenaccedilatildeo do Sr Funke para obter dele documentos que acreditavam dever existir embora
natildeo tendo a certeza da existecircncia dos mesmos assim natildeo tendo condiccedilotildees para obter os
documentos coagiram ndash por via de um procedimento criminal ndash o queixoso a fornecer ele
proacuteprio a prova da infraccedilatildeo que supostamente cometera Desse modo conclui o Tribunal148 que
as regras particulares do direito aduaneiro que permitiam a condenaccedilatildeo do Sr Funke natildeo
podem justificar a violaccedilatildeo do direito de que qualquer ldquoacusado de uma ofensa criminalrdquo em
permanecer em silecircncio e natildeo contribuir para a autoincriminaccedilatildeo assegurado pelo art6ordm nordm1
da Convenccedilatildeo ndash que no caso entendeu o TEDH foi violado Pelos mesmos motivos a
presunccedilatildeo da inocecircncia tambeacutem eacute desrespeitada149
No caso Murray estava essencialmente em causa a consideraccedilatildeovaloraccedilatildeo no juiacutezo
probatoacuterio do silecircncio do acusado Factualmente estaacutevamos perante um caso de terrorismo
tendo o Sr Murray sido detido e condenado (pelos crimes de auxiacutelio e incitamento ao sequestro)
por se encontrar dentro da casa a descer as escadas aquando da intervenccedilatildeo policial onde
estavam sequestradores (Exeacutercito Republicana Irlandecircs ndash IRA) e sequestrado (Sr L agente do
IRA que entretanto se tinha convertido em informador das autoridades policiais) Quer no
momento da detenccedilatildeo quer durante o julgamento o Sr Murray exerceu o seu direito ao silecircncio
ndash recusando-se a justificar o motivo pelo qual se encontrava naquele lugar ndash embora tenha sido
advertido que o tribunal podia retirar da eventual recusa em prestar declaraccedilotildees as devidas
consequecircncias
Muito embora a questatildeo principal do acoacuterdatildeo seja a condenaccedilatildeo do arguido com base nos
juiacutezos probatoacuterios de inferecircncia extraiacutedos da conjugaccedilatildeo de factos diretamente provados e do
exerciacutecio do direito ao silecircncio o TEDH teve tambeacutem oportunidade para concluir que conquanto
natildeo estejam especificadamente mencionados no art6ordm da Convenccedilatildeo (CEDH) natildeo haacute duacutevida
que o direito a guardar silecircncio no interrogatoacuterio policial e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo
148 ldquoLa Cour constate que les douanes provoquegraverent la condamnation de M Funke pour obtenir certaines piegraveces dont elles supposaient
lrsquoexistence sans en avoir la certitude Faute de pouvoir ou vouloir se les procurer par un autre moyen elles tentegraverent de contraindre le requeacuterant agrave
fournir lui-mecircme la preuve drsquoinfractions qursquoil aurait commises Les particulariteacutes du droit douanier (paragraphes 30-31 ci-dessus) ne sauraient
justifier une telle atteinte au droit pour tout accuseacute au sens autonome que lrsquoarticle 6 (art 6) attribue agrave ce terme de se taire et de ne point
contribuer agrave sa propre incriminationrdquo ndash Cf Paraacutegrafo 44 acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
149 Cf Paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Funke v France
59
satildeo geralmente reconhecidos como normas internacionais que se situam no coraccedilatildeo da noccedilatildeo
de processo justo150
No caso Saunders foi tratada a questatildeo primordial deste nosso trabalho o TEDH foi
chamado a pronunciar-se sobre a utilizaccedilatildeo em processo penal de declaraccedilotildees
autoincriminatoacuterias prestadas pelo arguido-recorrente num procedimento administrativo
(nomeadamente entrega de documentos e livros referentes agrave atividade de uma sociedade ndash
Guiness ndash que o Sr Saunders dirigia) Face agrave importacircncia desta jurisprudecircncia uma anaacutelise
mais detalhada deste acoacuterdatildeo seraacute feita em momento ulterior Para o que neste momento nos
interessa o TEDH entendeu que a utilizaccedilatildeo das declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias obtidas no
procedimento administrativo (inspetivo) era iliacutecita por violar o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
enquanto elemento carateriacutestico do processo equitativo tutelado pelo art6ordm CEDH151 (o Tribunal
cita neste propoacutesito as conclusotildees retiradas no acoacuterdatildeo Murray) e da presunccedilatildeo da inocecircncia
(art6ordm nordm2 CEDH) pois que o direito de natildeo se autoincriminar pressupotildee que a acusaccedilatildeo num
processo criminal prove a sua argumentaccedilatildeo contra o acusado sem recorrer a provas obtidas
atraveacutes de meacutetodos coercivos ou opressivos em desrespeito pela vontade do acusado ndash nessa
medida estaacute o direito intimamente relacionado com a presunccedilatildeo da inocecircncia152
Acompanhando a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e nela
sustentando a sua posiccedilatildeo VAcircNIA COSTA RAMOS tambeacutem atribui o princiacutepio do processo equitativo
como fundamento mais adequado do nemo tenetur e seus corolaacuterios153 natildeo obstante o
enquadramento nas garantias de defesa
150 ldquoAlthough not specifically mentioned in Article 6 (art 6) of the Convention there can be no doubt that the right to remain silent under police
questioning and the privilege against self-incrimination are generally recognised international standards which lie at the heart of the notion of a fair
procedure under Article 6 (art 6)rdquo ndash Cf paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v United Kingdom
151 Cf Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom que conteacutem redaccedilatildeo similar agrave do paraacutegrafo 45 do acoacuterdatildeo (TEDH) Murray v
United Kingdom
152 Paraacutegrafo 68 do acoacuterdatildeo (TEDH) Saunders v United Kingdom ldquo[hellip]The right not to incriminate oneself in particular presupposes that the
prosecution in a criminal case seek to prove their case against the accused without resort to evidence obtained through methods of coercion or
oppression in defiance of the will of the accused In this sense the right is closely linked to the presumption of innocence contained in Article 6
para 2 of the Convention (art 6-2)rdquo
153 Ver RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) pp133 134 e 141 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para
prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp69-72 MENEZES Sofia Saraiva op cit (parecer) p125
60
61
CAPIacuteTULO II ndash CONTEUacuteDO E AMPLITUDE DO NEMO TENETUR NO PROCESSO
PENAL PORTUGUEcircS
4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare
Vimos supra que atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio nemo tenetur
(constitucionalmente impliacutecito) que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da
sua compreensatildeo e alcance Concluiacutemos tambeacutem que o nemo tenetur apresenta como
corolaacuterios o direito ao silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo ndash sendo o direito ao
silecircncio o corolaacuterio mais importante do princiacutepio representando ldquoo nuacutecleo quase absoluto do
nemo teneturrdquo154 em conformidade com todas as razotildees histoacutericas a ele associadas
Em boa verdade alguns autores155 acabam por reconduzir o princiacutepio nemo tenetur a uma
visatildeo restritiva admitindo que o seu conteuacutedo se esgota no direito ao silecircncio Com total respeito
por opiniotildees contraacuterias cremos ndash acompanhados de um vastiacutessimo elenco de posiccedilotildees
doutrinais156 e jurisprudenciais157 ndash que o nemo tenetur abrange outras manifestaccedilotildees
potencialmente autoincriminadoras para aleacutem do direito ao silecircncio tais como a entrega de
154 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp20-21 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash Sobre a recolha de autoacutegrafos
do arguido natureza recusa crime de desobediecircncia v direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo (notas de estudo) [em linha] Guimaratildees Tribunal da
Relaccedilatildeo de Guimaratildees 2013 [Consult em 4 de maio de 2016] Disponiacutevel em httpwwwtrgptinfoestudoshtml - ldquoa manifestaccedilatildeo mais
tradicional do princiacutepio nemo tenetur eacute sem duacutevida o direito ao silecircnciordquo p29
155 Ver MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias1ordf ed Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas e da Administraccedilatildeo Puacuteblica 2007 Volume I pp171 e ss
156 RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum
accusare ndash Parte I) p133 SAacute Liliana da Silva op cit p136 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash Conteuacutedo e contornos do princiacutepio contra a
auto-incriminaccedilatildeo Belo Horizonte Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais 2003 Tese de Doutoramento pp17-18 e 42-
43 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p21 GARRETT Francisco de Almeida op cit pp20 e ss BERNARDO Joana Sofia Martins
SantrsquoAna ndash O Direito agrave Natildeo Autoincriminaccedilatildeo e os Deveres de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria Lisboa Universidade Catoacutelica
Portuguesa 2014 Tese de Mestrado p18 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp43-44
Numa perspectiva distinta daquela que ateacute entatildeo temos adotado JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 17 consideram que o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo eacute uma variante ou manifestaccedilatildeo do direito ao silecircncio ldquo[hellip] deve salientar-se aquela perspectiva que vecirc o direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeo como uma subcategoria dentro do direito ao silecircncio em sentido amplo que compreende o direito a natildeo ser obrigado a fazer
afirmaccedilotildees auto-incriminatoacuterias atraveacutes do recurso agrave violecircncia fiacutesica ou moral ou meios fraudulentos e moralmente ilegiacutetimosrdquo
157 Cf Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm 04P4208 de 5 de janeiro de 2005 relator Conselheiro Henrique Gaspar disponiacutevel
em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoO privileacutegio contra a auto-incriminaccedilatildeo significa que o arguido natildeo pode ser obrigado nem deve ser
condicionado a contribuir para a sua proacutepria incriminaccedilatildeo isto eacute tem o direito a natildeo ceder ou fornecer informaccedilotildees ou elementos (v g
documentos) que o desfavoreccedilam ou a natildeo prestar declaraccedilotildees sem que do silecircncio possam resultar quaisquer consequecircncias negativas ou
ilaccedilotildees desfavoraacuteveis no plano da valoraccedilatildeo probatoacuteriardquo No mesmo sentido Acoacuterdatildeo de fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 processo nordm 171123TAFLGG1-AS1 (adiante ac nordm142014) de 28 de maio de 2014 relator Conselheiro Armindo
Monteiro disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
62
documentos (correspondecircncia pessoal diaacuterios iacutentimos) ou intervenccedilotildees corpoacutereas para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio entre outras
O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de no seu acoacuterdatildeo nordm4182013158 realccedilar
a extrema conexatildeo existente entre o direito ao silecircncio e o nemo tenetur ldquoencontra-se [o nemo
tenetur se ipsum accusare] sobretudo associado ao direito ao silecircncio ou seja agrave faculdade de o
arguido natildeo prestar declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias nomeadamente natildeo respondendo a
questotildees sobre os factos que lhe satildeo imputados e cuja prova pode importar a sua
responsabilizaccedilatildeo e sancionamentordquo Todavia tal natildeo implica que se entenda o direito ao
silecircncio como sinoacutenimo ou conteuacutedo exclusivo do nemo tenetur ldquoO direito ao silecircncio natildeo
representa a uacutenica decorrecircncia do princiacutepio nemo tenetur se detegere no processo penalrdquo159
CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD na sua tese de doutoramento a propoacutesito dos contornos
e problemas associados ao princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo com especial incidecircncia no direito
brasileiro conclui que ldquo[a]pesar de a previsatildeo constitucional cingir-se ao lsquodireito de permanecer
caladorsquo o princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo abrange todas as accedilotildees verbais ou fiacutesicas
capazes de contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo A permanecircncia em silecircncio do acusado a
impossibilidade de coagi-lo a confessar a praacutetica do crime a recusa em submeter-se a
intervenccedilotildees corporais ndash colheita de sangue para exame de DNA ndash e a participar da
reconstituiccedilatildeo do crime a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etiacutelica em delitos de
tracircnsito a oposiccedilatildeo agrave entrega de documentos que possam comprometecirc-lo a objeccedilatildeo em prestar
juramento todos esses comportamentos por trazerem potencial lesatildeo ao direito de defesa do
acusado satildeo geralmente indicados pela doutrina como encobertos pela maacutexima [da natildeo auto-
incriminaccedilatildeo] [hellip] As manifestaccedilotildees verbais natildeo satildeo as uacutenicas formas em que se apresenta o
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo pois atraveacutes de outras condutas eacute possiacutevel produzir prova
de caraacuteter incriminatoacuterio utilizaacutevel contra quem a produziu Agrupam-se em uma uacutenica categoria
[denominada pelo autor de lsquomanifestaccedilotildees natildeo-verbaisrsquo160] todas as demais exteriorizaccedilotildees do
158 Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional nordm4182013 de 15 de julho de 2013 relatora Conselheira Catarina Sarmento e Castro disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] 3ordm Paraacutegrafo do Ponto 4 No mesmo sentido ver tambeacutem o acoacuterdatildeo Saunders v The United
Kingdom (TEDH) paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the will of an accused
person to remain silent (hellip)rdquo Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem WEH v Aacuteustria de 8 de abril 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo 40 ldquoThe right not to
incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused person to remain silentrdquo
159 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz ndash op cit p30
160 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 43 e 56 No mesmo sentido GOMES Luiz Flaacutevio ndash O princiacutepio da natildeo auto-incriminaccedilatildeo
significado conteuacutedo base juriacutedica e acircmbito de incidecircncia Disponiacutevel em httpwwwlfgcombr 26 de janeiro de 2010 ldquoA leitura desses textos
normativos [art8ordm nordm2 alg da Convenccedilatildeo Americana de Direitos Humanos (CADH) e art14ordm nordm3 alg) do PIDCP] poderia nos conduzir a uma
63
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo que natildeo se traduzem em expressotildees ourais ou a elas se
relacionemrdquo161
Num outro acoacuterdatildeo nordm 3402013 o Tribunal Constitucional vem tambeacutem a acolher esta
posiccedilatildeo de que ldquoeste princiacutepio aleacutem de abranger o direito ao silecircncio propriamente dito
desdobra-se em diversos corolaacuterios designadamente nas situaccedilotildees em que estejam em causa a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ou a entrega de documentos autoincriminatoacuterios no acircmbito de um
processo penal Tal princiacutepio interveacutem no processo penal sob duas formas distintas
preventivamente impedindo soluccedilotildees que faccedilam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de
fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenaccedilatildeo e repressivamente
obrigando agrave desconsideraccedilatildeo de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma
colaboraccedilatildeo imposta ao arguidordquo162
A questatildeo da determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute
comummente associada ao estudo do acircmbito de validade material do princiacutepio ou seja a
concreta fixaccedilatildeo do conteuacutedoalcance do princiacutepio ou por outras palavras a estipulaccedilatildeo do
conjunto de diligecircncias probatoacuterias potencialmente conflituantes com o princiacutepio isto eacute
autoincriminadoras
O problema do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur surge naqueles casos em que o
arguido (sobretudo o seu corpo) eacute meio de prova aquelas situaccedilotildees de exames e diligecircncias
probatoacuterias realizados atraveacutes e contra a vontade do arguido como colheitas de ar expirado
(vulgarmente reconhecido por ldquosopro do balatildeordquo para verificaccedilatildeo do niacutevel de alcoolemia) de
sangue urina saliva (para efeitos de determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico)163
Chegados a este ponto o obstaacuteculo que agora se nos apresenta eacute saber qual o criteacuterio ou
meacutetodo para definir e distinguir se uma concreta diligecircncia de prova embora coativamente
imposta natildeo bole com a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo e qual eacute aquela que assume
natureza autoincriminadora portanto legalmente inadmissiacutevel Pois que embora admitamos
uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash que natildeo se restringe exclusivamente ao direito
interpretaccedilatildeo restritiva do direito fundamental agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo para concluir que ele valeria apenas (e exclusivamente) em relaccedilatildeo aos
atos ldquocomunicacionaisrdquo (declaraccedilotildees confissotildees etc) Na verdade natildeo importa se o meio probatoacuterio eacute oral ou documental (escrito) ou material
ou corporal ou puramente procedimental O direito de ficar calado [hellip] assim como o direito de natildeo declarar ou o direito de natildeo confessar
(previstos nos tratados internacionais) natildeo podem ser interpretados restritivamenterdquo
161 HADDAD Carlos Henrique Borlido ndash op cit pp 42 ndash 43
162 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 de 17 de junho de 2013 relator Conselheiro Joatildeo Cura Mariana disponiacutevel em
wwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p21
64
ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo ndash natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio
uma vigecircncia absoluta164 incapaz de qualquer restriccedilatildeo De facto num Estado de Direito
Democraacutetico o princiacutepio nemo tenetur natildeo pode ser encarado na sua maacutexima amplitude de
recusa de qualquer colaboraccedilatildeo com a justiccedila sob pena de esta sair defraudada ou ateacute em
muitos casos ser completamente inalcanccedilaacutevel Nas palavras de MARIA ELIZABETH QUEIJO ldquoos
limites do nemo tenetur se detegere satildeo imanentes impliacutecitos e decorrem da necessidade de
coexistecircncia com outros valores que igualmente satildeo protegidos pelo ordenamento em sede
constitucional A definiccedilatildeo dos limites ao nemo tenetur se detegere diz respeito agrave soluccedilatildeo do
conflito entre o exerciacutecio do referido direito fundamental e a necessidade de preservaccedilatildeo de
outros bens protegidos constitucionalmente representados pela seguranccedila puacuteblica e a paz
social que satildeo alcanccedilados por meio da persecuccedilatildeo penal [hellip] Se natildeo se admitisse qualquer
limitaccedilatildeo ao nemo tenetur se detegere seria ele um direito absoluto e consequentemente em
diversas situaccedilotildees o interesse puacuteblico na persecuccedilatildeo penal restaria completamente aniquilado
comprometendo a paz social e a seguranccedila puacuteblica bens diretamente relacionados ao interesse
na persecuccedilatildeo penal que seriam sacrificados conduzindo a situaccedilotildees indesejaacuteveis socialmente
e que causariam repulsardquo165 164 Pela possibilidade de restriccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare ver
Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Heaney and McGuinness v Ireland de 21 de dezembro 2000 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] Paraacutegrafo ldquo47 The Court accepts
that the right to silence and the right not to incriminate oneself guaranteed by Article 6 sect 1 are not absolute rightsrdquo Ac do TEDH John Murray v
United Kingdom paraacutegrafo ldquo47 (hellip)Wherever the line between these two extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right
to silence that the question whether the right is absolute must be answered in the negative (hellip)rdquo Ac do TEDH Weh v Austria paraacutegrafo ldquo46
Furthermore the Court accepts that the right to silence and the right not to incriminate oneself are not absolute as for instance the drawing of
inferences from an accuseds silence may be admissible (hellip)rdquo Acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm69595 e nordm12707 Acoacuterdatildeos do
Supremo Tribunal de Justiccedila processo nordm93608JAPRT de 6 de outubro de 2010 relator Conselheiro Henrique Gaspar processo nordm 08P295
de 20 de fevereiro de 2008 relator Conselheiro Rauacutel Borges processo nordm07P3227 de 10 de janeiro de 2008 relator Conselheiro Simas Santos
todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Na doutrina ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p44 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz
op cit p24 MENEZES Sofia Saraiva op cit p132 CRUZ Andreia - Comentaacuterio ao acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila nordm
142014 recolha de autoacutegrafos e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Revista da Ordem dos Advogados Lisboa Ano 74 Vol IIIIV (julho-
dezembro 2014) p1078 MENDES Paulo de Sousa Mendes ndash O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio
especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista de
Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo2010) p 126 RAMOS Vacircnia Costa ndash Nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia ndash
Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p180 - ldquo [o] nemo
tenetur natildeo eacute todavia um princiacutepio absoluto subtraiacutedo a ponderaccedilatildeo Poderaacute ser limitado para protecccedilatildeo de outros direitos liberdade e
garantias da mesma natureza e segundo criteacuterios de adequaccedilatildeo e de proporcionalidade em conformidade com o nordm2 do art18ordm da Constituiccedilatildeo
da Repuacuteblica Portuguesardquo RAMOS Vacircnia Costa op cit (Corpus Juris 2000 ndash Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e
nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte II) pp73-74
165 QUEIJO Maria Elisabeth ndash O direito de natildeo produzir prova contra si mesmo o princiacutepio do nemo tenetur ou se detegere e suas decorrecircncias
no processo penal 2ordfed Editora Saraiva 2012 pp 405-406
65
Damos assim mote ao estudo dos acircmbitos de validade do nemo tenetur
41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal
validade normativa e validade material
A doutrina diferencia no acircmbito de validade ou aplicaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur entre
validade temporal validade material e validade normativa166
A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo A este respeito afirma-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo
o direito sancionatoacuterio no plano do Direito Portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e ao
Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social167
Neste aspeto assume especial relevacircncia a jurisprudecircncia do TEDH168 O Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem ao conjunto de acircmbitos de validade do nemo tenetur que anunciamos
166 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp22 e ss CRUZ Andreia op cit pp1071-1072
167 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 22 DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p 44 SAacute Liliana
da Silva- op cit p135 MENEZES Sofia Saraiva op cit p127 recorrendo ao artigo 32ordm nordm10 da CRP defende que ldquodever-se-aacute aplicar o direito
ao silecircncio sempre que no processo em causa se possa aplicar uma sanccedilatildeo de caraacutecter punitivo mesmo natildeo tendo caraacutecter criminal e a ser
assim valeraacute tambeacutem no campo do direito de mera ordenaccedilatildeo social e das sanccedilotildees disciplinaresrdquo DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel
da Costa op cit (parecer) pp44-46 GOMES Luiz Flaacutevio op cit afirma que ldquovale tambeacutem [o princiacutepio] perante qualquer outro juiacutezo (trabalhista
civil administrativo etc) desde que da fala ou do comportamento ativo do sujeito possa resultar uma persecuccedilatildeo penal contra ele Em siacutentese
o direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo natildeo projeta seus efeitos apenas para o acircmbito do processo penal ou investigaccedilatildeo criminal ou civil Perante
qualquer autoridade ou funcionaacuterio de qualquer um dos poderes que formule qualquer tipo de imputaccedilatildeo penal (ou se suspeite) ao sujeito
vigora o princiacutepio (a garantia) da natildeo auto-incriminaccedilatildeo (que consiste no direito de natildeo falar ou de natildeo se incriminar sem que disso possa
resultar qualquer prejuiacutezo ou presunccedilatildeo contra ele)rdquo MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no
processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem) p127 advertindo que a Lei da Concorrecircncia parece natildeo acolher a prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo pelo facto de impor antes um
dever de colaboraccedilatildeo agraves empresas questiona se ldquonatildeo seraacute que temos de considerar tal prerrogativa como uma garantia indeclinaacutevel de qualquer
espeacutecie de direito sancionatoacuterio puacuteblico tanto mais que a Constituiccedilatildeo sujeita os processos de contra-ordenaccedilatildeo e demais processos
sancionatoacuterios agraves garantias do processo penal (art32ordm nordm10 CRP)rdquo o TEDH no caso Heaney McGuinness v Ireland conclui como princiacutepio
geral que as exigecircncias de equidade contidas no art6ordm da CEDH onde se integra a natildeo autoincriminaccedilatildeo satildeo aplicaacuteveis a todos os
procedimentos criminais independentemente do tipo de crime
168 COSTA Joana ndash O princiacutepio nemo tenetur na Jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministeacuterio Puacuteblico
Lisboa Ano 32ordm nordm128 (outubro ndash dezembro 2011) Pp 117-183
Como eacute de faacutecil compreensatildeo verificamos que toda esta temaacutetica envolvente ao princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare eacute fortemente
influenciada pela jurisprudecircncia do TEDH tal prende-se com o facto de se encarar este Tribunal como uma espeacutecie de ldquosuper tribunal
constitucional europeu em mateacuteria de direitos humanosrdquo (nas palavras de JOacuteNATAS MACHADO e VERA RAPOSO op cit p 31) Na verdade como
constatam os autores com a possibilidade de atualmente se rever uma sentenccedila condenatoacuteria transitada em julgado sempre que a mesma seja
inconciliaacutevel com uma decisatildeo do TEDH conforme prescreve o art449ordm nordm1 alg) do CPP a preocupaccedilatildeo com a jurisprudecircncia do TEDH tem
sido maior [hellip] para aleacutem da responsabilidade internacional do Estado portuguecircs pela violaccedilatildeo dos direitos humanos consagrados na CEDH
admite-se agora a relativizaccedilatildeo do caso julgado por forccedila de uma decisatildeo daquela que eacute cada vez mais a suprema instacircncia judicial europeia no
66
anteriormente acrescenta um outro o acircmbito subjetivo isto eacute que sujeitos podem invocar os
direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo conforme o previsto no art6ordm da CEDH Entende
esta instacircncia judicial que estes direitos implicitamente contidos na noccedilatildeo de processo
equitativo apenas podem ser invocados por quem goze do estatuto de acusado de uma ofensa
criminal169 Na delimitaccedilatildeo deste conceito (de acusado de ofensa criminal) o TEDH tem-no
encarado sob uma perspectiva autoacutenoma ndash em relaccedilatildeo ao conceito homoacutelogo que vigora nos
demais ordenamentos dos Estados ndash e material natildeo dependente de uma acusaccedilatildeo formal no
processo onde se pretendem alegar os direitos em causa Quer isto dizer que natildeo eacute necessaacuteria a
acusaccedilatildeo formal de um indiviacuteduo para que o mesmo possa beneficiar do estatuto de acusado de
ofensa criminal e subsequentemente invocar o nemo tenetur e seus corolaacuterios
Exemplificativamente no caso que opocircs Paul Serves ao Estado Francecircs o TEDH acolhendo a
dimensatildeo material do conceito concluiu que tambeacutem eacute considerado acusado de ofensa criminal
todo aquele que natildeo se encontrando jaacute sob investigaccedilatildeo judicial pendente nem se achando
formalmente acusado no acircmbito de um qualquer procedimento pode retirar da circunstacircncia de
haver sido jaacute investigado pelos mesmos factos e de se manterem vaacutelidas certas diligecircncias
incriminatoacuterias realizadas no acircmbito de tal investigaccedilatildeo ndash beneficia deste estatuto quem foi alvo
de uma comunicaccedilatildeo oficial pela autoridade competente da qualidade de suspeito da praacutetica de
um crime170 Ora importante tambeacutem eacute saber o que se entende por lsquoofensa criminalrsquo O TEDH
no acoacuterdatildeo Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 entendeu que o
conceito de lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo a que alude o art6ordm nordm2 da CEDH compreende para
acircmbito dos direitos humanos Daiacute que seja especialmente importante atender agrave jurisprudecircncia do TEDH em mateacuteria de direito agrave natildeo auto-
incriminaccedilatildeordquo
169 Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v France de 20 de outubro de 1997 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] ac Heaney McGuinness v Ireland
SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
170 Cf Ac Serves v France Paraacutegrafo ldquo42 In the instant case the Court must examine whether Mr Serves who when summoned to appear as a
witness before the investigating judge had neither been named in the application of 13 March 1990 for a judicial investigation nor been charged
was nevertheless the subject of a ldquochargerdquo for the purposes of Article 6 sect 1
That concept is ldquoautonomousrdquo it has to be understood within the meaning of the Convention and not solely within its meaning in domestic law It
may thus be defined as ldquothe official notification given to an individual by the competent authority of an allegation that he has committed a criminal
offencerdquo a definition that also corresponds to the test whether ldquothe situation of the [suspect] has been substantially affectedrdquordquo
No caso Heaney and McGuinness o TEDH teve a oportunidade de reiterar o caraacutecter material e substantivo do conceito de acusado de ofensa
criminal que abrange tambeacutem as situaccedilotildees de quem natildeo estando acusado formalmente no momento em que decorrem os procedimentos
alegadamente contraacuterios ao direito ao silecircncio e natildeo autoincriminaccedilatildeo se encontra detido por suspeita de participaccedilatildeo em praacuteticas criminais que
se relacionavam com as informaccedilotildees que se pretendiam obter ao abrigo de poderes coativos O cerne da questatildeo centra-se assim na
substancial afectaccedilatildeo da situaccedilatildeo do indiviacuteduo Cf Paraacutegrafos 41-46 do acoacuterdatildeo
67
aleacutem das infraccedilotildees criminais as contraordenaccedilotildees171 O Tribunal172 reitera que o conceito de
lsquoacusaccedilatildeo criminalrsquo na acepccedilatildeo do artigo 6ordm eacute autoacutenomo existindo trecircs criteacuterios a ter em conta
primeiro a qualificaccedilatildeo juriacutedica da infraccedilatildeo segundo o direito nacional (criteacuterio que eacute apenas
formal servindo como ponto de partida para a anaacutelise ou seja exige-se que a infraccedilatildeo em causa
seja encarada pelo direito nacional como um iliacutecito criminal disciplinar ou contra-ordenacional)
segundo a verdadeira natureza do iliacutecito e terceiro a natureza e o grau de severidade da
sanccedilatildeo correspondente (estes dois uacuteltimos criteacuterios satildeo alternativos pelo que ldquobastaraacute verificar o
caraacutecter geral da previsatildeo legal tipificadora e o propoacutesito simultaneamente preventivo e
repressivo da sanccedilatildeo correspondente para concluir no sentido de que a ofensa em questatildeo
apesar de constituir um iliacutecito de mera ordenaccedilatildeo social segundo o direito interno tem natureza
criminal para efeitos do art6ordm da Convenccedilatildeo sem necessidade de consideraccedilatildeo adicional do
criteacuterio por uacuteltimo enunciadordquo)173
Quanto ao acircmbito de validade temporal importa referir que este acircmbito relaciona-se
intimamente com a questatildeo da titularidade do direito ao silecircncio e da prerrogativa da natildeo
autoincriminaccedilatildeo por parte de determinados sujeitos eou participantes processuais Portanto
mais do que saber cronoloacutegica e processualmente quando vigora o princiacutepio o acircmbito de
validade temporal chama agrave colaccedilatildeo o acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo
O princiacutepio vale mesmo antes da constituiccedilatildeo de arguido ademais o nemo tenetur pode
ser ldquoum factor de constituiccedilatildeo de arguido Com efeito se as perguntas ou os pedidos dirigidos a
uma pessoa satildeo de molde a levantar a suspeita sobre o seu desenvolvimento na praacutetica de um
crime a lei permite natildeo soacute que ela se recuse a responder-lhes mas tambeacutem que solicite a sua
constituiccedilatildeo como arguidordquo 174 Pense-se a este respeito na particular situaccedilatildeo prevista no 171 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Engel and others v The Netherlands de 8 de junho de 1976 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengdocumentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha]
172 Cf Ac Engel and others v The Netherlands paraacutegrafos 82 - 83 ldquoHence [] [i]n this connection it is first necessary to know whether the
provision(s) defining the offence charged belong according to the legal system of the respondent State to criminal law disciplinary law or both
concurrently This however provides no more than a starting point The indications so afforded have only a formal and relative value and must be
examined in the light of the common denominator of the respective legislation of the various Contracting States
The very nature of the offence is a factor of greater import [hellip] However supervision by the Court does not stop there Such supervision would
generally prove to be illusory if it did not also take into consideration the degree of severity of the penalty that the person concerned risks
incurring In a society subscribing to the rule of law there belong to the criminal sphere deprivations of liberty liable to be imposed as a
punishment except those which by their nature duration or manner of execution cannot be appreciably detrimental The seriousness of what is at
stake the traditions of the Contracting States and the importance attached by the Convention to respect for the physical liberty of the person all
require that this should be so [hellip]It is on the basis of these criteria that the Court will ascertain whether some or all of the applicants were the
subject of a criminal charge within the meaning of Article 6 para 1rdquo
173 COSTA Joana op cit pp127-128
174 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23
68
art59ordm nordm2 do CPP referente agraves pessoas suspeitas da praacutetica de um crime concluiacutemos deste
caso que o nemo tenetur vale tambeacutem (aproveitando assim as conclusotildees a que chegamos da
anaacutelise anterior da jurisprudecircncia do TEDH) para os ldquosuspeitosrdquo isto eacute ldquotoda a pessoa
relativamente agrave qual exista indiacutecio de que cometeu ou se prepara para cometer um crime ou
que nele participou ou se prepara para participarrdquo (art1ordm ale) CPP) De realccedilar eacute tambeacutem o
caso semelhante das testemunhas no processo penal portuguecircs enquanto titulares do direito
ao silecircncio (art 132ordm nordm 2)
Incide sobre as testemunhas o dever de responderem com verdade agraves perguntas que lhes
forem dirigidas (art132ordm nordm1 al d) do CPP) O testemunho falso eacute punido com pena de prisatildeo
de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa natildeo inferior a 60 dias conforme o disposto no
art360ordm nordm1 do CP Todavia o dever das testemunhas em responderem agraves perguntas que lhes
satildeo dirigidas cessa quando alegarem que das respostas fornecidas resultaraacute a sua
responsabilizaccedilatildeo penal nessa medida semelhantemente ao que se verifica com o arguido
tambeacutem as testemunhas natildeo tecircm o dever de se autoincriminarem
Contudo devemos de alertar que esta uacuteltima faculdade atribuiacuteda agraves testemunhas natildeo se
deve de confundir com o falseamento nas respostas ainda que para esconder a sua eventual
responsabilidade penal175 A testemunha tem natildeo soacute o dever de responder agraves perguntas que lhe
forem dirigidas como o dever de as responder com verdade sob pena de cominaccedilatildeo em
falsidade de testemunho Significa isto que a testemunha natildeo pode responder falsamente
poreacutem quando o fizer para evitar que ela proacutepria o cocircnjuge um adotante ou adotado os
parentes ou afins ateacute ao 2ordm grau ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo que com aquele
viva em condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges se exponham ao perigo da responsabilidade penal
por via do depoimento a puniccedilatildeo por falsidade de testemunho seraacute especialmente atenuada
nos termos do art 364ordm al b) do CP
Interligando os vaacuterios acircmbitos de validade do nemo tenetur ateacute agora mencionados ndash
temporal subjetivo e normativo ndash o dilema que a comunidade juriacutedica atravessa neste momento
eacute o de saber se o princiacutepio tem aplicaccedilatildeovigora naqueles casos em que natildeo estando no
decurso do processo penal propriamente dito176 ndash quiccedilaacute na iminecircncia hipoteacutetica ou remota da
sua futura existecircncia ndash um determinado indiviacuteduo (pex contribuinte administrado) destinataacuterio
do procedimento que visa obter informaccedilotildees potencialmente atentatoacuterias contra a natildeo 175 Cf SILVA Germano Marques da - Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 187-188
176 Exemplificativamente num procedimento administrativo que prevecirc a utilizaccedilatildeo de poderes coercivos para a obtenccedilatildeo de informaccedilotildees como o
caso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
69
autoincriminaccedilatildeo pode invocar nesse momento o nemo tenetur Esta eacute a questatildeo base da
monografia que nos comprometemos a responder posteriormente
Para jaacute enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento da
personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas sucessivas
fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais177 valeraacute de igual forma
perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
A delimitaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur eacute outra dificuldade que a
comunidade juriacutedica encontra ao estabelecer os contornos e conteuacutedos do princiacutepio
Citando COSTA ANDRADE ldquo[as] dificuldades [hellip] sobem de tom agrave medida que nos afastamos
da consideraccedilatildeo abstracta dos problemas e nos aproximamos das constelaccedilotildees tiacutepicas situadas
na zona de fronteira e concorrecircncia entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu
estatuto como objecto de medidas de coacccedilatildeo ou meio de prova Nesta zona cinzenta deparam-
se natildeo raro situaccedilotildees em que natildeo eacute faacutecil decidir quando se estaacute ainda no acircmbito de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coactivamente impostos ou
quando inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel auto-incriminaccedilatildeo coercivardquo178
O acircmbito de validade material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da concreta
determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios179 essencialmente com a anaacutelise
sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes tendo em conta o
caraacutecter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas ao sujeito Cabe entatildeo questionar se o
direito ao silecircncio e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo permitem a recusa agrave sujeiccedilatildeo a diligecircncias
de obtenccedilatildeo de prova ou em que termos podemos aferir que aquela diligecircncia de prova
confronta inadmissivelmente o nemo tenetur garantia de defesa do arguido180 177 ANDRADE Manuel da COSTA - op citp131 No mesmo sentido Luiz Flaacutevio Gomes op cit ldquoas dimensotildees do direito de natildeo auto-incriminaccedilatildeo
que acabamos de elencar valem (satildeo vigentes incidem) tanto para a fase investigatoacuteria [hellip] como para a fase processual (propriamente dita)rdquo
MENEZES Sofia Saraiva - op cit p126
178 ANDRADE Manuel da Costa ndash op cit p127 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa ndash op cit p23 - ldquoOs problemas relacionados com o
acircmbito de validade material do nemo tenetur satildeo um pouco mais complexos requerendo por isso mais atenccedilatildeordquo
179 Ver supra ldquo 4 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusarerdquo
180 Para alguns autores cujo destacamos a posiccedilatildeo de SOFIA SARAIVA DE MENEZES reconduzem o nemo tenetur agrave visatildeo restritiva do direito ao
silecircncio isto eacute o nemo tenetur se ipsum accusare apenas teria como conteuacutedo o direito ao silecircncio e este uacuteltimo apenas englobaria as
manifestaccedilotildees verbaiscomunicacionais Fazem-no recorrendo a uma interpretaccedilatildeo puramente literal e restritiva do art61ordm nordm1 ald) do CPP
que apenas diria respeito agrave prova por declaraccedilotildees deixam agrave margem desta questatildeo todas as outras diligecircncias probatoacuterias sobre as quais
existe um dever de sujeiccedilatildeo do arguido nos termos do art172ordm do CPP natildeo cabendo invocar o nemo tenetur nestes casos O controlo da
atuaccedilatildeo das autoridades neste domiacutenio probatoacuterio apenas incidia sob a inviolabilidade da integridade fiacutesica e moral das pessoas (art126ordm CPP e
art 32ordm nordm8 CRP) ldquoEsta parece-nos ser a interpretaccedilatildeo correcta ateacute porque a concepccedilatildeo de um campo de aplicaccedilatildeo mais extenso carece de
base legal o direito ao silecircncio eacute apenas o direito que assiste ao arguido de natildeo lhe ser extorquida uma confissatildeo Ao admitirmos o contraacuterio
estariacuteamos a favorecer um efeito dominoacute em relaccedilatildeo agraves provas pessoais cujo resultado seria totalmente fraudulento para o sucesso da
70
Inerente a toda esta temaacutetica estaacute o estatuto de sujeito processual do arguido e a
possibilidade de o mesmo ser objeto de medidas de coaccedilatildeo ou meios de prova181 Em boa
verdade nada impede que o arguido seja ele proacuteprio meio de prova Como explica CLAUS
ROXIN182 ldquo[e]l imputado no es uacutenicamente sujeto del proceso esto es interviniente en el
procedimiento con derechos procesales autoacutenomos [hellip] sino tambieacuten medio de prueba En hay
que diferenciar 1 Las declaraciones del imputado y su comportamiento en el juicio oral juega
sin lugar a dudas un importante papel para la formacioacuten de la sentencia del tribunal Por
supuesto es posible que una sentencia se base exclusivamente en la declaracioacuten del imputado
p ej en su confesioacuten A pesar de ello el imputado no es medio de prueba en sentido teacutecnico
como lo es el testigo el imputado lsquono puede ser obligado a declarar como testigo contra siacute
mismo o a declararse culpablersquo [hellip] 2 El imputado uacutenicamente es medio de prueba en sentido
teacutecnico (objeto de la inspeccioacuten ocular) siempre que sea examinado en relacioacuten a su estado
psiacutequico o corporal cuando se toma radiografiacuteas o huellas digitales de eacutel etc [hellip] asiacute como
cuando se lo confronta con un testigordquo
Tal sujeiccedilatildeo prevista no art61ordm nordm3 al d) do CPP natildeo pode nos termos da lei ser
conseguida com desrespeito pela integridade fiacutesica e moral das pessoas sob pena da prova ser
considerada nula e proibida (art126ordm do CPP) e ter por finalidade a extorsatildeo de declaraccedilotildees ou
quaisquer atos processuais de forma autoincriminadoras que ldquonatildeo sejam expressatildeo da vontade
livre do arguidordquo183
Enquanto sujeito processual o arguido eacute dotado de direitos e deveres processuais (ar60ordm
CPP) De entre os deveres processuais cumpre destacar o mencionado no art 61ordm nordm3 al d) do
CPP que estabelece a obrigaccedilatildeo de sujeiccedilatildeo do arguido a diligecircncias probatoacuterias e a medidas
de coaccedilatildeo especificadas na lei ldquoRecaem em especial sobre o arguido os deveres de [hellip]
sujeitar-se a diligecircncias de prova e a medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial especificadas na investigaccedilatildeo criminal a descoberta da verdade material ficaria assim irremediavelmente comprometida Todo o resto cai portanto na aliacutenea d9
do nordm3 do art61 do CPP disposiccedilatildeo esta que caso se permitisse uma interpretaccedilatildeo mais lata do direito ao silecircncio ficaria totalmente desprovida
de sentidordquo ndash cf MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 134-135
181 DIAS Jorge de Figueiredo - op cit (Direito processual penal) p437 MENEZES Sofia Saraiva op cit p 133
182 Cf Op cit pp208-209 Tal como FIGUEIREDO DIAS op cit (Direito Processual Penal) p437 ldquoem sentido material atraveacutes das declaraccedilotildees
prestadas sobre os factos [hellip] em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames
(art171ordm e ss CPP)rdquo EDUARDO MAIA COSTA no seu artigo ldquoA presunccedilatildeo de inocecircncia do arguido na fase de inqueacuteritordquo inserido na Revista do
Ministeacuterio Puacuteblico Ano 23ordm nordm92 (outubro- dezembro de 2002) pp 65-79 analisa a implicacircncia da presunccedilatildeo da inocecircncia na utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova salientando a inexistecircncia de um dever de colaboraccedilatildeo na investigaccedilatildeo e a importacircncia neste domiacutenio do direito
ao silecircncio
183 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia ndash Coacutedigo Processo Penal anotado ndash Legislaccedilatildeo Complementar 16ordmed Coimbra Almedina 2007 p176
anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p430
71
lei e ordenadas e efetuadas por entidade competenterdquo184 A reforccedilar o dever de sujeiccedilatildeo a
diligecircncias probatoacuterias estipula o art172ordm nordm1 do CPP que ldquose algueacutem pretender eximir-se ou
obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada pode ser
compelido185 por decisatildeo da autoridade judiciaacuteria competenterdquo
Mas esse dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova abrange todo e qualquer tipo de provas
legalmente admissiacuteveis nos termos do art125ordm do CPP186 Podemos adiantar contrariando
alguma mas parca doutrina e jurisprudecircncia que a resposta seraacute negativa pois aquelas
normas (art60ordm in fine e art61ordm nordm3 ald) ambos do CPP) apenas se referem agraves diligecircncias
ldquoespecificadas na leirdquo o que bem se compreende pelo confronto de interesses subjacente a esta
questatildeo por um lado o interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo prevenccedilatildeo e repressatildeo da
atividade criminal (a proacutepria eficaacutecia do sistema processual penal) e por outro o direito a natildeo
se autoincriminar tutela da integridade fiacutesica e moral e o livre desenvolvimento da
personalidade187
184 Cf Art61ordm nordm3 ald) do CPP
185 Eacute discutida na doutrina a interpretaccedilatildeo a dar agrave expressatildeo ldquopoder ser compelidordquo a que alude o art172ordm nordm1 do CPP nomeadamente saber
se agrave luz deste preceito normativo eacute liacutecito (ou natildeo) o uso da forccedila A doutrina divide-se entre aqueles que rejeitam liminarmente tal cenaacuterio e
aqueles que por sua vez permitem o uso da forccedila para a realizaccedilatildeo coativa dos exames No primeiro grupo (aqueles que recusam)
encontramos MONIZ Maria Helena ndash Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins criminais Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho de 2002) pp249-250 ldquoMas constitui um crime de violaccedilatildeo de integridade fiacutesica a
recolha agrave forccedila de qualquer amostrardquo FIDALGO Soacutenia ndash Determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico como meio de prova em processo penal Revista
Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 16 nordm1 (janeiro-marccedilo de 2006) p 135 ldquoPodemos questionar o que significa ldquoser compelidordquo Natildeo nos
parece que signifique a admissibilidade do recurso agrave forccedila Significaraacute sim que o sujeito em causa natildeo tem o direito de recusar a sujeiccedilatildeo ao
referido examerdquo Aproveitando a posiccedilatildeo de SOacuteNIA FIDALGO tambeacutem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p 30 natildeo defendem a
utilizaccedilatildeo da forccedila Por outro lado encontramos quem admita a utilizaccedilatildeo da forccedila nestes casos veja-se entre outros ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit pp 463e 477 anotaccedilatildeo ao art172ordm ldquoo uso da forccedila eacute uma medida de uacuteltima instacircncia mas indispensaacutevel pois de outro modo
seria faacutecil ao examinado impedir a recolha de prova em casos graves se isso soacute custasse a puniccedilatildeo menos grave a tiacutetulo de desobediecircnciardquo
Em termos jurisprudenciais admite-se a legalidade e constitucionalidade da colheita compulsiva sob ameaccedila ou com recurso agrave forccedila fiacutesica de
amostras bioloacutegicas (cabelo saliva sangue ou urina) para determinaccedilatildeo do ADN do arguido nos acoacuterdatildeos entre outros Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm32612001 de 9 de janeiro de 2002 relator Desembargador Oliveira Mendes Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm
0546541 de 3 de maio de 2006 relatora Desembargadora Alice Santos todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha] Esta
mesma Relaccedilatildeo ndash do Porto ndash no acoacuterdatildeo processo nordm 0816480 de 28 de janeiro de 2009 relatora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias
entendeu que o facto de se prever que algueacutem possa ser compelido agrave realizaccedilatildeo do exame natildeo significa poreacutem que a decisatildeo da autoridade
judiciaacuteria competente possa ser executada sem mais com utilizaccedilatildeo da forccedila ainda que de forma proporcionada e justificada ldquosempre se pode
por isso defender que natildeo haacute norma expressa a prever a execuccedilatildeo de decisatildeo [hellip] atraveacutes do uso da forccedila fiacutesicardquo
Ademais sempre se poderaacute questionar se haacute ou natildeo um eventual ldquoabuso de poderrdquo institucional do Estado pelo facto do uso da forccedila fiacutesica ser
aparentemente incompatiacutevel com a tutela da dignidade humana integridade pessoa liberdade de accedilatildeo e reserva da intimidade do visado
186 Dispotildee o art125ordm CPP ldquoSatildeo admissiacuteveis as provas que natildeo forem proibidas por leirdquo
187 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash Coacutedigo Processo Penal Anotado (art1ordm a 240ordm) 2ordfed Lisboa Editora Rei dos Livros
2003 I Volume p870
Decidiu o Ac do Tribunal Constitucional nordm17292 de 6 de maio de 1992 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha] que ldquo[o] processo penal de um Estado de Direito mdash e como Estado de Direito se define a
72
Em primeiro lugar realccedilamos que a lei estabelece importantes regras no domiacutenio da
prova proibida Dispotildee o art126ordm nordm1 do CPP em consonacircncia com o art32ordm nordm8 da Lei
Fundamental que ldquosatildeo nulas natildeo podendo ser utilizadas as provas obtidas mediante tortura
coaccedilatildeo ou em geral ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoasrdquo O nordm2188 explicita o que
devemos entender por ofensas agrave integridade fiacutesica ou moral das pessoas ldquo2 Satildeo ofensivas da
integridade fiacutesica ou moral das pessoas as provas obtidas mesmo que com consentimento
delas mediante a) perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo atraveacutes de [hellip] ofensas
corporais [hellip] c) utilizaccedilatildeo da forccedila fora dos casos e dos limites permitidos pela lei [hellip]rdquo Ora
facilmente se constata que o conjunto de diligecircncias probatoacuterias que tecircm maior implicaccedilatildeo com
o acircmbito de verdade material do nemo tenetur e com a utilizaccedilatildeo do corpo do arguido para
obtenccedilatildeo de prova (pex recolha de saliva atraveacutes de zaragatoa bucal colheita de amostras de
sangue para determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico expiraccedilatildeo de ar para detecccedilatildeo do grau de
alcoolemia entre outros) satildeo agrave partida contraacuterias ao art126ordm do CPP por implicarem ainda
que de modo reduzido uma interferecircncia e afetaccedilatildeo da integridade fiacutesica do sujeito
Na anotaccedilatildeo ao art32ordm nordm8 da CRP JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS dizem ldquo[o] que haacute de
novo no nordm8 natildeo eacute a proibiccedilatildeo do uso de meios proibidos na obtenccedilatildeo dos elementos de prova
mas essencialmente a utilizaccedilatildeo das provas obtidas por tais meios Essas provas eacute que satildeo
nulas nulidade que deve ser considerada em sentido forte ou seja como proibiccedilatildeo absoluta da
sua utilizaccedilatildeo no processo seria intoleraacutevel que para realizar a Justiccedila no caso fossem utilizados
elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituiccedilatildeo e incriminados pela leirdquo189 A ser
assim que sentido tem pragmaticamente a sujeiccedilatildeo imposta no art61ordm nordm3 ald) e art172ordm
CPP
Repuacuteblica Portuguesa (cfr artigo 2ordm da Constituiccedilatildeo) mdash haacute-de por isso cumprir dois objectivos fundamentais assegurar ao Estado a
possibilidade de realizaccedilatildeo do seu ius puniendi e oferecer aos cidadatildeos as garantias necessaacuterias para os proteger contra os abusos que possam
cometer-se no exerciacutecio do poder punitivo designadamente contra a possibilidade de uma sentenccedila injusta Um tal processo mdash ou seja o
processo de um Estado de Direito mdash haacute-de por conseguinte ser um processo equitativo [hellip] Haacute-de assim ter uma preocupaccedilatildeo dominante mdash a
busca da verdade material Mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido mdash o que entre o mais exige que se assegurem a este
todas as garantias de defesa e que se natildeo admitam provas que natildeo passem pelo crivo do contraditoacuterio e pela percepccedilatildeo directa e pessoal do juiz
(princiacutepios da oralidade e da imediaccedilatildeo)rdquo
188 A doutrina discute a taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP Pela tese da natildeo taxatividade do art126ordm nordm2 do CPP FIDALGO Soacutenia op cit
p133 ldquoHaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido
nordm2rdquo ANDRADE Manuel da Costa op cit p216 e ROXIN Claus op cit 214 no que respeita ao paradigma processual germacircnico
Em sentido contraacuterio GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p321 ldquoOs actos ofensivos da integridade fiacutesica ou moral das pessoas vecircm agora
descritos taxativamente nas diversas aliacuteneas do nordm2rdquo
189 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui ndash Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Coimbra Coimbra Editora 2005 Tomo I p362
73
Como concluiacutemos anteriormente o nemo tenetur se ipsum accusare fundado
indiretamente na dignidade humana livre desenvolvimento da personalidade e integridade
pessoal natildeo pode ser entendido de forma tatildeo radical e absoluta nos termos de permitir uma
total abstenccedilatildeo do sujeito em colaborar e em certos casos a impedir a realizaccedilatildeo da justiccedila
Aceitando a posiccedilatildeo do Tribunal Constitucional expressa no acoacuterdatildeo 2282007190 ldquo[d]e acordo
com o CPP o arguido para aleacutem dos direitos e deveres consagrados de forma natildeo exaustiva
no art61 do CPP tem como todas as pessoas em geral o dever de colaboraccedilatildeo com as
autoridades judiciaacuterias para a realizaccedilatildeo da justiccedila nomeadamente o dever de se submeter a
exame ndash arts 171ordm e segs do CPPrdquo O facto de o arguido ser encarado como sujeito
processual natildeo impede que o mesmo seja objeto de medidas de coaccedilatildeo e constitua ele proacuteprio
meio de prova (nunca com a intenccedilatildeo de extrair declaraccedilotildees autoincriminadoras por essa via)
Todavia deve referir-se desde jaacute que o facto do art61ordm nordm3 ald) do CPP estipular o dever
geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncias de prova natildeo significa uma impossibilidade do arguido se opor
agravequelas diligecircncias manifestamente ilegais (pex por ofenderem os seus direitos fundamentais)
atraveacutes dos meios que a lei lhe confere para essa finalidade ldquo[o] que o artigo 61ordm nordm3 ald)
prevecirc eacute que pressupondo que o meio de prova seja legal como de resto se alcanccedila dos artigos
125ordm e 126ordm do CPP o arguido deve sujeitar-se agrave diligecircncia [hellip] Ou seja natildeo pressupotildee um
dever geral de sujeiccedilatildeo a diligecircncia mesmo que o meio de prova seja ilegalrdquo191
Por sua vez o art125ordm do CPP consagra o princiacutepio (ou regra da) atipicidade dos meios
de prova192 ou seja a adopccedilatildeo do ldquosistema da geral admissibilidade de qualquer meio de prova
[hellip] fazendo-se apenas exclusatildeo daqueles meios probatoacuterios que a lei proiacutebardquo193 A regra seraacute a
de que agrave partida todas as provas satildeo admissiacuteveis desde que sejam relevantes para a resoluccedilatildeo
do caso concreto e natildeo estejam proibidas por qualquer disposiccedilatildeo legal Esta regra apresenta-se
190 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm2282007 de 28 de marccedilo de 2007 relatora Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em
httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
191 Cf MONTE Maacuterio Ferreira ndash O resultado da anaacutelise de saliva colhida atraveacutes de zaragatoa bucal eacute prova proibida Revista do Ministeacuterio
Puacuteblico Lisboa Ano 27 nordm108 (outubro-dezembro 2006) p255
192 ALBUQUERQUE Paulo Pinto ndash op cit p 316
193 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p658
74
como corolaacuterio loacutegico de um outro princiacutepio o da legalidade da prova194 ldquosegundo o qual fica
vedada a utilizaccedilatildeo de instrumentos probatoacuterios que o legislador tenha considerado ilegiacutetimosrdquo195
Contudo advertimos que a interpretaccedilatildeo do art125ordm do CPP natildeo pode levar a admitir que
tudo o que natildeo for proibido seja permitido sendo o Direito Processual Penal um direito
constitucional aplicado natildeo satildeo aceitaacuteveis as provas que ofendem a Lei Fundamental Por esse
motivo existem assim limites de ordem constitucional neste plano probatoacuterio que visam
garantir os direitos fundamentais do cidadatildeo art25ordm nordm1 art32ordm nordm8 e 34ordm todos previstos na
CRP Consentaneamente o art126ordm do CPP enumera um conjunto de proibiccedilotildees de prova que
devem ser respeitadas concretamente Tal como conclui MAacuteRIO MONTE196 a leitura do art125ordm do
CPP natildeo pode conduzir a um interpretaccedilatildeo de que quando um meio de prova natildeo estiver
expressamente proibido na lei eacute admitido ldquonatildeo eacute necessaacuterio que o CPP faccedila uma enumeraccedilatildeo
exaustiva e pormenorizada de todos os meios de prova proibidos porque o que importa eacute o
enunciado dos meacutetodos proibidos de prova nestes cabendo todas as actividades que em
concreto e de acordo com aqueles preceitos integrem em qualquer um dos meacutetodos
proibidosrdquo197
Retomando a anaacutelise ao dever de sujeiccedilatildeo a diligecircncias probatoacuterias previsto no art61ordm
nordm3 ald) do CPP o nosso CPP faz a distinccedilatildeo entre meios de prova (art128ordm e ss) e meios de
obtenccedilatildeo de prova (art171ordm e ss) Os meios de prova caracterizam-se por serem por si
mesmos fontes do convencimento do juiz ou seja permitem ao julgador atraveacutes da sua
apreciaccedilatildeo decidir a respeito da verificaccedilatildeo ou natildeo de determinado facto Por sua vez os meios
de obtenccedilatildeo de prova satildeo instrumentos de que se servem as autoridades judiciaacuterias para
investigar e recolher meios de prova198
De entre os vaacuterios meios de obtenccedilatildeo de prova previstos no CPP destacamos os artigos
171ordm a 173ordm do CPP que estabelecem o regime relativo aos exames199 O art171ordm nordm1 dispotildee 194 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 318 FERREIRA Marques ndash Meios de prova In CEJ (org) Jornadas de Direito Processual Penal
Coimbra Almedina 1995 p224 - ldquoPressupotildee este princiacutepio a existecircncia legal de limites aos meios de prova pois na prossecuccedilatildeo da verdade
material que se pretende atingir no processo penal o julgador natildeo pode deixar de ter sempre presente o pensamento de HEIDEGGER de que
ldquotoda a verdade autecircntica passa pela liberdade da pessoardquordquo
195 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal ndash op cit p658
196 Cf op cit p255
197 Aproveitando o exemplo fornecido pelo autor natildeo eacute necessaacuterio que a lei diga expressamente que dar bofetadas eacute proibido porque a sua
proibiccedilatildeo resulta diretamente do art126ordm nordm2 ala) ndash MONTE Maacuterio Ferreira op cit p256
198 SILVA Germano Marques da ndash Curso de Processo Penal 4ordf Ed Lisboa Editorial Verbo 2008 Volume II pp 233-234 MONTE Maacuterio
FerreiraLOUREIRO Flaacutevia Noversa ndash Direito Processual penal ndash roteiro de aulas Braga AEDUM 2012 p361
199 Os exames distinguem-se das periacutecias (art151ordm a 163ordm do CPP) desde logo porque os primeiros satildeo meios de obtenccedilatildeo de prova e os
segundos satildeo meios de prova Aleacutem do mais a periacutecia eacute um meio de prova que visa a avaliaccedilatildeo de vestiacutegios da praacutetica criminal recorrendo a
75
que ldquopor meio de exames das pessoas dos lugares e das coisas inspecionam-se os vestiacutegios
que possa ter deixado o crime e todos os indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi
praticado agraves pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometidordquo O art172ordm nordm1
estabelece o dever de sujeiccedilatildeo a exame sendo que aquele que se eximir ou obstar agrave realizaccedilatildeo
do exame devido pode ser compelido por decisatildeo de autoridade judiciaacuteria competente O exame
eacute assim ldquoum meio de obtenccedilatildeo de prova que contende com a recolha e a anaacutelise dos vestiacutegios
materiais eventualmente relevantes para a determinaccedilatildeo da praacutetica de um crime e do
circunstancialismo espaacutecio-temporal que o rodeourdquo200 nos exames ldquoou a autoridade judiciaacuteria se
apercebe directamente dos elementos de prova buscando directamente os vestiacutegios e indiacutecios
pela inspecccedilatildeo do local das pessoas ou das coisas e o exame eacute um meio de obtenccedilatildeo dos
vestiacutegios que satildeo os meios de prova ou indirectamente atraveacutes do auto elaborado por autoridade
judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal em que se descrevem os vestiacutegios que o crime deixou e os
indiacutecios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticadordquo201
Na perspetiva de FIGUEIREDO DIAS que defende a constituiccedilatildeo do arguido como meio de
prova em sentido material e em sentido formal os exames apresentam dupla natureza por um
lado satildeo meios de prova ldquoenquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou
menos acentuada natureza de ldquoinspecccedilatildeordquo ou de ldquoperiacuteciardquordquo e por outro lado satildeo um meio de
coaccedilatildeo processual na medida em que o ldquoobjecto do exame seja uma pessoa que assim se vecirc
constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigaccedilatildeo sobre si mesmardquo202
Todavia a sujeiccedilatildeo coativa a diligecircncias probatoacuterias nos termos das disposiccedilotildees legais
sumariamente apresentadas soacute se deve verificar quando a realizaccedilatildeo da Justiccedila natildeo possa ser
alcanccedilada por intermeacutedio de outras diligecircncias ldquopor forma a natildeo contender-se com a decisatildeo de
vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenccedilatildeo no processo
representar um meio de defesa que lhe eacute atribuiacutedo no nosso processo penal [hellip] [O] recurso a
tais meios de obtenccedilatildeo de prova [exames] soacute poderatildeo ser ordenados e sobre o arguido impende
a consequente obrigaccedilatildeo de se sujeitar203 a eles tem caraacutecter excepcional apenas na estrita
medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova devendo observar-se quanto agrave sua
conhecimentos teacutecnicos cientiacuteficos ou artiacutesticos contrariamente o exame natildeo necessita da existecircncia de tais conhecimentos ldquoO exame visa a
detecccedilatildeo (ldquoinspecionam-serdquo) de vestiacutegios a periacutecia visa a avaliaccedilatildeo (ldquoa percepccedilatildeo ou apreciaccedilatildeo) desses vestiacutegiosrdquo ndash ALBUQUERQUE Paulo
Pinto op cit p 420
200 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p870
201 SILVA Germano Marques op cit p236
202 DIAS Jorge de Figueiredo op cit pp438-439
203 Em relaccedilatildeo agrave recusa do visado agrave submissatildeo a exame a lei estabelece a puniccedilatildeo em crime de desobediecircncia (art348ordm do CP)
76
utilizaccedilatildeo os mesmos princiacutepios que regem a aplicaccedilatildeo da medida de coaccedilatildeo da prisatildeo
preventivardquo204
Voltemos agora agrave questatildeo de saber se o arguido tem o dever de se sujeitar a todas e
quaisquer diligecircncias de prova ndash excluindo obviamente as proibidas por lei ndashou se pelo
contraacuterio tem apenas de se sujeitar agravequelas que estatildeo expressamente previstas na lei como
parece sugerir o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no art61ordm nordm3 ald) CPP A doutrina e
jurisprudecircncia dividem-se sobre esta questatildeo
Em representaccedilatildeo da corrente minoritaacuteria GERMANO MARQUES DA SILVA entende que ldquo[n]o
que agraves diligecircncias de prova respeita tem [o arguido] de sujeitar-se a todas as que natildeo forem
proibidas por lei (art125ordm) e quanto agraves medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial apenas agraves que
forem previstas na lei(art191ordm)rdquo205 Tambeacutem o acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de
fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia de 28 de maio de 2014 atribui a este segmento normativo um
alcance amplo e geral de modo a abranger todas as diligecircncias de prova natildeo proibidas por lei
atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo extensiva da norma ldquoUma interpretaccedilatildeo com esta dimensatildeo
extensiva natildeo proibida com apoio no texto gramatical corrige uma interpretaccedilatildeo estreita
demais uma interpretaccedilatildeo demasiado restritiva teria como consequecircncia contradizer princiacutepios
fundamentais como o do direito do Estado agrave puniccedilatildeo o seu monopoacutelio da punibilidade e de
assegurar a tranquilidade dos cidadatildeos a sua expectativa contrafaacutectica que como direito agrave
liberdade do arguido merece no seu confronto ser sopesado e natildeo menorizadordquo206
Em sentido oposto existe quem defenda uma leitura e interpretaccedilatildeo mais restrita de
modo a declarar que as medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial e diligecircncias probatoacuterias
(art61ordm nordm3 ald) do CPP) tecircm que estar especificadas na lei ou seja preacute-configuradas e
direcionadas exclusivamente ao arguido A exigecircncia de lsquoespecificaccedilatildeorsquo isto eacute de previsatildeo legal
(princiacutepio da legalidade) natildeo eacute formulada apenas em relaccedilatildeo agraves medidas de coaccedilatildeo mas
204 Cf Ac TC nordm 2282007
205 SILVA Germano Marques da ndash Processo Penal Preliminar Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 1990 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento
p444 e Curso de Direito Processual Penal Lisboa Verbo 2000 Volume I p300 no mesmo sentido tambeacutem se pronunciaram os
MAGISTRADOS DO MINISTEacuteRIO PUacuteBLICO DO DISTRITO JUDICIAL DO PORTO ndash Coacutedigo de Processo Penal ndash Comentaacuterios e notas praacuteticas
Coimbra Coimbra Editora 2009 p154 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp134-135 consentaneamente adota esta posiccedilatildeo com fundamento
na interpretaccedilatildeo restritiva do direito ao silecircncio e prerrogativa de natildeo autoincriminaccedilatildeo que natildeo cabem ser invocados no plano do art61ordm nordm3
ald) do CPP
206 Ac STJ fixaccedilatildeo de jurisprudecircncia nordm142014 ponto VIII seacutetimo paraacutegrafo e seguintes
77
tambeacutem quanto agraves diligecircncias de prova Consequentemente o arguido apenas pode ser alvo de
diligecircncias probatoacuterias que estejam preacutevia e concretamente determinadas na lei207
Esta corrente de pensamento eacute fortemente influenciada pela doutrina de FIGUEIREDO DIAS
que a propoacutesito do estudo sobre os exames alerta para a circunstacircncia dos exames serem um
meio de coaccedilatildeo processual e ldquoas normas que os permitem natildeo poderatildeo deixar de ser
entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de
coaccedilatildeo maxime com a prisatildeo preventiva em um como em outro caso a liberdade eacute a regra e a
restriccedilatildeo daquela a excepccedilatildeo Excepccedilatildeo que aliaacutes natildeo deixa de ser constitucionalmente
imposta assegurando o art8ordm nordm1 da ConstP a todos os cidadatildeos o direito agrave integridade
pessoal quaisquer limitaccedilotildees que a tal direito sejam feitas pela lei ordinaacuteria relativa a exames
em processo penal teratildeo de obedecer agrave maacutexima strictissime sunt interpretandardquo208
A lei ordinaacuteria prevecirc vaacuterios casos de diligecircncias probatoacuterias a que o indiviacuteduo estaacute sujeito
a obrigatoriedade de realizar determinados exames por exemplo de alcoolemia ou de
substacircncias psicotroacutepicas no domiacutenio rodoviaacuterio (no atual Coacutedigo da Estrada209 estipula-se a
obrigatoriedade dos condutores se submeterem agraves provas estabelecidas para detecccedilatildeo do
estado de influecircncia pelo aacutelcool (art152ordm nordm1) atraveacutes do ar expirado (art153ordm nordm1) e nos
casos da impossibilidade da realizaccedilatildeo deste exame a submissatildeo a colheita de sangue (art153ordm
nordm8)) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito das periacutecias meacutedico-legais quando
ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas pela Lei 452004 de 19 de
agosto210 o art 43ordm nordm1 do DL nordm1593211 de 22 de janeiro relativo ao regime juriacutedico aplicaacutevel
ao traacutefico e consumo de estupefacientes e substacircncias psicotroacutepicas estipula que ldquo[s]e houver
indiacutecios de que uma pessoa eacute consumidora habitual de plantas substacircncias ou preparaccedilotildees
referidas nas tabelas I a IV assim pondo em grave risco a sua sauacutede ou revelando perigosidade
social pode ser ordenado pelo Ministeacuterio Puacuteblico da comarca da sua residecircncia exame meacutedico
adequadordquo exame esse pode ser efetuado pela colheita de sangue urina ou outra forma que se
mostrar necessaacuteria (nordm3)
207 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p7 e ss Ac TC nordm1552007 Ac Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto 28 de janeiro de
2009 p12
208 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p439 [itaacutelico nosso]
209 Cf Decreto-Lei nordm 11494 de 3 de maio alterado pela Lei nordm1162015 de 28 de agosto)
210 Cf Art6ordm nordm1 da Lei nordm452004 ldquoNingueacutem pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame meacutedico-legal quando este se mostrar
necessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciaacuteria competente nos termos da leirdquo
211 Alterado pela Lei nordm772014 de 11 de novembro
78
Com efeito estipula o art172ordm nordm1 do CPP que os indiviacuteduos estatildeo sujeitos agrave realizaccedilatildeo
de ldquoqualquer exame devidordquo a duacutevida que neste momento se coloca eacute saber quais satildeo os
exames devidos212 isto eacute a que tipo de exames eacute que o arguido tem o dever de se sujeitar Como
esclarecer o Tribunal Constitucional no seu acoacuterdatildeo nordm1552007213 ldquoo artigo 172ordm nordm 1 do
Coacutedigo de Processo Penal que prescreve a possibilidade de realizaccedilatildeo coactiva dos exames que
sejam devidos (ie que a autoridade judiciaacuteria competente possa determinar e
consequentemente que o arguido tenha o dever de suportar) pressupotildee ndash mas natildeo permite
fundamentar ndash o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame E o mesmo
acontece com o artigo 61ordm nordm 3 aliacutenea d) quando estatui que recai especialmente sobre o
arguido o dever de se sujeitar a diligecircncias de prova especificadas na lei Ora tambeacutem aqui a
questatildeo eacute justamente a de saber se a diligecircncia de prova agora em causa estaacute ou natildeo
suficientemente especificada na lei (que tem de ser obviamente outra lei que natildeo o proacuteprio
artigo 61ordm)rdquo
CRUZ BUCHO no seu estudo a propoacutesito do exame da recolha de amostras de escrita
(autoacutegrafos) tambeacutem apoia o uacuteltimo entendimento que apresentaacutemos Em boa verdade natildeo
existe qualquer disposiccedilatildeo no atual Coacutedigo de Processo Penal ou em legislaccedilatildeo avulsa214 que
imponha ao arguido a sujeiccedilatildeo agrave recolha de autoacutegrafos Contudo poder-se-aacute retirar do art172ordm
nordm1 e art61ordm nordm1 ald) a obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a essa diligecircncia em particular
Entende o autor que o art172ordm nordm1 apenas permite compelir o arguido agrave realizaccedilatildeo do exame
devido sendo que o exame apenas seraacute devido ou genericamente o arguido apenas ficaraacute 212 Entende ALMEIDA GARRETT op cit p45 entende que um exame eacute devido ldquoquando for admissiacutevel e proporcional face agrave legislaccedilatildeo vigente e lhe
estiver subjacente uma situaccedilatildeo de necessidade de excepccedilatildeo e de subsidiariedaderdquo
213 Este acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional incidia sobre a colheita coativa de vestiacutegios bioloacutegicos (zaragatoa bucal) de um arguido para
determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico no qual aquele Tribunal foi encontrar a norma habilitante para o efeito no nordm1 do art6ordm da Lei nordm452004
ldquoDo ponto de vista que agora importa considerar este preceito vai mais longe do que os anteriores podendo funcionar como norma de
autorizaccedilatildeo para a determinaccedilatildeo de um exame ldquonecessaacuterio ao inqueacuterito ou agrave instruccedilatildeo de qualquer processordquo que aqueles preceitos do Coacutedigo
de Processo Penal pressupotildeem Se o exame meacutedico-legal for necessaacuterio ao inqueacuterito ou instruccedilatildeo do processo ningueacutem pode eximir-se agrave sua
realizaccedilatildeo prescreve o artigo 6ordm nordm 1 da Lei nordm 452004 que o mesmo eacute dizer que o exame eacute entatildeo devido E sendo-o poderaacute o arguido ser
compelido agrave sua realizaccedilatildeordquo
Em termos factuais o acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional anteriormente mencionado dizia respeito a um processo em que estava em causa a
recusa pelo arguido acusada da praacutetica de dois crimes de homiciacutedio de se sujeitar agrave recolha de vestiacutegios bioloacutegicos ndash no caso ndash uma zaragatoa
bucal com vista agrave determinaccedilatildeo do seu perfil geneacutetico O arguido foi sujeito agravequela diligecircncia probatoacuteria mesmo contra a sua vontade embora
tenha manifestado o seu desacordo na realizaccedilatildeo da diligecircncia
214 Contrariamente ao que sucedia no Coacutedigo de Processo Penal de 1929 que continha uma disposiccedilatildeo que regulava expressamente o ldquoexame
para reconhecimento de letrardquo art195ordm sect3 ldquoo juiz ordenaraacute quando for necessaacuterio que a pessoa a quem eacute atribuiacuteda a letra escreva na sua
presenccedila e na dos peritos quando eles o pedirem as palavras que lhe indicar Se ela se recusar a escrever incorreraacute na pena de desobediecircncia
qualificada sendo presa imediatamente e aguardando o julgamento sob prisatildeo se antes natildeo cumprir a ordem do juiz fazendo-se de tudo
menccedilatildeo no auto da diligecircnciardquo
79
adstrito agrave realizaccedilatildeo de diligecircncias probatoacuterias quando estiverem especificamente previstas na
lei natildeo existindo qualquer disposiccedilatildeo legal que crie para o arguido a obrigaccedilatildeo de se sujeitar a
um concreto exame este natildeo eacute devido por natildeo estar especificadamente previsto na lei (eacute o que
resulta da interpretaccedilatildeo dos arts 60ordm 61ordm nordm3 ald) e 172ordm nordm1 do CPP)215
A obrigaccedilatildeo de sujeitar o arguido a uma concreta diligecircncia de prova ou exame natildeo se
extrai daqueles preceitos do CPP pois nesse caso cair-se-ia no ldquoviacutecio loacutegico de dar por
demonstrado o que se pretende demonstrarrdquo216
Ultrapassado este ponto toda esta problemaacutetica associada agrave realizaccedilatildeo coativa de exames
ou diligecircncias probatoacuterias tem fortes implicaccedilotildees com o princiacutepio nemo tenetur se ipsum
accusare mais concretamente em relaccedilatildeo ao seu acircmbito de validade material A utilizaccedilatildeo do
arguido como um meio de prova levanta o problema da distinccedilatildeo entre os casos de um exame
revista acareaccedilatildeo ou reconhecimento admissiacuteveis mesmo se coercivamente impostos e
aqueles em que se invadem o campo intoleraacutevel da autoincriminaccedilatildeo
A doutrina tem ao longo dos tempos apresentado vaacuterios criteacuterios de que o inteacuterprete se
pode socorrer para apurar se determinada diligecircncia probatoacuteria se encontra ou natildeo abrangida
pelo nemo tenetur
O primeiro criteacuterio tradicionalmente apresentado baseia-se na distinccedilatildeo entre atividade ou
accedilatildeo positiva de colaboraccedilatildeo do arguido e o mero tolerar passivo de uma atividade de terceiro ndash
apenas o primeiro caso viola o nemo tenetur ldquo[t]ais medidas soacute satildeo de todo o modo
permitidas se e na medida em que o arguido as sofra de modo meramente passivo natildeo
podendo ser compelido a participar ativamente na sua realizaccedilatildeordquo217 Este eacute um criteacuterio seguido
maioritariamente pela doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas218 mas com incidecircncias em demais
ordenamentos juriacutedicos estrangeiros219
215 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit pp16-18
216 Cf Ac nordm1152007 ponto12232 5ordm paraacutegrafo
217 GOSSEL Karl-Heinz ldquoAs proibiccedilotildees de prova no Direito processual Penalrdquo Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm3 (julho ndash
setembro 1992) p423 ndash a propoacutesito da proibiccedilatildeo de prova que atenta contra a dignidade humana
218 Cf ROXIN Claus op cit pp290-291 ldquo[d]entro del concepto de examen corporal estaacuten comprendidas tambieacuten las intervenciones corporales
como la extraccioacuten de una prueba de sangre para determinar el contenido de alcohol en la sangre y la puncioacuten lumbar entre otras [hellip] No
obstante el sect 81a solamente obliga al imputado a tolerar pasivamente el examen y no le impone cooperar tambieacuten de modo activo en el examen
corporalrdquo [itaacutelicos nossos]
Entre noacutes PINTO Lara Sofia op cit p 97 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p32 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127 e
ss FIFALGO Soacutenia op cit p141 CRUZ Andreia op cit p 1073
Na doutrina brasileira QUEIJO Maria Elizabeth op cit pp330-332 HADDDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp56 e ss
219 Vejam-se as referecircncias doutrinais e jurisprudenciais apresentadas por CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD op cit pp56-61 a propoacutesito da
influecircncia deste criteacuterio nos ordenamentos juriacutedicos espanhol italiano e norte-americano ldquoNa Alemanha e Itaacutelia eacute feita a distinccedilatildeo entre um
80
O Tribunal Constitucional Espanhol nomeadamente a propoacutesito da obrigatoriedade de
submissatildeo a testes de alcoolemia utilizando o criteacuterio mencionado afirmou que a realizaccedilatildeo dos
mesmos natildeo constitui em si uma declaraccedilatildeo ou incriminaccedilatildeo para efeitos do nemo tenetur
uma vez que ldquono se obliga al detectado a emitir una declaracioacuten que exteriorice un contenido
admitiendo su culpabilidad sino a tolerar que se le haga objeto de una especial modalidad de
periciardquo220
No Brasil este criteacuterio tem bastante aceitaccedilatildeo pela doutrina221 e jurisprudecircncia ldquoconstata-
se pois natildeo ser possiacutevel ndash ao menos natildeo se imaginou hipoacutetese ndash produzir prova incriminatoacuteria
atraveacutes de omissatildeo capaz de ser considerada na formaccedilatildeo do convencimento judicial A
produccedilatildeo de prova eacute ato eminentemente comissivo do que decorre a inaplicabilidade do
princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo agraves condutas omissivas que consistam em mero tolerar do
acusado [hellip] Somente por meio de conduta ativa pode ser produzida a prova penal pelo
acusado e apenas quando haacute produccedilatildeo de prova existe espaccedilo para a tutela do princiacutepio contra
a auto-incriminaccedilatildeo especificamente na hipoacutetese de participaccedilatildeo positiva do reacuteurdquo222 Semelhante
entendimento tem MARIA ELIZABETH QUEIJO223 ao afirmar que ldquoo que se pode exigir do acusado eacute a
participaccedilatildeo passiva nas provas como no reconhecimento a extraccedilatildeo de sangue entre outras
Nessa oacutetica o acusado deveraacute tolerar a produccedilatildeo de prova desde que natildeo haja ofensa agrave vida ou
agrave sauacutede Mas natildeo se pode exigir em contrapartida que ele participe ativamente na produccedilatildeo
das provas (como ocorre na reconstituiccedilatildeo do fato no exame grafoteacutecnico ou no etilocircmetro)
Somente neste uacuteltimo caso haveria ofensa ao nemo tenetur se detegere se o acusado fosse
compelido a colaborar na produccedilatildeo da provardquo
Todavia o criteacuterio que assenta na distinccedilatildeo entre colaboraccedilatildeo ativa e colaboraccedilatildeo passiva
(ou mero tolerar da atividade de outrem) tem sido alvo de vaacuterias criacuteticas por parte da doutrina
fazer ativo e um tolerar Sempre que a produccedilatildeo de prova envolver a necessidade de uma accedilatildeo do reacuteu faculta-se a ele recusar a cooperar Caso
a prova possa ser gerada sem uma atividade do acusado que apenas suportaraacute a accedilatildeo de terceiros natildeo haacute espaccedilo para a invocaccedilatildeo do
princiacutepio [hellip] Na Espanha a visatildeo do princiacutepio nemo tenetur se detegere eacute um pouco mais limitada Apesar de tambeacutem vigorar a regra de que a
invocaccedilatildeo do princiacutepio somente eacute possiacutevel nas hipoacuteteses em que se exige uma conduta ativa do acusado a jurisprudecircncia excepcionou algumas
hipoacuteteses tal como o teste do bafocircmetro para exclui-las do alcance da proteccedilatildeo rdquo ndash pp58-59
220 Cf Sentencia 1031985 4 de outubro de 1985 disponiacutevel em httphjtribunalconstitucionales (link) [em linha]
221 Cf GOMES Luiz Flaacutevio op cit ldquoQualquer tipo de prova contra o reacuteu que dependa (ativamente) dele soacute vale se o ato for levado a cabo de forma
voluntaacuteria e consciente Satildeo intoleraacuteveis a fraude a coaccedilatildeo fiacutesica ou moral a pressatildeo os artificalismos etc Nada disso eacute vaacutelido para a obtenccedilatildeo
da prova A garantia de natildeo declarar contra si mesmo (que estaacute contida no art 143 g do PIDCP assim como no art 8ordm 2 g da CADH) tem
significado amplo O natildeo declarar deve ser entendido como qualquer tipo de manifestaccedilatildeo (ativa) do agente seja oral documental material etcrdquo
[itaacutelicos nossos]
222 HADDAD Carlos Henrique Borlido - op cit p64
223 Cf Op cit p316
81
germacircnica mais recente 224 ndash e natildeo soacute225 para o que nos interessa a doutrina e jurisprudecircncia
portuguesas maioritariamente natildeo acolhem o criteacuterio WOLFSLAST226 adverte que o indiviacuteduo natildeo
eacute apenas instrumento da proacutepria condenaccedilatildeo quando colabore mediante conduta ativa querida
e livre mas tambeacutem quando contra a sua vontade eacute obrigado a tolerar que o seu corpo seja
meio de prova ndash ldquode resto [hellip] seraacute difiacutecil de discernir porque eacute que a dignidade humana do
arguido soacute eacute atingida quando forccedilado a uma accedilatildeo e natildeo jaacute quando compelido a ter de tolerar
uma accedilatildeordquo A criacutetica determinante deste criteacuterio que faz com que diversos autores o afastem
pela superficialidade e complexidade na aplicaccedilatildeo praacutetica que o mesmo apresenta reconduz-se
agrave dificuldade existente em distinguir sujeiccedilatildeo versus accedilatildeo Como exemplo de um caso em que se
torna difiacutecil distinguir accedilatildeo de sujeiccedilatildeo WOLFSLAST refere a prova por reconhecimento
tradicionalmente encarada como sujeiccedilatildeo ldquoeste meio de prova parece implicar antes uma accedilatildeo
do arguido e natildeo tanto uma sujeiccedilatildeo porquanto exige que o arguido adopte certa postura e natildeo
chame a atenccedilatildeo sobre a sua pessoa afim de natildeo inutilizar o resultado finalrdquo227 quando o
reconhecimento implica ele proacuteprio a imposiccedilatildeo coativa de medidas como o corte de cabelo ou
manter os olhos abertos ou determinada expressatildeo facial ldquo[d]ificilmente argumenta-se nesta
linha se poderaacute mostrar que a adopccedilatildeo forccedilada de uma expressatildeo facial haja de considerar-se
para todos os efeitos e sem mais uma mera passividaderdquo228
224 Cf WOLFSLAST Gabriele ndash Bewaisfuhrung durch heimliche Tonbandaufzeichnung NStz 1987 pp103-104 apud ANDRADE Manuel da Costa
op Cit pp127-128
225 Cf Na doutrina portuguesa satildeo vaacuterios os autores que afastam este criteacuterio apoiados na posiccedilatildeo de WOLFSLAST FIDALGO Soacutenia op cit
p141 ANDRADE Manuel da Costa op cit pp127-128 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa opcit pp32-33 PINTO Lara Sofia op cit
pp98-99
Em ponto inverso CRUZ BUCHO op cit p46 considera as criacuteticas apresentadas a este criteacuterio bastante excessivas pois incidem em aspetos
ldquomarginais e secundaacuteriosrdquo muitos deles sem qualquer relevacircncia no panorama processual penal portuguecircs Para uma refutaccedilatildeo soacutelida de todas
as criacuteticas apresentadas ao criteacuterio consultar HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp60 e ss
Em termos jurisprudenciais nacionais o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm1552007 (tal como no acoacuterdatildeo do STJ nordm142014) parece ter
afastado o criteacuterio quando afirma que ldquoconstitui [a colheita de saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN] ao inveacutes a base para uma
mera periacutecia de resultado incerto que independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar como
obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeordquo Tal como LARA SOFIA PINTO op cit p99 o Tribunal Constitucional enquadra a colheita como um caso de
colaboraccedilatildeo ativa mas natildeo lhe atribui sentido autoincriminador subsequentemente natildeo o afasta de imediato
Salientando a dificuldade na distinccedilatildeo entre accedilatildeo e sujeiccedilatildeo o STJ no acoacuterdatildeo nordm142014 adverte que mesmo em casos havidos
classicamente como de toleracircncia passiva natildeo deixa de existir uma participaccedilatildeo ativa do examinado como eacute o caso da sujeiccedilatildeo agrave recolha de
marial corpoacutereo para obtenccedilatildeo de prova em que ldquosem a colaboraccedilatildeo (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente os eu corpo
fica comprometido o resultado a alcanccedilar Haacute espaccedilo de toleracircncia mas tambeacutem de accedilatildeo em puro hibridismo em termos de funcionamento natildeo
sendo faacutecil discernir com clareza entre as duas figurasrdquo
226 Op cit pp103-104
227 PINTO Lara Sofia op cit p99
228 WOLFSLAST op cit apud ANDRADE Manuel da Costa op cit p131
82
Agrave margem desta criacutetica cremos tal como MARIA ELIZABETH QUEIJO229 que a grande
vantagem que este criteacuterio nos trouxe eacute o basilar reconhecimento de que o acusado natildeo pode
ser compelido a participar ativamente na produccedilatildeo de prova em seu desfavor ldquodesse modo natildeo
podendo ser compelido a fazer algo colaborando de forma ativa na produccedilatildeo da prova natildeo haacute
que cogitar de execuccedilatildeo coercitivardquo
O segundo criteacuterio apresentado assenta na ideia de dependecircncia ou independecircncia da
vontade do arguido Segundo esta conceccedilatildeo estariam fora do acircmbito de incidecircncia do nemo
tenetur ldquoprestaccedilotildees pessoais exigidas sob ameaccedila de sanccedilatildeo mas independentes da vontade do
sujeito que natildeo passam por uma elaboraccedilatildeo espiritual da sua parterdquo230
Este criteacuterio foi apresentado e seguido pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
onde concluiu que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo se refere primeiramente ao respeito pela
vontade do arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees ao direito ao silecircncio e que natildeo se estende (o
direito) ao uso em processo penal de elementos obtidos do arguido por meio de poderes
coercivos mas que existam independentemente da vontade do sujeito (exemplificativamente
colheitas de sangue urina como outros tecidos corporais para testes de ADN)231
229 Op cit p368
230 BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz - op cit p35 DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit p24 RAMOS Vacircnia Costa -
op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p185 Ac do TC nordm1552007
ponto 1215 quando se refere ao acoacuterdatildeo Saunders v Reino Unido
Na doutrina estrangeira JAVIER DE LUCA ldquoen consecuencia los tribunales distinguen los productos de la mente del ser humano de aquellos en
los que eacutesta no interviene Los primeros estariacutean amparados por las garantiacuteas que se refieren a la incoercibilidad de ciertas comunicaciones o
expresiones los segundos por otras que hacen a la intimidad la dignidad la salud etc [hellip] Por tales razones se sostiene que la claacuteusula contra
la autoincriminacioacuten compulsiva ampara solamente ldquodeclaracionesrdquo es decir expresiones de la voluntad del ser humano que son un producto
del pensamiento de las personas elaboraciones mentales que se reflejan en una conducta activa u omisiva con sentido intelectual Se incluyen
los cuerpos de escritura los gestos etceacutetera toda prueba que requiera su colaboracioacuten intelectual con significado expresivordquo ndash LUCA Javier
Augusto ndash El cuerpo y la prueba [em linha] Revista de Derecho Procesal Penal Buenos Aires Rubinzal Culzoni Editores 2007 pp 12-13
[consultado a 20 de marccedilo 2016] disponiacutevel em httpcatedradelucacomar
231 Cf Ac Saunders v United Kingdom paraacutegrafo 69 ldquoThe right not to incriminate oneself is primarily concerned however with respecting the
will of an accused person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and
elsewhere it does not extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of
compulsory powers but which has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a
warrant breath blood and urine samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
LUCA Javier Augusto - op cit p 13 ldquoEn materia de extraccioacuten compulsiva de sangre pelos droga transportada en el cuerpo etc ocurre lo
mismo porque no existe aporte intelectual del imputado ni se le pide que preste su cuerpo Directamente se lo ocupa No existe ldquodeclaracioacutenrdquo
y por ende no se verifica una violacioacuten a la claacuteusula contra la autoincriminacioacuten ni de ninguacuten otro principio y el silencio basado en otros
intereses (ej Secretos profesionales proteccioacuten de la familia o de las relaciones afectivas) que puedan ser invocados por una persona en calidad
de testigo (ej Incriminar a determinados parientes o amigos revelar secretos etc)rdquo
83
O criteacuterio foi desenvolvido na jurisprudecircncia do TEDH nomeadamente no acoacuterdatildeo Jalloh
v Alemanha232 onde esta instacircncia judicial voltou a delimitar o acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo
tenetur reiterando novamente a referecircncia direta do princiacutepio ao direito ao silecircncio mas
advertindo que abrange igualmente outros casos de coaccedilatildeo exercida pelas autoridades sobre o
acusado de modo a obter prova (como a entrega atraveacutes de procedimentos coercivos de
documentos potencialmente autoincriminatoacuterios233) Assim a obtenccedilatildeo coerciva de material
corpoacutereo para anaacutelise eacute consentida e natildeo afronta o art6ordm da CEDH desde que de acordo com o
TEDH a prova pretendida obter atraveacutes da recolha do material corpoacutereo se relacione com crime
grave e seacuterio haja impossibilidade de utilizaccedilatildeo de todos os meacutetodos de prova alternativos agrave
recolha (princiacutepio da subsidiariedade) e por uacuteltimo a intervenccedilatildeo natildeo possa exceder o miacutenimo
de severidade tolerado pelo art3ordm da CEDH isto eacute natildeo pode provocar risco elevado de lesatildeo
duradoura na sauacutede do visado nem provocar sofrimento fiacutesico seacuterio234
No plano da jurisprudecircncia nacional o Tribunal Constitucional adotou este criteacuterio no seu
acoacuterdatildeo nordm1552007 ldquo[o]ra entende o Tribunal no seguimento da jurisprudecircncia e doutrina
acabada de citar que o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo se refere ao respeito pela vontade do
arguido em natildeo prestar declaraccedilotildees natildeo abrangendo como igualmente se concluiu na sentenccedila
do TEDH supra citada o uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do
arguido por meio de poderes coercivos mas que existam independentemente da vontade do
sujeito como eacute o caso por exemplo e para o que agora nos importa considerar da colheita de
saliva para efeitos de realizaccedilatildeo de anaacutelises de ADN Na verdade essa colheita natildeo constitui
nenhuma declaraccedilatildeo pelo que natildeo viola o direito a natildeo declarar contra si mesmo e a natildeo se
confessar culpado Constitui ao inveacutes a base para uma mera periacutecia de resultado incerto que
independentemente de natildeo requerer apenas um comportamento passivo natildeo se pode catalogar
como obrigaccedilatildeo de auto-incriminaccedilatildeo Assim sendo natildeo se pode sustentar ao contraacuterio do que
232Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jalloh v Germanyde 11 de julho de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[jalloh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER] (link) [em linha] paraacutegrafo 102
ldquoThe Court has consistently held however that the right not to incriminate oneself is primarily concerned with respecting the will of an accused
person to remain silent As commonly understood in the legal systems of the Contracting Parties to the Convention and elsewhere it does not
extend to the use in criminal proceedings of material which may be obtained from the accused through the use of compulsory powers but which
has an existence independent of the will of the suspect such as inter alia documents acquired pursuant to a warrant breath blood urine hair or
voice samples and bodily tissue for the purpose of DNA testingrdquo
Neste acoacuterdatildeo estava em causa a administraccedilatildeo forccedilada atraveacutes de sonda nasal de substacircncias indutoras do voacutemito para se operar a
recuperaccedilatildeo por regurgitaccedilatildeo da caacutepsula de cocaiacutena engolida pelo arguido quando detido
233 Cf Ac Funke v Franccedila e JB v Suiacuteccedila
234 COSTA Joana op cit p157
84
pretende o recorrente que as normas questionadas contendam com o privileacutegio contra a auto-
incriminaccedilatildeordquo235 Por sua vez o Supremo Tribunal de Justiccedila acoacuterdatildeo nordm142014 tal como
AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS236 natildeo corroboram este criteacuterio que conclusivamente
acaba por reconduzir o nemo tenetur agraves declaraccedilotildees orais coincidindo quase com o direito ao
silecircncio ldquopor um lado soacute por ironia se pode sustentar que as declaraccedilotildees orais dependem da
vontade do indiviacuteduo e as colheitas de ar expirado ou de urina natildeo (hellip) E da natureza das coisas
natildeo decorre que a entrega de documentos a expiraccedilatildeo de ar ou a cedecircncia de urina natildeo podem
ser feitas sem o concurso da vontade do visado Por outro lado parece irrefutaacutevel que as
declaraccedilotildees orais natildeo satildeo o uacutenico meio atraveacutes do qual algueacutem se pode auto-incriminar Pois
natildeo eacute verdade que o sopro no balatildeo por quem conduz embriagado contribui tanto se natildeo
mesmo mais para a proacutepria auto-incriminaccedilatildeo (hellip) Todas estas questotildees e as respostas que
razoavelmente sugerem levam-nos a tomar por certa a ideia de que quem eacute forccedilado (sob
ameaccedila de sanccedilatildeo) a prestar declaraccedilotildees a entregar documentos ou a ceder ar sangue saliva
ou urina natildeo soacute se torna objecto de prova como pode produzir prova contra si mesmordquo
Cremos tal como a jurisprudecircncia e doutrina mencionadas precedentemente que a
conceccedilatildeo ampla do nemo tenetur se ipsum accusare que perfilhaacutemos torna incompatiacutevel a
aceitaccedilatildeo de um criteacuterio como o assente na dependecircncia ou independecircncia da vontade do
arguido
Por uacuteltimo a doutrina e jurisprudecircncia constitucional portuguesa optam antes pelo criteacuterio
da concordacircncia praacutetica da ponderaccedilatildeo de interesses AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS237
235 Cf Ac TC nordm1552007 uacuteltimo paraacutegrafo do ponto 1215 Tambeacutem aplicando este criteacuterio ver Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Eacutevora
processo nordm 103096GCBJAE1 de 15 de novembro de 2011relator Desembargador Martinho Cardoso acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de
Coimbra processo nordm6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino (em ambos os acoacuterdatildeos aprecia-se
a constitucionalidade da recolha d material bioloacutegico no ar expirado e no sangue para efeitos de anaacutelise do grau de alcoolemia) todos disponiacuteveis
em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
Importa advertir que o Tribunal Constitucional jaacute considerou por diversas vezes que a submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo
afronta os princiacutepios da igualdade e do direito de acesso aos tribunais natildeo atenta contra a dignidade da pessoa do condutor nem o seu direito
ao bom nome e reputaccedilatildeo nem o direito que o condutor tem agrave reserva da intimidade da vida privada e garantias de defesa em processo penal
(Ac TC nordm31995) A atividade indagatoacuteria do Estado natildeo eacute proibida por estes direitos ademais a mesma deve balizar-se por regras que
respeitem a pessoa em si mesma e sejam adequadas ao apuramento da verdade O exame para pesquisa de aacutelcool destina-se em primeira
linha agrave recolha de prova pereciacutevel mas tambeacutem e sobretudo a impedir que um condutor que estaacute sob a influecircncia do aacutelcool conduza pondo
em perigo entre outros bens juriacutedicos a vida e a integridade fiacutesica proacuteprias e as dos outros Por esta via se compreende a natureza necessaacuteria e
adequada do exame por forma a garantir os bens juriacutedicos em causa e a descoberta da verdade material (Cf Acoacuterdatildeo Tribunal Constitucional
nordm31995 de 20 de junho de 1995 relator Conselheiro Messias Bento disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
ponto 7)
236 Cf op cit p24
237 Cf op cit p23
85
fazem depender a delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do nemo tenetur da concordacircncia praacutetica
dos valores em causa aderindo agrave conceccedilatildeo de DWORKIN e ALEXY pois que ldquoagrave medida que nos
afastamos das concretizaccedilotildees nucleares como o direito ao silecircncio ou agrave natildeo entrega de
documentos iacutentimos a protecccedilatildeo de que o indiviacuteduo goza vai-se relativizando isto eacute ficando
dependente da concordacircncia praacuteticardquo Este criteacuterio impotildee que em caso de conflito ou colisatildeo
entre princiacutepios direitos ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela
compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios
conflituantes harmonizando-os entre si concretamente Nesse sentido a restriccedilatildeo de um dos
direitos teraacute sempre de ser salvaguardada a partir de uma ponderaccedilatildeo de acordo com princiacutepio
da proporcionalidade (art18ordm nordm2 CRP) como adiante constataremos
VIEIRA DE ANDRADE esclarece que haveraacute conflito ou colisatildeo quando se entenda que ldquoa
Constituiccedilatildeo protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiccedilatildeo numa determinada
situaccedilatildeo concreta (real ou hipoteacutetica) A esfera de proteccedilatildeo de um direito eacute constitucionalmente
protegida em termos de intersetar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma
ou princiacutepio constitucionalrdquo238 No plano da delimitaccedilatildeo do acircmbito material de incidecircncia do
nemo tenetur encontra-se por um lado a necessidade premente de preservar as garantias
fundamentais do cidadatildeo (onde se enquadra a prerrogativa de natildeo facultar prova contra si
mesmo a tutela da dignidade humana reserva da vida privada e o direito agrave livre
autodeterminaccedilatildeo) e por outro lado tambeacutem eacute importante atentar na salvaguarda da proacutepria
eficaacutecia do sistema processual penal (esta uacuteltima para ser alcanccedilada natildeo raras as vezes
implica a invasatildeo na esfera da liberdade individual do cidadatildeo)
O meacutetodo que a doutrina portuguesa239 encontrou para ultrapassar as situaccedilotildees de conflito
de bens e direitos constitucionalmente tutelados passa pela concreta ponderaccedilatildeo desses bens e
direitos A concordacircncia praacutetica natildeo eacute resolvida atraveacutes de uma preferecircncia abstrata240 241 com o
238 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976 5ordmed Coimbra Almedina 2012 p299
239 ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit pp 300 e ss CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo)
pp1270 e ss
240 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 300
241 Afasta-se assim o criteacuterio apresentado no art335ordm do Coacutedigo Civil pelo facto de em mateacuteria de direitos liberdades e garantias ser difiacutecil
estabelecer em abstrato uma hierarquia entre valores constitucionalmente protegidos em termos que se permita sacrificar um desses valores
por ser o menos importante Cf Idem ibidem no mesmo sentido OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto MACCRORIE Benedita ndash Direitos fundamentais
elementos de apoio Braga AEDUM 2012 p 76
Todavia ldquoainda que se tenha a representaccedilatildeo comum de que os direitos natildeo podem valer exatamente o mesmo ndash ateacute porque se referem com
intensidades diversas ao fundamento comum de dignidade humana ndash verifica-se que essa hierarquizaccedilatildeo natural soacute pode fazer-se na maior
parte das hipoacuteteses quando se consideram as circunstacircncias dos casos concretosrdquo ndash Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit p300
86
mero recurso a uma ordem hieraacuterquica entre os valores e bens constitucionalmente protegidos
Tambeacutem natildeo se pode ignorar que nos casos de conflito ambos os bens valores e direitos satildeo
tutelados pela Constituiccedilatildeo de modo que natildeo eacute liacutecito sacrificar pura e simplesmente um desses
valores em detrimento de outro242 natildeo eacute liacutecito a preferecircncia absoluta de um e o sacrifiacutecio total de
outro bem em jogo
O princiacutepio da harmonizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica enquanto criteacuterio constitucional
admitido para a resoluccedilatildeo de conflitos ndash que afasta a regra civil para a colisatildeo de direitos da
mesma espeacutecie impondo cedecircncias muacutetuas em termos de ambos os direitos em conflito
produzirem igualmente o seu efeito ndash implica uma ponderaccedilatildeo concreta dos bens que haacute de
variar consoante as circunstacircncias de cada caso natildeo incorporando automaticamente uma
prevalecircncia de um dos direitos ou valores nem uma reduccedilatildeo muacutetua igual243 A aceitaccedilatildeo de um
criteacuterio como este impotildee que nunca seja afetado o conteuacutedo essencial de nenhum dos bens em
conflito
Por outro lado a concordacircncia praacutetica natildeo implica a realizaccedilatildeo oacutetima de cada um dos
valores em conflito trata-se apenas de um meacutetodo que determina a ponderaccedilatildeo concreta dos
direitos e bens em jogo de forma a natildeo se ignorar nenhum deles contribuindo para a realizaccedilatildeo
e preservaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo na maacutexima amplitude possiacutevel244
A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade245 na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impotildee-se que as formas para resolver o
conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores em causa
segundo o seu peso intensidade e extensatildeo nessa situaccedilatildeo (encontramos aqui as dimensotildees da
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito interligadas) ldquoA questatildeo do conflito de
direitos ou de valores depende pois de um procedimento e de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo natildeo dos
valores em si mas das formas ou modos de exerciacutecio especiacuteficos (especiais) dos direitos nas
circunstacircncias do caso concreto [hellip]rdquo246
Contudo como alerta VIEIRA DE ANDRADE ldquoraramente eacute possiacutevel graduar as soluccedilotildees em
termos correspondentes ponto por ponto agrave escala de proteccedilatildeo dos respetivos bens no caso 242 Nas palavras de AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS o caminho para resolver essa colisatildeo de interesses ldquonatildeo [eacute] atraveacutes de um criteacuterio all
or nothingrdquo ndash op cit p 23
243 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de - op cit 301
244 Cf Idem ibidem
245 OLIVEIRA Andreia Sofia Pinto e MACCRORIE Benedita - op cit p76 e ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p 303
246 Cf ANDRADE Joseacute Carlos Vieira de ndash op cit p303
87
concretordquo nesse caso torna-se necessaacuterio recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor
comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo prevalecircncia que pode mesmo significar o sacrifiacutecio
total do direito preterido Vale ultimamente o princiacutepio da ldquoprevalecircncia do interesse superiorrdquo ou
da ldquoprevalecircncia do interesse preponderanterdquo247
Em suma em termos sinteacuteticos ldquoas regras do direito constitucional de conflitos devem
construir-se com base na harmonizaccedilatildeo de direitos e no caso de isso ser necessaacuterio na
prevalecircncia (ou relaccedilatildeo de prevalecircncia) de um direito ou bem em relaccedilatildeo a outro (D1 P D2)
Todavia uma eventual relaccedilatildeo de prevalecircncia soacute em face das circunstacircncias concretas e depois
de um juiacutezo de ponderaccedilatildeo se poderaacute determinar pois soacute nestas condiccedilotildees eacute legiacutetimo dizer que
um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2) C ou seja um direito (D1) prefere (P) outro
(D2) em face das circunstacircncias do caso (C)rdquo248 Este juiacutezo de ponderaccedilatildeo e prevalecircncia tanto
podedeve ser efetuado pelo legislador como pelo julgador
Retomando a temaacutetica da incidecircncia material do nemo tenetur e baseando-nos em todas
as conclusotildees que acabamos de formular a imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir
para a autoincriminaccedilatildeo pela afetaccedilatildeo que provoca na privacidadeintimidade e integridade
pessoal do indiviacuteduo ldquosoacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos ou interesses de
valor social e constitucional prevalecenterdquo 249 Em boa verdade toda esta temaacutetica relativa agrave
obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido e a recolha de documentos pessoais
contendem diretamente tanto com a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo como com o
direito agrave integridade fiacutesica e moral (art25ordm da CRP)250 ao livre desenvolvimento da personalidade
na sua dimensatildeo de liberdade de atuaccedilatildeo e conformaccedilatildeo da vontade (art26ordm CRP) e reserva de
intimidade da vida privada
O nosso ordenamento juriacutedico prevecirc vaacuterias situaccedilotildees em que o direito agrave integridade
corporal e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo corporal cedem face a interesses comunitaacuterios e sociais
preponderantes quer na aacuterea da sauacutede puacuteblica quer na aacuterea da defesa nacional quer na aacuterea
da justiccedila quer noutras aacutereas Assim sucede quando se impotildeem certas condutas corporais 247 Cf Idem ibidem tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) p1274
248 Cf CANOTILHO JJ Gomes ndash ibidem
249 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
250 Adiantando jaacute a conclusatildeo a que chegaremos apoacutes uma sumaacuteria menccedilatildeo agrave posiccedilatildeo que a jurisprudecircncia portuguesa tem assumido a este
respeito GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA op cit p 456 na anotaccedilatildeo ao art25ordm da CRP afirmam ldquoProblema tiacutepico eacute o de saber se o direito agrave
integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres puacuteblicos dos cidadatildeos que se traduzam em (ou impliquem) intervenccedilotildees no corpo das
pessoas (vg vacinaccedilatildeo colheita de sangue para testes alcooleacutemicos etc) A resposta eacute seguramente negativa desde que a obrigaccedilatildeo natildeo
comporte a sua execuccedilatildeo forccedilada (sem prejuiacutezo de puniccedilatildeo em caso de recusa cfr [Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm61698 de 21 de
outubro de 1998 relator Conselheiro Artur Mauriacutecio disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha])rdquo
88
como a vacinaccedilatildeo obrigatoacuteria os radiorrastreios o tratamento obrigatoacuterio de certas doenccedilas
contagiosas251 e tambeacutem com os exames para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio252
Constatando poreacutem que alguns dos direitos que aqui mencionaacutemos satildeo afetados pelas
normas que impotildeem atendendo agraves especificidades concretas de cada caso a realizaccedilatildeo de
exames ou entrega de documentos importa prestar atenccedilatildeo neste pequeno excerto do acoacuterdatildeo
nordm1552007 do Tribunal Constitucional ldquo[o]ra natildeo proibindo a Constituiccedilatildeo em absoluto a
possibilidade de restriccedilatildeo legal dos direitos liberdade e garantias submete-a contudo a
muacuteltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade Da vasta jurisprudecircncia
constitucional sobre a mateacuteria decorre em siacutentese que qualquer restriccedilatildeo de direitos liberdades
e garantias soacute eacute constitucionalmente legiacutetima se (i) for autorizada pela Constituiccedilatildeo (artigo 18ordm
nordm 2 1ordf parte) (ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da Repuacuteblica ou em
decreto-lei autorizado(artigo 18ordm nordm 2 1ordf parte e 165ordm nordm 1 aliacutenea b)) (iii) visar a salvaguarda
de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18ordm nordm 2 in fine) (iv)
for necessaacuteria a essa salvaguarda adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo
18ordm nordm 2 2ordf parte) (v) tiver caraacutecter geral e abstracto natildeo tiver efeito retroativo e natildeo diminuir
a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18ordm nordm 3 da
Constituiccedilatildeo)
A este propoacutesito JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS afirmam que o direito agrave integridade
pessoal ndash que consiste no direito agrave natildeo-agressatildeo ou ofensa no corpo ou espiacuterito por quaisquer
meios (fiacutesicos ou natildeo) ndash natildeo eacute um direito imune a quaisquer limitaccedilotildees podendo pelo menos
ser objeto de autolimitaccedilotildees A tutela jusfundamental da integridade pessoal implica restriccedilotildees
agraves intervenccedilotildees natildeo consentidas das autoridades puacuteblicas como eacute o caso dos testes de
alcoolemia exemplificativamente Sobre esta diligecircncia probatoacuteria em especiacutefico os autores
admitem a restriccedilatildeo ao direito agrave integridade fiacutesica bem como ao art26ordm da CRP relativo agrave
reserva de intimidade da vida privada em prol da defesa de bens prevalecentes como eacute a vida e
integridade fiacutesica de terceiros253
251 Cf Ac Tribunal da Relaccedilatildeo de Coimbra processo nordm 6053PTVISC1 de 21 de novembro de 2007 relator Desembargador Gabriel Catarino
disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
252 Sobre a legalidade e constitucionalidade da recolha de amostras sangue ou saliva do corpo do delinquente para criaccedilatildeo de uma base de
dados geneacuteticos para fins criminais ver MONIZ Helena - Os problemas juriacutedico-penais da criaccedilatildeo de uma base de dados geneacuteticos para fins
criminais Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 2 nordm12 (abril-junho 2002) pp 237-264
253 Cf Op cit pp 267-277 ldquoTodavia se a obrigatoriedade de tais testes resiste em si mesma ao crivo do juiacutezo de inconstitucionalidade o
mesmo natildeo se pode dizer em relaccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo forccedilada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste A questatildeo natildeo pode
deixar de ser equacionada agrave luz do princiacutepio da proporcionalidade Tudo reside em saber se uma tal soluccedilatildeo natildeo constituiraacute uma consequecircncia
89
Atendendo agrave elevada sinistralidade no tracircnsito rodoviaacuterio e agrave preponderacircncia de
circunstacircncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes tornou-se relevante a
adoccedilatildeo de medidas legislativas destinadas a garantir a seguranccedila rodoviaacuteria nomeadamente
pela imposiccedilatildeo da abstenccedilatildeo de conduccedilatildeo a determinados sujeitos que se encontrem em
condiccedilotildees psicomotoras suscetiacuteveis de propiciar um aumento do risco de produccedilatildeo de acidentes
ndash como eacute o caso da conduccedilatildeo sob efeito de aacutelcool que como genericamente conhecemos
diminui a percepccedilatildeo interpretaccedilatildeo tempo e qualidade de reaccedilatildeo a estiacutemulos exteriores agrave
conduccedilatildeo
Neste contexto no acircmbito da tutela penal haacute a proteccedilatildeo do bem juriacutedico seguranccedila
rodoviaacuteria (que reflexa e indiretamente tambeacutem tutela a vida e integridade pessoal do condutor
e de terceiros que circulem na via puacuteblica) pela consagraccedilatildeo num momento preacutevio agrave produccedilatildeo
do dano ou resultado do tipo legal de crime de conduccedilatildeo de veiacuteculo em estado de embriaguez
art292ordm do Coacutedigo Penal254
Contudo acresce que ldquoa criaccedilatildeo de tipos legais incriminatoacuterios natildeo pode deixar de ser
acompanhada de meios legais que permitam tornar exequiacutevel e operante a produccedilatildeo de prova
dos factos respetivos e o seu consequente sancionamento sob pena de ficar prejudicada a
satisfaccedilatildeo das necessidades dos bens juriacutedicos tutelados e as restantes finalidades de prevenccedilatildeo
das penasrdquo255 Essas medidas reconduzem-se no caso da conduccedilatildeo em estado de embriaguez
aos testes de alcoolemia (tanto por expiraccedilatildeo de ar como recolha de amostra sangue para
afericcedilatildeo exata da quantidade de aacutelcool no sangue) Estes exames representam por certo uma
intromissatildeo na intimidade privada dos indiviacuteduos e apresentam caraacutecter autoincriminatoacuterio
todavia a jurisprudecircncia portuguesa tem reiterado a sua admissibilidade baseando-se na
caracteriacutestica preventiva (e natildeo repressiva) que os mesmos apresentam em prol de proibir a
conduccedilatildeo a quem natildeo se encontra em condiccedilotildees para o fazer subsequentemente garantindo a
tutela da vida e integridade pessoal de terceiros e do condutor256 ldquoEm suma a justificaccedilatildeo de
deveres como o de sujeiccedilatildeo ao teste de alcoolemia reside natildeo numa ldquomanobrardquo conceptual
estribada num criteacuterio duvidoso que coloca a situaccedilatildeo fora do alcance do nemo tenetur mas no
excessiva por confronto com soluccedilotildees alternativas fundadas na aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees ainda que penais agravequele que se recusa infundadamente agrave
realizaccedilatildeo do teste [hellip]rdquo
254 Sobre a conformidade constitucional de tal tipificaccedilatildeo ver acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm952011 de 16 de fevereiro de 2011
relatora Conselheira Ana Guerra Martins disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
255 Ac Tribunal Constitucional nordm4182013
256 A este propoacutesito ver acoacuterdatildeos do Tribunal Constitucional nordm31995 nordm6282006 de 16 de novembro de 2006 relatora Conselheira
Fernanda Palma nordm 2282007 nordm 1592012 de 28 de marccedilo de 2012 relator Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha nordm4182013
90
elevado valor social e constitucional dos bens juriacutedicos que com aqueles deveres se pretendem
proteger Eacute nesta ponderaccedilatildeo que encontram arrimo a restriccedilatildeo dos direitos agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo e agrave privacidade ()rdquo257
Tal como nos testes de alcoolemia que vasta jurisprudecircncia tem analisado o Supremo
Tribunal de Justiccedila no jaacute mencionado ac nordm 142014 a propoacutesito do exame para recolha de
autoacutegrafos utilizou o criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses para justificar que ldquoo exame agrave escrita
no aspeto da recolha de autoacutegrafos natildeo envolve qualquer lesatildeo agrave integridade fiacutesica corpoacuterea ou
psiacutequica ofensa agrave honra dignidade bom nome reputaccedilatildeo tanto mais que essa recolha por
regra ocorre em regime fechado com o recato devido apenas uma limitaccedilatildeo da sua vontade
um agir num determinado sentido que natildeo o por si desejado de natildeo se prestar a escrever mas
quando em confronto com o valor da administraccedilatildeo da justiccedila por estar em causa a indagaccedilatildeo
da praacutetica de crime de falsificaccedilatildeo cede por se situar na justa ponderaccedilatildeo de interesses na
colisatildeo de interesse desiguais num plano inferior (hellip) O valor da liberdade individual natildeo pode
considerar-se auto-limitado em grau tatildeo elevado que anule o direito do Estado e a defesa dos
cidadatildeos ao direito agrave perseguiccedilatildeo penal conservando a ordem de fazer o escrito sob cominaccedilatildeo
de desobediecircncia na hipoacutetese de resposta negativa ainda intocado o nuacutecleo duro daquele
direito que suporta apenas uma miacutenima restriccedilatildeordquo258
Em conclusatildeo a doutrina259 e jurisprudecircncia260 portuguesas seguem o criteacuterio da
concordacircncia praacutetica e tal como FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE referem o nemo tenetur se
ipsum accusare enquanto princiacutepio estruturante e basilar do processo penal portuguecircs e da
estrutura acusatoacuteria que o mesmo comporta natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees ldquoTodavia dado
fundamento constitucional destes direitos [direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo corolaacuterios
do nemo tenetur] e para que natildeo restem duacutevidas sobre a constitucionalidade destas restriccedilotildees
257 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p27 [itaacutelicos nossos]
258 Cf Ponto IX nono e deacutecimo paraacutegrafo [itaacutelico nosso]
259 Ver DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p 45 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p23
PINTO Lara Sofia op cit p 111 DIAS Jorge de Figueiredo ndash Direito Processual Penal liccedilotildees coligidas por Maria Joatildeo Antunes Secccedilatildeo de textos
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 1988-9 pp24-26
260 Ver Acoacuterdatildeos do TC nordm1552007 e ac nordm4182013 No primeiro acoacuterdatildeo o Tribunal Constitucional entendeu que o exame em causa ndash
recolha de saliva atraveacutes de zaragatou bucal com vista a determinaccedilatildeo do perfil geneacutetico do arguido - ofendia vaacuterios direitos entre os quais a
integridade pessoal reserva de intimidade sob a vida privada e livre autodeterminaccedilatildeo mas exclui o nemo tenetur do leque de direitos eou
princiacutepios violados Como anteriormente jaacute se referiu e discordou o Tribunal Constitucional entende que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo apenas
se refere ao uso em processo penal de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam
independentemente da vontade do sujeito
Poreacutem indicamos esta decisatildeo judicial pelo facto de em relaccedilatildeo aos restantes direitos ofendidos o Tribunal Constitucional adotou e bem o
criteacuterio da ponderaccedilatildeo de interesses
91
parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos devem estar previstas em lei
preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e devem tambeacutem obedecer ao
princiacutepio da proporcionalidade e da necessidade previsto no artigo 18ordm nordm2 da CRPrdquo261 Assim
para que o afastamento do nemo tenetur seja legiacutetimo eacute necessaacuteria a existecircncia preacutevia de uma
lei que imponha o dever de colaboraccedilatildeo ao indiviacuteduo lei que deve resultar da justa ponderaccedilatildeo
entre os valores em causa O princiacutepio nemo tenetur soacute poderaacute ceder face a outros valores
juridicamente reconhecidos como superiores ou se soacute dessa forma (isto eacute pelo afrouxamento
do nemo tenetur) se salvaguardam interesses de igual importacircncia ndash sem esquecer a
necessidade da lei preacutevia que ldquoafasterdquo o princiacutepiordquo262 263
O criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo de interesses sustentado pela afericcedilatildeo
da proporcionalidade da diligecircncia permite aleacutem de superar as desvantagens associadas aos
restantes criteacuterios analisar natildeo apenas a constitucionalidade mas tambeacutem a legalidade da
restriccedilatildeo ao nemo tenetur
42 Restriccedilotildees ao nemo tenetur
O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute absoluto admite restriccedilotildees
justificadas264 Atribuir a este princiacutepio uma eficaacutecia absoluta redundaria em certos casos na
impossibilidade da persecuccedilatildeo penal Poreacutem como precedentemente afirmamos para que a
261 Cf Op cit p 45 [itaacutelico nosso]
262 Cf CARDOSO Sandra Isabel Fernandes ndash O princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare a recusa do arguido em prestar autoacutegrafos Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp 29-31
263 Concluem AUGUSTO SILVA DIAS E VAcircNIA COSTA RAMOS op cit p31 que a mera eficaacutecia e prossecuccedilatildeo do interesse comunitaacuterio na investigaccedilatildeo
e perseguiccedilatildeo criminal natildeo satildeo suficientes para legitimar diligecircncias de prova quando as mesmas incidam sobre o corpo da pessoa ldquoa dignidade
da pessoa humana e suas explicitaccedilotildees representadas pelos direitos agrave integridade pessoal agrave liberdade agrave intimidade e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo
fazem barreira agrave transformaccedilatildeo da pessoa dentro e fora do processo penal em objeto ou banco de prova e agrave consecuccedilatildeo de finalidades de
eficiecircncia processual [a procura da verdade material] por essa via Quer essa coisificaccedilatildeo se traduza na extraccedilatildeo coactiva de declaraccedilotildees como
acontece na tortura ou na recolha de ar expelido de saliva de sangue ou de urina Todos satildeo segmentos da corporeidade que formata a
condiccedilatildeo humana e constitui suporte bioloacutegico da unidade eacutetica que cada pessoa eacute (hellip) A cedecircncia da ldquobarreirardquo protectora constituiacuteda por
aquele complexo de direitos fundamentais soacute e de admitir se ao interesse puacuteblico na investigaccedilatildeo e repressatildeo de um crime e agrave previsatildeo legal da
medida se juntar a necessidade concreta de protecccedilatildeo de outros direitos fundamentaisrdquo O juiz ao ordenar a realizaccedilatildeo do exame ou diligecircncia
probatoacuteria natildeo pode alhear o princiacutepio da proporcionalidade e deve ter em conta que ldquoquanto mais relevantes satildeo os direitos restringidos mais
relevantes tecircm de ser os bens e direitos a realizar ou protegerrdquo
264 Ver a tiacutetulo meramente exemplificativo o Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm 3402013 onde se afirma ldquo[m]as tem sido tambeacutem
reconhecido que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo tem um caraacutecter absoluto podendo ser legalmente restringido em determinadas
circunstacircncias (vg a obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de determinados exames ou diligecircncias que exijam a colaboraccedilatildeo do arguido mesmo contra
a sua vontade)rdquo
92
restriccedilatildeo ao nemo tenetur seja legiacutetima a mesma necessita de estar previamente estipulada em
lei expressa e respeitar o princiacutepio da proporcionalidade (art18ordm nordm2 da CRP)
No direito portuguecircs satildeo associadas comummente como restriccedilotildees justificadas ao nemo
tenetur a obrigaccedilatildeo do arguido responder com verdade agraves perguntas sobre a sua identidade
(art61ordm nordm3 ald do CPP) a claacuteusula geral do dever de sujeiccedilatildeo do arguido a exames devidos
(art172ordmnordm1 do CPP) e a diligecircncias de prova previstas na lei (art61ordm nordm3 ald) do CPP) de
acordo com a interpretaccedilatildeo a que chegaacutemos anteriormente a obrigatoriedade de realizar
exames no domiacutenio rodoviaacuterio por exemple testes de alcoolemia ou de substacircncias psicotroacutepicas
(art152ordm e 153ordm do Coacutedigo da Estrada) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a administraccedilatildeo
tributaacuteria impostos pela Lei Geral Tributaacuteria (art59ordm LGT) e pelo Regime Complementar de
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (RCPIT) a obrigatoriedade de sujeiccedilatildeo a exames no acircmbito
de periacutecias meacutedico-legais quando ordenadas pela autoridade judiciaacuteria competente previstas
pela Lei nordm452004 (art6ordm) os deveres de cooperaccedilatildeo perante a Autoridade de Concorrecircncia
previstos na Lei da Concorrecircncia (art17ordm nordm1 als a) e b) art18ordm e art43ordm nordm3 da Lei
nordm182003) bem como os deveres de cooperaccedilatildeo perante a CMVM previsto do CdVM
Do exposto a restriccedilatildeo deve ser considerada juriacutedico-constitucionalmente admissiacutevel
sempre que estiver prevista na lei e que a ldquoordem de grandeza do que se restringe natildeo seja
superior agrave ordem de grandeza do que se pretende tutelar com a restriccedilatildeo [respeito pelo princiacutepio
da proporcionalidade]rdquo265
O que dizer entatildeo nos casos em que o arguido se recusa ao cumprimento destas
legiacutetimas obrigaccedilotildeesrestriccedilotildees ao nemo tenetur O direito de natildeo entregar documentos ou de
natildeo se submeter a diligecircncias probatoacuterias sobre o proacuteprio corpo (relacionados com a natildeo
obtenccedilatildeo de provas autoincriminatoacuterias) soacute prevaleceraacute caso natildeo colida com obrigaccedilotildees legais
de sentido oposto ou caso colida se os interesses tutelados por essas obrigaccedilotildees forem
inferiores ou menos relevantes que eles No caso em que os interesses tutelados pelas
obrigaccedilotildees legais colidentes natildeo prevalecem sobre os interesses natildeo autoincriminatoacuterios
subjacentes a recusa eacute legiacutetima e a pessoa natildeo deve ser compelida a entregar o documento ou
a realizar o exame nem tatildeo pouco a responder pelo crime de desobediecircncia Todavia quando
essa prevalecircncia se verifica a recusa eacute ilegiacutetima deve o indiviacuteduo ser compelido a realizar o
exame e eventualmente ser punido a tiacutetulo de desobediecircncia266
265 BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p 21
266 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36
93
Tal como concluiacutemos anteriormente o fornecimento de prova autoincriminatoacuteria de forma
forccedilada soacute seraacute legiacutetima se do outro lado encontrarmos interesses ou direitos de valor
constitucional e social prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo Nesses casos o fornecimento da
prova autoincriminatoacuteria eacute exigiacutevel e estaacute o sujeito obrigado a ldquocooperarrdquo no fornecimento dessa
prova sob pena de em caso de incumprimento de ordem legiacutetima (portanto de recusa ilegiacutetima)
ser punido a tiacutetulo de crime de desobediecircncia Inversamente natildeo se encontrando interesses ou
direitos de valor social ou constitucional prevalecentes ao da autoincriminaccedilatildeo a recusa eacute
considerada legiacutetima pelo que natildeo se deve falar nesses casos de puniccedilatildeo a tiacutetulo de crime de
desobediecircncia
43 Valoraccedilatildeo do silecircncio e inexistecircncia do direito a mentir
Dispotildeem os artigos 343ordm nordm1 e 345ordm nordm1 ambos do CPP que o arguido eacute titular do
direito ao silecircncio direito esse que o legislador quis deliberadamente prevenir ldquoa possibilidade
de se converter num indesejaacutevel e perverso privilegium odiosumrdquo267 proibindo a valoraccedilatildeo do
silecircncio268 Cremos acompanhados por uma vasta doutrina269 que o exerciacutecio do direito ao
silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua posiccedilatildeo juriacutedica ou seja ldquoo exerciacutecio
de um tal direito processual natildeo pode ser valorado como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpardquo270
Significa isto que o tribunal tem o dever de advertir o arguido do seu direito ao silecircncio e natildeo
267 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p126
268 Referem as disposiccedilotildees legais mencionadas art343ordm nordm1 ldquo(hellip) sem que o seu silecircncio possa desfavorececirc-lordquo art345ordm nordm1 ldquo (hellip) O arguido
pode espontaneamente ou a recomendaccedilatildeo do defensor recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas sem que isso o possa
desfavorecerrdquo
269 KUumlHL ndash Freie Bewertung des Schweigens des Angeklagten und der Untersuchungsverweigerung eines angehorigen Zeugen p 118 apud
ANDRADE Manuel da Costa op cit p129 ndash ldquoSe ndash explicita Kuumlhl ndash o arguido exerce o seu direito ao silecircncio ele renuncia (faculdade que lhe eacute
reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a mateacuteria em discussatildeo nessa medida vinculando o tribunal agrave valoraccedilatildeo exclusiva dos demais
meios de prova disponiacuteveis no processo Para efeitos de valoraccedilatildeo de prova o silecircncio figura assim como um nullum juriacutedico (rechtliches
nullum)rdquo Ver tambeacutem GARRETT Francisco de Almeida op cit p 36 ndash ldquoNaturalmente que o silecircncio em si natildeo pode desfavorece o arguido
do mesmo modo que natildeo o pode beneficiar O silecircncio nem sequer pode ser objeto de valoraccedilatildeo porque natildeo constitui objeto de prova no sentido
juriacutedico do termordquo MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 126-127 ndash ldquoDaqui resultam necessariamente trecircs conclusotildees em primeiro lugar que o
arguido deve ser advertido da existecircncia do seu direito ao silecircncio em segundo lugar resulta que pode haver da sua parte silecircncio total ou
parcial e por fim que tendo o arguido optado pelo silecircncio total ou parcial em nenhuma circunstacircncia tal poderaacute ser valorado contra sirdquo DIAS
Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit pp42-43 GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p174 anotaccedilatildeo ao art61ordm do CPP
BUCHO Joseacute Manuel Saporiti Machado da Cruz op cit p53 ndash ldquo(hellip) natildeo tendo o arguido o dever de colaborar quando estaacute em causa a sua
incriminaccedilatildeo o exerciacutecio deste direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode ser valorado como indiacutecio nem muito menos como presunccedilatildeo de
culpardquo
270 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp 448-449
94
pode valorar contra ele a recusa em responder a perguntas (dos juiacutezes Ministeacuterio Puacuteblico
jurados ou advogados) nem mesmo como argumento de afetaccedilatildeo da credibilidade do arguido271
ndash o silecircncio deve assim ser encarado como ausecircncia de respostas natildeo podendo ser levado agrave
livre apreciaccedilatildeo da prova272
No estudo acerca das especificidades do primeiro interrogatoacuterio judicial MARQUES FERREIRA
defende a natildeo valoraccedilatildeo do silecircncio pois trata-se acima de tudo do exerciacutecio de um direito de
defesa pelo que seria contraditoacuterio admitir-se que o exerciacutecio de um direito de defesa acarreta o
desfavorecimento da posiccedilatildeo juriacutedica de quem reclama essa defesa ldquonos termos do que dispotildee
o art141ordm nordm5 o arguido poderaacute negar-se a prestar declaraccedilotildees responder afirmativa ou
negativamente agraves questotildees colocadas mas sem que nunca lhe seja exigiacutevel que diga a verdade
O exerciacutecio deste duplo direito ndash ao silecircncio e natildeo dizer a verdade ndash natildeo poderaacute ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa nem tatildeo pouco como circunstacircncia relevante para a
determinaccedilatildeo da pena caso o crime se prove (art343ordm e 345ordm nordm1)rdquo273
Mas como expende o Prof FIGUEIREDO DIAS ldquose o arguido natildeo pode ser juridicamente
desfavorecido por exercer o seu direito ao silecircncio jaacute naturalmente o pode ser de um mero
ponto de vista faacutectico quando do silecircncio derive o definitivo desconhecimento ou
desconsideraccedilatildeo de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou
parcialmente a infraccedilatildeordquo274 ndash embora o arguido natildeo possa ser prejudicado pelo seu silecircncio
tambeacutem dele natildeo poderaacute colher benefiacutecios275 (isto porque do silecircncio podem resultar
consequecircncias que natildeo adveacutem da sua valorizaccedilatildeo indevida ao natildeo falar o arguido prescinde de
circunstacircncias atenuantes como a confissatildeo ou o arrependimento)
271 Cf ALBUQUERQUE Paulo Pinto - op cit p861
272 Cf ANDRADE Manuel da Costa - op cit p128 Atualmente natildeo encontram grandes seguidores as correntes que tal como Luiacutes Osoacuterio op cit
p158 admitem a valoraccedilatildeo do silecircncio ldquopode o reacuteu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder mas natildeo pode evitar que o juiz tire do
silecircncio ou da recusa as conclusotildees que esse comportamento do reacuteu pode autorizarrdquo
273 Cf Op cit p247 Ver tambeacutem ANTUNES Maria Joatildeo - Direito ao silecircncio e leitura em audiecircncia de declaraccedilotildees do arguido Revista Sub
Judice nordm4 (1992) p 26 ndash ldquoTal significa que o tribunal natildeo o [silecircncio] pode valorar contra aquele sujeito processual [arguido] nem no sentido
de ele valer como indiacutecio ou presunccedilatildeo da responsabilidade criminal do arguido nem como factor de determinaccedilatildeo concreta da penardquo
MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
Em termos jurisprudecircncias ver Ac do Tribunal Constitucional nordm69595 ponto 13 deacutecimo primeiro paraacutegrafo Ac do Supremo Tribunal de
Justiccedila nordm142014 ponto II
274 Cf op cit (Direito Processual Penal) p 449 No mesmo sentido GARRETT Francisco de Almeida op cit p37 ndash ldquose bem que natildeo implique
qualquer espeacutecie de ldquoconfissatildeordquo dos factos nada impede que o exerciacutecio do direto ao silecircncio pelo arguido constitua elemento para a formaccedilatildeo
do convencimento do juiz porque o tribunal pode ou melhor deve interpretar a postura do arguido logo o seu silecircncio tambeacutem de acordo com
o conjunto da prova produzida em julgamento em seu benefiacutecio ou prejuiacutezo conforme o caso donde resulte que objectivamente e sem macular
o princiacutepio tacitamente previsto na Constituiccedilatildeo o silecircncio pode desfavorecer o arguidordquo
275 MENEZES Sofia Saraiva op cit p129
95
O TEDH no caso que opunha John Murray ao Reino Unido chegou agrave conclusatildeo ndash quanto
a noacutes duvidosa - que o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo impede que se retirem inferecircncias
que as regras da experiecircncia comum permitam
No litiacutegio em causa o TEDH foi colocado perante a duacutevida de saber se o direito ao silecircncio
e a prerrogativa da natildeo autoincriminaccedilatildeo de que o acusado eacute titular satildeo absolutos de modo a
que o exerciacutecio do direito ao silecircncio pelo acusado impeccedila a valoraccedilatildeo do silecircncio contra si em
julgamento ou se em certas circunstacircncias e apoacutes a correspondente advertecircncia preacutevia o
silecircncio pode ser valorado negativamente276 - concretamente o queixoso John Murray depois de
ter sido advertido de que embora lhe assista o direito em natildeo prestar declaraccedilotildees existe a
possibilidade do tribunal na anaacutelise valorativa que efetua retirar as eventuais e adequadas
consequecircncias do seu silecircncio o queixoso optou pela natildeo prestaccedilatildeo qualquer tipo de
esclarecimento sobre os factos a si imputados
O TEDH entendeu por um lado que eacute incompatiacutevel com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo exclusivamente baseada no silecircncio do arguido ou na recusa
em responder a perguntas ou apresentar elementos de prova por outro lado concluiu o tribunal
que estes direitos natildeo podem impedir que o silecircncio do arguido em casos que exigem
claramente uma explicaccedilatildeo sua seja tido em conta na valoraccedilatildeo da prova em especial na
avaliaccedilatildeo da capacidade de persuasatildeo das provas apresentadas pela acusaccedilatildeo Quer com isto
comprovar o TEDH que o direito ao silecircncio natildeo eacute absoluto por forma a afirmar-se que uma
decisatildeo do acusado em permanecer em silecircncio durante todo o processo penal natildeo tem
qualquer implicaccedilatildeo na valoraccedilatildeo da prova277 tal acontece nomeadamente com a prova por
inferecircncias ou presunccedilotildees ndash ldquoas ilaccedilotildees de sentido incriminador que na ausecircncia de uma
276 Cf Paraacutegrafo 46 ldquoThe Court does not consider that it is called upon to give an abstract analysis of the scope of these immunities and in
particular of what constitutes in this context improper compulsion What is at stake in the present case is whether these immunities are
absolute in the sense that the exercise by an accused of the right to silence cannot under any circumstances be used against him at trial or
alternatively whether informing him in advance that under certain conditions his silence may be so used is always to be regarded as lsquoimproper
compulsionrsquordquo
277 Cf Paraacutegrafo 47 ldquoOn the one hand it is self-evident that it is incompatible with the immunities under consideration to base a conviction solely
or mainly on the accusedrsquos silence or on a refusal to answer questions or to give evidence himself On the other hand the Court deems it equally
obvious that these immunities cannot and should not prevent that the accusedrsquos silence in situations which clearly call for an explanation from
him be taken into account in assessing the persuasiveness of the evidence adduced by the prosecution Wherever the line between these two
extremes is to be drawn it follows from this understanding of the right to silence that the question whether the right is absolute must be
answered in the negative It cannot be said therefore that an accusedrsquos decision to remain silent throughout criminal proceedings should
necessarily have no implications when the trial court seeks to evaluate the evidence against him In particular as the Government have pointed
out established international standards in this area while providing for the right to silence and the privilege against self-incrimination are silent
on this pointrdquo
96
explicaccedilatildeo alternativa para os factos provados diretamente destes devam ser extraiacutedas de
acordo com as regras da experiecircncia comum deveratildeo elas proacuteprias natildeo apenas poder
estabelecer-se para aleacutem da duacutevida razoaacutevel como representar o desfecho loacutegico de um
raciociacutenio judiciaacuterio subordinado agrave estrutura metodoloacutegica requerida para aprova por
inferecircnciardquo278 ndash o exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo proiacutebe portanto a formulaccedilatildeo de juiacutezos de
inferecircncia todavia se por um lado o silecircncio do arguido natildeo pode prejudicar a normal produccedilatildeo
de prova no processo concreto por outro lado natildeo nos parece seguro defender que o silecircncio do
arguido atribui maior credibilidade agrave prova apresentada pela acusaccedilatildeo
Em boa verdade e de um ponto de vista faacutectico ao natildeo prestar declaraccedilotildees o arguido
renuncia agrave apresentaccedilatildeo de uma versatildeo alternativa dos factos contra si apresentados
remetendo o Tribunal agrave mera apreciaccedilatildeo e valoraccedilatildeo dos restantes meios de prova disponiacuteveis
no processo onde se inclui a prova por inferecircncias Tal como os demais meios de prova a prova
por presunccedilotildees respeitando toda a estrutura metodoloacutegica que lhe eacute exigida para ser vaacutelida
tambeacutem eacute admissiacutevel e atendiacutevel no processo penal Natildeo cremos eacute contudo entender que o
facto de o arguido optar pelo silecircncio do seu silecircncio resultar diretamente uma maior
credibilidade para as ilaccedilotildees de sentido autoincriminador que se retiram das regras da
experiecircncia comum a prova por inferecircncia pode legitimar a formaccedilatildeo de juiacutezos de culpa sobre o
arguido mas deve fazecirc-lo por si soacute e natildeo basear-se ou sustentar-se (de modo a adquirir maior
credibilidade) numa ausecircncia de resposta do arguido Soacute desta forma eacute respeitada integralmente
a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo do silecircncio do arguido legalmente imposta (art 343ordm nordm1 do CPP)
O Supremo Tribunal de Justiccedila no acoacuterdatildeo datado de 6 de outubro de 2010 apoacutes
enquadrar o direito ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na noccedilatildeo de processo equitativo vem a
concluir que do exerciacutecio do direito ao silecircncio natildeo se podem extrair consequecircncias negativas
para o acusado ldquoporeacutem se do dito ou do natildeo dito pelo arguido natildeo podem ser diretamente
retirados elementos de convicccedilatildeo o que disser ou sobretudo o que natildeo disser natildeo pode
impedir que se retirem as inferecircncias que as regras da experiecircncia permitam ou imponham
Ademais o princiacutepio nemo tenetur previne uma laquocoerccedilatildeo abusivaraquo sobre o acusado impedindo
que se retirem efeitos diretos do silecircncio em aproximaccedilatildeo a um qualquer tipo de oacutenus de prova
formal fundando uma condenaccedilatildeo essencialmente no silecircncio do acusado ou na recusa deste a
responder a questotildees que o tribunal lhe coloque Mas o princiacutepio e seu conteuacutedo material natildeo
podem impedir o tribunal de tomar em consideraccedilatildeo um silecircncio parcial do interessado nos
278 Cf COSTA Joana op cit p 149-150
97
casos e situaccedilotildees demonstrados e evidentes e que exigiriam certamente pelo seu proacuteprio
contexto e natureza uma explicaccedilatildeo razoaacutevel para permitir a compreensatildeo de outros factos
suficientemente demonstrados e imputados ao acusado Nos casos em que o tribunal pode e
deve efetuar deduccedilotildees de factos conhecidos (usar as regras das presunccedilotildees naturais como
instrumento de prova) o silecircncio parcial do acusado que poderia certamente acrescentar
alguma explicaccedilatildeo para enfraquecer uma presunccedilatildeo natildeo pode impedir a formulaccedilatildeo do juiacutezo
probatoacuterio de acordo com as regras da experiecircncia deduzindo um facto desconhecido de uma
seacuterie de factos conhecidos e efetivamente demonstradosrdquo
Incide sobre o arguido em processo penal o dever de responder com verdade agraves
perguntas sobre a sua identidade (art61ordm nordm3 alb) do CPP) exclusivamente sob pena de
existir crime de desobediecircncia ou de falsas declaraccedilotildees Poreacutem fora destes casos o arguido
pode optar livremente pelo silecircncio ou prestar declaraccedilotildees A questatildeo que urge neste momento
eacute optando o arguido por prestar declaraccedilotildees e inexistindo qualquer disposiccedilatildeo legal que
sancione a falta agrave verdade279 seraacute legiacutetimo admitir-se a consagraccedilatildeo de um verdadeiro direito a
mentir280
Em boa verdade natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um tal
direito a mentir Com ensina FIGUEIREDO DIAS embora alguns autores admitam que nos casos
em que o arguido escolhe prestar declaraccedilotildees recai sobre ele um dever ndash quase como um dever
moral ou dever juriacutedico ndash de falar a verdade natildeo se vislumbra na lei qualquer consequecircncia
juriacutedica e praacutetica para aquele que mentir281 Assim ldquonatildeo existe por certo um direito a mentir
que sirva como causa justificativa da falsidade o que sucede simplesmente eacute ter a lei entendido
ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade282 razatildeo por que renunciou 279 Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit p 721
280 Na doutrina italiana SEacuteRGIO RAMAJOLI admite a existecircncia de um direito agrave mentira salientando que natildeo soacute o direito ao silecircncio decorre do nemo
tenetur mas tambeacutem o direito agrave mentira Cf RAMAJOLI Seacutergio ndash La prova nel processo penale Milatildeo CEDAM 1998 pp12-13 Por sua vez na
doutrina brasileira David Teixeira de Azevedo enquadra e bem o direito ao silecircncio como um direito processual do reacuteu mas adverte que o facto
de existir um direito ao silecircncio natildeo importa um direito agrave mentira jaacute que a mentira apenas eacute encarada como uma conduta processualmente
tolerada natildeo lhe cabendo qualquer sanccedilatildeo especiacutefica todavia natildeo se configura como um direito Cf AZEVEDO David Teixeira de ndash O
interrogatoacuterio do reacuteu e o direito ao silecircncio Revista dos Tribunais Ano I vol682ordm (agosto 1992) p294 Numa outra posiccedilatildeo LUIZ FLAacuteVIO GOMES
op cit apoacutes admitir que o cerne do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reside na inatividade do reacuteu (ou seja natildeo falar natildeo confessar natildeo
apresentar provas contra si natildeo participar ativamente na produccedilatildeo de prova incriminatoacuteria) encontra o ldquodireito de declarar o inveriacutedicordquo como a
uacutenica manifestaccedilatildeo ativa do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Neste caso o limite estaacute na afetaccedilatildeo dos direitos de terceiros isto eacute ldquoo reacuteu pode
declarar o inveriacutedico mas natildeo pode prejudicar terceirosrdquo
281 Cf HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit pp 141 e ss ldquoA mentira natildeo obstante moralmente inaceitaacutevel eacute conduta juridicamente
tolerada uma vez que natildeo haacute previsatildeo legal de sanccedilatildeo para aquele que menterdquo
282 No mesmo sentido GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia - op cit p174 ldquoa questatildeo [da existecircncia de um direito a mentir] tem pouco alcance
praacutetico uma vez que em qualquer caso sempre seria inexigiacutevel o cumprimento do dever de verdade relativamente a tais factosrdquo
98
nestes casos a impocirc-lordquo283 O facto de natildeo se impor a obrigaccedilatildeo de verdade284 natildeo se quer por
isso admitir a existecircncia de um direito a mentir285
Cremos que seria contraditoacuterio uma norma legal sustentar um comportamento
considerado universalmente imoral como eacute a mentira acabaria com a conceccedilatildeo de um
processo penal pautado pela eacutetica e justiccedila Mentir ou falsear declaraccedilotildees satildeo comportamentos
inadmissiacuteveis num Estado de Direito Democraacutetico pelo que defender-se a existecircncia legal de um
ldquodireito subjetivordquo que tutele tais comportamentos eacute incompreensiacutevel e inaceitaacutevel
Natildeo existe por certo no nosso ordenamento juriacutedico um verdadeiro ldquodireitordquo a mentir ndash
que justifique e fundamente a falsidade O que se verifica eacute a inexigecircncia de dizer a verdade
(reconduzido apenas a um mero dever moral que ficaraacute ao criteacuterio e livre arbiacutetrio de cada
indiviacuteduo) na medida em que natildeo existem sanccedilotildees para a mentira
43 Aplicaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
Outra questatildeo que tem merecido particular atenccedilatildeo pela doutrina eacute a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare agraves pessoas coletivas
O artigo 12ordm nordm2 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa estabelece a titularidade de
direitos fundamentais por parte das pessoas coletivas286 ao afirmar que elas ldquogozam dos direitos
e estatildeo sujeitas aos deveres compatiacuteveis com a sua naturezardquo Natildeo se trata de uma equiparaccedilatildeo
com as pessoas singulares (que por sua vez satildeo titulares de todos os direitos fundamentais
salvo os especificadamente concedidos agraves pessoas coletivas ou instituiccedilotildees) mas de uma
limitaccedilatildeo287 pois que as pessoas coletivas apenas seratildeo titulares dos direitos fundamentais
compatiacuteveis com a sua natureza288 que apenas seraacute determinada casuisticamente E mesmo
283 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito processual penal) pp450-451
284 Em razatildeo da existecircncia da prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo constata-se a natildeo obrigaccedilatildeo de dizer a verdade pois esta pode revelar-se
autoincriminadora
285 O Supremo Tribunal de Justiccedila jaacute teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questatildeo no acoacuterdatildeo processo nordm 08P694 de 12 de marccedilo de
2008 Relator Conselheiro Santos Cabral disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] onde conclui que inexiste no nosso ordenamento
juriacutedico um direito a mentir a lei admite simplesmente ser inexigiacutevel dos arguidos o cumprimento do dever de verdade Poreacutem uma coisa eacute a
inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra eacute a inscriccedilatildeo de um direito do arguido a mentir inadmissiacutevel num Estado de Direito
Num outro acoacuterdatildeo nordm142014 o STJ pronunciou-se pela natildeo existecircncia de um direito a mentir (ver Ponto IV paraacutegrafo deacutecimo primeiro)
286 Consagraccedilatildeo expressa e clara do princiacutepio da universalidade no art12ordm da CRP
287 Cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp113 e ss
288 Pense-se no caso do direito ao desenvolvimento da personalidade agrave integridade fiacutesica agrave liberdade sexual etc que apenas seratildeo titulares as
pessoas singulares Jaacute direitos como direito agrave propriedade ao bom nome e reputaccedilatildeo ao sigilo entre outros a priori denotam-se a sua extensatildeo
agraves pessoas coletivas
99
que um direito seja compatiacutevel com a natureza da pessoa coletiva e simultaneamente suscetiacutevel
de titularidade por pessoas singulares tal natildeo implica que a sua aplicabilidade tenha exatamente
os mesmos termos e amplitude em ambos os casos
Assim de um ponto de vista constitucional a titularidade de direitos fundamentais pelas
pessoas coletivas natildeo encontra duacutevidas O mesmo acontece com o nemo tenetur se ipsum
accusare
Vejamos
Atualmente muitas das garantias do processo equitativo ou justo satildeo corolaacuterios do
princiacutepio estruturante do Estado de Direito que se aplicam nos processos sancionatoacuterios
independentemente das partes em causa ndash ldquoo facto de se tratar de uma pessoa colectiva natildeo
constitui fundamento suficiente para a privaccedilatildeo de direitos liberdades e garantias [hellip] daiacute que agrave
partida as garantias processuais contraordenacionais incluindo a conformaccedilatildeo que lhes eacute dada
pelo processo penal sejam aplicaacuteveis agraves pessoas colectivas aspecto que tem relevacircncia directa
agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo289
Natildeo se vislumbram assim razotildees para excluir a aplicaccedilatildeo do nemo tenetur agraves pessoas
coletivas290 Como jaacute se referiu o nemo tenetur pretende alcanccedilar o equiliacutebrio entre os poderes
(coercivos) do Estado e os direitos (maxime a natildeo se autoincriminar) dos cidadatildeos ndash equiliacutebrio
que tambeacutem estaacute patente nas pessoas coletivas nomeadamente no setor empresarial291 Logo Ademais torna-se tambeacutem relevante discernir se a pessoa coletiva em causa eacute privada ou puacuteblica se as pessoas coletivas puacuteblicas podem ser
titulares de direitos fundamentais Ora contra essa aplicabilidade agraves pessoas coletivas puacuteblicas sempre se poderaacute dizer que o cerne dos direitos
fundamentais eacute assegurar uma esfera de liberdade aos particulares perante os poderes puacuteblicos (nesse sentido apenas as pessoas coletivas
privadas podem ser titulares de direitos fundamentais jaacute que se torna difiacutecil compreender como eacute que as pessoas coletivas publicas possam ter
direitos perante si mesmas) a favor da aplicaccedilatildeo apresenta-se o argumento ndashque natildeo se acolhe ndash das pessoas coletivas puacuteblicas invadirem a
competecircncia de outras (trata-se acima de tudo de um conflito de competecircncias dirimido por normas organizatoacuterias e natildeo propriamente pelo
exerciacutecio de direitos fundamentais) ndash cf CANOTILHO JJ GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Nessa loacutegica ldquoem geral as pessoas coletivas
puacuteblicas enquanto manifestaccedilotildees de poder puacuteblico natildeo gozam de direitos fundamentaisrdquo ndash cf MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p114
Todavia ldquomesmo considerando os direitos fundamentais apenas como direitos subjetivos de defesa ainda assim parece que o campo de
aplicaccedilatildeo dos direitos fundamentais se poderaacute alargar a pessoas colectivas puacuteblicas infraestaduais especialmente os entes exponenciais de
interesses sociais organizados perante o Estado propriamente dito (pense-se por ex no direito de um municiacutepio de uma regiatildeo autoacutenoma ou
de uma Universidade face ao Estado)rdquo ndash Cf CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 330 Ver tambeacutem CANOTILHO JJ Gomes op
cit (Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo) pp 420 e ss ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit pp 181 e ss
289 Cf MACHADO JoacutenatasRAPOSO Vera op cit p 39 ver tambeacutem RAMOS Vacircnia Costa op cit (O nemo tenetur se ipsum accusare e
concorrecircncia jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) p179
290 Cf MENDES Paulo Sousa op cit (O dever de colaboraccedilatildeo e as garantias de defesa no processo sancionatoacuterio especial por praacuteticas restritivas
da concorrecircncia confrontadas com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) p 137
291 Como salientam DIAS Augusto RAMOS Vacircnia Costa op cit p 42 os agentes econoacutemicos satildeo principalmente entes coletivos e alguns
sectores da atividade econoacutemica satildeo nos dias de hoje fiscalizados por entidades reguladores que tecircm como principal objetivo supervisionar o
cumprimento das regras aiacute estabelecidas (visa-se assim a transparecircncia e competitividade dos mercados) Mormente o supervisionamento
dessas atividades procede-se mediante o estabelecimento de deveres de cooperaccedilatildeo que se reduzem muitas das vezes agrave entrega de
100
ldquose as pessoas coletivas gozam de direitos fundamentais compatiacuteveis com a sua natureza e se
podem ser alvo de responsabilidade penal [art11ordm nordm2 CP] isto eacute podem ser arguidas em
processo penal eacute razoaacutevel que se lhes sejam atribuiacutedos os direitos que assistem ao arguido
[pessoa singular] nomeadamente o direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeordquo292
Todavia o facto de pessoas singulares e coletivas serem titulares dos mesmos direitos
natildeo implica a sua aplicaccedilatildeo idecircntica293 ora eacute o que sucede neste campo Por certo a natureza
das pessoas coletivas natildeo se compatibiliza com a realizaccedilatildeo de exames corpoacutereos para obtenccedilatildeo
documentos agraves entidades supervisionadas entes econoacutemicos Toda esta relaccedilatildeo de supervisionamento e de cooperaccedilatildeo faz com que a atividade
econoacutemica e empresarial seja propiacutecia agraves tensotildees do nemo tenetur
292 Idem ibidem
293 Cf MENEZES Sofia Saraiva op cit p128 ndash ldquoNote-se no entanto que a intensidade do princiacutepio nemo tenetur no que concerne agraves pessoas
coletivas poderaacute ser menorrdquo A autora aponta como fatores do afrouxamento do nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas as restriccedilotildees
impostas legalmente como satildeo os casos da imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo no plano da Lei da Concorrecircncia (que comina com
contraordenaccedilatildeo a natildeo entrega de documentos quando solicitada pela entidade instrutora) ou do Regime Geral das Infraccedilotildees Tributaacuterias
O Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia tambeacutem se pronunciou (caso Orkem SA v Comissatildeo de 18 de outubro de 1989 processo nordm 37487
disponiacutevel em httpcuriaeuropaeu (link) [em linha]) sobre esta temaacutetica da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo pelas pessoas
coletivas no direito da concorrecircncia e conclui o seguinte ldquoo Regulamento ndeg 17 [do Conselho] natildeo reconhece agrave empresa que seja objecto de
uma medida de investigaccedilatildeo qualquer direito de se furtar agrave execuccedilatildeo dessa medida em virtude de o seu resultado poder fornecer a prova de uma
infracccedilatildeo que cometeu agraves normas da concorrecircncia Pelo contraacuterio impotildee uma obrigaccedilatildeo de colaboraccedilatildeo activa que implica que ponha agrave
disposiccedilatildeo da Comissatildeo todos os elementos de informaccedilatildeo relativos ao objecto do inqueacuterito Na ausecircncia de um direito ao silecircncio
expressamente consagrado pelo Regulamento ndeg 17 conveacutem apreciar se (e em que medida) os princiacutepios gerais do direito comunitaacuterio de que
os direitos fundamentais fazem parte integrante e agrave luz dos quais todos os textos de direito comunitaacuterio devem ser interpretados impotildeem como
sustenta a recorrente o reconhecimento de um direito de natildeo fornecer os elementos de informaccedilatildeo susceptiacuteveis de serem utilizados para provar
contra quem os forneccedila a existecircncia de uma infracccedilatildeo agraves regras da concorrecircnciardquo ndash cf Paraacutegrafos27 e 28 De seguida constatou que as
ordens juriacutedicas dos diversos Estados-membros de um modo geral apenas reconhecem o direito de natildeo testemunhar contra si mesmo agraves
pessoas singulares natildeo sendo possiacutevel retirar-se daiacute um princiacutepio comum aos Estados-membros em proveito das pessoas coletivas e no domiacutenio
das infraccedilotildees econoacutemicas nomeadamente em mateacuteria de direito da concorrecircncia O tribunal exclui a aplicaccedilatildeo dos art6ordm da CEDH e do art14ordm
nordm3 alg) do PIDCP pois no primeiro caso admitindo que possa ser invocado por uma empresa objeto de um inqueacuterito em mateacuteria de direito da
concorrecircncia conveacutem declarar que natildeo resulta do seu texto nem da jurisprudecircncia do TEDH que essa disposiccedilatildeo reconheccedila um direito a natildeo
testemunhar contra si proacuteprio no segundo caso a referida disposiccedilatildeo legal visa apenas as pessoas acusadas de uma infracccedilatildeo penal no acircmbito
de um processo judicial e eacute assim estranho ao domiacutenio dos inqueacuteritos em mateacuteria de direito da concorrecircncia
Todavia o TJUE alerta para o facto de que muitas das limitaccedilotildees aos poderes de investigaccedilatildeo da Comissatildeo resultam da necessidade de
salvaguarda dos direitos de defesa dos inspecionados enquanto princiacutepio fundamental da ordem juriacutedica comunitaacuteria Assim sistematiza o
Tribunal ldquose eacute certo que os direitos da defesa devem ser respeitados nos processos administrativos susceptiacuteveis de conduzir a sanccedilotildees importa
evitar que esses direitos possam ficar irremediavelmente comprometidos no acircmbito de processos de inqueacuterito preacutevio que podem ter um caraacutecter
determinante para a produccedilatildeo de provas do caraacutecter ilegal de comportamentos de empresas susceptiacuteveis de as responsabilizar Por
conseguinte se determinados direitos da defesa apenas dizem respeito aos processos contraditoacuterios que se seguem a uma comunicaccedilatildeo de
acusaccedilotildees outros devem ser respeitados desde a fase do inqueacuterito preacutevio [hellip] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas
as informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua
posse mesmo que estes possam servir em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento
anticoncorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave
empresardquo ndash cf Paraacutegrafos 33 e 34
101
de material probatoacuterio294 daiacute concluir-se que o nemo tenetur em relaccedilatildeo agraves pessoas coletivas
limita-se fundamentalmente agraves declaraccedilotildees orais e agrave entrega de documentos295
44 Dever de advertecircncia
Como temos vindo a advertir a participaccedilatildeo do indiviacuteduo na produccedilatildeo de prova deve
resultar da sua livre e esclarecida decisatildeo de vontade Em prol desta conclusatildeo e para o eficaz
cumprimento do direito ao silecircncio e prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo o nosso Coacutedigo de
Processo Penal prevecirc o dever de advertecircncia nomeadamente do direito ao silecircncio296 Como tal
recai sobre a autoridade judiciaacuteria ou oacutergatildeo de poliacutecia criminal conforme perante quem o
arguido seja obrigado a comparecer ou prestar declaraccedilotildees o dever de informaccedilatildeo e
esclarecimento ou advertecircncia se necessaacuterio sobre os direitos decorrentes do nemo tenetur e
natildeo soacute (art58ordm nordm2 art61ordm nordm1 alh) art141ordm nordm4 ala) e art343ordm nordm1 todos previstos no
CPP)297 No uacuteltimo caso o do art343ordm nordm1 exige-se natildeo soacute que se informe do direito ao silecircncio
total ou parcial mas tambeacutem que se advirta que em caso de optar por natildeo prestar declaraccedilotildees
o silecircncio do arguido natildeo o iraacute desfavorecer Em suma o dever de advertecircncia deve cumprir-se
antes de qualquer prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees incluindo o primeiro interrogatoacuterio judicial298
Em relaccedilatildeo agraves testemunhas do dever de advertecircncia consta do art134ordm nordm2 que comina
com nulidade do depoimento aqueles casos em que a entidade competente para receber o
294 Na anotaccedilatildeo ao art 172ordm do CPP PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE op cit p 469 afirma que ldquoa pessoa coletiva arguida em processo penal em
si proacutepria natildeo pode ser submetida a exame uma vez que natildeo tem corpo fiacutesico mas os ldquolugaresrdquo (sede e instalaccedilotildees) que ela ocupa e as
ldquocoisasrdquo que ela utiliza na sua atividade podem ser submetidos a exame independentemente da relaccedilatildeo juriacutedica que a pessoa colectiva tem com
esses lugares e com essas coisasrdquo
295 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p42
296 Sobre a relevacircncia da advertecircncia dos direitos CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD refere que ldquoa proteccedilatildeo contra a auto-incriminaccedilatildeo seria
insuficiente se natildeo fosse igualmente assegurado ao reacuteu o direito de ser informado pelos oacutergatildeos de persecuccedilatildeo penal para que pudesse
conscientemente decidir-se acerca do exerciacutecio dos seus direitos processuais Quanto mais insciente a respeito de seus direitos menos
resistecircncias opotildee agrave persecuccedilatildeo penal pois um direito que natildeo se conhece eacute um direito que natildeo se exercerdquo ndash op cit p222 Assim conclui o
autor ldquoO direito agrave informaccedilatildeo acompanha o direito de permanecer calado assim como o calor anda ao lado do fogo Sempre que couber a
invocaccedilatildeo do princiacutepio contra a auto-incriminaccedilatildeo deveraacute haver a correspondente informaccedilatildeo sobre a faculdade de escolha da conduta
processual ase adotarrdquo ndash p227
297 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p 126 MENEZES Sofia Saraiva op cit pp 130 e ss DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuela
da Costa op cit (parecer) p39
298 Veja-se a este propoacutesito o tatildeo afamado e jaacute referido caso Miranda v Arizona EUA onde surgiram vaacuterios direitos do arguido os Miranda rules
que de entre vaacuterios aspetos estabeleceu a obrigaccedilatildeo da poliacutecia informar do direito ao silecircncio nos interrogatoacuterios sob custoacutedia
HADDAD Carlos Henrique Borlido op cit p222
102
depoimento natildeo adverte as pessoas mencionadas no nordm1299 da faculdade que tecircm de recusar
depor300
Duvidoso eacute entatildeo saber qual o efeito que para o processo penal deveraacute assinalar-se em
caso de incumprimento deste dever de advertecircncia Analisaremos esta questatildeo de seguida
5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
A duacutevida que suscitaacutemos anteriormente a propoacutesito do incumprimento do dever de
advertecircncia seraacute resolvida agora no momento da anaacutelise das consequecircncias juriacutedicas da
violaccedilatildeo do nemo tenetur pois que a natildeo consideraccedilatildeo do dever de advertecircncia contamina a
formaccedilatildeo de vontade do arguido em ser meio de prova que natildeo eacute esclarecida (natildeo foi informado
da existecircncia dos direitos) nem livre Afetam-se assim os princiacutepios da liberdade e
autodeterminaccedilatildeo da vontade declarativa do sujeito processual fundamentos constitucionais do
nemo tenetur Cumprimento do dever de advertecircncia e respeito pelo nemo tenetur se ipsum
accusare satildeo na verdade realidades interdependentes
A doutrina diverge todavia em relaccedilatildeo agrave consequecircncia juriacutedica a atribuir ao
incumprimento do dever de advertecircncia
Entre as consequecircncias apresentadas encontramos em primeiro lugar a ldquoprescriccedilatildeo
ordenativa de produccedilatildeo de provardquo301 Nesta posiccedilatildeo as regras de produccedilatildeo de prova onde se
inclui o dever de advertecircncia configuram-se como meras prescriccedilotildees ordenativas de produccedilatildeo
de prova cuja violaccedilatildeo natildeo poderia acarretar a proibiccedilatildeo de valorar como prova as declaraccedilotildees
prestadas pelo arguido mas unicamente a eventual responsabilidade (disciplinar interna) do seu
autor ndash portanto natildeo se proiacutebe a valoraccedilatildeo das declaraccedilotildees do arguido como prova Tal como
ensina FIGUEIREDO DIAS uma tese como esta natildeo pode ser acolhida ldquoo princiacutepio ldquonemo tenetur
299 Artigo 134ordm - Recusa de depoimento
1 ndash Podem recusar-se a depor como testemunhas
a) Os descendentes os ascendentes os irmatildeos os afins ateacute ao 2ordm grau os adotantes os adotados e o cocircnjuge do arguido
b) Quem tiver sido cocircnjuge do arguido ou quem sendo de outro ou do mesmo sexo com ele conviver ou tiver convivido em
condiccedilotildees anaacutelogas agraves dos cocircnjuges relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitaccedilatildeo
300 Contudo como salienta SOFIA SARAIVA DE MENEZES (op cit p 130) o dever de advertecircncia natildeo estaacute expressamente previsto para as perguntas
autoincriminadoras de que as testemunhas podem ser alvo conforme o art132ordm nordm2 CPP Eacute uma situaccedilatildeo caricata pois embora se preveja a
faculdade das testemunhas em geral recusarem depor nesses casos verifica-se uma omissatildeo legal da advertecircncia na situaccedilatildeo provavelmente
mais tensa que as testemunhas poderatildeo vivenciar em termos de tutela da natildeo autoincriminaccedilatildeo
301 Cf DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) pp446 e ss MENEZES Sofia Saraiva op cit p 131 ANDRADE Manuel da
Costa op cit p84
103
se ipsum accusarerdquo e o consequente direito ao silecircncio do arguido (hellip) satildeo peccedilas essenciais do
direito de defesa juriacutedico-constitucionalmente protegido pelo art8ordm nordm10 da ConstP seria
inconcebiacutevel por isso que a sua violaccedilatildeo ficasse sem uma sanccedilatildeo processual que aliaacutes deve
ser a mais forte possiacutevelrdquo302
A sanccedilatildeo mais forte possiacutevel e segunda soluccedilatildeo encontrada eacute a proibiccedilatildeo de prova Esta
eacute a posiccedilatildeo maioritariamente seguida pela doutrina portuguesa303 e determina que agrave violaccedilatildeo
daquele dever de advertecircncia deve ligar-se uma autecircntica proibiccedilatildeo de prova que impede que
sejam valoradas para o processo as declaraccedilotildees prestadas pelo arguido constituindo-se assim
um autecircntico limite agrave descoberta da verdade material Semelhante soluccedilatildeo deve ser tambeacutem
aplicada quando algueacutem for levado por induccedilatildeo em erro ou por coaccedilatildeo a contribuir para a
proacutepria incriminaccedilatildeo304
Estipulam os artigos 126ordm nordm1 e nordm2 ala) e d) do CPP que se o meio de prova seja ele
qual for tiver sido obtido por meios enganosos a prova eacute nula e natildeo pode ser utilizada A
nulidade acompanhada pela inutilizaccedilatildeo eacute tambeacutem a sanccedilatildeo aplicaacutevel agrave prova obtida mediante
intromissatildeo na vida privada sem o consentimento do visado nos termos do nordm3 do art126ordm O
argumento central para os defensores (onde nos incluiacutemos) da proibiccedilatildeo de prova eacute o de que
em ambas as circunstacircncias a liberdade de decisatildeo do arguido eacute afetada infringindo-se assim
os princiacutepios da dignidade pessoal e direito de defesa fundamentos constitucionais do nemo
tenetur O desconhecimento dos direitos natildeo permite a criaccedilatildeo de uma vontade livre e
esclarecida para a participaccedilatildeo do arguido como meio de prova como exige o nemo tenetur Em
prol desta conclusatildeo o art58ordm nordm5 do CPP comina com a sanccedilatildeo de nulidade todas as
declaraccedilotildees prestadas pelo arguido sem a observacircncia das formalidades legais que o normativo
prescreve nomeadamente a vaacutelida constituiccedilatildeo em arguido e o cumprimento do dever de
advertecircncia ou esclarecimento305
Como conclui COSTA ANDRADE ldquoas provas obtidas em contravenccedilatildeo do princiacutepio nemo
tenetur configuraratildeo inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoardquo306 colidindo 302 Cf DIAS Jorge de Figueiredo ibidem
303 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p88 DIAS Jorge de Figueiredo ibidem FERREIRA Marques op cit p247 GONCcedilALVES Manuel
Lopes Maia op cit p358 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit 861 MENEZES Sofia Saraiva op cit 132 RISTORI Adriana Dias Paes op cit
p172 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp35-36 DIAS Jorge de Figueiredo Andrade Manuel da Costa op cit (parecer) p43
304 A tese da proibiccedilatildeo de prova como consequecircncia do incumprimento dos deveres estatais relacionados com o exerciacutecio da prerrogativa contra a
autoincriminaccedilatildeo estabelece natildeo soacute a proibiccedilatildeo de uso de declaraccedilotildees prestadas ao reveacutes da prerrogativa mas tambeacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
da prova recolhida mediante a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees sem que o arguido tenha sido devidamente informado do seu direito ao silecircncio
305 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 36
306 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit pp126-127
104
com o preceito constitucional que determina a nulidade de ldquotodas as provas obtidas mediante
tortura coaccedilatildeo ofensa da integridade fiacutesica ou moral da pessoardquo (art32ordm nordm 8 CRP) ndash outra
soluccedilatildeo natildeo seria de esperar senatildeo a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo tanto para as declaraccedilotildees obtidas
sob o incumprimento do dever de advertecircncia como para as todas as provas em geral
autoincriminadoras obtidas agrave custa de tortura coaccedilatildeo ameaccedilas perturbaccedilotildees da memoacuteria ou
da capacidade de avaliaccedilatildeo ou meios enganosos (art126ordm)307 308
Com efeito no direito processual penal portuguecircs como ensina MANUEL DA COSTA ANDRADE
haacute uma iacutentima imbricaccedilatildeo entre as proibiccedilotildees de prova e o regime das nulidades processuais309
eacute no tiacutetulo dedicado agraves nulidades que o Coacutedigo de Processo Penal inclui o preceito segundo o
qual ldquoas disposiccedilotildees do presente tiacutetulo natildeo prejudicam as normas deste Coacutedigo relativas a
proibiccedilotildees de provardquo (art118ordm nordm3) e natildeo raras as vezes a lei enuncia as proibiccedilotildees de prova
cominando com nulidade a violaccedilatildeo dos respetivos preceitos legais310 Contudo deva-se alertar
que satildeo realidades distintas (a proibiccedilatildeo de prova e a nulidade dos atos processuais) muito
embora a utilizaccedilatildeo de uma prova proibida no processo tenha como adiante veremos os efeitos
da nulidade do ato
Assim a prova proibida eacute nula bem como os atos que dela dependerem (art122ordm do
CPP) que o que significa invaacutelida e que determina a sua inutilizaccedilatildeo no processo natildeo podendo
servir para fundamentar qualquer decisatildeo (a prova eacute desconsiderada em termos processuais
quase como se natildeo existisse)311
Questatildeo que se suscita neste momento eacute a de saber se a proibiccedilatildeo de prova valeraacute
somente para o meio de prova obtido diretamente ou se expandiraacute os seus efeitos para outros
meios de prova obtidas indiretamente atraveacutes da prova proibida
Nos termos do art122ordm ldquoas nulidades tornam invaacutelido o ato em que se verificarem bem
como os que dele dependerem e aquelas puderem afetarrdquo312 ndash nisto se traduz o efeito-agrave-
distacircncia313 das proibiccedilotildees de prova que sumariamente projeta a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo
307 Idem ibidem
308 Apenas se ressalva no que diz respeito ao dever de advertecircncia a possibilidade de haver ratificaccedilatildeo nesta circunstacircncia o declarante apoacutes a
devida advertecircncia reitera o que havia dito antes num momento em que natildeo tinha conhecimento do seu direito ao silecircncio Ver MENEZES Sofia
Saraiva op cit p132 DIAS Jorge de Figueiredo op cit (Direito Processual Penal) p 447
309 ANDRADE Manuel da Costa op cit (Sobre as proibiccedilotildees de prova) p193
310 A este propoacutesito veja-se SILVA Germano Marques op cit (Curso de processo penal ndash Volume II) pp144 e ss
311 Idem ibidem
312 Ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp 177 e ss e 313 e ss
313 Natildeo obstante todas as questotildees associadas agrave proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo probatoacuteria coloca-se agora uma outra duacutevida qual o valor das provas
consequenciais das proibiccedilotildees de prova no que concerne ao seu uso e valoraccedilatildeo no processo penal isto eacute a doutrina discute se a proibiccedilatildeo
105
probatoacuteria agraves provas secundaacuterias isto eacute agraves provas recolhidas a partir das declaraccedilotildees dos
documentos ou dos exames sobre o corpo do suspeito ou do arguido alcanccedilados por meacutetodos
proibidos314 Poreacutem a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo da prova secundaacuteria ou mediata jaacute natildeo se verifica
se ela pudesse ter sido diretamente obtida por meacutetodos liacutecitos ldquoo efeito-agrave-distacircncia soacute seraacute de
afastar quando tal seja imposto por razotildees atinentes ao nexo de causalidade ou de lsquoimputaccedilatildeo
objetivarsquo entre a violaccedilatildeo da proibiccedilatildeo de produccedilatildeo da prova e a prova secundaacuteriardquo315
Por uacuteltimo haacute quem ainda reconduza erroneamente no nosso entender a inobservacircncia
dos deveres processuais associados ao nemo tenetur como o dever de advertecircncia agrave
consequecircncia juriacutedica da mera irregularidade probatoacuteria socorrendo-se para o efeito ao
art118ordm nordm2 do CPP que estabelece que sempre que a lei natildeo cominar expressamente o ato
com a nulidade ele eacute apenas irregular316
deve circunscrever-se agrave valoraccedilatildeo do meio de prova diretamente obtido a partir da violaccedilatildeo da lei ou se pelo contraacuterio abrange todos os demais
meios de prova que natildeo teriam sido obtidos sem o meio de prova ilegal Nos EUA prevalece a doutrina radical da fruit of the poisonous tree
(teoria da ldquoaacutervore envenenadardquo) que conduz a que todo o processo fique todo ele viciado soacute se podendo concluir pela absolviccedilatildeo Este
entendimento natildeo permaneceu estaacutetico foi sofrendo algumas exceccedilotildees ao longo dos tempos ndash Cf GONCcedilALVES Manuel Lopes Maia op cit
p304 GoumlSSEL Karl-Heinz op cit pp435 e ss ANDRADE Manuel da Costa op cit pp170 e ss SOUSA David Melo De ndash Escutas telefoacutenicas o
efeito-agrave-distacircncia e os conhecimentos fortuitos Coimbra Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 2015 Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp
32-34 Mendes Paulo de Sousa ndash Liccedilotildees de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 2015 pp 191-194
Na Alemanha o efeito-agrave-distacircncia (Fernwirkung) das proibiccedilotildees de prova natildeo eacute tatildeo radical sendo objeto de uma ponderaccedilatildeo casuiacutestica da
jurisprudecircncia
Sobre a adesatildeo agrave mais ampla fruit of the poisonous tree doctrine (nos EUA) a denegaccedilatildeo de princiacutepio do Fernwirkung e aceitaccedilatildeo mitigada do
efeito-agrave-distacircncia (Alemanha) ver ANDRADE Manuel da Costa op cit pp169-187 SOUSA Joatildeo Henrique Gomes de ndash Das nulidade agrave ldquofruit of
the poisonous tree doctrinerdquo Revista da Ordem dos Advogados [em linha] Ano 66 (Setembro 2006) [consult 27 de dezembro 2016] Disponiacutevel
em
httpwwwoaptConteudosArtigosdetalhe_artigoaspxidc=1ampidsc=50879ampida=50905
Sobre as vaacuterias vozes dissonantes na doutrina e jurisprudecircncia germacircnicas a propoacutesito da admissatildeo ou negaccedilatildeo do efeito-agrave-distacircncia ver
SOUSA David Melo De op cit- pp 34-40
314 ANDRADE Manuel da Costa op cit p 314 ndash ldquouma formulaccedilatildeo que parece denunciar a intencionalidade de em vez de a circunscrever agraves
declaraccedilotildees directamente obtidas generalizar a proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo a todas as provas inquinadas pelo ldquovenenordquo do meacutetodo proibidordquo DIAS
Jorge de Figueiredo ndash Para Uma Reforma Global do Processo Penal Portuguecircs Da Sua Necessidade e de Algumas Orientaccedilotildees Fundamentais in
Para uma nova justiccedila Penal Coimbra Almedina 1983 pp189 e ss DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 37 MENDES Paulo de
Sousa ndash ldquoAs proibiccedilotildees de prova em processo penalrdquo In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais Coimbra Almedina
2004 p152 MENDES Paulo de Sousa - Estatuto de arguido e posiccedilatildeo processual da viacutetima Revista Portuguesa de Ciecircncia Criminal Ano 17
nordm4 (outubro-dezembro 2007) pp604 e ss SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal op cit p672 SILVA Germana Marques da ndash op
cit (Curso de Processo Penal ndash Volume II) pp146-147 ldquoTambeacutem nos parece [a propoacutesito da admissibilidade da teoria da ldquofruit of the poisonous
treerdquo] que essa deve ser a soluccedilatildeo no sistema portuguecircs pois de outro modo fazendo entrar por uma porta o que se proiacutebe por outra pode
frustrar-se absolutamente o fim que com a proibiccedilatildeo de prova se pretende alcanccedilar desincentivar o recurso a meios proibidos de obtenccedilatildeo de
prova violando direitos das pessoasrdquo acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm1982004 de 24 de marccedilo relator Conselheiro Rui Moura Ramos
disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
315 Cf ANDRADE Manuel da Costa op cit p316 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p321
316 SANTOS Manuel SimasHENRIQUES Manuel Leal - Coacutedigo de Processo Penal Anotado Lisboa Editora Rei dos Livros 2004 Volume II p
359
106
107
PARTE II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO ndash EM
ESPECIAL NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO TRIBUTAacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO TRIBUTAacuteRIO EM
GERAL
1 A complexidade da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
Tradicionalmente definimos a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria como o viacutenculo de natureza
juriacutedica que se estabelece entre o credor de um tributo ndash maioritariamente o Estado ndash e um
devedor comummente designado por contribuinte317 este uacuteltimo em virtude de tal viacutenculo
encontra-se investido num conjunto de deveres diante do primeiro credor dos quais se
sobressai o dever de pagamento do tributo318 Ora uma relaccedilatildeo juriacutedica que em termos
estruturais assemelhar-se-ia bastante agrave que se verifica no domiacutenio obrigacional do Direito
Privado
Todavia um entendimento como o anterior mostra-se redutor da realidade em causa e
simplista Em primeiro lugar natildeo eacute apenas o contribuinte que se encontra adstrito a deveres de
cumprimento mas tambeacutem o Estado (por vezes estaacute obrigado a deveres de reembolso
exemplificativamente) assim estamos perante uma relaccedilatildeo juriacutedica que cria direitos e deveres
para ambos os sujeitos credor e devedor Em segundo lugar no lado do credor nem sempre se
encontra o Estado sendo possiacutevel em determinadas situaccedilotildees encontrar do lado oposto ao do
contribuinte outros entes puacuteblicos (Autarquias Locais Universidades etc) e por uacuteltimo
tambeacutem natildeo eacute correto estabelecer a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria apenas entre dois sujeitos pois
que em diversas situaccedilotildees eacute convocada a intervenccedilatildeo de terceiros que devem ser incluiacutedos na 317 ROCHA Joaquim Freitas ndash Apontamentos de Direito Tributaacuterio (a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria) Braga AEDUM 2012 pp 6 e ss
318 Entendemos por tributo toda a ldquoprestaccedilatildeo coactiva com finalidades financeirasrdquo ndash cf ROCHA Joaquim Freitas ndash Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tribuaacuterio 5ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2014 pp12 e ss A coatividade da prestaccedilatildeo revela-se quanto agrave origem (o tributo seraacute
sempre fixado por ato normativo o que significaraacute uma lei um decreto-lei ou um regulamento) e quanto agrave conformaccedilatildeo do conteuacutedo (tambeacutem o
conteuacutedo do tributo eacute fixado imperativamente por ato normativo) O tributo seraacute estabelecido para prosseguir finalidades financeiras o que
significa que devem ser exigidos com vista agrave produccedilatildeo de bens puacuteblicos ou semipuacuteblicos agrave satisfaccedilatildeo de necessidade de caraacutecter
tendencialmente puacuteblico e coletivo (como a defesa educaccedilatildeo seguranccedila iluminaccedilatildeo puacuteblica sauacutede saneamento ordenamento territorial entre
outras) excluindo-se deste acircmbito todas as receitas puacuteblicas coativas que natildeo prossigam tais finalidades como eacute o caso das prestaccedilotildees devidas
a entidades puacuteblicas com finalidades indemnizatoacuterias ou sancionatoacuterias (ex coimas e multas natildeo satildeo tributos) Pela definiccedilatildeo apresentada
cairatildeo na noccedilatildeo de tributo os impostos taxas e contribuiccedilotildees especiais (art3ordm - 5ordm da LGT)
108
categoria de sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica (o caso mais comum eacute o das entidades patronais ou
outras entidades que se encontram vinculadas a deveres de retenccedilatildeo na fonte)
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional assente num viacutenculo
juriacutedico estabelecido pela ordem juriacutedica em virtude do qual uma entidade ou pessoa (devedor
ou sujeito passivo) fica adstrita agrave realizaccedilatildeo de um determinado comportamento (prestaccedilatildeo319)
cujo cumprimento eacute exigido por outro indiviacuteduo (credor ou sujeito ativo) Este viacutenculo que une os
dois polos o dever de prestar do devedor e o poder subjetivo do credor em exigir o cumprimento
da prestaccedilatildeo denomina-se por relaccedilatildeo obrigacional ou apenas obrigaccedilatildeo320 Em mateacuteria
tributaacuteria sem prejuiacutezo das especificidades que se verificam em redor dos sujeitos da relaccedilatildeo
juriacutedica podemos afirmar que o viacutenculo se estabelece entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e o
contribuinte Tal obrigaccedilatildeo pode definir-se como o viacutenculo juriacutedico que surge pela verificaccedilatildeo
concreta da situaccedilatildeo ou condiccedilotildees abstratamente previstas na lei tributaacuteria e cujo objeto eacute a
prestaccedilatildeo de imposto
A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute assim uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa321
alicerccedilada nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo
de pagar o tributo como adiante veremos) e na ldquoseacuterie de deveres secundaacuterios e de deveres
acessoacuterios de conduta que gravitam as mais das vezes em torno desse dever principal de prestar
e ateacute do direito agrave prestaccedilatildeo (principal)rdquo322
319 Cf Art397ordm CC
320 VARELA Antunes ndash Das obrigaccedilotildees em geral 10ordf Ed Coimbra Almedina 2000 Vol I p 63 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto ndash Princiacutepios de
Direito dos Contratos Coimbra Coimbra Editora 2011
p 22 ldquoo conteuacutedo da relaccedilatildeo obrigacional pode analisar-se sob duas perspectivas sob a perspectiva do seu sujeito activo ndash analisando-se o
direito de creacutedito [que eacute um direito subjectivo propriamente dito enquanto poder juriacutedico de exigir (ou de pretender) de outrem (do devedor) um
determinada accedilatildeo ou omissatildeo] ndash ou sob a perspectiva do seu sujeito passivo ndash analisando-se o dever de prestarrdquo Assim a obrigaccedilatildeo fiscal eacute tal
como uma obrigaccedilatildeo civil o viacutenculo juriacutedico atraveacutes do qual algueacutem fica adstrito ao cumprimento de uma prestaccedilatildeo junto de outrem Todavia tal
natildeo deixa de implicar um certo distanciamento e diferenciaccedilatildeo entre ambas as obrigaccedilotildees a obrigaccedilatildeo civil tem como fonte os contratos
negoacutecios juriacutedicos bilaterais prosseguindo os interesses e autonomia privada por sua vez a obrigaccedilatildeo fiscal por procurar encontrar meios para
satisfazer e sustentar as necessidades comunitaacuterias e tarefas do Estado tem a sua origem na lei Nas palavras de JOAQUIM FREITAS ROCHA
umas das caracteriacutesticas da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute o seu caracter ex lege o que significa que ela eacute criada pelo Direito tem uma base normativa que
apenas se constituem direitos e deveres atraveacutes da norma juriacutedica natildeo se admitindo obrigaccedilotildees tributaacuterias principais ou acessoacuterias criadas por
acordo ndash cf op cit (Apontamentos de direito tributaacuterio) p11
321 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) p 7-8 VELOSO Luiacutes Miguel Braga ndash Consideraccedilotildees sobre os deveres de cooperaccedilatildeo e
os respectivos instrumentos reactivos em sede fiscal Braga Universidade do Minho 2012 Dissertaccedilatildeo de Mestrado p15
322 VARELA Antunes op cit pp63 e ss
109
A prestaccedilatildeo configura-se como o comportamento ou conduta positivo (accedilatildeo) ou negativo
(omissatildeo) devida por certo indiviacuteduo a outra ou outras pessoas323 Em termos fiscais a prestaccedilatildeo
exigida maioritariamente eacute a entrega de um determinado quantitativo pecuniaacuterio com vista a
custear as despesas relativas agrave satisfaccedilatildeo das necessidades comunitaacuterias324
Caracterizada que estaacute em moldes necessariamente sumaacuterios a relaccedilatildeo juriacutedica
tributaacuteria como uma relaccedilatildeo obrigacional passaremos agora agrave especificaccedilatildeo da sua
complexidade325
11 A complexidade subjetiva e objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal a obrigaccedilatildeo
principal e obrigaccedilotildees acessoacuterias
Referimos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa
As relaccedilotildees juriacutedicas podem distinguir-se entre relaccedilatildeo juriacutedica una ou simples (se a um
determinado direito subjetivo corresponder apenas um dever juriacutedico ou uma sujeiccedilatildeo) e relaccedilatildeo
juriacutedica muacuteltipla ou complexa (se de um dado facto juriacutedico resultar uma pluralidade de direitos
eou obrigaccedilotildees ndash deveres ou sujeiccedilotildees)326
A complexidade da relaccedilatildeo tributaacuteria eacute visiacutevel atraveacutes de vaacuterios acircngulos ou perspetivas de
um ponto de vista subjetivo (dos sujeitos da relaccedilatildeo tributaacuteria) de um ponto de vista objetivo (do
conteuacutedo da relaccedilatildeo) e das relaccedilotildees em que a mesma se desdobra ou analisa327
De modo sucinto em virtude de esta mateacuteria natildeo interagir diretamente com o tema objeto
da presente dissertaccedilatildeo a complexidade subjetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria prende-se com o
facto de que a mesma nem sempre se reconduz ao esquema tradicional binaacuterio e baacutesico de
sujeito passivo-sujeito ativo (apenas com dois intervenientes) Como jaacute se referiu anteriormente
323 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit pp31 e ss
324 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p16
325 Sobre a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e a sua complexidade ver ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp 8 e ss SANCHES J L
Saldanha ndash Manual de Direito Fiscal 2ordf Ed Coimbra Coimbra Editora 2002 pp 129 e ss COSTA J M Cardoso da ndash Curso de Direito Fiscal
2ordf Ed Coimbra Almedina 1972 pp255 e ss TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash A relaccedilatildeo juriacutedica fiscal Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de
Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm4 (1962) pp 31 e ss MARTINEZ Pedro Soares ndash Direito Fiscal
Coimbra Almedina 2003 pp170 e ss NABAIS Joseacute Casalta ndash Direito Fiscal 4ordf Ed Coimbra Almedina 2006 pp241 e ss
326 HoumlRSTER Heinrich Ewald ndash A parte geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito Civil 4ordfreimpressatildeo da ediccedilatildeo de 1992 Coimbra
Almedina p163 OLIVEIRA Nuno Manuel Pinto op cit p49
327 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp241 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentoshellip) pp8 e ss
110
em certos casos a lei convoca a intervenccedilatildeo de terceiros que se assumem perante a norma
tributaacuteria como sujeitos da relaccedilatildeo O caso acadeacutemico e paradigmaacutetico mais comum eacute o de
mecanismo fiscal da retenccedilatildeo na fonte328 onde a lei obriga entidades (patronais instituiccedilotildees
financeiras entre outras) a proceder agrave cobranccedila do IRS incidente sobre salaacuterios pagos ao
trabalhador ou sobre juros de depoacutesitos colocados agrave disposiccedilatildeo dos clientes Ora nestes casos
aleacutem de se verificar a relaccedilatildeo bilateral tiacutepica entre Administraccedilatildeo Tributaacuteria (adiante AT) e o
contribuinte (isto eacute a pessoa que aufere o rendimento laboral ou o titular do depoacutesito) eacute
suscetiacutevel identificar-se outros viacutenculos tributaacuterios envolvendo outros indiviacuteduos a relaccedilatildeo
existente entre AT e as entidades obrigadas a reter na fonte e a relaccedilatildeo estabelecida entre estas
uacuteltimas e o contribuintedepositante329 330
A complexidade objetiva da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria denota-se pela razatildeo de a mesma
abranger vaacuterios viacutenculos reciacuteprocos e interdependentes ldquoNa verdade na fisionomia da relaccedilatildeo
tributaacuteria eacute possiacutevel identificar um viacutenculo principal ndash que se materializa na obrigaccedilatildeo de
pagamento do tributo e no correspondente direito de o exigir ndash e uma seacuterie alargada de viacutenculos
acessoacuterios nos diversos polos da relaccedilatildeo como as obrigaccedilotildees de apresentar declaraccedilotildees de
emitir factura ou recibo de manter a contabilidade organizada de efectuar a retenccedilatildeo na fonte e
entregar a respectiva quantia ao credor tributaacuterio de restituir os tributos pagos em montante
328 Ver exemplificativamente art 71ordm e art98ordm e ss do Coacutedigo de Imposto sobre Rendimentos das Pessoas Singulares (CIRS) Sobre um estudo
mais detalhado da retenccedilatildeo na fonte SANCHES J L Saldanha ndash A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria 2ordm Ed Lex Lisboa 2000 pp64 e ss e
tambeacutem Manual de Direito Fiscal pp 230-232 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp273 e ss
329 A consideraccedilatildeo desta complexidade subjetiva da relaccedilatildeo tributaacuteria e o facto de ela envolver indiviacuteduos aleacutem dos tradicionais AT- contribuinte eacute
de extrema importacircncia pois que em determinadas circunstacircncias e sob o cumprimento de certas formalidades estes terceiros podem impugnar
atos de liquidaccedilatildeo de impostos respeitantes ao contribuinte originaacuterio ndash cf Art132ordm do CPPT
330 Assim relativamente aos diversos sujeitos adstritos ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias (sujeitos passivos) a lei faz distinccedilatildeo entre o
sujeito passivo direto (que eacute aquela pessoa(s) ou entidade(s) que tem uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio como satildeo os casos
exemplificativos do trabalhador que aufere rendimentos suscetiacuteveis de tributaccedilatildeo em IRS ou do aluno que se inscreve numa instituiccedilatildeo de
ensino superior e que fica vinculado ao pagamento da taxa de propina) e sujeito passivo indireto (que abarca aquelas pessoas ou entidades que
natildeo tendo uma relaccedilatildeo pessoal e direta com o facto tributaacuterio satildeo chamadas ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias como eacute o caso da
entidade patronal obrigada a reter na fonte) Quanto ao sujeito passivo direto este tanto pode ser singular (quando o facto tributaacuterio
pressuposto da tributaccedilatildeo se verifica em relaccedilatildeo a apenas um indiviacuteduo) ou plural (quando o facto tributaacuterio se verifica ab initio em relaccedilatildeo a
mais do que uma pessoa ou entidade ndash fala-se nesses casos de pluralidade passiva) No que concerne ao sujeito passivo indireto a lei prevecirc trecircs
grandes categorias que aqui se devem mencionar substituiccedilatildeo (art20ordm LGT) sucessatildeo e responsabilidade tributaacuteria (art23ordm e ss LGT) ndash Cf
ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) pp15 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp242 256 e ss neste particular
trecho da obra do autor eacute ainda efetuada a distinccedilatildeo entre contribuinte devedor do imposto e sujeito passivo da relaccedilatildeo juriacutedica fiscal
Remetemos para a obra referida a anaacutelise a estas consideraccedilotildees sob pena de nos alargarmos e afastarmos em demasia naquilo que eacute o objeto
de estudo
111
superior ao devido ou de pagar juros indemnizatoacuterios compensatoacuterios ou moratoacuterios consoante
os casosrdquo331
Ora no que concerne ao conteuacutedo da relaccedilatildeo tributaacuteria encontramos ao lado da
obrigaccedilatildeo de imposto ndash obrigaccedilatildeo ou prestaccedilatildeo principal332 a satisfazer pelo contribuinte ou
demais obrigados tributaacuterios ndash as mais variadas obrigaccedilotildees ou deveres acessoacuterios Satildeo variadas
porque tanto se traduzem em prestaccedilotildees de natureza pecuniaacuteria (como o pagamento de juros
moratoacuterios ou compensatoacuterios) como em prestaccedilotildees de caraacuteter formal ou prestaccedilotildees de facere
a satisfazer pelo contribuinte ou terceiros333 Constatamos assim que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria
engloba a ldquototalidade do conjunto de deveres e direitos subjectivos de natureza fiscal mesmo
que natildeo se traduzam em quaisquer deveres de prestaccedilatildeo pecuniaacuteria designadamente os
deveres acessoacuterios334 [complementares ou secundaacuterios] da obrigaccedilatildeo fiscal que configuram
autecircnticos deveres de cooperaccedilatildeo do sujeito passivordquo335 que se destinam de grosso modo agrave
praacutetica dos atos preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees
legais ou administrativas (conferidas pelo Fisco) Todavia importa advertir que ldquoembora sendo
acessoacuterias ou de segundo grau em relaccedilatildeo agrave essencial obrigaccedilatildeo tributaacuteria de cuja existecircncia
pelo menos eventual dependem satildeo tambeacutem verdadeiras obrigaccedilotildees fiscaisrdquo336
Por uacuteltimo importa referir que tal como a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria o conteuacutedo dessa
relaccedilatildeo juriacutedica tambeacutem apresenta um caraacutecter ex lege337 o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo principal e
das demais obrigaccedilotildees acessoacuterias eacute exclusivamente determinado pela norma juriacutedica Isto
significa que tanto o montante da prestaccedilatildeo devida ao credor o modo o prazo e o lugar de
pagamento do tributo bem como a efetivaccedilatildeo das obrigaccedilotildees acessoacuterias estatildeo determinadas na
lei
331 Cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p10
332 Cf Art31ordm nordm1 da LGT ldquoConstitui obrigaccedilatildeo principal do sujeito passivo efetuar o pagamento da diacutevida tributaacuteriardquo
333 Cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p242 Assim dizemos que a relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica complexa pois que a lei impotildee
aleacutem da obrigaccedilatildeo principal de pagamento do tributo ldquodeterminadas obrigaccedilotildees destinadas a possibilitar a percepccedilatildeo do imposto obrigaccedilotildees
que em conexatildeo com aquela principal vecircm a constituir a relaccedilatildeo juriacutedica fiscalrdquo - Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz op cit p31
334 Ver a este propoacutesito o art31ordm da LGT sob a epiacutegrafe ldquoobrigaccedilotildees dos sujeitos passivosrdquo onde se afirma que ldquosatildeo obrigaccedilotildees acessoacuterias do
sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigaccedilatildeo de imposto nomeadamente a apresentaccedilatildeo de declaraccedilotildees a exibiccedilatildeo de
documentos fiscalmente relevantes incluindo a contabilidade ou escrita e a prestaccedilatildeo de informaccedilotildeesrdquo
335 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p20
336 Cf TEIXEIRA Antoacutenio Braz ndash op cit p32
337 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Apontamentos de Direito Tributaacuterio) p11
112
2 O dever de colaboraccedilatildeo do sujeito passivo enquanto obrigaccedilatildeo acessoacuteria
Aleacutem do dever ou obrigaccedilatildeo fundamental338 de pagar a diacutevida tributaacuteria (art31ordm nordm1 da
LGT) existem outros deveres ou obrigaccedilotildees acessoacuterias que natildeo implicam diretamente o
pagamento do tributo mas antes obrigaccedilotildees de fazer ou de facere que se traduzem em atos
declarativos de escrituraccedilatildeo e conservaccedilatildeo de livros e documentos de comunicaccedilatildeo ou de
cooperaccedilatildeo em geral339 ndash muitos desses deveres tecircm como fim facilitar a liquidaccedilatildeo do imposto
em causa (ex art57ordm e ss CIRS) ou prevenir e reprimir fraudes fiscais (ex art29ordm RCPITA que
estipula o dever de suportar exames sobre os livres de contabilidade ou escrituraccedilatildeo ou demais
accedilotildees no plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria)340
Aproveitando a distinccedilatildeo doutrinaacuteria que eacute feita podem referir-se os deveres acessoacuterios
que se consubstanciam em obrigaccedilotildees de facere (como exemplo o dever de efetuar a
declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos dever de conservar livros e documentos dever de declarar
o iniacutecio a alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo da atividade (arts 112ordm e 114ordm CIRS) o dever de passar
recibos e emitir faturas (art115ordm CIRS e art29ordm nordm1 al b) do CIVA) entre outros exemplos341) e
os deveres que se traduzem em prestaccedilotildees pecuniaacuterias (como o dever do empregador entregar
periodicamente ao Fisco as quantias retidas na fonte nos termos do art98ordm e ss do CIRS o
dever de reembolsar pagar juros moratoacuterios compensatoacuterios ou indemnizatoacuterios (art30ordm nordm1
da LGT) entre outros) que apresentam neste caso como ldquoobrigaccedilotildees de darerdquo Pela diversidade
que podem assumir a maior parte dos deveres tributaacuterios acessoacuterios satildeo os que implicam um
comportamento positivo por parte do obrigado portanto as chamadas prestaccedilotildees de facere
Os deveres acessoacuterios podem caber tanto ao sujeito passivo direto da relaccedilatildeo juriacutedica
como a um terceiro ou ateacute mesmo agrave Administraccedilatildeo Tributaacuteria conforme dispotildeem os art35ordm e
ss do CPPT (satildeo deveres acessoacuterios da AT notificar e fundamentar os atos que pratica) 338 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo do termo ldquodeverrdquo ou ldquoobrigaccedilatildeordquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p244 SANCHEZ SERRANO Luis ndash La
declaracioacuten tributaria Madrid Instituto de Estudios Fiscales 1977 p27 Quanto a noacutes face ao modesto e sucinto tratamento que daremos a
estes assuntos assumiremos como sinoacutenimos os termos ldquodeveres acessoacuteriosrdquo e ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ateacute porque a lei fiscal fala
maioritariamente em ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo ou somente ldquoobrigaccedilotildeesrdquo
339 CARLOS Ameacuterico Fernando Braacutes ndash Impostos Teoria Geral Coimbra Almedina 2006 p79
340 Nesse sentido entre as obrigaccedilotildees acessoacuterias podemos distinguir ldquo1) as obrigaccedilotildees ou deveres secundaacuterios que integram por um lado os
deveres acessoacuterios da prestaccedilatildeo principal que se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execuccedilatildeo da prestaccedilatildeo e por
outro os deveres relativos a prestaccedilotildees substitutivas ou complementares da prestaccedilatildeo principal e 2) os deveres de conduta que tecircm como
objetivo o regular desenvolvimento da relaccedilatildeo de imposto e se baseiam no princiacutepio da boa feacuterdquo ndash cf NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
341 Idem ibidem
113
A doutrina342 classifica a obrigaccedilatildeo secundaacuteria como acessoacuteria complementar natildeo
pecuniaacuteria e instrumental Ora vejamos Satildeo acessoacuterias porque assumem a funccedilatildeo de apoio e
de efetivaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo principal complementares pois tecircm um caraacuteter de completude sobre
obrigaccedilatildeo principal natildeo pecuniaacuterias por se tratarem na sua maioria de deveres meramente
formais que se traduzem em obrigaccedilotildees de ldquofazerrdquo ou ldquonatildeo fazerrdquo como entregar a declaraccedilatildeo
de rendimentos ou manter a contabilidade organizada instrumentais por se configurarem em
ldquoobrigaccedilotildees de meio necessaacuterias agrave exigecircncia do tributo satildeo aplicados por forccedila dos viacutenculos e
situaccedilotildees juriacutedicas subjectivas pertencentes ao Direito Tributaacuterio formal que configura uma
posiccedilatildeo de instrumentalidade em relaccedilatildeo ao Direito Tributaacuterio Materialrdquo343
Face ao exposto natildeo seraacute difiacutecil constatar a importacircncia que as obrigaccedilotildees acessoacuterias
tecircm assumido no acircmbito da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e no desenvolvimento de todo o sistema
de gestatildeo fiscal A evoluccedilatildeo que se tem verificado na gestatildeo fiscal conduziu ao longo dos
uacuteltimos anos a uma generalizaccedilatildeo dos casos em que se confia ao contribuinte a praacutetica de atos
necessaacuterios ao normal desenvolvimento e cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias em funccedilatildeo de
uma menor intervenccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ndash que vecirc a sua atuaccedilatildeo reduzida
preferencialmente aos casos de reaccedilatildeo administrativa face ao incumprimento ou ao ldquomomento
patoloacutegicordquo344 da relaccedilatildeo juriacutedico-tributaacuteria Atualmente nos sistemas fiscais verifica-se que
muitos dos atos que eram ateacute entatildeo perspetivados como administrativos satildeo hoje executados
pelo proacuteprio contribuinte ou outras entidades privadas (pense-se nos casos de liquidaccedilatildeo e
cobranccedila de tributos)345 aquilo a que alguns autores tecircm denominado de privatizaccedilatildeo da relaccedilatildeo
juriacutedica tributaacuteria346
342 VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit pp27 e ss Quanto agrave obrigaccedilatildeo principal CASALTA NABAIS define-a como sendo legal puacuteblica exequiacutevel e
executiva semi-executoacuteria indisponiacutevel e irrenunciaacutevel auto titulada e especialmente garantida ndash ver a este respeito NABAIS Joseacute Casalta op
cit pp253-254
343 Cf VELOSO Luiacutes Miguel Braga op cit p27
344 Nas expressotildees de SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p 130
345 Como exemplos de atos que atualmente estatildeo consignados ao contribuinte temos no acircmbito do IRC a liquidaccedilatildeo pode ser efetuada pela AT
ou pelo contribuinte (art89ordm CIRC) no acircmbito do IRS embora o imposto seja liquidado pela AT a liquidaccedilatildeo eacute realizada com base nos
rendimentos declarados pelo sujeito passivo (art57ordm CIRS) o mecanismo da retenccedilatildeo da fonte jaacute mencionado quanto ao Imposto Municipal
sobre Imoacuteveis a iniciativa da primeira avaliaccedilatildeo de um preacutedio urbano cabe ao chefe de financcedilas com base na declaraccedilatildeo apresentada pelos
sujeitos passivos (art37ordm do CIMI) entre outras circunstacircncias
346 Cf ROCHA Joaquim Freitas ndash op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p47
114
Todavia nem sempre fora assim Tradicionalmente os deveres de atuaccedilatildeo atribuiacutedos pela
lei aos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eram meros deveres de prestaccedilatildeo
pecuniaacuteria com algumas poucas obrigaccedilotildees de conduta347
O que esteve na base para a mudanccedila do modelo de gestatildeo fiscal foi a elevada
complexidade na quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria que recaiacutea sobre a atividade puacuteblica
exercida primordialmente pela Administraccedilatildeo Na verdade a tributaccedilatildeo das sociedades
contemporacircneas expande-se por diversos tipos de tributos (impostos taxas e contribuiccedilotildees
especiais) aplicaacuteveis a uma multiplicidade de atividades econoacutemicas e comerciais Conceber um
modelo de gestatildeo fiscal onde o Estado reuacutena em si todo o encargo de averiguar as realidades
sujeitas a tributaccedilatildeo sem necessidade de intervenccedilatildeo do contribuinte implicaria que a maacutequina
estadual detivesse um serviccedilo amplo perfeito e eficaz o que acabava por redundar numa
enorme despesa e dificilmente tornaria possiacutevel averiguar todos os factos tributaacuterios existentes
(sobretudo os que estatildeo em condiccedilotildees propiacutecias agrave ocultaccedilatildeo)
A realizaccedilatildeo da tributaccedilatildeo seria assim inviaacutevel sem o recurso a deveres de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes ldquoA deslocaccedilatildeo sistemaacutetica de fases e sectores do procedimento de
determinaccedilatildeo liquidaccedilatildeo e cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais para os particulares veio criar
um corpo de normas com caracteriacutesticas especiais tendo sempre como destinataacuterios os
particulares ndash os sujeitos passivos das obrigaccedilotildees fiscais ndash e cujo cumprimento eacute assegurado
por variados tipos de sanccedilotildees administrativas ou penais348 Deveres de cooperaccedilatildeo normas
contra-ordenacionais fiscais e normas penais como uma aacuterea de crescente importacircncia no
ordenamento juriacutedico-tributaacuteriordquo349 Por este corpo de normas que estatui deveres de prestar natildeo-
pecuniaacuterios foram criados os deveres de cooperaccedilatildeo ou colaboraccedilatildeo que se definem como ldquoo
conjunto de deveres de comportamento resultantes de obrigaccedilotildees que tecircm por objecto
prestaccedilotildees de facto de conteuacutedo natildeo directamente pecuniaacuterio com o objectivo de permitir agrave
Administraccedilatildeo a investigaccedilatildeo e determinaccedilatildeo dos factos fiscalmente relevantesrdquo350 Deveres
esses que surgem ao lado das prestaccedilotildees fiscais principais e pecuniaacuterias e que servem e
auxiliam na determinaccedilatildeo exata das mesmas
347 SANCHES J L Sanches ibidem pp131 e ss
348 Como adiante veremos o sancionamento do incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo eacute autoacutenomo natildeo depende da preacutevia existecircncia de
uma diacutevida tributaacuteria
349 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p56
350 Idem ibidem
115
O procedimento tributaacuterio depende cada vez mais das iniciativas e atuaccedilotildees dos
contribuintes351 A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria e o procedimento tributaacuterio satildeo orientados conforme
prevecirc o art 59ordm da LGT por um dever geral e reciacuteproco de colaboraccedilatildeo entre administraccedilatildeo
tributaacuteria e contribuintes
No ordenamento fiscal portuguecircs tais deveres de cooperaccedilatildeo352 satildeo designados nos vaacuterios
textos normativos por obrigaccedilotildees acessoacuterias353
21 O dever de cooperaccedilatildeo no texto da Lei
Como concluiacutemos anteriormente o legislador estabeleceu um vasto leque de obrigaccedilotildees
acessoacuterias (onde se enquadra o dever de cooperaccedilatildeo) tendentes a permitir o cumprimento da
obrigaccedilatildeo principal ndash a prestaccedilatildeo de imposto Isto mesmo resulta dos artigos 31ordm e 59ordm ambos
previstos na Lei Geral Tributaacuteria e em especial do art9ordm do Regime Complementar do
Procedimento de Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira354
351 Atuaccedilotildees que se presumem de boa-feacute conforme dispotildee o art 59ordm nordm2 da LGT Pelas razotildees loacutegicas tal presunccedilatildeo natildeo eacute absoluta Pode
suceder que as declaraccedilotildees apresentadas pelo contribuinte revelem omissotildees inexatidotildees ou indiacutecios que impeccedilam o apuramento da real e
efetiva mateacuteria tributaacutevel Nesses casos seraacute legiacutetimo sob a preacutevia observacircncia de determinados requisitos legais o recurso aos meacutetodos de
avaliaccedilatildeo indireta por parte da administraccedilatildeo tributaacuteria art 87ordm e ss da LGT
352 A doutrina discute a utilizaccedilatildeo dos termos ldquodeveres de cooperaccedilatildeordquo ou ldquodeveres de colaboraccedilatildeordquo Tendo em conta que a relaccedilatildeo entre
contribuinte e Administraccedilatildeo natildeo eacute uma relaccedilatildeo de natureza paritaacuteria face ao Ius imperii que a AT exerce sobre o contribuinte as vozes mais
sonantes da doutrina preferem a utilizaccedilatildeo do termo colaboraccedilatildeo Ver ndash CORREIA Joseacute Manuel Seacutervulo ndash Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativos Coimbra Almedina 1987 Pp420 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit p245
353 SALDANHA SANCHES na sua Dissertaccedilatildeo de Doutoramento critica a ldquoacessoriedaderdquo que a legislaccedilatildeo acabou por atribuir aos deveres de
cooperaccedilatildeo pelo facto de se relativizar a mudanccedila do paradigma de gestatildeo fiscal que ao longo dos tempos se tem construindo Este novo
paradigma tal como estaacute concebido (implicando uma intensa intervenccedilatildeo do contribuinte no procedimento tributaacuterio) reformulou e aproximou as
relaccedilotildees entre administraccedilatildeo-administrado reivindicando-se uma maior consciecircncia ciacutevica do contribuinte na tributaccedilatildeo jaacute que agora eacute parte
ativa da mesma (natildeo se limita ao mero pagamento do imposto ndash outros deveres incidem sobre si) Do mesmo modo MANUEL PIRES e RITA
CALCcedilADA PIRES tambeacutem rejeitam a acessoriedade como elemento definitoacuterio dos deveres de cooperaccedilatildeo ou obrigaccedilotildees secundaacuterias pois que
estas obrigaccedilotildees satildeo estabelecidas independentemente da existecircncia da obrigaccedilatildeo de imposto (veja-se a este propoacutesito art112ordm n1 do CIRS)
Ademais como veremos infra um eventual incumprimento dos deveres de cooperaccedilatildeo pode gerar sanccedilotildees administrativas contraordenacionais
ou penais independentemente do pagamento ou natildeo do imposto ndash o que contribui para atestar a autonomia destes deveres em relaccedilatildeo agrave
obrigaccedilatildeo principal Apesar do exposto a nomenclatura utilizada eacute a de ldquoobrigaccedilotildees acessoacuteriasrdquo e por motivos de uma simplificaccedilatildeo na
exposiccedilatildeo tambeacutem seraacute a que utilizaremos ndash Cf respetivamente SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp
57-60 e PIRES Manuel PIRES Rita Calccedilada ndash Direito Fiscal 4ordf ed Coimbra Almedina 2010 p 254
354 Dispotildee o referido preceito legislativo sob a epiacutegrafe ldquoPrinciacutepio da cooperaccedilatildeo
1) A inspeccedilatildeo tributaacuteria e os sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios estatildeo sujeitos a um dever muacutetuo de cooperaccedilatildeo
2) Em especial estatildeo sujeitos a um dever de cooperaccedilatildeo com a inspeccedilatildeo tributaacuterio os serviccedilos estabelecimentos e organismos ainda que
personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e das autarquias locais as associaccedilotildees puacuteblicas as empresas puacuteblicas ou de capital
exclusivamente puacuteblico as instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e as pessoas coletivas de utilidade puacuteblicardquo
116
O dever de cooperaccedilatildeo previsto de forma geneacuterica na lei eacute um dever reciacuteproco ou seja
que vincula todos os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria nos termos em que o dispositivo
normativo assim estabelecer (caraacutecter ex lege das obrigaccedilotildees tributaacuterias) Quer isto dizer que
existe um dever de cooperaccedilatildeo dos sujeitos passivos da relaccedilatildeo juriacutedica para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria e tambeacutem um dever de cooperaccedilatildeo desta para como os outros
(art59ordm nordm1 da LGT)
Assim nos termos do art 59ordm nordm3 da LGT a colaboraccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria
para com os contribuintes compreenderaacute exemplificativamente355 a informaccedilatildeo puacuteblica regular
e sistemaacutetica sobre os seus direitos e obrigaccedilotildees a notificaccedilatildeo do sujeito passivo ou demais
interessados para o esclarecimento das duacutevidas sobre as suas declaraccedilotildees ou documentos a
prestaccedilatildeo de informaccedilotildees vinculativas nos termos da lei Aleacutem disso a administraccedilatildeo tributaacuteria
esclareceraacute os contribuintes e outros obrigados tributaacuterios sobre a necessidade de apresentaccedilatildeo
de declaraccedilotildees reclamaccedilotildees e peticcedilotildees e a praacutetica de quaisquer outros atos necessaacuterios ao
exerciacutecio dos seus direitos incluindo a correccedilatildeo dos erros ou omissotildees manifestas que se
observem356
Por sua vez o contribuinte deve cooperar de boa-feacute na instruccedilatildeo do procedimento
esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo
os meios de prova a que tenha acesso357 Nessa medida a colaboraccedilatildeo dos contribuintes com a
administraccedilatildeo tributaacuteria compreende o cumprimento das obrigaccedilotildees acessoacuterias previstas na lei e
a prestaccedilatildeo de esclarecimentos que esta lhe solicitar sobre a sua situaccedilatildeo tributaacuteria bem como
sobre as relaccedilotildees econoacutemicas que mantenham com terceiros conforme estipula o art 59ordm nordm 4
da LGT
Em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndasha que teremos oportunidade de nos
referir com maior detalhe infra ndash a administraccedilatildeo tributaacuteria procuraraacute a cooperaccedilatildeo da entidade
inspecionada para esclarecer as duacutevidas suscitadas no decurso do procedimento Do mesmo
modo que natildeo estando em causa o ecircxito da accedilatildeo ou o dever de sigilo sobre a situaccedilatildeo tributaacuteria
de terceiros a AT deveraacute facultar agrave entidade inspecionada as informaccedilotildees ou outros elementos
355 Cf SOUSA Rui Correia ndash Lei Geral Tributaacuteria ndash anotada e comentada e Legislaccedilatildeo complementar Lisboa Quid Juris 1999 p110
356 Cf Art 48ordm nordm1 CPPT
357 Cf Art 48ordm nordm2 CPPT
117
comprovadamente necessaacuterios ao cumprimento de obrigaccedilotildees tributaacuterias acessoacuterias por esta
solicitados358
Estamos a falar de um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo de uma mera faculdade que esteja
simplesmente agrave disposiccedilatildeo de cada sujeito da relaccedilatildeo A sustentar tal conclusatildeo podem
apontar-se as diversas consequecircncias que lei estabelece para os casos de incumprimento do
dever de colaboraccedilatildeo ndash adiante retomaremos esta temaacutetica
Face ao quadro normativo simples e representativo apresentado eacute percetiacutevel a relevacircncia
do contribuinte como auxiacutelio (e em certos casos substituto) da AT na realizaccedilatildeo de
determinadas tarefas de imposto
Tais deveres assumem importacircncia primeiramente numa fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel jaacute que a maioria do nosso sistema fiscal assenta em deveres (de cooperaccedilatildeo)
declarativos a cargo do sujeito passivo e mais tarde a niacutevel da comprovaccedilatildeo dos elementos
declarados
No acircmbito de cada tipo de imposto existe um conjunto de deveres de cooperaccedilatildeo que
seratildeo necessaacuterios para a determinaccedilatildeo e verificaccedilatildeo administrativa da diacutevida fiscal e que
recairatildeo sobre os sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria Advirta-se previamente que apenas nos
iremos debruccedilar de forma mais profunda sobre os deveres de cooperaccedilatildeo no plano do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o que natildeo prejudica uma preacutevia e sucinta enumeraccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo evidenciados em alguns impostos
Nestes termos o CIVA no seu art85ordm prevecirc explicitamente o dever de colaboraccedilatildeo e faz
remissatildeo para as normas da LGT e do RCPITA respeitantes a esta temaacutetica e agrave inspeccedilatildeo
tributaacuteria do mesmo modo o art 127ordm e ss do CIRC e os arts48ordm e 49ordm do CIMT consagram
de forma expressa o dever de cooperaccedilatildeo
Sendo os deveres de cooperaccedilatildeo um conjunto de deveres que existindo ao lado da
prestaccedilatildeo principal tecircm como objeto tanto prestaccedilotildees pecuniaacuterias como obrigaccedilotildees de facere
(estas em larga maioria em relaccedilatildeo agraves primeiras) que pretendem determinar e investigar os
factos fiscalmente relevantes auxiliando na determinaccedilatildeo exata da diacutevida tributaacuteria existe no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio portuguecircs uma multiplicidade de obrigaccedilotildees e deveres
358 Cf Art48ordm RCPITA
118
acessoacuterios das relaccedilotildees fiscais que concretamente se apresentam como deveres de
cooperaccedilatildeo359 Toma-se exemplificativamente os casos mais carismaacuteticos do IRS relativo aos
rendimentos empresariais e profissionais no IRC e IVA em que aleacutem da obrigaccedilatildeo de imposto
encontramos outras diversas obrigaccedilotildees declarativas comunicativas contabiliacutesticas e demais
deveres acessoacuterios a serem cumpridas pelo sujeito passivo direto ou indireto360 obrigaccedilatildeo de
entrega da declaraccedilatildeo anual de rendimentos dos sujeitos passivos de IRS (art 57ordm do CIRS)
obrigatoriedade de entregar a declaraccedilatildeo de iniacutecio de alteraccedilatildeo ou cessaccedilatildeo de atividade
(arts112ordm a 114ordm do CIRS e 31ordm e ssdo CIVA) declaraccedilatildeo de inscriccedilatildeo de alteraccedilotildees ou de
cessaccedilatildeo no registo de sujeitos passivos de IRC (arts 118ordm e 119ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de
entrega de declaraccedilatildeo perioacutedica de rendimentos (art120ordm do CIRC) a obrigaccedilatildeo de entrega da
declaraccedilatildeo anual de informaccedilatildeo contabiliacutestica e fiscal (art 121ordm do CIRC) o dever de emitir
faturas recibos ou fatura-recibo (art115ordm CIRS) o dever de possuir contabilidade organizada
(art117ordm CIRS) todas as obrigaccedilotildees mencionadas no art 29ordm do CIVA e outras demais
obrigaccedilotildees que por serem de uma dimensatildeo quantitativa enorme e variada fica impossibilitada a
sua menccedilatildeo completa no texto desta monografia
3 O princiacutepio da prossecuccedilatildeo verdade material em mateacuteria tributaacuteria o
subprinciacutepio corolaacuterio da colaboraccedilatildeo
Estabelece o art55ordm da LGT que no plano do procedimento tributaacuterio361 a ldquoadministraccedilatildeo
tributaacuteria exerce as suas atribuiccedilotildees na prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico de acordo com os
princiacutepios da legalidade da igualdade da proporcionalidade da justiccedila da imparcialidade e da
celeridade no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributaacuteriosrdquo O
objetivo fundamental de todo o procedimento tributaacuterio eacute a descoberta da verdade material a
realizaccedilatildeo da justiccedila material ndash objetivo que a Doutrina eacute unacircnime em entender que deriva
359 A este respeito ver exemplificativamente NABAIS Joseacute Casalta op cit Pp246 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp 249 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) op cit pp203 e ss
360 Pense-se nos casos de retenccedilatildeo na fonte
361 Definimos procedimento tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos atinente agrave emanaccedilatildeo de uma vontade juriacutedico-
administrativa por contraposiccedilatildeo agrave noccedilatildeo de processo tributaacuterio como o conjunto ordenado e sequenciado de atos tendentes agrave emanaccedilatildeo de
uma vontade jurisdicional
119
daquilo a que o art55ordm LGT denomina por ldquoprinciacutepio da justiccedilardquo e tambeacutem expressamente do
art5ordm nordm2 LGT ao mencionar que a tributaccedilatildeo respeita o princiacutepio da justiccedila material
Seguindo de perto JOAQUIM FREITAS DA ROCHA ldquoa verdade material em mateacuteria tributaacuteria
implica o conhecimento e aceitaccedilatildeo total do princiacutepio da igualdade (justiccedila) na tributaccedilatildeo362 na
sua dimensatildeo estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos pois
apenas o conhecimento desta permite atingir aquela As atuaccedilotildees procedimentais neste sentido
apenas deveratildeo ter por finalidade averiguar tal capacidade contributiva e concluir pela tributaccedilatildeo
ou natildeo tributaccedilatildeo em funccedilatildeo dos resultados de tal averiguaccedilatildeo [hellip]rdquo363 Ora admitindo esta
iacutentima conexatildeo entre descoberta da verdade material e averiguaccedilatildeo da efetiva capacidade
contributiva dos sujeitos passivos natildeo satildeo de admitir condutas administrativas que tentem por
qualquer custo tributar os rendimentos dos contribuintes nem atuaccedilotildees destes (contribuintes)
que obstaculizam essa tributaccedilatildeo Conclui o autor que o princiacutepio da justiccedila ou verdade material
vincula todos os atores procedimentais incluindo o proacuteprio sujeito passivo O mesmo princiacutepio
daacute prevalecircncia agrave situaccedilatildeo concreta a subsumir agrave norma juriacutedica em detrimento da forma ou
mera observacircncia de formalismos inuacuteteis e dilatoacuterios conducentes a situaccedilotildees injustas ndash
prevalecircncia da justiccedila material sobre a justiccedila formal364
Do exposto facilmente se conclui que um dos corolaacuterios essenciais da verdade material eacute
o princiacutepiodever da cooperaccedilatildeo reciacuteproca entre sujeito passivo e Administraccedilatildeo tributaacuteria como
estabelece a lei ndash ldquoo relacionamento juriacutedico entre a Administraccedilatildeo Tributaacuteria e os respectivos
Administrados deve assentar na boa-feacute de ambas as partes na cooperaccedilatildeo reciacuteproca e
absolutamente transparente devendo a verdade procedimental (na fase graciosa) e a verdade
362 No que concerne agrave igualdade tributaacuteria impotildeem-se a exclusatildeo da tributaccedilatildeo com base em criteacuterios discriminatoacuterios tal como eacute prerrogativa da
Repuacuteblica Portuguesa nos termos do art13ordm da CRP A igualdade na tributaccedilatildeo assenta na capacidade contributiva enquanto ldquomedida ou valor
total de impostos que um sujeito passivo pode pagar sem violaccedilatildeo do miacutenimo necessaacuterio para assegurar a subsistecircncia familiar (para as
pessoas singulares) ou a prossecuccedilatildeo normal da sua actividade econoacutemica (para as pessoas colectivas) e sem violaccedilatildeo doutros princiacutepios
constitucionalmente consagradosrdquo Nesses termos ldquointeressa a capacidade relativa ligada agrave aptidatildeo concreta do sujeito passivo e natildeo a
capacidade absoluta relacionada com a aptidatildeo abstracta de contribuir para as despesas puacuteblicasrdquo ndash cf SOUSA Rui Correia op cit p23 Sobre
a igualdade tributaacuteria e o corolaacuterio da capacidade contributiva ver SOUSA Rui Correia op cit pp28 e ss SANCHES J L Saldanha op cit
(Manual de Direito Fiscal) pp 164 e ss ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria anotado e comentado Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 41 e ss NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153 e ss
363 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de procedimento e processo tributaacuterio) p 112
364 SOUSA Rui Correia op cit p30 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p44
120
processual (na fase contenciosa) reproduzirem tanto quanto possiacutevel a verdade material
subjacenterdquo365
As obrigaccedilotildees fiscais acessoacuterias estatildeo alicerccediladas em princiacutepios constitucionais que
assumem especial relevo na criaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo de tais deveres De entre os vaacuterios
princiacutepios366 destacamos neste momento o da capacidade contributiva enquanto corolaacuterio da
igualdade tributaacuteria A capacidade contributiva367 ndash entendida como o ldquograu de capacidade que
tem cada sujeito passivo para realizar prestaccedilotildees fiscaisrdquo368 ndash ao pretender uma distribuiccedilatildeo
equitativa da carga tributaacuteria (a justa reparticcedilatildeo dos encargos fiscais) pressupotildee a tributaccedilatildeo de
cada um conforme a sua capacidade econoacutemica para que cada indiviacuteduo participe de acordo
365 SOUSA Rui Correia ibidem
366 Um dos princiacutepios mais relevantes em Direito Tributaacuterio eacute o princiacutepio da legalidade com assento constitucional no art103ordm nordm2 CRP Dispotildee o
preceito normativo ldquoos impostos satildeo criados por lei que determina a incidecircncia a taxa os benefiacutecios fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo O
princiacutepio traduz-se na regra da reserva de lei para a criaccedilatildeo definiccedilatildeo e densificaccedilatildeo de impostos natildeo podendo eles deixar de constar em
diploma legislativo o imposto deve de ser previsto e determinado de tal forma na lei (em sentido formal) natildeo deixando margem para o
desenvolvimento dos seus elementos essenciais por via da discricionariedade administrativa ou por via regulamentar (vale neste sentido a
tipicidade legal) Relevante eacute de se referir que tal mateacuteria estaacute reservada agrave competecircncia exclusiva da AR pelo que a ldquoleirdquo a que se refere o
art103ordm nordm2 da CRP seraacute uma lei da AR soacute podendo legislar-se sobre mateacuteria de imposto por decreto-lei quando houver uma autorizaccedilatildeo
legislativa concedida ao Governo (art165ordm nordm1 al i) da CRP) ndash CANOTILHO J J GomesMOREIRA Vital op cit p 1091 NABAIS Joseacute Casalta
op cit pp 137 e ss
O princiacutepio da legalidade exige assim uma reserva de lei formal (que implica a intervenccedilatildeo de uma lei parlamentar a regular a mateacuteria relativa a
imposto) e reserva de lei material onde se exige que a lei ou o decreto-lei autorizado ldquocontenha a disciplina tatildeo completa quanto possiacutevel da
mateacuteria reservada mateacuteria que nos termos do nordm2 do art103ordm da CRP integra relativamente a cada imposto a incidecircncia a taxa os benefiacutecios
fiscais e as garantias dos contribuintesrdquo ndash NABAIS Joseacute Casalta op cit pp140 - 142
Por sua vez o art 8ordm nordm2 al d) da LGT estabelece que estatildeo sujeitas ao princiacutepio da legalidade tributaacuteria ldquoa definiccedilatildeo das obrigaccedilotildees
acessoacuteriasrdquo A questatildeo que se coloca eacute a de saber se estaratildeo os deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte sujeitos a reserva de lei
O Tribunal Constitucional jaacute teve oportunidade de se debruccedilar sobre o assunto no acoacuterdatildeo nordm 23601 onde optou pela utilizaccedilatildeo de um criteacuterio
material que distingue a soluccedilatildeo em funccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo impostos Assim ldquose um tal dever de cooperaccedilatildeo constitui um efectivo
encargo tributaacuterio para o contribuinte estamos perante uma decisatildeo de reparticcedilatildeo dos encargos tributaacuterios ndash e essa decisatildeo cabe agrave lei [em
sentido formal isto eacute lei ou decreto-lei autorizado] Se pelo contraacuterio estamos perante uma verdadeira obrigaccedilatildeo acessoacuteria inserida num
procedimento administrativo que liga o sujeito passivo e sujeito activo com uma oneraccedilatildeo reduzida do contribuinte a reserva de lei em sentido
formal natildeo se aplicardquo bastando nesses casos a regulamentaccedilatildeo por uma lei em sentido material ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual
de Direito Fiscal) p35 e A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria pp77-85 Acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional nordm23601 de 23 de maio de
2001 relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma disponiacutevel em httpwwwtribunalconstitucionalpt (link) [em linha]
Para um estudo mais aprofundado acerca da legalidade tributaacuteria ver entre outros ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) pp110 e ss SOUSA Rui Correia op cit pp33 e ss CAUPERS Joatildeo [et al] ndash Coacutedigo Do Procedimento Administrativo ndash
Anotado 6ordf Ed Coimbra Almedina 2007 pp40 e ss SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) pp31 e ss COSTA J M
Cardoso op cit pp348 e ss DOURADO Ana Paula ndash O princiacutepio da legalidade fiscal na Constituiccedilatildeo portuguesa Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal
Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm379 (1995) Disponiacutevel em
httpwwwcideeffpt (link) [em linha] ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp34-35 NABAIS Joseacute Casalta op cit
pp137 e ss
367 A capacidade contributiva eacute aferida em funccedilatildeo do rendimento da despesa e do patrimoacutenio
368 Cf SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p84
121
com as suas possibilidades no alcance do bem comum Ora do referido resultaraacute que se
verifique uma tributaccedilatildeo mais elevada para quem tem maior capacidade econoacutemica e o
pagamento de imposto mais reduzido para os contribuintes com menor capacidade econoacutemica
A igualdade tributaacuteria exige portanto uma tributaccedilatildeo idecircntica para idecircnticas capacidades
contributivas (igualdade horizontal) e tributaccedilatildeo diferente para rendimentos distintos (igualdade
vertical)369
A observacircncia de ambos os princiacutepios igualdade tributaacuteria e capacidade contributiva
permite que se consiga uma reparticcedilatildeo justa da carga tributaacuteria e de todos os encargos fiscais
Os encargos fiscais englobaratildeo natildeo soacute os encargos principais ndash encargos pecuniaacuterios de
pagamento do tributo ndash mas todos os encargos secundaacuterios respeitantes aos deveres de
declaraccedilatildeo contabilidade e escrituraccedilatildeo de colaboraccedilatildeo e informaccedilatildeo a que os sujeitos
passivos estatildeo adstritos ldquoE tal com[o] os deveres de cooperaccedilatildeo devem ser objecto de reserva
quando constituem uma real oneraccedilatildeo do contribuinte tambeacutem a sua distribuiccedilatildeo tem que ser
considerada com[o] uma tarefa legislativa orientada por princiacutepios de justiccedila materialrdquo370 Trata-se
de se verificar o princiacutepio da proporcionalidade na distribuiccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias
(principais ou acessoacuterias) Os deveres de colaboraccedilatildeo devem na sua distribuiccedilatildeo e densificaccedilatildeo
do conteuacutedo obedecer a requisitos de proporcionalidade Intimamente ligado agrave capacidade
contributiva o princiacutepio da proporcionalidade exige uma adequada distribuiccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo sem que haja uma oneraccedilatildeo excessiva dos contribuintes que menores capacidades
detecircm neste acircmbito uma concreta e cuidadosa ponderaccedilatildeo entre os fins prosseguidos com os
deveres acessoacuterios e os sacrifiacutecios que implicam para os contribuintes mesmo os que tecircm
maior capacidade de prestaccedilatildeo371
369 NABAIS Joseacute Casalta op cit pp153-154
370 SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal) p166
371 Idem ibidem p169
122
123
CAPIacuteTULO II ndash O DEVER DE COLABORACcedilAtildeO NO PROCEDIMENTO DE INSPECcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA
1 O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash regulado no Regime Complementar de Inspeccedilatildeo
Tributaacuteria e Aduaneira aprovado pelo Decreto-Lei nordm 41398 de 31 de dezembro ao qual se
aplica subsidiariamente a Lei Geral Tributaacuteria o Coacutedigo de Procedimento e de Processo
Tributaacuterio e os demais coacutedigos e leis tributaacuterias onde se inclui o Regime Geral das Infraccedilotildees
Tributaacuterias e Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais a lei orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
e o Coacutedigo de Procedimento Administrativo372 ndash eacute um procedimento tributaacuterio informativo (que
natildeo pretende o sancionamento) que tem como objetivos a observaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das infraccedilotildees
tributaacuterias373 acarretando vaacuterias atuaccedilotildees administrativas tais como a confirmaccedilatildeo dos
elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios a indagaccedilatildeo de
factos tributaacuterios natildeo declarados a inventariaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de bens moacuteveis ou imoacuteveis para
fins de controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias a realizaccedilatildeo de periacutecias ou exames
teacutecnicos de qualquer natureza entre outras374 A inspeccedilatildeo tributaacuteria assume-se assim como o
ldquoconjunto de actos levado agrave praacutetica pelos oacutergatildeos e agentes competentes nos termos da lei com
o objetivo de averiguar a factualidade relevante para efeitos de aplicaccedilatildeo das normas
tributaacuteriasrdquo375
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal (transfere para os contribuintes ou
terceiros a praacutetica de atos tradicionalmente administrativos como liquidaccedilatildeo de impostos ndash que
eacute efetuada com base em declaraccedilotildees espontacircneas do contribuinte376 no cumprimento voluntaacuterio
das obrigaccedilotildees que sobre si recaem) a intervenccedilatildeo da AT concretiza-se maioritariamente num
controlo a posteriori das declaraccedilotildees apresentadas Assim em primeiro lugar eacute tarefa da
372 Cf Art 4ordm do RCPITA
373 Cf Art2ordm nordm1 do RCPITA
374 Cf Art2ordm nordm2 RCPITA
375 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp11-12
376 Eacute inegaacutevel que o nosso sistema fiscal assente num princiacutepio da declaraccedilatildeo ndash cf SANCHES J L Saldanha op cit (Manual de Direito Fiscal)
p164
124
Administraccedilatildeo tributaacuteria377 averiguar se os factos tributaacuterios foram declarados e em segundo
lugar verificar se os mesmos foram enquadrados corretamente e se lhes foram aplicadas as
normas de incidecircncia tributaacuteria certas
A inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenha assim uma dupla funccedilatildeo preventiva e repressiva Uma
funccedilatildeo preventiva pois que com o controlo e verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
tributaacuterias pretende-se prevenir e evitar possiacuteveis incumprimentos e subsequentes infraccedilotildees
funcionando como dissuasor de condutas juridicamente reprovaacuteveis (combate agrave fraude e evasatildeo
fiscal) Por outro lado assume uma funccedilatildeo repressiva porque ao detetar o incumprimento
tributaacuterio identifica as infraccedilotildees cometidas e prepara os respetivos mecanismos sancionatoacuterios
contraordenacionais ou penais consoante a natureza e gravidade da infraccedilatildeo378 379 Natildeo se quer
com isso dizer que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute um procedimento sancionador que
busca e pretende castigar os contribuintes380 ldquoesta vertente repressiva diz respeito agrave verificaccedilatildeo e
controlo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuteriasrdquo381 ndash o sancionamento eacute posterior e natildeo eacute
efetivado no acircmbito do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
11 Os principais princiacutepios enformadores da inspeccedilatildeo tributaacuteria
Propomo-nos a fazer uma breve e sucinta reflexatildeo sem dilatadas consideraccedilotildees acerca
dos princiacutepios que fundamentam e conformam a atividade inspetiva tributaacuteria
Decorre do art5ordm do RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria obedece aos
princiacutepios da verdade material da proporcionalidade do contraditoacuterio e da cooperaccedilatildeo Os
princiacutepios mencionados pelo RCPITA satildeo claros limites e elementos conformadoresnorteadores
da atividade inspetiva e embora o RCPITA apenas enumere aqueles a verdade eacute que existem
bastantes outros princiacutepios que por incidirem diretamente na atividade administrativa e na
administrativa tributaacuteria mais particularmente tecircm tambeacutem aplicaccedilatildeo em sede de inspeccedilatildeo
377 Sobre a legitimidade constitucional do poder de inspeccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria ver CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ndash O Procedimento
Tributaacuterio de Inspecccedilatildeo ndash Um contributo para a sua compreensatildeo agrave luz dos Direitos Fundamentais Braga Universidade do Minho 2011
Dissertaccedilatildeo de Mestrado pp17 e ss
378 Cf Art 2ordm do RGIT
379 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp 29-30
380 ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p167
381 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p30
125
tributaacuteria (pense-se nos princiacutepios elencados no art55ordm da LGT e no art266ordm da CRP ndash princiacutepio
da prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico princiacutepio da legalidade da imparcialidade da celeridade e
igualdade)382
A inspeccedilatildeo tributaacuteria visa a descoberta da verdade material o que permite agrave AT a adoccedilatildeo
oficiosa de todas as iniciativas adequadas a esse objetivo (art6ordm RCPITA) em virtude da
obrigaccedilatildeo de prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico que recai sobre a Administraccedilatildeo no desempenho
das suas tarefas383 Aproveitando as consideraccedilotildees gerais que tecemos sobre este princiacutepio
supra a verdade material impotildee a prevalecircncia da substacircncia sobre a forma pelo que a AT natildeo
deve limitar a sua atuaccedilatildeo agrave apreciaccedilatildeo de questotildees formais ou burocraacuteticas384 devendo antes
concentrar esforccedilos e atenccedilotildees no justo e correto apuramento de todos os factos tributaacuterios
relevantes em que a tributaccedilatildeo deve assentar mesmo que estes factos se venham a mostrar
desfavoraacuteveis ao interesse administrativo na arrecadaccedilatildeo de receitas Este princiacutepio em mateacuteria
de inspeccedilatildeo tributaacuteria impotildee que a AT recolha os elementos probatoacuterios relevantes
fundamentadores do ato tributaacuterio que posteriormente venha a ser praticado ldquoTrata-se de
investigar e apurar o correcto cumprimento das obrigaccedilotildees fiscais pelos sujeitos passivos e com
382 A este respeito ver ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp31 e ss CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp163-183
NABAIS Joseacute Casalta op cit pp136 e ss
383 A prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico deve contudo respeitar os direitos e interesses legiacutetimos dos cidadatildeosadministrados haacute que encontrar
um equiliacutebrio entre o alcanccedilar do interesse puacuteblico e a tutela dos direitos individuais natildeo esquecendo que em certas circunstacircncias se poderaacute
verificar a prevalecircncia de um (o interesse puacuteblico) em relaccedilatildeo aos outros ndash FERREIRA-PINTO Fernando Brandatildeo ndash Coacutedigo de Procedimento
Administrativo anotado Lisboa Petrony 2011 p34 Sobre o interesse puacuteblico em geral ver entre outros AMARAL Diogo Freitas do ndash Curso de
Direito Administrativo 3ordf Ed Coimbra Almedina 2006 Vol I pp45-48 FONSECA Isabel Celeste M ndash Direito da Organizaccedilatildeo Administrativa ndash
roteiro praacutetico Coimbra Almedina 2011 pp17 e ss SOUSA Marcelo Rebelo de ndash Liccedilotildees de Direito Administrativo Lex Lisboa 1999 pp9-19
Este eacute um princiacutepio respeitante aos fins da atividade estadual ndash MACHADO Joacutenatas E M COSTA Paulo Nogueira ndash Curso de Direito Tributaacuterio
Coimbra Coimbra Editora 2009 p372
Em mateacuteria tributaacuteria a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico consiste ldquoem primeira linha na obtenccedilatildeo de receitas para a satisfaccedilatildeo das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades (art103ordm nordm1 da CRP)rdquo ndash Cf CAMPOS Diogo Leite De RODRIGUES Benjamim Silva
SOUSA Jorge Lopes De ndash Lei Geral Tributaacuteria comenta e anotada 3ordm ed Lisboa Vislis 2003 p235 Natildeo devemos contudo descorar que a
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico tambeacutem se centraliza na descoberta da verdade material enquanto princiacutepio basilar da atividade administrativa
tributaacuteria Quer isto dizer que a AT natildeo pode no exerciacutecio da sua atividade procurar a todo o custo a arrecadaccedilatildeo de receitas para os cofres do
Estado devendo antes ter em consideraccedilatildeo a situaccedilatildeo material controvertida (a relaccedilatildeo concreta que subjaz agrave aplicaccedilatildeo normativa) o que
implica exemplificativamente num caso de reconhecimento de benefiacutecios fiscais se o oacutergatildeo da AT tiver acesso a elementos que o contribuinte
natildeo tenha e que permitam a isenccedilatildeo do tributo deveraacute carrear para o procedimento tais elementos de modo a que possam ser levados em
consideraccedilatildeo na decisatildeo final Cremos e defendemos que a prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico natildeo deve ser encarada como sinoacutenimo exclusivo de
arrecadaccedilatildeo de receitas mas antes a descoberta da verdade material ndash a AT natildeo pode funcionar num Estado de Direito assente em princiacutepios
de justiccedila como uma maacutequina confiscatoacuteria ndash Cf Com semelhante opiniatildeo ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e
Processo Tributaacuterio) p19
384 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p45
126
base nessa investigaccedilatildeo recolher elementos que permitam a eventual existecircncia de
irregularidadesrdquo385 386
Outro princiacutepio estruturante da inspeccedilatildeo tributaacuteria e do procedimento tributaacuterio em geral
eacute o da proporcionalidade387 (ou tambeacutem designado por proibiccedilatildeo do excesso) previsto nos
arts18ordm nordm2 da CRP e 7ordm do RCPITA que tem o seu campo de atuaccedilatildeo mais visiacutevel na
restriccedilatildeo dos direitos fundamentais dos indiviacuteduos Ora natildeo raras vezes a atividade inspetiva
pressupotildee a afetaccedilatildeo de posiccedilotildees juriacutedicas dos inspecionados tais como o direito agrave reserva da
vida privada e iacutentima direito agrave inviolabilidade do domiciacutelio e da correspondecircncia direito agrave
propriedade privada entre outros388 Por conseguinte exige-se que as accedilotildees integradas no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria devam ser adequadas e proporcionais aos objetivos da
inspeccedilatildeo e ao respeito pelos direitos fundamentais dos cidadatildeos sobretudo nos casos em que a
AT deteacutem uma certa margem de discricionariedade na atuaccedilatildeo Exige-se a verificaccedilatildeo das trecircs
dimensotildees do princiacutepio nos atos praticados na inspeccedilatildeo tributaacuteria ou seja a necessidade (a
medida restritiva imposta tem de ser necessaacuteria no sentido de que soacute deve ser levada agrave praacutetica
se outras menos gravosas natildeo forem possiacuteveis ou exequiacuteveis para os fins prosseguidos) a
adequaccedilatildeo (a medida adotada deve ser idoacutenea apta no seio das medidas possiacuteveis a que
melhor prossegue os fins em causa) e a proporcionalidade em sentido restrito (deve ser tomada
na quantidade certa natildeo podendo ser demasiado onerosa nem ultrapassar os limites do
considerado juridicamente aceitaacutevel)389
O princiacutepio da proporcionalidade comporta uma dimensatildeo positiva e negativa no acircmbito
da inspeccedilatildeo tributaacuteria Na dimensatildeo positiva existindo um conjunto variado de atos a poderem
385 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p185
386 Intimamente relacionado com o princiacutepio da verdade material temos o princiacutepio do inquisitoacuterio (art 58ordm da LGT) que em inspeccedilatildeo tributaacuteria
estabelece a vinculaccedilatildeo da AT agrave obrigaccedilatildeo de realizar todas diligecircncias necessaacuterias ao apuramento da verdade material inclusive as que natildeo
tenham sido requeridas pela entidade ou pessoa inspecionada mas que se mostrem em concreto relevantes para a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo
tributaacuteria dos sujeitos passivos alvos da inspeccedilatildeo Para uma anaacutelise detalhada deste princiacutepio ver MATOS Pedro Vidal ndash O princiacutepio Inquisitoacuterio
no Procedimento Tributaacuterio Coimbra Coimbra Editora 2010
387 Sobre a proporcionalidade em mateacuteria de Direito Tributaacuterio ver QUEIROZ Mary Elbe ndash A proporcionalidade no acircmbito administrativo-tributaacuterio
Revista de Financcedilas Puacuteblicas e Direito Fiscal Coimbra Almedina Ano III nordm3 (setembro de 2010)
388 Basta exemplificativamente atentar nas prerrogativas que o art29ordm e ss do RCPITA atribuem aos funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo
tributaacuteria (pex estes podem aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos o que pode permitir um acesso a dados
pessoais podem selar quaisquer instalaccedilotildees apreender bens valores ou mercadorias o que afeta a priori o direito agrave propriedade privada entre
outras situaccedilotildees capazes de atentar contra direitos fundamentais dos indiviacuteduos inspecionados)
389 Sobre o princiacutepio da proporcionalidade consultar ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p51 CANOTILHO JJ
GomesMOREIRA Vital op cit pp 379-396 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit pp148-163
127
ser praticados pela AT esta deve escolher a via que se mostrar menos onerosa para os
contribuintes (a escolha pelos atos que acarretam um menor incoacutemodo ou transtorno possiacutevel)
na dimensatildeo negativa os atos inspetivos devem limitar-se ao estritamente necessaacuterio para os
objetivos a prosseguir pelo que a AT se deve abster de praticar atos que natildeo auxiliem sirvam ou
prossigam os fins pretendidos390
Satildeo vaacuterias as manifestaccedilotildees do princiacutepio da proporcionalidade ao longo da lei
Destacamos o art63ordm nordm4 da LGT que impede a verificaccedilatildeo de mais de um procedimento
inspetivo externo respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio imposto e periacuteodo
de tributaccedilatildeo391 a exigecircncia de proporcionalidade quando a AT recorre a diligecircncias prospetivas
ou de informaccedilatildeo (art29ordm nordm3 do RCPITA) bem como na adoccedilatildeo de medidas cautelares de
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo de prova por parte dos funcionaacuterios da AT incumbidos na accedilatildeo de
inspeccedilatildeo tributaacuteria (art30ordm RCPITA)
O procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria segue ainda o princiacutepio do contraditoacuterio Todavia
o respeito por este princiacutepio natildeo pode colocar em causa os objetivos das accedilotildees inspetivas nem
afetar o rigor a operacionalidade e a eficaacutecia que se lhes exigem (art8ordm do RCPITA) Este
princiacutepio encontra-se interligado ao princiacutepio da participaccedilatildeo dos destinataacuterios dos atos do
procedimento que lhes digam respeito392
A tutela do contraditoacuterio em inspeccedilatildeo tributaacuteria implica que a AT conceda ao sujeito
passivo inspecionado a possibilidade de se pronunciar livremente e em prazo razoaacutevel sobre os
factos que lhe satildeo imputados contraditando-os refutando-os ou confirmando-os Em mateacuteria de
inspeccedilatildeo o contraditoacuterio decorre dos seguintes preceitos legislativos art45ordm do CPPT art 60ordm
da LGT e art60ordm do RCPITA adquirindo relevo sobretudo pela prerrogativa da audiccedilatildeo que deve 390 Ver neste sentido ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins ndash Regime Complementar do Procedimento de Inspecccedilatildeo Tributaacuteria comentado e anotado
Lisboa Aacutereas Editoras 2003 pp 84-85
391 A razatildeo e importacircncia de uma norma como esta centra-se no facto de que antes da entrada em vigor do RCPITA natildeo existia uma norma como
esta que proibisse a AT de exerce sobre o mesmo sujeito passivo a repeticcedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria antes do decurso do prazo de caducidade ndash a
AT podia legitimamente utilizar relativamente ao mesmo sujeito passivo quantas inspeccedilotildees considerasse necessaacuterias o que em termos de
proporcionalidade seria manifestamente intoleraacutevel
392 A participaccedilatildeo dos interessados no procedimento tributaacuterio pode ser encarada sob diversas perspetivas a) como direito fundamental ao exigir
que os oacutergatildeos administrativos nas suas atuaccedilotildees e medidas promovam a execuccedilatildeo da participaccedilatildeo dos indiviacuteduos no procedimento
nomeadamente atraveacutes do contraditoacuterio audiecircncia oposiccedilatildeo b) como garantia do contribuinte ao impedir que estes sejam lesados quando
devendo pronunciar-se ou agir natildeo lhes foi conferida a possibilidade de participar c) e enquanto princiacutepio estruturante do procedimento
tributaacuterio que natildeo deve ser entendido como unilateral ou inquisitivo mas antes como bilateral convergindo as posiccedilotildees e atuaccedilotildees da AT e dos
sujeitos passivos ou demais obrigados tributaacuterios ndash cf ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp125-
126
128
ser concedida ao sujeito passivo na altura da formaccedilatildeo da decisatildeo para que este possa tomar
partido na deliberaccedilatildeo que lhe diz respeito ndash a possibilidade dos indiviacuteduos se pronunciarem
acerca do objeto do procedimento antes da tomada de decisatildeo O objetivo eacute alcanccedilar uma
decisatildeo final que seja minimamente consensual entre a AT e sujeito passivo numa tentativa de
evitar futuros conflitos de pretensotildees393
Por fim e de modo especial a inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute enformada por um princiacutepio de
colaboraccedilatildeo muacutetua entre entidade inspetiva e entidades ou pessoas inspecionadas (art9ordm do
RCPITA)
111 PrinciacutepioDever da colaboraccedilatildeo
Decorre dos artigos 5ordm 9ordm 32ordm 37ordm e 48ordm do Regime Complementar do Procedimento de
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira e do art63ordm da LGT que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
eacute norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
Administraccedilatildeo Tributaacuteria (entidade inspecionadora) significa que natildeo eacute somente o inspecionado
que estaacute vinculado agrave colaboraccedilatildeo mas tambeacutem a proacutepria Administraccedilatildeo Tributaacuteria394
Nas palavras de MARTINS ALFARO395 a administraccedilatildeo tributaacuteria tem o dever de facultar ao
inspecionado todas as informaccedilotildees por ele solicitadas bem como orientar e esclarece-lo sobre o
acircmbito e medida da accedilatildeo fiscalizadora Por conseguinte a entidade inspecionada estaacute tambeacutem
juridicamente obrigada a colaborar com a administraccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente a esclarecer
todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da inspeccedilatildeo tributaacuteria
relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e demais documentos
relativos ao exerciacutecio da sua atividade Eacute ao abrigo do dever muacutetuo de colaboraccedilatildeo que a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria pode praticar os atos previstos nos arts28ordm nordm2 e 29ordm ambos do
RCPITA e tambeacutem os previstos no art63ordm nordm1 LGT396
393 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp56-57
394 Tambeacutem outras entidades as mencionadas no art9ordm nordm2 do RCPITA estatildeo vinculadas a deveres de cooperaccedilatildeo possibilitando-se a obtenccedilatildeo
de documentos e informaccedilotildees ou outros elementos que estas tenham em seu poder
395 ALFARO Joseacute Antoacutenio Martins op cit pp92-100
396 Nos termos dos preceitos normativos mencionados os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecirc o direito ldquoao livre acesso agraves
instalaccedilotildees e dependecircncias da entidade inspecionada pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio ao exerciacutecio das suas funccedilotildees Agrave disposiccedilatildeo das
129
Como se constata o princiacutepio da colaboraccedilatildeo eacute um ldquoprinciacutepio multidireccionalrdquo397 em
termos subjetivos e objetivos na medida em que diz respeito a todos os intervenientes na
inspeccedilatildeo tributaacuteria e ao desempenho das mais diversificadas atuaccedilotildees respetivamente Este
dever como jaacute tivemos oportunidade de referir constitui um dever acessoacuterio da relaccedilatildeo juriacutedico-
tributaacuteria existe em diversos momentos do direito tributaacuterio tem consagraccedilatildeo legal expressa em
variados diplomas legislativos e deve ser analisado em funccedilatildeo do princiacutepio da boa-feacute que reside
nas relaccedilotildees entre AT e contribuintes No plano da inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de cooperaccedilatildeo
dos contribuintes constitui uma forma de garantir a eficaacutecia na accedilatildeo inspetiva pois permite de
entre vaacuterias atuaccedilotildees o acesso agraves instalaccedilotildees o exame a documentos etc
Ao longo do RCPITA encontramos vaacuterias normas que concretizam e densificam o dever de
cooperaccedilatildeo legalmente imposto aos intervenientes na inspeccedilatildeo tributaacuteria
instalaccedilotildees adequadas ao exerciacutecio das suas funccedilotildees em condiccedilotildees de dignidade e eficaacutecia Ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos
mesmo quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos ou outros obrigados tributaacuterios para consulta apoio ou junccedilatildeo aos
relatoacuterios processos ou autos Agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees e ao exame dos documentos ou outros elementos em poder de quaisquer serviccedilos
estabelecimentos e organismos ainda que personalizados do Estado das Regiotildees Autoacutenomas e autarquias locais de associaccedilotildees puacuteblicas de
empresas puacuteblicas ou de capital exclusivamente puacuteblico de instituiccedilotildees particulares de solidariedade social e de pessoas coletivas de utilidade
puacuteblica Agrave troca de correspondecircncia em serviccedilo com quaisquer entidades puacuteblicas ou privadas sobre questotildees relacionadas com o
desenvolvimento da sua atuaccedilatildeo Ao esclarecimento pelos teacutecnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas da situaccedilatildeo tributaacuteria das
entidades a quem prestem ou tenham prestado serviccedilo Agrave adoccedilatildeo nos termos do presente diploma das medidas cautelares adequadas agrave
aquisiccedilatildeo e conservaccedilatildeo da prova Agrave requisiccedilatildeo agraves autoridades policiais e administrativas da colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas
funccedilotildees no caso de ilegiacutetima oposiccedilatildeo do contribuinte agrave realizaccedilatildeo da inspeccedilatildeordquo (cf Art28ordm nordm2 do RCPITA)
Como forma de salvaguardar a eficaacutecia e realizaccedilatildeo das prerrogativas anteriores o art 29ordm do RCPITA permite ldquoExaminar quaisquer elementos
dos contribuintes que sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua atividade ou de terceiros
com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados
indispensaacuteveis ou uacuteteis Proceder agrave inventariaccedilatildeo fiacutesica identificaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo de quaisquer bens ou imoacuteveis relacionados com a atividade dos
contribuintes incluindo a contagem fiacutesica dos inventaacuterios da caixa e do ativo fixo e agrave realizaccedilatildeo de amostragens destinadas agrave documentaccedilatildeo das
accedilotildees de inspeccedilatildeo Aceder consultar e testar os sistemas informaacuteticos dos sujeitos passivos e no caso de utilizaccedilatildeo de sistemas proacuteprios de
processamento de dados examinar a documentaccedilatildeo relativa agrave sua anaacutelise programaccedilatildeo e execuccedilatildeo mesmo que elaborados por terceiros
Consultar ou obter dados sobre preccedilos de transferecircncia ou quaisquer outros elementos associados ao estabelecimento de condiccedilotildees contratuais
entre sociedades ou empresas nacionais ou estrangeiras quando se verifique a existecircncia de relaccedilotildees especiais nos termos do nordm 4 do artigo
63ordm do Coacutedigo do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Proceder ao exame de mercadorias e recolher amostras para anaacutelise
laboratorial ou qualquer outro tipo de periacutecia teacutecnica Copiar os dados em formato eletroacutenico dos registos e documentos relevantes para
apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes ou efetuar uma imagem dos respetivos sistemas informaacuteticos Tomar declaraccedilotildees dos
sujeitos passivos membros dos corpos sociais teacutecnicos oficiais de contas revisores oficiais de contas ou de quaisquer outras pessoas sempre
que o seu depoimento interesse ao apuramento dos factos tributaacuterios Controlar nos termos da lei os bens em circulaccedilatildeo solicitar informaccedilotildees
agraves administraccedilotildees tributaacuterias estrangeiras no acircmbito dos instrumentos de assistecircncia muacutetua e cooperaccedilatildeo administrativa europeia ou
internacional Verificar no acircmbito do acesso e da troca automaacutetica e obrigatoacuteria de informaccedilotildees para fins fiscais do cumprimento das obrigaccedilotildees
de comunicaccedilatildeo de informaccedilotildees financeiras e de diligecircncia devida por parte das instituiccedilotildees financeiras reportantes registadas para esse efeito
nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsaacutevel pela aacuterea das financcedilasrdquo Prerrogativas que acabam por ser repetidas mas
de uma forma sinteacutetica pelo art63ordm nordm1 da LGT
397 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp191 e ss ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp63 e ss
130
Ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo das pessoas eou entidades inspecionadas para com a
entidade inspetiva os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria tecircm o direito ao livre acesso
agraves instalaccedilotildees e dependecircncias das entidades inspecionadas pelo periacuteodo de tempo necessaacuterio
ao exerciacutecio das suas funccedilotildees ao exame requisiccedilatildeo e reproduccedilatildeo de documentos mesmo
quando em suporte informaacutetico em poder dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios
para consulta apoio ou junccedilatildeo aos relatoacuterios processos ou autos entre outros atos
determinados no art28ordm nordm2 do RCPITA e no art63ordm nordm1 da LGT Para o concreto exerciacutecio
dos atos mencionados anteriormente os funcionaacuterios em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria podem
praticar as diversas faculdades ou operaccedilotildees materiais mencionadas no art29ordm do RCPITA
donde destacamos a possibilidade de examinar quaisquer elementos dos contribuintes que
sejam suscetiacuteveis de revelar a sua situaccedilatildeo tributaacuteria nomeadamente os relacionados com a sua
atividade ou de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas e solicitar ou efetuar
designadamente em suporte magneacutetico as coacutepias ou extratos considerados indispensaacuteveis ou
uacuteteis (al a) nordm1 do art29ordm do RCPITA)
Trata-se de atos altamente intrusivos e restritivos de direitos liberdades e garantias dos
inspecionados daiacute que a prossecuccedilatildeo deste dever de colaboraccedilatildeo haacute de ser harmonizada e
compatibilizada com outras dimensotildees constitucionais relevantes natildeo podendo em caso algum
a inspeccedilatildeo tributaacuteria constituir um entrave desproporcionado ou abusivo (o que atesta a
relevacircncia da afericcedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade nesta sede)
Outra manifestaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo prende-se com a necessidade do sujeito
passivo ou obrigado tributaacuterio designar no iniacutecio do procedimento externo de inspeccedilatildeo um
representante que coordenaraacute os seus contatos com a administraccedilatildeo tributaacuteria e asseguraraacute o
cumprimento das obrigaccedilotildees legais nos termos do RCPITA (art52ordm) Tambeacutem se manifesta
atraveacutes da necessidade de presenccedila do sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio representantes
legais Teacutecnicos Oficiais de Contas ou Revisores Oficiais de Contas no momento da praacutetica dos
atos de inspeccedilatildeo externa398 desde que estes decorram nas instalaccedilotildees ou dependecircncia do
398 Resumidamente a inspeccedilatildeo tributaacuteria pode assumir quanto ao lugar da realizaccedilatildeo da atividade inspetiva as caracteriacutesticas de interna
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem exclusivamente nos serviccedilos da AT atraveacutes da anaacutelise formal e de coerecircncia dos documentos) ou externa
(quando os atos de inspeccedilatildeo se efetuem total ou parcialmente em instalaccedilotildees ou dependecircncias dos sujeitos passivos ou demais obrigados
tributaacuterios de terceiros com quem mantenham relaccedilotildees econoacutemicas ou em qualquer outro local a que a administraccedilatildeo tenha acesso) ndash Art13ordm
do RCPITA
131
sujeito passivo e a mesma seja considerada indispensaacutevel agrave descoberta da verdade material
(art54ordm nordm1 RCPITA)
Em observacircncia ao dever reciacuteproco de colaboraccedilatildeo o art48ordm do RCPITA materializa a
cooperaccedilatildeo exigida da AT para com a entidade inspecionada Neste sentido a Administraccedilatildeo
Tributaacuteria deveraacute sempre que possiacutevel desde que tal natildeo comprometa o sucesso do
procedimento ou o dever de sigilo facultar ao sujeito passivo informaccedilotildees ou outros elementos
por este solicitados desde que tais elementos e informaccedilotildees sejam comprovadamente
necessaacuterios ao cumprimento dos seus deveres tributaacuterios acessoacuterios399 A cooperaccedilatildeo da AT para
com o sujeito passivo ou obrigado tributaacuterio tambeacutem eacute visiacutevel atraveacutes da notificaccedilatildeo preacutevia com
antecedecircncia miacutenima de cinco dias do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externa (art49ordm nordm1
e art 37ordm e ss todos previstos no RCPITA) salvo os casos em que existe dispensa dessa
notificaccedilatildeo (art50ordm nordm1 do RCPITA)
Por uacuteltimo importa ainda relembrar que a importacircncia do dever de colaboraccedilatildeo no
ordenamento juriacutedico-tributaacuterio e em especial no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
extrema mesmo natildeo existindo a obrigaccedilatildeo principal ndash obrigaccedilatildeo de imposto ndash natildeo se verifica a
exoneraccedilatildeo do sujeito ao cumprimento deste dever acessoacuterio de cooperaccedilatildeocolaboraccedilatildeo)400
aleacutem disso prevecircem-se consequecircncias juriacutedicas paras os casos de incumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo
2 Consequecircncias juriacutedicas do incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo
Jaacute tivemos oportunidade de mencionar que o dever de cooperaccedilatildeo tributaacuteria eacute encarado
pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e natildeo uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos
sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica Atestando essa qualidade de dever juriacutedico a lei estipulou um vasto
leque de consequecircncias juriacutedicas para os casos de incumprimento deste dever
O art32ordm do RCPITA ocupa-se da violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo por entidades que natildeo
sejam o sujeito passivo ou obrigados tributaacuterios ao passo que o art10ordm do RCPITA se refere agraves
desconformidades por estes praticadas Deste modo estabelece o art32ordm que ldquoa recusa de 399 Cf Art48ordm nordm2 do RCPITA
400 ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p65
132
colaboraccedilatildeo e a oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria quando ilegiacutetimas fazem incorrer o
infrator em responsabilidade disciplinar quando for caso disso contraordenacional e criminal
nos termos da leirdquo por sua vez o art10ordm determina que ldquoa falta de cooperaccedilatildeo dos sujeitos
passivos e demais obrigados tributaacuterios no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria pode quando
ilegiacutetima constituir fundamento de aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de tributaccedilatildeo nos termos da
leirdquo
Genericamente tem-se associado mas natildeo soacute o art32ordm do RCPITA aos casos dos
funcionaacuterios administrativos em princiacutepio de outros serviccedilos e organismos puacuteblicos que natildeo a
AT que satildeo convocados a colaborar401 Em caso de recusa estes sujeitos podem ser alvo de
responsabilidade disciplinar (a promover pelos respetivos superiores hieraacuterquicos) e em casos
mais graves em responsabilidade contraordenacional ou criminal ndash sempre com o respeito
pelos princiacutepios da legalidade proporcionalidade e seguranccedila juriacutedica
Do ponto de vista do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios constata-se na lei
diversas consequecircncias juriacutedicas para o incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo para aleacutem da
aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo como refere o art10ordm do RCPITA Em termos
gerais quando a colaboraccedilatildeo do contribuinte eacute exigida ou exigiacutevel mas natildeo eacute prestada a lei
prevecirc402 a suspensatildeo dos prazos de imposiccedilatildeo de celeridade administrativa e a consequente
impossibilidade de exigir o seu respeito (art57ordm nordm4 da LGT) a perda de benefiacutecios fiscais (art
14ordm nordm2 da LGT e art14ordm nordm2 e nordm4 do Estatuto dos Benefiacutecios Fiscais) a derrogaccedilatildeo do sigilo
bancaacuterio sem a dependecircncia do Tribunal (art63ordm-B nordm1 da LGT) a aplicaccedilatildeo do agravamento agrave
coleta (art77ordm nordm1 do CPPT e art91ordm nordm9 da LGT) a manutenccedilatildeo das garantias prestadas
para suspender o processo de execuccedilatildeo fiscal (art183ordm-A nordm2 do CPPT)
A aditar agraves consequecircncias que se referiram o legislador estabeleceu ainda neste
paracircmetro a aplicaccedilatildeo de meacutetodos indiretos de avaliaccedilatildeo ndash a tributaccedilatildeo atraveacutes de indiacutecios ou
presunccedilotildees (art 87ordm aliacutenea b) e ss art88ordm e art 89ordm-A todos da LGT) Quando o dever de
cooperaccedilatildeo por parte do sujeito passivo e demais obrigados tributaacuterios eacute respeitado a tributaccedilatildeo
realiza-se por meacutetodos diretos baseados nos documentos solicitaccedilotildees e todos os outros
elementos apresentados pelos contribuintes pois que as suas declaraccedilotildees se presumem de
401 Idem ibidem pp175-176
402 CF ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp114-115 SANCHES J L Saldanha op cit (A
quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp294 e ss
133
boa-feacute (art75ordm da LGT) Ora quando tal natildeo se verifica ou seja quando os documentos natildeo satildeo
apresentados sendo apresentados satildeo insuficientes ou natildeo satildeo fiaacuteveis ou quando o sujeito natildeo
colabora com a inspeccedilatildeo eacute legiacutetimo agrave AT recorrer a este tipo procedimental de determinaccedilatildeo da
mateacuteria tributaacutevel ldquoTemos assim como primeira consequecircncia da violaccedilatildeo dos deveres de
cooperaccedilatildeo um alargamento da competecircncia investigatoacuteria da Administraccedilatildeo mais ou menos
vasta em funccedilatildeo dos resultados desta violaccedilatildeo e que tendo sempre um dever de decidir por natildeo
ser aplicaacutevel um non liquet na sua actividade de aplicaccedilatildeo da lei fiscal deveraacute tentar obter pelos
seus proacuteprios recursos aquilo que lhe foi recusado na forma normal de detecccedilatildeo dos factos
fiscalmente relevantesrdquo403
O procedimento de avaliaccedilatildeo indireta ou meacutetodos indiciaacuterios ocorre sempre que a
administraccedilatildeo natildeo possa basear a existecircncia ou quantificaccedilatildeo de uma obrigaccedilatildeo fiscal nos
elementos voluntariamente fornecidos pelo sujeito passivo no cumprimento dos deveres que lhe
satildeo imputados por lei404 e quando se verifica pelo sujeito passivo e obrigados tributaacuterios uma
recusa expressa ndash natildeo uma mera recusa taacutecita ou impliacutecita natildeo eacute legiacutetimo agrave AT estabelecer uma
presunccedilatildeo de recusa ndash em cooperar com a administraccedilatildeo mais concretamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria405 A tributaccedilatildeo seraacute feita em funccedilatildeo de indiacutecios padrotildees presunccedilotildees aproximaccedilotildees
aos valores dos bens ou rendimentos e natildeo em funccedilatildeo do valor real dos rendimentos ou bens406
Todavia a tributaccedilatildeo atraveacutes de elementos de indiacutecios ou presunccedilotildees deve ter um
caraacutecter excecional ou conservar-se como a ultima ratio fiscal407 ldquo[estando a AT] vinculada aos
princiacutepios do inquisitoacuterio e da verdade material a simples recusa de cooperaccedilatildeo do contribuinte
403 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p295
404 Idem ibidem p302 A razatildeo de ser de um procedimento como este refere este autor centra-se no facto de se querer evitar que o sujeito
incumpridor dos deveres de cooperaccedilatildeo possa obter qualquer vantagem em relaccedilatildeo agravequele que os cumpre reagindo o ordenamento juriacutedico com
a previsatildeo legal de um procedimento desvantajoso pois assenta em indiacutecios presunccedilotildees ou aproximaccedilotildees
Por sua vez JOAtildeO SEacuteRGIO RIBEIRO natildeo concorda com esta visatildeo sancionatoacuteria que eacute atribuiacuteda por Saldanha Sanches a este procedimento No
entender do Professor Joatildeo Seacutergio a avaliaccedilatildeo indireta apenas procura estabelecer a mateacuteria tributaacutevel dos sujeitos que natildeo cumpriram com as
suas obrigaccedilotildees natildeo se procurando estabelecer uma sanccedilatildeo para a inobservacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo ateacute porque em certos casos a
avaliaccedilatildeo indireta pode ser mais vantajosa que a avaliaccedilatildeo direta (pense-se nos casos em que os valores aproximados ou presuntivos dos
rendimentos ou bens do sujeito pecam por defeito ou seja satildeo mais baixos que o seu efetivo e real valor) ndash cf RIBEIRO Joatildeo Seacutergio -
Tributaccedilatildeo Presuntiva do Rendimento - Um Contributo para Reequacionar os Meacutetodos Indirectos de Determinaccedilatildeo da Mateacuteria Tributaacutevel
Coimbra Almedina 2010 pp214 e ss
405 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69
406 O que leva a alguns autores afirmarem que o que se busca neste tipo de procedimento jaacute natildeo eacute a verdade material mas antes uma ldquoverdade
material aproximadardquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) p195
407 SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria) p303
134
natildeo pode automaticamente fazer despoletar a utilizaccedilatildeo da avaliaccedilatildeo indirecta devendo a
Administraccedilatildeo socorrer-se caso seja possiacutevel de outros meios ao seu disporrdquo408
Ainda encontramos como consequecircncia do incumprimento ilegiacutetimo dos deveres de
cooperaccedilatildeo a possibilidade de puniccedilatildeo do contribuinte a tiacutetulo penal (com a suscetiacutevel aplicaccedilatildeo
de penas de multa ou de prisatildeo ndash art103ordm do RGIT e a puniccedilatildeo por crime de desobediecircncia
art348ordm do CP409) ou contraordenacional (aplicaccedilatildeo de coimas) O RGIT prevecirc algumas
contraordenaccedilotildees baseadas na violaccedilatildeo do dever de cooperaccedilatildeo (art113ordm e 116ordm e ss)
21 Incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo
Terminamos a enunciaccedilatildeo das consequecircncias juriacutedicas associadas ao incumprimento do
dever de cooperaccedilatildeo Contudo existem circunstacircncias em que eacute legiacutetimo ao sujeito passivo natildeo
cumprir o dever de colaboraccedilatildeo e opor-se assim aos atos de inspeccedilatildeo falamos nos casos em
que se verifica um incumprimento legiacutetimo do dever de cooperaccedilatildeo ou por outras palavras
limites agrave cooperaccedilatildeo ateacute onde eacute exigiacutevel cooperar410 Nestes casos as consequecircncias juriacutedicas
que anteriormente referimos natildeo tecircm aplicaccedilatildeo Fora das circunstacircncias em que eacute liacutecito agrave
pessoa ou entidades inspecionadas recusarem cooperar o natildeo cumprimento do dever de
cooperaccedilatildeo deve ser considerado ilegiacutetimo e como tal subsumiacutevel agraves consequecircncias juriacutedicas
precedentemente mencionadas411
Estas circunstacircncias vecircm contempladas no art63ordm nordm5 da LGT ldquoa) O acesso agrave habitaccedilatildeo
do contribuinte b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever
408 ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p69 No mesmo sentido SANCHES J L Saldanha op cit (A quantificaccedilatildeo da
obrigaccedilatildeo tributaacuteria) pp302 ndash 303 MACHADO Eduardo Muniz ndash Fundamentos constitucionales del poder de inspeccioacuten de la administracioacuten
tributaria espantildeola [em linha] Junho de 2005 [Consult a 15 de junho 2016] Disponiacutevel em httpsjuscombrartigos6844fundamentos-
constitucionales-del-poder-de-inspeccion-de-la-administracion-tributaria-espanola
Acoacuterdatildeo do Tribunal Central Administrativo do Sul processo nordm0035904 de 15 de fevereiro de 2005 relatado pelo Desembargador Gomes
Correia disponiacutevel em httpwwwdgsipt (link) [em linha] ldquoA avaliaccedilatildeo indirecta eacute de resto excepcional a ela apenas se procedendo quando
natildeo seja viaacutevel a determinaccedilatildeo da mateacuteria tributaacutevel por meio da avaliaccedilatildeo directa seja por falta de elementos para se operar com esta seja por
existirem razotildees para suspeitar que o valor a que conduz a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos de avaliaccedilatildeo directa natildeo eacute a mateacuteria tributaacutevel real ndash cfr artordms
87ordm nordm 1 al c) e 89ordm da LGT)rdquo
409 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p48
410 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp192 e ss ROCHA Joaquim Freitas op cit pp173-174
411 SAacute Liliana da Silva op cit p130
135
de sigilo legalmente regulado com exceccedilatildeo do segredo bancaacuterio e do sigilo previsto no Regime
Juriacutedico do Contrato de Seguro realizada nos termos do nordm 3 c) O acesso a factos da vida
iacutentima dos cidadatildeos d) A violaccedilatildeo dos direitos de personalidade e outros direitos liberdades e
garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo Em caso de
oposiccedilatildeo ou recusa do contribuinte com fundamento nalgumas das circunstacircncias referidas a
diligecircncia soacute poderaacute ser realizada mediante autorizaccedilatildeo do tribunal de comarca competente com
base em pedido fundamentado pela AT (nordm6 do art63ordm da LGT) O RCPITA contempla ainda
como causa legiacutetima para oposiccedilatildeo aos atos de inspeccedilatildeo a falta de credenciaccedilatildeo412 dos
funcionaacuterios incumbidos da sua execuccedilatildeo (art47ordm)
Natildeo mencionado expressamente no leque de causas justificativas da oposiccedilatildeo ou recusa
em colaborar eacute de se apontar tambeacutem a observacircncia do princiacutepio da proporcionalidade pois
tal como JORGE REIS NOVAIS afirma ainda que uma norma (no caso as que estabelecem o
princiacutepio da colaboraccedilatildeo e os subsequentes deveres) ldquopossa em abstracto ser razoaacutevel a
mesma em concreto eacute susceptiacutevel de uma aplicaccedilatildeo excessiva na medida em que a exigecircncia
ou o encargo que se impotildee surge nesse especiacutefico contexto como excessivo demasiado grave
ou injustordquo413 414
Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria ou inspeccedilatildeo tributaacuteria podem assumir ndash importando a entrega de
documentos ou bens a prestaccedilatildeo de esclarecimentos e informaccedilotildees a cedecircncia de instalaccedilotildees
entre outros atos ndash e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de oposiccedilatildeo
412 O art16ordm do RCPITA prevecirc a competecircncia material e territorial dos serviccedilos da AT para a praacutetica dos atos de inspeccedilatildeo Agrave atribuiccedilatildeo legal de
competecircncia a lei ainda exige aos funcionaacuterios da AT a respetiva credenciaccedilatildeo e do porte do cartatildeo profissional ou outra identificaccedilatildeo passada
pelos serviccedilos a que pertenccedilam antes do iniacutecio do procedimento de inspeccedilatildeo externo ndash cf Art46ordm do RCPITA
413 NOVAIS Jorge Reis ndash As restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo expressamente autorizadas pela Constituiccedilatildeo 2ordf Ed Coimbra Coimbra
Editora 2010 p767
414 LILIANA DA SILVA SAacute no estudo publicado acerca do dever de cooperaccedilatildeo e do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo (jaacute citado) defende a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria e analoacutegica do art89ordm do CPA de 1991 (atualmente art117ordm em virtude da revogaccedilatildeo do antigo Coacutedigo de Procedimento
Administrativo pelo DL nordm 42015 de 07 de janeiro) ex vi art4ordm al e) do RCPITA e art2ordm al c) da LGT considerando que ainda eacute legiacutetima a
recusa de prestaccedilatildeo de esclarecimentos relativamente a duacutevidas surgidas em inspeccedilatildeo tributaacuteria de apresentaccedilatildeo de documentos ou coisas de
colaboraccedilatildeo em outros meios de prova nos casos em que tal atuaccedilatildeo ldquoimplicar o esclarecimento de factos cuja revelaccedilatildeo esteja proibida ou
dispensada por lei importar a revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio o interessado pelo seu cocircnjuge ou por seu ascendente ou
descente irmatildeo ou afim nos mesmo graus for suscetiacutevel de causar dano moral ou material ao proacuteprio interessado ou a algumas das pessoas
[mencionadas anteriormente]rdquo ndash cf p129 Sintetiza a autora que a recusa em colaborar tambeacutem pode ter como fundamento a afetaccedilatildeo do
direito agrave reserva da intimidade da vida privada e familiar (art26ordm da CRP)
Quanto a noacutes cremos que tal soluccedilatildeo jaacute resultaria da causa aberta e geral prevista no art63ordm nordm5 ald) ldquoa violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites previstos na Constituiccedilatildeo e na leirdquo
136
ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente entre estes deveres
e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal pois que natildeo raras as vezes
a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara do processo penal por crimes fiscais
Natildeo sendo a oposiccedilatildeo fundada em qualquer motivo dos destacados deve o funcionaacuterio
em serviccedilo de inspeccedilatildeo tributaacuteria requerer agraves autoridades policiais e administrativas a
colaboraccedilatildeo necessaacuteria ao exerciacutecio das suas funccedilotildees (art28ordm nordm2 al h) do RCPITA)
137
PARTE III ndash O PROBLEMA DA INTERCOMUNICABILIDADE PROBATOacuteRIA
CAPIacuteTULO I ndash OS DEVERES DE COLABORACcedilAtildeO COM A ADMINISTRACcedilAtildeO
TRIBUTAacuteRIA E O APARENTE CONFLITO COM O NEMO TENETUR SE IPSUM
ACCUSARE
1 Exposiccedilatildeo do problema da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
Da anaacutelise elaborada resulta claro que fora das circunstacircncias que ldquoconstituem
verdadeiras causas de exclusatildeo da ilicitude do comportamento do contribuinte transformando o
dever de colaboraccedilatildeo em direito a natildeo colaborarrdquo415 a recusa ilegiacutetima do inspecionado em
colaborar com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria eacute cominada com sanccedilotildees fiscais contraordenacionais
ou penais Assim como afirma NUNO SAacute GOMES416 existe uma tensatildeo dialeacutetica entre o dever de
colaboraccedilatildeo no procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo e controlo tributaacuterio e o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
Natildeo raras vezes a inspeccedilatildeo tributaacuteria funciona como antecacircmara ou berccedilo do processo
penal tributaacuterio pois que nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria417 a entrega de documentos com relevacircncia fiscal exigida ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria pode revelar a praacutetica pelo contribuinte de um
crime ou de uma contraordenaccedilatildeo418
Questatildeo particularmente relevante no contexto da atualidade juriacutedica eacute a de saber se as
provas obtidas de modo liacutecito no decurso da fase instrutoacuteria do procedimento tributaacuterio ndash com
especial incidecircncia no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria embora natildeo se limitando a ele ndash
podem ser aproveitadas em processos de natureza criminal Isto eacute seraacute legiacutetimo ao Ministeacuterio
Puacuteblico recorrer durante a fase do inqueacuterito num determinado e concreto processo penal a 415 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p129
416 GOMES Nuno Saacute ndash As garantias dos contribuintes algumas questotildees em aberto Ciecircncia e Teacutecnica Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo
Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) nordm371 (julho ndash setembro 1993) Pp135-137
417 MARQUES Paulo ndash Infracccedilotildees Tributaacuterias Lisboa Ministeacuterio das Financcedilas 2007Volume I p169
418 Utilizando o exemplo apresentado por AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS (ldquoO direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeohelliprdquo op cit p45) se o
contribuinte apresentar documentos que confrontados com a sua declaraccedilatildeo de IRS indiciam que foram omitidos factos relativos agrave sua situaccedilatildeo
tributaacuteria e importantes para a liquidaccedilatildeo do imposto pode ter realizado o crime de fraude fiscal previsto e punido no art103ordm do RGIT
138
documentos ou declaraccedilotildees obtidas licitamente em inspeccedilotildees tributaacuterias ao abrigo do dever de
colaboraccedilatildeo que recai sobre o contribuinte
O debate juriacutedico sobre esta temaacutetica tem vindo a propagar-se motivo pelo qual
consideramos pertinente estabelecer um estudo aprofundado sobre todas as implicaccedilotildees e
mateacuterias juriacutedicas que poderatildeo estar aqui envolvidas
O problema evidencia-se quando no decurso de uma inspeccedilatildeo tributaacuteria o inspecionado
eacute colocado perante um dilema diaboacutelico ou fornece os documentos requeridos pela
Administraccedilatildeo Tributaacuteria cumprindo com o seu dever de colaboraccedilatildeo mas correndo o risco
caso haja a possibilidade de tais documentos serem utilizados em posterior processo penal de
fornecer elementos que contribuem para a sua autoinculpaccedilatildeo ou optando por natildeo cooperar
com a Administraccedilatildeo Tributaacuteria (ou seja natildeo fornecendo ou prestando declaraccedilotildees ou
documentos solicitados) corre seacuterios riscos de sofrer as consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do
dever de colaboraccedilatildeo No pior dos cenaacuterios pode suceder que a AT obtenha agrave custa do
inspecionado toda a prova capaz de sustentar a acusaccedilatildeo por crime fiscal ou a sua condenaccedilatildeo
em processo contraordenacional afrontando claramente o nemo tenetur se ipsum accusare do
arguido ou suspeito419 A coaccedilatildeo institucional produz uma forte compressatildeo do nemo tenetur se
ipsum accusare420
Para aleacutem disso constata-se que como veremos adiante a proacutepria Administraccedilatildeo
Tributaacuteria tem tambeacutem competecircncias para instaurar o respetivo inqueacuterito criminal na
virtualidade de existirem indiacutecios de crimes tributaacuterios Quer isto dizer que eacute o mesmo oacutergatildeo que
ldquoobteve e exigiu do sujeito passivo todos os elementos sob ameaccedila de tributaccedilatildeo por meacutetodos
indirectos e da instauraccedilatildeo de processo de contra-ordenaccedilatildeo que simultaneamente tem o poder
419 Este conflito entre deveres de cooperaccedilatildeo e direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo estaacute patente em vaacuterios domiacutenios para aleacutem do tributaacuterio como eacute o
caso do mercado de valores mobiliaacuterios e da concorrecircncia Em comum entre ambas as realidades encontramos o facto de existir por uma lado
a atividade inspetiva direta ou indireta do Estado e os diversos deveres de colaboraccedilatildeo que incidem sobre as entidades coletivas ou singulares
supervisionadas e fiscalizadas Por motivos de delimitaccedilatildeo do objeto de estudo apenas debruccedilar-nos-emos sobre o problema no acircmbito do
processo penal tributaacuterio Sobre a tensatildeo entre o nemo tenetur se ipsum accusare e dever de cooperaccedilatildeo no domiacutenio concorrencial e dos valores
mobiliaacuterios ver entre outros RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare ndash Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
pp175-198 ANASTAacuteCIO Catarina ndash O dever de colaboraccedilatildeo no acircmbito dos processos de contra-ordenaccedilatildeo por infracccedilatildeo agraves regras de defesa da
concorrecircncia e o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro ndash marccedilo 2010) pp
199-236 MARTINHO Helena Gaspar ndash O direito ao silecircncio e agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo nos processos sancionatoacuterios do Direito da concorrecircncia ndash
Uma anaacutelise da jurisprudecircncia comunitaacuteria Revista de Concorrecircncia e Regulaccedilatildeo Lisboa Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) pp145-174 DIAS
Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp 17-56
420 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp47-48 SAacute Liliana da Silva op cit p149
139
de instaurar o inqueacuterito por crime fiscal quando em outras circunstacircncias nomeadamente se
tivesse a condiccedilatildeo de arguido natildeo seria obrigado a prestar por forccedila do seu direito ao silecircnciordquo421
Face ao paradigma atual do sistema de gestatildeo fiscal e agrave tributaccedilatildeo de massas eacute
impensaacutevel a inexistecircncia de uma plecirciade de deveres de colaboraccedilatildeo sobre os sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios Todavia numa conclusatildeo preacutevia e sucinta natildeo eacute compreensiacutevel
a opccedilatildeo pela interligaccedilatildeo de processos (fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria e processo penal) de modo a
transformar o contribuinte em instrutor do proacuteprio processo e em figura central da proacutepria
condenaccedilatildeo422 A cooperaccedilatildeo exigida ao inspecionado natildeo pode significar a aboliccedilatildeo do poder-
dever de investigaccedilatildeo da Administraccedilatildeo Tributaacuteria423
O objeto e objetivo do nosso trabalho eacute entatildeo estudar esta tensatildeo entre os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos em inspeccedilatildeo tributaacuteria e o nemo tenetur se ipsum accusare
aprofundando a problemaacutetica da utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo dos deveres de colaboraccedilatildeo e sob a cominaccedilatildeo ou
coaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais apresentando uma
soluccedilatildeo doutrinal e jurisprudencialmente consolidada para a questatildeo em apreccedilo
Importa contudo advertir que o problema natildeo se coloca em relaccedilatildeo a toda e qualquer
apresentaccedilatildeo ou obtenccedilatildeo de material probatoacuterio por parte do contribuinte agrave AT Em primeiro
lugar trata-se de materiais com conteuacutedo autoincriminatoacuterio o que apenas se verificaraacute quando
os factosdados neles presentes derem origem natildeo soacute a uma liquidaccedilatildeo tributaacuteria no acircmbito de
um procedimento de determinaccedilatildeo da obrigaccedilatildeo tributaacuteria ou a um procedimento
sancionatoacuterio424 Em segundo lugar o modo tiacutepico da compressatildeo do direito fundamental agrave natildeo
421 CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit p195 SAacute Liliana da Silva op cit pp147-148
422 No mesmo sentido DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p52
423 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p127
424 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35 ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la
articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) no trabalho desenvolvido sobre a
eventual utilizaccedilatildeo em processo penal dos materiais probatoacuterios obtidos sob coaccedilatildeo da AT num procedimento liquidatoacuterio veio a concluir que eacute
contraacuterio ao direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo expressamente consagrada na Constituiccedilatildeo Espanhola (art24ordm) fundamentar a condenaccedilatildeo do
sujeito por delito contra a AT com base numa declaraccedilatildeo autoinculpatoacuteria realizada sob a coaccedilatildeo da administraccedilatildeo ndash a coaccedilatildeo fundar-se-ia na
preacutevia existecircncia de sanccedilotildees face ao incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo A questatildeo passava agora pela determinaccedilatildeo do conceito de
ldquodeclaraccedilatildeo autoincriminatoacuteriardquo para efeitos do art24ordm da Constituiccedilatildeo isto porque tal como referimos tambeacutem entende o autor que nem todo
o material probatoacuterio cedido pelo contribuinte assume um caraacutecter autoincriminatoacuterio Chamando agrave colaccedilatildeo o criteacuterio usado pelo TEDH no caso
Saunders v Reino Unido ALBERTO DIacuteAZ-PALACIOS classifica dois grupos ou tipos de elementos probatoacuterios que podem ser entregues agrave
Administraccedilatildeo o material probatoacuterio cuja existecircncia eacute independente agrave vontade do obrigado tributaacuterio e o material probatoacuteria que depende do
obrigado tributaacuterio sendo que apenas no uacuteltimo caso colocar-se-ia o problema da autoincriminaccedilatildeo pois que ldquoEs obvio que si los materiales
140
autoincriminaccedilatildeo em processos ou procedimentos sancionatoacuterios de natureza fiscal consiste na
generalidade das situaccedilotildees na entrega coativa de documentos ou na prestaccedilatildeo de
declaraccedilotildeesinformaccedilotildees ndash as dimensotildees probatoacuterias que incidem sobre o material corpoacutereo do
arguido e diaacuterios iacutentimos natildeo tecircm aqui aplicaccedilatildeo425
Em terceiro lugar tais materiais probatoacuterios devem ser fornecidos pelo inspecionado de
forma coativa e natildeo voluntaacuteria Apenas quando a entrega da prova comporta caraacuteter coativo ndash
que eacute conferido pela imposiccedilatildeo de sanccedilotildees fiscais contraordenacionais eou penais em casos
de incumprimento ilegiacutetimo do dever de colaboraccedilatildeo426 ndash eacute que podemos falar de uma afetaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo jaacute que o direito eacute em si renunciaacutevel427 (qualquer pessoa eacute
aportados no contienen una declaracioacuten de voluntad o de conocimiento carecen de intereacutes a los efectos que nos ocupan y no tendraacuten relevancia
desde el punto de vista del artiacuteculo 242 de la Constitucioacutenrdquo Afirmar que o elemento probatoacuterio eacute dependente da vontade humana significa para
o autor que a vontade do obrigado tributaacuterio eacute a causa uacuteltima da sua (do material probatoacuterio) existecircncia Por esse motivo se incluem no grupo
dos materiais cuja existecircncia eacute independente da vontade do obrigado tributaacuterio e conteacutem uma declaraccedilatildeo em si mesmo por exemplo os
documentos elaborados por terceiras pessoas que faccedilam prova de determinados factos e que contenham uma declaraccedilatildeo de vontade dessas
pessoas mas que se encontram em poder do sujeito inspecionado e permitem uma determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do sujeito tambeacutem se
incluem neste grupo os materiais cuja existecircncia apresenta um caraacuteter obrigatoacuterio ex lege (pense-se na obrigaccedilatildeo legal de emitir faturas por
exemplo) ndash ldquocuando afirmamos que la existencia de los materiales que se integran en este grupo es independiente de la voluntad del obligado
tributario no dejamos completamente al margen de dicha existencia esa voluntad Lo que queremos poner de manifiesto es que la voluntad del
sujeto no constituye la causa uacuteltima de la existencia de los referidos materialesrdquo Pensemos no caso da emissatildeo de faturas certamente a vontade
do obrigado tributaacuterio interveacutem nesse ato mais que natildeo seja para a proacutepria realizaccedilatildeo e emissatildeo da fatura mas natildeo se pode afirmar que seja
essa vontade do dito obrigado tributaacuterio a causa uacuteltima da existecircncia da fatura ndash a fatura existe porque haacute a imposiccedilatildeo legal de a emitir Este
grupo e exemplo de elementos probatoacuterios natildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias pelo que levados ao conhecimento do oacutergatildeo
inspetor nada obsta a que possam fundamentar uma sanccedilatildeo penal ndash defende o autor Por sua vez os elementos probatoacuterios cuja existecircncia
depende da vontade do indiviacuteduo e que contecircm uma declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento em si mesmo (como satildeo manifestaccedilotildees orais
ou escritas do sujeito ndash pensemos no caso de respostas autoincriminadoras oferecidas pelo inspecionado a perguntas realizadas em inspeccedilatildeo
tributaacuteria) prestados sob coaccedilatildeo constituem declaraccedilotildees autoincriminatoacuterias e nunca tais materiais ldquopodriacutean fundamentar legiacutetimamente la
imposicioacuten de una condena penal para ele obligado tributario que los ha aportadordquo ndash DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash El Derecho a no declarar
contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal (Primera parte) Revista Anaacutelisis
Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) pp23-24 Disponiacutevel em httpwwwuclmesciefDoctrinaderechoanodeclararpdf
425 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit 51 A propoacutesito destes materiais probatoacuterios ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Op cit (El Derecho
a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte)
enquadra-os no grupo dos elementos probatoacuterios que existem independentemente da vontade do indiviacuteduo mas que natildeo contemplam em si uma
qualquer declaraccedilatildeo de vontade ou de conhecimento pelo que natildeo assume especial relevacircncia nestes termos
426 Obviamente que natildeo nos referimos a uma coaccedilatildeo fiacutesica - praacutetica que presumimos estar erradicada dos sistemas administrativos de atuaccedilatildeo
estadual por ser absolutamente contraacuteria aos princiacutepios basilares do Estado de Direito Democraacutetico Referimo-nos sim a uma coaccedilatildeo juriacutedica
verificada pelo imposiccedilatildeo de sanccedilotildees simples facto de estar previamente determinada uma consequecircncia juriacutedica para os casos em que o
indiviacuteduo natildeo colabore a colaboraccedilatildeo verificada posteriormente natildeo resulta de uma manifestaccedilatildeo de vontade totalmente livre e voluntaacuteria
427 Cf DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - El Derecho a no declarar contra siacute mismo la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el
proceso penal por delito fiscal (Segunda parte) Revista Anaacutelisis Tributario [em linha] Peruacute Nordm 183 (abril 2003) Disponiacutevel em
httpswwwuclmesciefDoctrinaDerechoanodeclarar2PDF
141
livre de se autodenunciar autoinculpar preterindo a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo
desde que tal seja feito de forma livre e esclarecida)
Em quarto lugar os elementos de prova devem estar na posse do sujeito que invoca o
nemo tenetur se ipsum accusare face agrave natureza pessoal e iacutentima que o princiacutepio comporta428 - o
princiacutepio jaacute natildeo teraacute aplicaccedilatildeo quando os meios se encontrem na posse de terceiros (o nemo
tenetur apenas pode ser invocado para evitar a produccedilatildeo de prova contra si mesmo mas jaacute natildeo
para evitar que se obtenha prova atraveacutes de terceiros) Neste particular aspeto assumem
relevacircncia os documentos que elaborados por uma terceira pessoa estatildeo na posse do sujeito
inspecionado faccedilam prova de determinados factos ou contenham uma declaraccedilatildeo de vontade
dessas terceiras pessoas mas que tecircm significado na determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo tributaacuteria do
sujeito inspecionado ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS apelando ao criteacuterio da existecircncia independente
ou dependente da vontade do sujeito apresentado pelo TEDH no acoacuterdatildeo Saunders exclui a
invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare neste tipo de elementos probatoacuterios pois que na
opiniatildeo do autor a existecircncia dos mesmo natildeo depende da vontade do sujeito-inspecionado pelo
que satildeo independentes agrave vontade do sujeito e portanto natildeo autoincriminatoacuterios429 Embora a
posteriori toda a posiccedilatildeo defendida por este autor culmina na opccedilatildeo que rejeita (e que adiante
perfilharemos) a utilizaccedilatildeo em processo penal dos elementos probatoacuterios autoincriminatoacuterios
obtidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria agrave custa do obrigado tributaacuterio natildeo partilhamos do meacutetodo ou
criteacuterio adotado pelo autor e pelo TEDH assente na distinccedilatildeo entre os elementos de prova
dependentes ou independentes da vontade humana do sujeito como jaacute referimos e sustentaacutemos
aquando da anaacutelise aprofundada e geneacuterica realizada na presente monografia a propoacutesito da
428 Cf BERNARDO Joana Sofia Martins SantrsquoAna op cit p35
429 Cf SANZ DIacuteAZ-PALACIOS Alberto op cit p24 (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten
tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Primera Parte) ndash apenas os elementos probatoacuterios que contecircm uma declaraccedilatildeo (de vontade ou de
conhecimento) e sejam dependentes da vontade do obrigado tributaacuterio eacute que assumem natureza autoincriminatoacuteria No mesmo sentido
consultar DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz - Elementos adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria Instituto de Estudios
Fiscales (agosto-2008) pp6 e ss Disponiacutevel em httpwwwiefesdocumentosrecursospublicacionesdocumentos_trabajo2008_19pdf
ndash ldquoInspiraacutendonos en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derecho Humanos [hellip] En primero lugar hemos de preguntarnos si el elemento
concreto de que se trata contiene en siacute mismo una declaracioacuten de voluntad yo de conocimiento Si la respuesta fuera negativa seriacutea legiacutetimo
utilizar ese elemento en contra del contribuyente en sede administrativa o judicial Pero si la respuesta dada fuera afirmativa seriacutea necesario
responder a un segundo interrogante en tal caso debemos preguntarnos si ese concreto elemento (que contiene en siacute mismo una declaracioacuten de
voluntad yo conocimiento) tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de contribuyente o bien tiene su origen uacuteltimo en la voluntad de
terceras personas Si la respuesta a esta segunda pregunta fuera que el elemento analizado tiene su geacutenesis en la voluntad del contribuyente
sometido a inspeccioacuten no podriacutea utilizarse legiacutetimamente contra eacuteste a afectos represivos pues ello seriacutea contrario a su derecho fundamental a
no auto inculparse Por el contrario si se determinara que el elemento en cuestioacuten tiene su origen en uacuteltimo teacutermino en la voluntad de terceros
dicha utilizacioacuten (a efectos represivos) no presentariacutea tacha de ilegitimidad en cuanto al derecho que nos ocupardquo
142
determinaccedilatildeo do acircmbito de validade material do nemo tenetur se ipsum accusare e as suas
implicaccedilotildees no processo penal portuguecircs e sobretudo discordamos da hipoacutetese que admite que
os documentos na posse do inspecionado mas elaborados por terceiros que apresentam
determinados factos ou declaraccedilotildees de vontade desses terceiros e que direta ou indiretamente
permitem determinar a situaccedilatildeo tributaacuteria do obrigado tributaacuterio natildeo possam assumir caraacutecter
autoincriminador
2 Organizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo criminal na aacuterea fiscal autoridades
competentes para a inspeccedilatildeo tributaacuteria e troca de informaccedilotildees
Como jaacute tivemos oportunidade de referir as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo
das infraccedilotildees tributaacuterias satildeo as mesmas que possuem competecircncia para instaurar o inqueacuterito
por crime fiscal ndash podem natildeo ser os mesmo funcionaacuterios nem os mesmos departamentos que
se ocupam da inspeccedilatildeo tributaacuteria mas eacute a mesma entidade puacuteblica
Comecemos a abordagem deste problema pelo estudo da competecircncia para proceder agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria
Estabelece o art16ordm nordm1 do RCPITA que ldquosatildeo competentes para a praacutetica dos atos de
inspeccedilatildeo tributaacuteria nos termos da lei os seguintes serviccedilos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria e
Aduaneira a) A Unidade dos Grandes Contribuintes relativamente aos sujeitos passivos que de
acordo com os criteacuterios definidos sejam considerados como grandes contribuintes b) As
direccedilotildees de serviccedilos de inspeccedilatildeo tributaacuteria que nos termos da orgacircnica da Autoridade Tributaacuteria
e Aduaneira integram a aacuterea operativa da inspeccedilatildeo tributaacuteria relativamente aos sujeitos passivos
e demais obrigados tributaacuterios que sejam selecionados no acircmbito das suas competecircncias ou
designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira c) As unidades orgacircnicas
desconcentradas relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorialrdquo A distribuiccedilatildeo da competecircncia para a realizaccedilatildeo
da inspeccedilatildeo tributaacuteria sofreu uma forte alteraccedilatildeo pelo Decreto-Lei nordm1182011 de 15 de
dezembro que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2012430
430 Cf ROCHA Joaquim Freitas CALDEIRA Joatildeo Damiatildeo op cit pp92-103
143
Com efeito ateacute 31 de dezembro de 2011 as entidades que ao niacutevel do Ministeacuterio das
Financcedilas detinham competecircncias inspetivas e fiscalizadoras eram a Direccedilatildeo-Geral dos Impostos
(DGCI)431 a Direccedilatildeo-Geral das Alfacircndegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC) e
a Inspeccedilatildeo-Geral de Financcedilas (IGF) Esta realidade foi contudo modificada pelo Decreto-Lei
referido com a fusatildeo das atribuiccedilotildees cometidas agrave DGCI agrave DGAIEC e agrave Direccedilatildeo-Geral de
Informaacutetica e Apoio aos Serviccedilos Tributaacuterios e Aduaneiros (DGITA) ndash todas elas entidades que
integravam a Administraccedilatildeo Tributaacuteria na redaccedilatildeo diga-se desatualizada do art 1ordm nordm3 da
LGT Assim na sequecircncia do Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de
poliacutetica econoacutemica celebrado entre o Estado Portuguecircs Fundo Monetaacuterio Internacional (FMI)
Comissatildeo Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) criou-se uma uacutenica entidade
denominada de Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (ATA) que englobou e fundiu em si todas as
entidades referidas no art1ordm nordm3 da LGT Com a criaccedilatildeo desta nova entidade Autoridade
Tributaacuteria e Aduaneira pretendia-se a reduccedilatildeo de custos de funcionamento ao mesmo tempo
que se potenciava a utilizaccedilatildeo dos recursos jaacute existentes atraveacutes da simplificaccedilatildeo da estrutura
de gestatildeo central do reforccedilo do investimento em sistemas de informaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo da
estrutura de serviccedilos regionais e locais
Estruturalmente a ATA432 natildeo difere muito daquilo que era a DGCI apenas passando a
incluir nas suas atribuiccedilotildees as funccedilotildees anteriormente conferidas agrave DGAIEC pelo que em termos
de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se verificaram grandes alteraccedilotildees
A ATA tem por missatildeo administrar os impostos direitos aduaneiros e demais tributos que
lhe sejam atribuiacutedos bem como exercer o controlo da fronteira externa da Uniatildeo Europeia e do
territoacuterio aduaneiro nacional para fins fiscais econoacutemicos e de proteccedilatildeo da sociedade de
acordo com as poliacuteticas definidas pelo Governo e o Direito da Uniatildeo Europeia Exerce tambeacutem a
accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira por forma a garantir a aplicaccedilatildeo das normas a que se
encontram sujeitas as mercadorias introduzidas no territoacuterio da Uniatildeo Europeia e efetuar os
controlos relativos agrave entrada saiacuteda e circulaccedilatildeo das mercadorias no territoacuterio nacional
prevenindo investigando e combatendo a fraude e evasatildeo fiscais e aduaneiras e os traacuteficos
iliacutecitos no acircmbito das suas atribuiccedilotildees433
431 Cf Artigo 2ordm nordm 1 nordm2 alb) do Decreto-Lei nordm812007 de 29 de marccedilo
432 Cf Decreto-Lei nordm 1182011 de 15 de dezembro
433 Cf Decreto-Lei nordm1182011 art2ordm nordm1 nordm2 alb)
144
Para a prossecuccedilatildeo dos objetivos mencionados a Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira
estrutura-se nas seguintes unidades orgacircnicas nucleares Direccedilotildees de serviccedilos Centro de
Estudos Fiscais e Aduaneiros e Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) nos serviccedilos
centrais Direccedilotildees de financcedilas e alfacircndegas que constituem serviccedilos desconcentrados da ATA434
No seio da organizaccedilatildeo dos serviccedilos centrais as funccedilotildees de inspeccedilatildeo tributaacuteria estatildeo
destinadas agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria
(DSPCIT)435 agrave Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais (DSIFAE)436 e
agrave Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)437 438 Por sua vez cada um destes serviccedilos centrais
eacute composto por unidades orgacircnicas flexiacuteveis que concretizaratildeo as suas atribuiccedilotildees439
434 Cf Portaria nordm 320-A2011 de 30 de dezembro art 1ordm
435 Cf art 19ordm da Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria abreviadamente
designada por DSPCIT assegura a conceccedilatildeo e planeamento das poliacuteticas no domiacutenio do exerciacutecio da accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira 2-
Agrave DSPCIT no acircmbito das suas atribuiccedilotildees compete designadamente a) Elaborar anualmente o projeto do Plano Nacional de Atividades da
Inspeccedilatildeo Tributaacuteria e Aduaneira (PNAITA) coordenar a elaboraccedilatildeo dos planos regionais de atividade das diferentes unidades orgacircnicas da aacuterea
da inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e controlar a execuccedilatildeo dos referidos planos b) Elaborar o relatoacuterio de atividades da aacuterea da inspeccedilatildeo tributaacuteria
e aduaneira c) Conceber testar gerir operacionalmente e propor alteraccedilotildees aos sistemas de informaccedilatildeo utilizados pela aacuterea da inspeccedilatildeo
tributaacuteria e aduaneira d) Promover programas de inspeccedilatildeo tendo em vista aacutereas de risco previamente identificadas e elaborar os respetivos
manuais a usar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo tributaacuteria e aduaneira e) Definir procedimentos teacutecnicos de
inspeccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e pesquisar temas assuntos e questotildees relevantes para a
respetiva intervenccedilatildeo f) Definir modelos e meacutetodos de pesquisa inventariaccedilatildeo e anaacutelise da informaccedilatildeo a adotar pelas diferentes unidades
orgacircnicas com competecircncias de inspeccedilatildeo e harmonizar os procedimentos de seleccedilatildeo de contribuintes a controlar g) Promover a seleccedilatildeo de
contribuintes e accedilotildees de vigilacircncia e fiscalizaccedilatildeo aduaneira h) Gerir a troca de informaccedilotildees com paiacuteses comunitaacuterios e com paiacuteses terceiros com
os quais Portugal tenha celebrado convenccedilotildees sobre dupla tributaccedilatildeo i) Conceber e atualizar modelos declarativos e formulaacuterios j) Elaborar
pareceres e realizar estudos e trabalhos teacutecnicos relacionados com a respetiva aacuterea de intervenccedilatildeo sempre que tal lhe seja solicitado k) Estudar
e propor medidas legislativas e regulamentares l) Propor e acompanhar o ciclo de vida dos sistemas de informaccedilatildeo de acordo com a
metodologia em vigorrdquo
436 Cf art 21ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo1 - A Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais abreviadamente designada por
DSIFAE prepara e desenvolve as accedilotildees estrateacutegicas de combate agrave fraude e evasatildeo tributaacuterias bem como assegura a articulaccedilatildeo e colaboraccedilatildeo
com outras entidades com competecircncias inspetivasrdquo
437 Cf art 34ordm Portaria nordm320-A2011 ldquo 1 - A Unidade dos Grandes Contribuintes abreviadamente designada por UGC assegura no domiacutenio da
gestatildeo tributaacuteria as relaccedilotildees com os contribuintes que lhe sejam atribuiacutedos e exerce em relaccedilatildeo a estes a accedilatildeo de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de justiccedila
tributaacuteriardquo
438 Cf Art 2ordm nordm1 aliacuteneas q) s) e ff) da Portaria nordm320-A2011
439 Cf Despacho nordm13652012 de 31 de janeiro
ldquo1 - Satildeo criadas as seguintes unidades orgacircnicas flexiacuteveis nos serviccedilos centrais da Autoridade Tributaacuteria e Aduaneira (AT) [hellip] p) Na Direccedilatildeo de
Serviccedilos de Planeamento e Coordenaccedilatildeo da Inspeccedilatildeo Tributaacuteria (DSPCIT) a que se refere o artigo 19ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Planeamento e Apoio Teacutecnico (DPAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
19ordm as previstas nas aliacuteneas a) a c) e f) a h) ii) A Divisatildeo de Estudos e Coordenaccedilatildeo (DEC) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 19ordm as previstas nas aliacuteneas d) e) e i) a l) [hellip] r) Na Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees
Especiais (DSIFAE) a que se refere o artigo 21ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30 dezembro i) A Divisatildeo de Investigaccedilatildeo da Fraude e Accedilotildees
Especiais (DIFAE) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas aliacuteneas d) a f) e j) ii) A
Divisatildeo de Estudos e Informaccedilotildees (DEI) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 21ordm as previstas nas
145
O art16ordm do RCPITA fixa tambeacutem a competecircncia inspetiva em funccedilatildeo do criteacuterio territorial
determinando quanto agraves unidades orgacircnicas desconcentradas que estas tecircm competecircncia para
desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria relativa a sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios com
domiciacutelio ou sede fiscal na sua aacuterea territorial ndash competecircncia em funccedilatildeo do territoacuterio440 Todavia
esta competecircncia territorial conteacutem algumas exceccedilotildees ou seja casos em que a atribuiccedilatildeo de
competecircncia eacute feita independentemente da localizaccedilatildeo da sede ou domiciacutelio fiscal Um desses
casos eacute a fixaccedilatildeo de competecircncia para Unidade Grandes Contribuintes relativa a sujeitos
passivos que em funccedilatildeo de determinados criteacuterios previamente definidos por portaria satildeo
considerados grandes contribuintes e nesse caso sujeitos agrave inspeccedilatildeo pela UGC
Como se mencionou as atribuiccedilotildees da UGC encontram-se distribuiacutedas por unidades
orgacircnicas flexiacuteveis nomeadamente pelas Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT)
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo
Financeiras II (DIEF II) e Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF)
que encontram as respetivas missotildees determinadas na Portaria nordm320-A2011 e Despacho
nordm13652012 Ao que nos interessa destacar cabe agraves DIBIF DIEF I e DIEF II relativamente aos
contribuintes sob a sua alccedilada inspetiva realizar procedimentos de inspeccedilatildeo agrave contabilidade dos
contribuintes com recurso a teacutecnicas de auditoria confirmando a veracidade das declaraccedilotildees
efetuadas por verificaccedilatildeo substantiva dos documentos de suporte instaurar e instruir processos
de inqueacuterito nos termos dos artigos 40ordm e 41ordm do RGIT colaborar com a representaccedilatildeo da
Fazenda Puacuteblica junto dos tribunais tributaacuterios441
Antes de prosseguirmos para o ldquobusiacutelisrdquo da questatildeo eacute de assinalar que no processo penal
portuguecircs ndash conquanto o Ministeacuterio Puacuteblico se configure como titular da accedilatildeo penal (ldquodominus
do inqueacuteritordquo) a quem compete a direccedilatildeo e realizaccedilatildeo do inqueacuterito (art263ordm e 264ordm CPP) ndash os
atos materiais de investigaccedilatildeo criminal poderatildeo ser realizados por outras entidades que atuam
aliacuteneas a) a c) e g) a i) [hellip] ee) Na Unidade de Grandes contribuintes (UGC) a que se refere o artigo 34ordm da Portaria nordm 320-A2011 de 30
dezembro i) A Divisatildeo de Gestatildeo e Assistecircncia Tributaacuteria (DGAT) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo
34ordm as previstas nas aliacuteneas a) a e) g) h) m) n) e o) ii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Bancos e outras Instituiccedilotildees Financeiras (DIBIF) agrave qual cabe
assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja
Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iii) A Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras I (DIEF I) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees
constantes do nordm 2 do artigo 34ordm as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda iv) A
Divisatildeo de Inspeccedilatildeo a Empresas natildeo Financeiras II (DIEF II) agrave qual cabe assegurar no acircmbito das atribuiccedilotildees constantes do nordm 2 do artigo 34ordm
as previstas nas aliacuteneas j) l) e o) relativamente aos contribuintes cuja Inspeccedilatildeo lhe esteja atribuiacuteda [hellip]rdquo ndash [itaacutelicos nossos]
440 Cf ROCHA Joaquim FreitasCALDEIRA Joatildeo Damiatildeo ibidem p 97
441 Cf art 34ordm nordm2 als j) l) e o) da Portaria nordm320-A2011 ex vi nordm1 aliacutenea ee) do Despacho nordm 13652012
146
sob a direccedilatildeo e dependecircncia funcional do MP442 ldquoO poder de direcccedilatildeo do inqueacuterito inclui o poder
do MP praticar ou natildeo praticar os actos de investigaccedilatildeo e as diligecircncias probatoacuterias que
entender adequadas aso fins do inqueacuterito [hellip]rdquo443 A direccedilatildeo do inqueacuterito eacute consentacircnea com a
delegaccedilatildeo de poderes de investigaccedilatildeo aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art263ordm nordm2 do CPP)
Desse modo uma vez adquirida a notiacutecia do crime (arts 241ordm e ss CPP) o titular da accedilatildeo
penal MP pode seguir e assumir diretamente a investigaccedilatildeo ou delegaacute-la nos oacutergatildeos de poliacutecia
criminal estes uacuteltimos englobam ldquotodas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a
cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciaacuteria ou determinados por este Coacutedigordquo
ndash art1ordm nordm1 alc) do CPP
No que tange aos crimes fiscais o RGIT atribui durante o inqueacuterito aos oacutergatildeos da
administraccedilatildeo tributaacuteria e aos da seguranccedila social os poderes e funccedilotildees conferidas pelo CPP aos
oacutergatildeos e agraves autoridades de poliacutecia criminal presumindo-se-lhes delegada a praacutetica de atos que o
MP pode atribuir agravequelas entidades (oacutergatildeos de poliacutecia criminal) ndash verifica-se uma delegaccedilatildeo
geneacuterica das competecircncias investigatoacuterias em crimes fiscais nas entidades especiacuteficas
competentes (art40ordm nordm2 do RGIT) As entidades competentes para os atos de inqueacuterito (nos
processos penais tributaacuterios) a que se refere o art40ordm nordm2 do RGIT satildeo quanto aos crimes
aduaneiros o diretor da direccedilatildeo de serviccedilos antifraude nos processos por crimes que venham a
ser indiciados no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees ou no exerciacutecio das atribuiccedilotildees das alfacircndegas e
na Brigada Fiscal da GNR nos processos por crimes que venham a ser indiciados por estes no
exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees quanto aos crimes fiscais satildeo competentes o diretor de financcedilas
que exercer funccedilotildees na aacuterea onde o crime tiver sido cometido ou o direito da UGC ou o diretor
da Direccedilatildeo de Serviccedilos de Investigaccedilatildeo da Fraude e de Accedilotildees Especiais nos processos por
crimes que venham a ser indiciados por estas no exerciacutecio das suas atribuiccedilotildees444 Estas
entidades exercem no inqueacuterito as competecircncias de autoridade de poliacutecia criminal (art41ordm nordm3
do RGIT)
Em siacutentese verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo e fiscalizaccedilatildeo
das realidades tributaacuterias dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de
442 Sobre esta temaacutetica ver entre outros RODRIGUES Anabela Miranda ndash O inqueacuterito no Novo Coacutedigo de Processo Penal in CEJ (org) Jornadas
de Direito Processual Penal Coimbra Almedina 1995 pp59-79 BELEZA Teresa Pizarro com colaboraccedilatildeo de Frederico Isasca e Rui Saacute Gomes
ndash Apontamentos de Direito Processual Penal Lisboa AAFDL 1992 pp 50 e ss Volume I GASPAR Jorge ndash Titularidade da Investigaccedilatildeo Criminal
e Posiccedilatildeo Juriacutedica do Arguido Revista do Ministeacuterio Puacuteblico Lisboa Ano 22ordm nordm 87 (julho-setembro 2001) e nordm88 (outubro-dezembro 2001)
443 ALBUQUERQUE Paulo Pinto op cit p691
444 Cf art 41ordm nordm1 do RGIT
147
investigaccedilatildeo e inqueacuterito no processo penal tributaacuterio A particularidade do problema aumenta na
medida em que se prevecirc legalmente a troca de informaccedilotildees entre as entidades
No que concerne ao processo penal tributaacuterio o RGIT dispocircs de um pequeno conjunto de
dezasseis normas (art35ordm a 50ordm) - em comparaccedilatildeo ao processo relativo agraves contraordenaccedilotildees
tributaacuterias (art51ordm a 86ordm) a regular este tipo processual Todavia tal natildeo deve fazer subentender
uma desvalorizaccedilatildeo ou desprezo do processo penal em relaccedilatildeo ao outro tipo processual
tributaacuterio por este diploma legislativo A parca dimensatildeo normativa na regulaccedilatildeo do processo
penal tributaacuterio apenas se deve ao facto do RGIT se concentrar exclusivamente nas
especificidades do processo penal tributaacuterio em relaccedilatildeo ao processo penal comum pois que
nos demais tracircmites e paracircmetros deste processo eacute subsidiariamente aplicaacutevel aquilo que o
Coacutedigo do Processo Penal dispotildee para o processo penal comum (art3ordm ala) do RGIT)445
Tal como no processo penal comum no processo penal tributaacuterio a aquisiccedilatildeo da notiacutecia
do crime pode dar-se446 por conhecimento proacuteprio dos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria com
competecircncia delegada para os atos de inqueacuterito ndash que satildeo os mencionados no art41ordm nordm1 do
RGIT que como vimos tecircm tambeacutem competecircncia para desenvolver a inspeccedilatildeo tributaacuteria ou
por intermeacutedio dos agentes tributaacuterios ou oacutergatildeos de poliacutecia criminal e mediante denuacutencia
(art35ordm nordm1 do RGIT) Nessa medida devem os agentes tributaacuterios que adquiram a notiacutecia do
crime tributaacuterio ndash onde se incluem os inspetores tributaacuterios ndash transmiti-la ao oacutergatildeo da
administraccedilatildeo tributaacuteria competente (art35ordm nordm4 e 6 do RGIT) que seratildeo sempre os oacutergatildeos
mencionados no art41ordm nordm1 (art35ordm nordm2 do RGIT447)
Adquirida a notiacutecia de um crime tributaacuterio procede-se agrave abertura do inqueacuterito O inqueacuterito
por crime tributaacuterio decorre sob a direccedilatildeo do Ministeacuterio Puacuteblico (art40ordm nordm1 do RGIT) que a
todo o tempo pode avocar o processo (art41ordm nordm1 do RGIT) e tem as mesmas finalidades e
termos do previsto no CPP (art 262ordm e ss) No entanto o inqueacuterito por crime tributaacuterio
apresenta algumas especificidades em relaccedilatildeo ao inqueacuterito no processo comum448 Ao que nos
interessa destacar aos oacutergatildeos da AT e Seguranccedila Social cabe durante o inqueacuterito os poderes e
445 SILVA Isabel Marques da ndash Regime Geral das Infracccedilotildees Tributaacuterias 3ordm Ed Coimbra Almedina 2010 pp 125-126
446 Para aleacutem das situaccedilotildees previstas no art241ordm do CPP subsidiariamente aplicaacuteveis
447 Mesmo que a notiacutecia do crime seja adquirida por conhecimento proacuteprio do MP este deve enviaacute-la para os oacutergatildeos da AT com competecircncia
delegada para o inqueacuterito ndash esta eacute a prerrogativa que dispotildee o art35ordm nordm2 do RGIT ao estabelecer que ldquoa notiacutecia do crime eacute sempre transmitida
ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo tributaacuteria com competecircncia delegada para o inqueacuteritordquo
448 SILVA Isabel Marques op cit pp131 e ss
148
funccedilotildees que o CPP atribui aos oacutergatildeos de poliacutecia criminal (art40ordm nordm2 do RGIT) e mais do que
isso ldquopresume-se-lhes delegada a praacutetica de actos que o Ministeacuterio Puacuteblico pode delegar nos
oacutergatildeos de poliacutecia criminal [art41ordm nordm1 do RGIT] admitindo-se ateacute que a instauraccedilatildeo do inqueacuterito
seja feita pelos oacutergatildeos da administraccedilatildeo tributaacuteria e da seguranccedila social ao abrigo da sua
competecircncia delegada exigindo-se apenas a imediata comunicaccedilatildeo ao Ministeacuterio Puacuteblico da
instauraccedilatildeo do inqueacuterito por esses oacutergatildeos [art40ordm nordm3 do RGIT]rdquo449 Por esta via a AT e a
Seguranccedila Social adquirem competecircncias e legitimidade para intervir ativamente na investigaccedilatildeo
dos crimes tributaacuterios
Face agraves consideraccedilotildees tecidas anteriormente as tensotildees com o nemo tenetur satildeo
evidentes a AT pode decidir do se e do quando da instauraccedilatildeo do inqueacuterito (basta atentar no
que dispotildee o art40ordm nordm3 do RGIT e em toda a panoacuteplia legislativa relativa agrave troca de
informaccedilotildees comunicaccedilatildeo da notiacutecia do crime) inqueacuterito esse que pode ficar ao cargo dos
funcionaacuterios que interrogaram o contribuinte lhe solicitaram informaccedilotildees e documentos em
inspeccedilatildeo tributaacuteria os quais iratildeo ouvir novamente dando possibilidade ao aproveitamento das
informaccedilotildees obtidas e pelo contribuinte fornecidas em total desconformidade com as suas
garantias de defesa por outro lado os inspetores podem ser tentados a protelar a investigaccedilatildeo
administrativa orientada pelo dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte por forma a diferir a
invocaccedilatildeo dos direitos que lhe satildeo reconhecidos no inqueacuterito procedimento em
desconformidade com a Constituiccedilatildeo450
Tendo em conta o cenaacuterio apresentado nos pontos anteriores cabe-nos agora refletir
sobre as soluccedilotildees para evitar o sacrifiacutecio do nemo tenetur
3 Acircmbito de validade normativa do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare
Antes de iniciarmos a anaacutelise das soluccedilotildees possiacuteveis para evitar distorccedilotildees ao nemo
tenetur nos procedimentos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e subsequente processo penal
cumpre analisar a validade normativa do princiacutepio ou seja determinar se o nemo tenetur eacute
449 Idem ibidem
450 SAacute Liliana da Silva op cit p149
149
vaacutelido apenas para o Direito Penal e Processual Penal ou se pelo contraacuterio expande a sua
aplicaccedilatildeo a outros ramos do Direito
Reuacutene largo consenso na doutrina que o princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute
exclusivo do processo penal stricto sensu mas pelo contraacuterio eacute vaacutelido em qualquer processo ou
procedimento administrativo onde possam ser aplicadas sanccedilotildees de caraacuteter punitivo que
termine com a imposiccedilatildeo de multas ou sanccedilotildees ainda que natildeo criminais451 ndash em conformidade
ao disposto no art32ordm nordm10 da Constituiccedilatildeo Desta forma afirma-se em tom uniacutessono e
concordante na doutrina portuguesa que o nemo tenetur vigora em todo o direito sancionatoacuterio
o que equivale a dizer Direito Penal e Direito de Mera-Ordenaccedilatildeo Social452 onde se incluem
451 Cf DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) pp44-46
452 Ver supra 41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade material
Ver tambeacutem Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem oumlzturk v Alemanha de 21 de fevereiro de 1984 Disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[ozturk]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-57553] (link)
[em linha] - onde esta instacircncia judicial acabou por admitir a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH agraves contraordenaccedilotildees do direito alematildeo
SILVA Maria de Faacutetima Reis ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo Revista Sub Judice Coimbra Almedina Nordm40 (julho-setembro 2007) pp62-
64 MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera L C op cit pp40-42 ndash ldquoEste tribunal [TEDH] tem considerado que as contra-ordenaccedilotildees a
despeito do programa de descriminalizaccedilatildeo que lhes estaacute subjacente natildeo afastam necessariamente a aplicaccedilatildeo das garantias do artigo 6ordm da
CEDH apesar de estas terem primeiramente em vista o processo penal particularmente embora natildeo exclusivamente quando esteja em causa a
sanccedilatildeo de condutas socialmente censuraacuteveis ainda que sem um desvalor penal mediante a aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees severas ainda que natildeo
privativas da liberdade [hellip] Natildeo oferece quaisquer duacutevidas a possibilidade de invocaccedilatildeo do direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no contexto de
processos sancionatoacuterios de natureza administrativa como eacute o caso do direito de mera ordenaccedilatildeo social rdquo (p41) MARTINHO Helena Gaspar op
cit (pp169-171) a propoacutesito da aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo no direito concorrencial chama agrave colaccedilatildeo a decisatildeo do TEDH no
caso Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 onde esta instacircncia judicial fez uma distinccedilatildeo entre os processos de natureza criminal
stricto sensu e processos que natildeo pertencem agrave categoria tradicional de Direito criminal
Assim embora o conceito amplo de ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrdquo albergue diferentes tipos de processo no que concerne agrave aplicaccedilatildeo das
garantias previstas no art6ordm da CEDH ldquoApesar da consideraccedilatildeo de que eacute inerente aos processos-crime uma certa gravidade que se refere agrave
atribuiccedilatildeo de responsabilidade criminal e agrave imposiccedilatildeo de sanccedilotildees punitivas e dissuasoras eacute evidente que haacute casos em mateacuteria penal que natildeo
tecircm qualquer niacutevel significativo de estigma Existem claramente lsquoacusaccedilotildees em mateacuteria criminalrsquo com diferentes pesosrdquo (paraacutegrafo 43 ac Jussila
v Finlacircndia) O tribunal prosseguiu e acabou por incluir os processos por infraccedilotildees ao Direito da Concorrecircncia no grupo dos casos que natildeo
pertencem ao Direito Penal claacutessico stricto sensu mas que por via dos criteacuterios apresentados no acoacuterdatildeo Engel podem aiacute ser invocados os
direitos e prerrogativas do art6ordm da CEDH fruto da existecircncia de uma lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo Em suma a importacircncia da jurisprudecircncia
de Jussila v Finlacircndia centra-se no facto de se advertir que o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo eacute aplicaacutevel nos casos que natildeo pertencem ao
tradicional Direito penal claacutessico da mesma forma rigor e extensatildeo como eacute aplicaacutevel nos processos tradicionais de Direito Penal
Cf Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Jussila v Finlacircndia de 23 de novembro de 2006 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[JUSSILA]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-78135] (link)
[em linha]
No mesmo sentido ver SILVA Maria de Faacutetima Reis op cit pp 64 e ss ANASTAacuteCIO Catarina op cit DIAS Jorge de FigueiredoANDRADE
Manuel da Costa op cit pp46-49
Em termos jurisprudenciais deve atentar-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila da Uniatildeo Europeia caso Orkem (Processo nordm 37487) No acircmbito
de uma investigaccedilatildeo sobre a existecircncia de praacuteticas concertadas contraacuterias ao atual art101ordm do TFUE a Comissatildeo solicitou informaccedilotildees a vaacuterias
empresas de entre as quais Orkem SA A referida empresa contestou o pedido da Comissatildeo alegando essencialmente que a prestaccedilatildeo de
informaccedilotildees solicitadas obrigava agrave sua autoincriminaccedilatildeo Neste sentido o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo
150
obviamente os procedimentos administrativos sancionatoacuterios tributaacuterios ndash todos representam
uma manifestaccedilatildeo do ius puniendi do Estado453
Neste paracircmetro haacute estreita coincidecircncia com a jurisprudecircncia do TEDH segundo o qual
o princiacutepio eacute aplicaacutevel quando se verifica uma ldquoacusaccedilatildeo de natureza penalrdquo que assume o
conceito autoacutenomo e material em relaccedilatildeo ao adotado por cada ordenamento juriacutedico de cada
Estado-Membro significando ldquopenalrdquo o mesmo que ldquopunitivo ou sancionatoacuteriordquo454 conforme os
trecircs criteacuterios apresentados por esta instacircncia judicial no caso Engel and others v The
Netherlands455 Referimos em ponto anterior que o TEDH considerou em 1997 lsquoacusado de
ofensa criminalrsquo todo aquele a quem foi oficialmente comunicada pela autoridade competente a
qualidade de suspeito da praacutetica de um crime456 e posteriormente em 2000 no caso que opocircs
Heaney and McGuinness contra Irlanda (de 21 de dezembro de 2000) reforccedilou a ideia de que o
conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo assume para efeitos de invocaccedilatildeo do art6ordm do CEDH
um conceito material e autoacutenomo abarcando toda aquele indiviacuteduo cuja situaccedilatildeo individual
enquanto suspeito se encontre substancialmente afetada457 ndash natildeo sendo necessaacuteria a acusaccedilatildeo
formal e concreta no Estado onde correm os procedimentos atentatoacuterios ao nemo tenetur
Por sua vez no acoacuterdatildeo Weh v Aacuteustria458 o TEDH procedeu a uma delimitaccedilatildeo negativa
do conceito de lsquoacusado de ofensa criminalrsquo excluindo do seu acircmbito de aplicaccedilatildeo as hipoacuteteses
autoincriminaccedilatildeo agraves pessoas coletivas (aspeto jaacute anteriormente abordado) e tambeacutem sobre a suscetibilidade de ser invocado nos processos
sancionatoacuterios de concorrecircncia Relativamente ao uacuteltimo aspeto o Tribunal conclui ldquoAssim se para preservar o efeito uacutetil dos nos 2 e 5 do
artigo 11ordm do Regulamento nordm17 [CE] a Comissatildeo tem o direito de obrigar a empresa a fornecer todas informaccedilotildees necessaacuterias relativas aos
factos de que possa ter conhecimento e se necessaacuterio os documentos correlativos que estejam na sua posse mesmo que estes possam servir
em relaccedilatildeo a ela ou a outra empresa para comprovar a existecircncia de um comportamento anti concorrencial jaacute no entanto natildeo pode atraveacutes de
uma decisatildeo de pedido de informaccedilotildees prejudicar os direitos de defesa reconhecidos agrave empresa Deste modo a Comissatildeo natildeo pode impor agrave
empresa a obrigaccedilatildeo de fornecer respostas atraveacutes das quais seja levada a admitir a existecircncia da infraccedilatildeo cuja prova cabe agrave Comissatildeordquo ndash
(paraacutegrafos 34 e 35 do Acoacuterdatildeo)
453 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146
454 Cf Acoacuterdatildeo do TEDH Engel and others V The Netherlands de 8 de junho de 1976
455 Independentemente da configuraccedilatildeo juriacutedica dada a uma determinada infraccedilatildeo no ordenamento juriacutedica de qualquer Estado-Membro (criminal
contraordenacional ou disciplinar) a mesma pode assumir a ldquonatureza penalrdquo para efeitos do art6ordm da CEDH e subsequente invocaccedilatildeo do
nemo tenetur enquanto corolaacuterio do processo equitativo atendendo a 3 criteacuterios Recapitulando primeiro a qualificaccedilatildeo do iliacutecito no direito
interno segundo a natureza precisa da infraccedilatildeo e terceiro a natureza e grau de gravidade da sanccedilatildeo que lhe estaacute associada (sendo o segundo
e terceiro criteacuterio como anteriormente alertaacutemos alternativos e natildeo cumulativos)
456 Ac Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Serves v Franccedila 20 de outubro de 1997
457 A posiccedilatildeo do sujeito estava substancialmente afetada no caso pelo facto do indiviacuteduo natildeo se encontrando formalmente acusado no momento
em que fora destinataacuterio dos procedimentos atentatoacuterios ao direito ao silecircncio se encontrava poreacutem sob detenccedilatildeo por suspeita de participaccedilatildeo
na praacutetica de um crime com o qual se relacionavam as informaccedilotildees a pretender obter mediante o uso de poderes coercivos
458 Acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Weh v Aacuteustria de 8 de abril de 2004 disponiacutevel em
httphudocechrcoeintengfulltext[weh]documentcollectionid2[GRANDCHAMBERCHAMBER]itemid[001-61701]
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em que no momento que tecircm lugar os procedimentos pretendidos confrontar com os direitos
assegurados pelo art6ordm da CEDH a instauraccedilatildeo do procedimento sancionatoacuterio a que pudesse
servir a prova desse modo intentada obter eacute ainda hipoteacutetica e remota459 O caso remontava agrave
circunstacircncia de na sequecircncia da deteccedilatildeo pelo radar da conduccedilatildeo por excesso de velocidade de
um veiacuteculo registado em nome do queixoso Weh sendo que tinha sido solicitada ao proprietaacuterio
do veiacuteculo a indicaccedilatildeo do nome do condutor na ocasiatildeo em causa sob cominaccedilatildeo de aplicaccedilatildeo
de uma multa pecuniaacuteria ndash que se veio a efetivar por informaccedilatildeo insuficiente e imprecisa
prestada pelo queixoso Weh defendia assim a incompatibilidade da norma do direito interno
que obrigava o proprietaacuterio de um veiacuteculo automoacutevel a identificar a pessoa do seu condutor
aquando da infraccedilatildeo com os direitos ao silecircncio e agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo reivindicando o
estatuto de acusado de ofensa criminal O TEDH rejeitou contudo esse estatuto a Weh
Fundamentalmente entendeu o Tribunal que a solicitaccedilatildeo exigida ao queixoso foi efetuada
apenas na qualidade de proprietaacuterio do veiacuteculo (e natildeo de suspeito da infraccedilatildeo por conduccedilatildeo em
excesso de velocidade) e a informaccedilatildeo pretendida diz respeito a um facto em si mesmo natildeo
incriminador (quem conduzia o veiacuteculo naquele momento)460 ndash a conjugaccedilatildeo destes elementos
natildeo permitia a conclusatildeo pela afetaccedilatildeo substancial da posiccedilatildeo de Weh no sentido
autonomamente suposto pelo art6ordm da Convenccedilatildeo e nem era plausivelmente antecipaacutevel a
instauraccedilatildeo de um processo contra o queixoso por conduccedilatildeo em excesso de velocidade
Com base em tais argumentos o TEDH conclui que a ligaccedilatildeo entre a obrigaccedilatildeo do direito
interno em indicar a identidade do condutor do veiacuteculo e os possiacuteveis processos por crime por
conduccedilatildeo em excesso de velocidade contra o queixoso era apenas remota e hipoteacutetica Pelo que
na ausecircncia de uma relaccedilatildeo suficientemente concreta entre o uso de poderes coercivos (ou seja
a aplicaccedilatildeo de uma coima) e esses processos penais onde pudesse servir a prova intentada
obter por esses meios natildeo se levanta qualquer questatildeo relativa ao direito ao silecircncio ou ao
privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo461 A decisatildeo firmada no caso Weh foi alcanccedilada por uma
459 COSTA Joana op cit pp123
460 Cf Paragraph 53-54 ndash ldquoAct to disclose who had been driving his car on 5 March 1995 There were clearly no proceedings for speeding pending
against the applicant and it cannot even be said that they were anticipated as the authorities did not have any element of suspicion against him
54 There is nothing to show that the applicant was ldquosubstantially affectedrdquo so as to consider him being ldquochargedrdquo with the offence of speeding
within the autonomous meaning of Article 6 sect 1 [hellip] It was merely in his capacity as the registered car owner that he was required to give
information Moreover he was only required to state a simple fact ndash namely who had been the driver of his car ndash which is not in itself
incriminatingrdquo
461 Cf Paragraph 56 ndash ldquoThe Court reiterates that it is not called upon to pronounce on the existence or otherwise of potential violations of the
Convention [] It considers that in the present case the link between the applicants obligation under section 130 sect 2 of the Motor Vehicles Act
152
maioria de quatro votos contra trecircs Num apontamento sinteacutetico sobre a posiccedilatildeo vencida os
respetivos juiacutezes entendiam que a situaccedilatildeo do sujeito em causa estava substancialmente
afetada de modo a reivindicar a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH (subsequentemente o direito ao
silecircncio e o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo) Nesse sentido estaacutevamos perante um caso de
lsquoacusaccedilatildeo em mateacuteria penalrsquo porque o queixoso foi colocado perante uma situaccedilatildeo dilemaacutetica
ou fornecia informaccedilatildeo potencialmente autoincriminadora (pois que o procedimento converter-
se-ia num processo contra o queixoso caso este tivesse de admitir que era ele o condutor do
veiacuteculo) ou seria sancionado com coima por permanecer em silecircncio
O TEDH distinguiu o caso Weh dos ateacute aqui mencionados concluindo pela natildeo atribuiccedilatildeo
do estatuto de acusado de ofensa criminal ao sujeito Weh no acoacuterdatildeo Funke ou Heaney and
MacGuinness a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH dizia respeito ao uso de meios coercivos para
obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo suscetiacutevel de incriminar a pessoa do visado em processo sancionatoacuterio
pendente ou antecipaacutevel por sua vez no caso Weh o uso de poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio (que em si natildeo era autoincriminatoacuterio) seria apenas aproveitaacutevel em
processos sancionatoacuterios cuja instauraccedilatildeo era hipoteacutetica ou remota462 natildeo se justificando a
invocaccedilatildeo concreta do art6ordm da CEDH
No caso Bendenoun v French o Tribunal de Estrasburgo pronunciou-se no sentido da
aplicaccedilatildeo deste princiacutepio aos procedimentos sancionatoacuterios fiscais (contraordenaccedilotildees
tributaacuterias) tendo em conta que as coimas de natureza fiscal atribuem aos respetivos
procedimentos tendentes agrave sua aplicaccedilatildeo uma ldquonatureza penalrdquo ndash para efeitos de aplicaccedilatildeo e
invocaccedilatildeo do nemo tenetur463 ndash pois que as mesmas (no caso) natildeo prosseguem a reparaccedilatildeo
pecuniaacuteria do prejuiacutezo mas antes se apresentam como uma puniccedilatildeo essencialmente para
prevenir a reincidecircncia satildeo impostas por uma norma de caraacuteter geral cuja finalidade eacute
to disclose the driver of his car and possible criminal proceedings for speeding against him remains remote and hypothetical However without a
sufficiently concrete link with these criminal proceedings the use of compulsory powers (ie the imposition of a fine) to obtain information does
not raise an issue with regard to the applicants right to remain silent and the privilege against self-incriminationrdquo
462 COSTA Joana op cit p129
463 ldquoEn la causa Bendenoun cFrancia se reconoce que el derecho a no declarar contra siacute mismo juega no soacutelo en presencia de un procedimiento
penal sino cuando se estaacute frente a un procedimiento administrativo sancionador por lo que reconoce que el artiacuteculo 61 del Convenio Europeo
para la proteccioacuten de los derechos humanos es aplicable a los procesos relacionados con sanciones tributarias administrativasrdquo ndash Cf FLORES
Joaquiacuten Gallegos ndash El deber formal de colaborar con la Administracioacuten tributaria y su colisioacuten con los derechos fundamentales de no
autoincriminacioacuten y presuncioacuten de inocencia Revista del Instituto de la Judicatura Federal Nordm22 (2006) p72
153
preventiva ou dissuasora e repressiva464 Por isso independentemente do ldquoroacutetulordquo que lhe eacute
atribuiacutedo no direito interno (infraccedilatildeo disciplinar contraordenacional ou criminal) o importante eacute
que a infraccedilatildeo tenha ldquonatureza penalrdquo seja pela qualificaccedilatildeo que lhe eacute atribuiacuteda seja pela
gravidade da pena que lhe estaacute associada seja pelos interesses que com ela se pretendem
acautelar ou pelos objetivos preventivos eou repressivos visados465
Entendem VAcircNIA COSTA RAMOS e AUGUSTO SILVA DIAS que consequecircncia imediata deste
entendimento eacute que o princiacutepio natildeo vigora fora do quadro juriacutedico sancionatoacuterio466
Concluiacutemos da jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e no que
concerne agrave aplicaccedilatildeo do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo na possibilidade de antecipaccedilatildeo do
processo sancionador a que pudesse servir a informaccedilatildeo obtida pelas autoridades que esta
instacircncia judicial distingue os casos em que o destinataacuterio dos poderes coercivos para obtenccedilatildeo
de material probatoacuterio eacute suspeito da praacutetica de certa infraccedilatildeo dos casos em que essa suspeita
ainda natildeo existe Todavia existindo ou inexistindo suspeita a verdade eacute que num juiacutezo de
prognose a informaccedilatildeo a prestar poderaacute ser potencialmente autoincriminatoacuteria
Em suma tendo por base a origem histoacuterica do nemo tenetur se ipsum accusare
facilmente se associa o princiacutepio ao direito penal todavia tal como outras garantias e direitos
rege atualmente todo o direito sancionatoacuterio em especial o Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
Tal justifica-se pelo facto de hoje assistirmos agrave cominaccedilatildeo de coimas de montantes elevados que
podem provocar a asfixia econoacutemica de empresas e indiviacuteduos altamente restritivas de direitos
patrimoniais e tambeacutem porque as garantias constitucionais em que o nemo tenetur se ampara
satildeo aplicaacuteveis com as devidas adaptaccedilotildees ao direito das contraordenaccedilotildees (art32ordm nordm10 da
CRP)467
Diferentemente eacute o caso da invocaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare em inspeccedilatildeo
tributaacuteria Como referimos a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento administrativo
sancionatoacuterio muito embora nada impeccedila que nela se verifiquem irregularidades tributaacuterias e se
abra caminho agrave preparaccedilatildeo dos respetivos mecanismos sancionatoacuterios contraordenacionais
464 Cf Paragraph 47 ldquo[hellip] secondly the tax surcharges are intended not as pecuniary compensation for damage but essentially as a punishment
to deter reoffending Thirdly they are imposed under a general rule whose purpose is both deterrent and punitive [hellip]rdquo
465 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp139-140
466 Cf Op cit p22
467 DIAS Augusto Silva ndash O direito agrave natildeo auto-incriminaccedilatildeo no acircmbito das contra-ordenaccedilotildees do coacutedigo dos valores mobiliaacuterios Revista de
concorrecircncia e regulaccedilatildeo Ano I nordm1 (janeiro-marccedilo 2010) p244
154
eou penais (regulados essencialmente no RGIT) ndash estes uacuteltimos sob a alccedilada e aplicaccedilatildeo do
nemo tenetur se ipsum accusare Aquilo que colocamos em questatildeo neste momento eacute saber se
exemplificativamente os destinataacuterios dos deveres de cooperaccedilatildeo quando chamados a cumpri-
los junto de autoridades administrativas competentes para assegurar o regular funcionamento de
determinadas operaccedilotildees podem frustrar-se a esse cumprimento com justificativa no nemo
tenetur se ipsum accusare dito de outra forma vigora em inspeccedilatildeo tributaacuterio o nemo tenetur
31 Suscetibilidade de invocaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur se ipsum accusare em
inspeccedilatildeo tributaacuteria
A inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute caraterizada pela imposiccedilatildeo de diversos deveres de cooperaccedilatildeo
quer agrave entidade inspecionada quer agrave entidade inspetora Esses deveres de cooperaccedilatildeo
assumem-se sob diversas formas e acircmbitos podendo implicar do ponto de vista do sujeito
passivo ou demais obrigados tributaacuterios inspecionados a solicitaccedilatildeo de informaccedilotildees ou
documentos ou do ponto de vista da entidade inspetiva administraccedilatildeo tributaacuteria o
esclarecimento de duacutevidas sobre eventuais questotildees suscitadas pelos sujeitos passivos
Natildeo raras vezes como ao longo da monografia temos advertido do cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo pelo sujeitos inspecionados surgem tensotildees com o princiacutepio e garantia
processual constitucionalmente consagrada do nemo tenetur se ipsum accusare Poderaacute o
contribuinte invocar o nemo tenetur ainda no acircmbito da inspeccedilatildeo tributaacuteria de modo a
desobrigar-se de entregar e apresentar agrave AT as informaccedilotildees e documentos solicitados sempre
que tal facto possa levar ou contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo ou seja a instauraccedilatildeo de um
processo ou procedimento sancionatoacuterio
Estaacute aqui patente a tensatildeo existente entre a obrigaccedilatildeo legal de cumprir com os deveres de
colaboraccedilatildeo impostos e o direito de cada indiviacuteduo a abster-se a colaborar para a proacutepria
incriminaccedilatildeo O aparente conflito de interesse e valores juriacutedicos em causa torna-se mais visiacutevel
se tivermos em atenccedilatildeo que ambas as realidades gozam de assento constitucional
O nemo tenetur se ipsum accusare foi enquadrado como direito constitucional natildeo escrito
corolaacuterio do direito ao processo equitativo do princiacutepio da dignidade da pessoa humana da
presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantia processuais penais que a Constituiccedilatildeo estabelece
155
(art32ordm) Contudo resulta do art16ordm da Lei Fundamental que o cataacutelogo dos direitos nela
consagrados eacute um cataacutelogo aberto ou de natildeo tipicidade ndash os direitos fundamentais natildeo se
exaurem nos dispositivos da Constituiccedilatildeo468 pois natildeo se excluem outros constantes das leis e
regras aplicaacuteveis de direito internacional Assim estando o nemo tenetur inserido e mencionado
no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Poliacuteticos natildeo pode ser questionada a sua inserccedilatildeo na
Constituiccedilatildeo Portuguesa469
Numa primeira abordagem pode suscitar-se no entendimento do inteacuterprete que apenas o
nemo tenetur goza de acolhimento constitucional e ordinaacuterio remetendo o dever de colaboraccedilatildeo
a uma consagraccedilatildeo somente legal ordinaacuteria e que este facto seja por si soacute suficiente para
determinar a prevalecircncia de um face ao outro (interesse maior com assento constitucional face
ao interesse menor que apenas goza de menccedilatildeo infraconstitucional) Todavia mesmo que
assim fosse tal natildeo seria suficiente para atendendo agraves regras e princiacutepios associados agrave colisatildeo
de interesses que analisaacutemos em momento anterior fundamentar o
aniquilamentodesconsideraccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo e tudo o que eacute e foi obtido atraveacutes
dele Mas natildeo se procede dessa forma
Tal como o nemo tenetur o dever de colaboraccedilatildeo comporta fundamentos constitucionais
Uma anaacutelise mais aprofundada levar-nos-aacute a concluir que o dever de colaboraccedilatildeo eacute um veiacuteculo
para a realizaccedilatildeo do dever de pagamento de impostos Assume-se como corolaacuterio do dever de
contribuir para a captaccedilatildeo dos meios financeiros necessaacuterios ao desenvolvimento econoacutemico e
social (art101ordm CRP) e assume uma enorme relevacircncia quer na fase de determinaccedilatildeo da
mateacuteria coletaacutevel uma vez que grande parte do sistema fiscal assenta em deveres declarativos
dos sujeitos passivos e demais obrigados tributaacuterios quer posteriormente ao niacutevel da
comprovaccedilatildeo dos elementos declarados470 A Constituiccedilatildeo consagra ao lado das garantias
processuais penais garantias de deveres em mateacuteria de impostos Nesse sentido encontramos
468 MIRANDA JorgeMEDEIROS Rui op cit p138 ndash ldquonatildeo se trata obviamente de elevar a direitos fundamentais todos os direitos provenientes
de outras fontes Trata-se apenas de entre estes reconhecer alguns que pela sua fundamentalidade pela conexatildeo com direitos fundamentais
formais pela sua natureza anaacuteloga (cfr artigo 17ordm) ou pela sua decorrecircncia imediata de princiacutepios constitucionais se situem ao niacutevel da
Constituiccedilatildeo materialrdquo
469 Cf CANOTILHO JJ Gomes MOREIRA Vital op cit pp365-366
470 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp125-126 GAMA Antoacutenio ndash Investigaccedilatildeo na criminalidade tributaacuteria e a prova Especificidades na recolha da
prova e a sua valoraccedilatildeo em julgamento Dever de colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio versus direito ao silecircncio do arguido In CEJ ndash Curso de
Especializaccedilatildeo Temas de Direito Fiscal Penal [em linha] (2013) pp336-338 Disponiacutevel em httpwwwcejmjpt
156
um dever constitucional de pagar imposto dever que implica um facere a cooperaccedilatildeo do
contribuinte na apresentaccedilatildeo das suas declaraccedilotildees
Como se pode epilogar tanto o dever de colaboraccedilatildeo como o nemo tenetur encontram
assento constitucional pelo que cremos ser bastante redutor dirimir este aparente conflito
atraveacutes da prevalecircncia irrestrita do direito em prejuiacutezo do dever A resoluccedilatildeo passa pela concreta
e justa ponderaccedilatildeo dos interesses envolvidos
Numa resposta antecipada e sucinta defendemos que o nemo tenetur natildeo opera quando
os destinataacuterios de deveres de colaboraccedilatildeo satildeo chamados a cumpri-los pelas autoridades
administrativas competentes para assegurar o funcionamento de determinadas operaccedilotildees ou
atividades Assim natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar dos
cumprimentos dos respetivos deveres de colaboraccedilatildeo como por exemplo a entrega de
documentos fiscalmente relevantes471
Subjacente agrave imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo estaacute a prossecuccedilatildeo e salvaguarda de
direitos e interesses constitucionalmente protegidos ndash como eacute a cobranccedila de impostos da qual
depende a promoccedilatildeo do bem-estar qualidade de vida a satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas
comunitaacuterias pelo Estado a contribuiccedilatildeo igualitaacuteria para os gastos puacuteblicos o combate agrave fraude
e evasatildeo tributaacuterias Ora este interesse puacuteblico entra por vezes em colisatildeo com as garantias dos
cidadatildeos-contribuintes e especialmente as que temos mencionado ao longo da monografia A
doutrina portuguesa tem acolhido a conceccedilatildeo de DWORKIN e de ALEXY472 a propoacutesito da colisatildeo de
interesses e princiacutepios segundo a qual perante esse conflito a soluccedilatildeo resumir-se-aacute implicando
uma aplicaccedilatildeo de todos os interesses agrave compatibilizaccedilatildeo ou concordacircncia praacutetica dos
interessesprinciacutepios colidentes harmonizando-os entre si na situaccedilatildeo concreta ao inveacutes da
prevalecircncia de um em detrimento da desconsideraccedilatildeo total de outro Todavia quando um
princiacutepio direito ou garantia eacute superior a outro de acordo com criteacuterios de relevacircncia
471 Cf DIAS Augusto Silva op cit p245 MACHADO Joacutenatas EMRAPOSO Vera op cit p42 ndash ldquoQuando se trata apenas de procedimentos
normais (vg tributaacuterios) de verificaccedilatildeo da observacircncia das normas legais pertinentes por parte do investigado ndash ainda que com sanccedilotildees pela
falta de cooperaccedilatildeo ndash sem qualquer intenccedilatildeo de responsabilizaccedilatildeo ou sanccedilatildeo natildeo haacute que aplicar as garantias do artigo 6ordm da CEDH
Diferentemente tudo indica que a alteraccedilatildeo do objectivo predominante de regulatoacuterio para sancionatoacuterio possa ter algumas consequecircncias do
ponto de vista da auto-incriminaccedilatildeo [hellip] Ou seja sempre que se esteja perante um procedimento preponderantemente sancionatoacuterio na
sequecircncia de uma notificaccedilatildeo de uma infraccedilatildeo deve aplicar-se as garantias do artigo 6ordm da CEDHrdquo
472 Ver supra ldquo41 Acircmbitos de validade do nemo tenetur se ipsum accusare validade temporal validade normativa e validade materialrdquo
157
constitucional e natildeo eacute possiacutevel na situaccedilatildeo concreta salvaguardar alguns aspetos do princiacutepio
inferior nesse caso eacute permitido o sacrifiacutecio deste uacuteltimo
A infraccedilatildeo penal fiscal pode ser constatada no decurso do procedimento tributaacuterio de
inspeccedilatildeo e nesse caso estaratildeo em tensatildeo o dever de colaboraccedilatildeo do contribuinte para efeitos
do controlo fiscal e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para efeitos processuais penais Recorrendo
agrave teoria da colisatildeo de direitos apresentada haveraacute que comprimir cada um deles isto eacute
harmonizar ateacute que o nuacutecleo central de ambos possa subsistir ou se tal natildeo for possiacutevel optar
pela prevalecircncia de um ndash natildeo descurando o pensamento jaacute defendido de que a imposiccedilatildeo
forccedilada de fornecer prova e de assim contribuir para a autoincriminaccedilatildeo pela compressatildeo que
acarreta ao niacutevel dos direitos agrave integridade pessoal agrave dignidade humana agrave privacidade e agrave
presunccedilatildeo da inocecircncia apenas se justificaraacute se do seu lado estiverem em causa interesses
direitos princiacutepios ou garantias de valor social e constitucional prevalecentes473
Sob este ponto de vista existe quem advogue a aplicabilidade do nemo tenetur no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria474 Sinteticamente embora se reconheccedila o caraacuteter natildeo
sancionatoacuterio do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o facto de existir a possibilidade de
utilizaccedilatildeo num procedimento ou processo sancionatoacuterio posterior de todas as provas obtidas ao
abrigo da colaboraccedilatildeo exigida em inspeccedilatildeo surge a necessidade de se antecipar a vigecircncia do
princiacutepio para o momento em que a prova eacute alcanccedilada Em boa verdade se se natildeo impedir a
utilizaccedilatildeo das provas autoincriminatoacuterias coativamente obtidas na inspeccedilatildeo tributaacuteria a validade
e relevacircncia do nemo tenetur no processo ou procedimento sancionatoacuterio subsequente eacute
diminuta ou inuacutetil Face a esta inevitaacutevel colisatildeo de direitos e deveres a ponderaccedilatildeo de valores
que necessariamente se efetuaraacute deve ter como resultado a primazia do direito a natildeo contribuir
para a proacutepria incriminaccedilatildeo Conclusivamente sempre que o sujeito alvo de inspeccedilatildeo fosse
obrigado a fornecer elementos probatoacuterios que apresentam simultaneamente natureza
tributaacuteria e autoincriminatoacuteria este poderia recusar a fornececirc-los Sustentam esta posiccedilatildeo nas
decisotildees do TEDH nos afamados casos Funke e Saunders e na semelhanccedila entre o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e um procedimento sancionatoacuterio ndash o primeiro natildeo tanto
473 Cf SAacute Liliana da Silva op cit p146 DIAS Augusto da SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p25
474 ESCRIBANO LOacutePEZ Francisco ndash El procedimiento tributario tras la reforma de la LGT Revista Quincena Fiscal nordm10 (1996) pp9-22 LUNA
RODRIacuteGUEZ Rafael ndash El Derecho a no autoinculpacioacuten en el ordenamiento tributario espantildeol Madrid Universidad Complutense de Madrid
2002 Dissertaccedilatildeo de Doutoramento pp273 e ss
158
com finalidades liquidatoacuterias mas e sobretudo com finalidades de poliacutecia fiscal dirigida agrave
fiscalizaccedilatildeo e investigaccedilatildeo dos factos tributaacuterios
O problema de uma tese como a mencionada reconduz-se ao argumento de que tal como
o nemo tenetur tambeacutem o dever de colaboraccedilatildeo conteacutem suporte constitucional Uma posiccedilatildeo
como esta acaba em uacuteltima instacircncia por aniquilar o dever de colaboraccedilatildeo em inspeccedilatildeo
tributaacuteria o que muitas das vezes tornaria a atividade da AT extremamente complexa ndash isto eacute
natildeo se pode ignorar nem descurar a relevacircncia no paradigma da gestatildeo fiscal atual a validade e
a conformidade constitucional do dever de cooperaccedilatildeo O dever de colaboraccedilatildeo desempenha
uma importacircncia extrema nas tarefas incumbidas agrave AT de modo que a resoluccedilatildeo deste conflito
natildeo pode passar por uma soluccedilatildeo tatildeo radical e linear475
Como salienta RAFAEL LUNA RODRIGUEZ esta tese apresenta vaacuterias nuances entre as quais
destacamos a posiccedilatildeo mista apresentada por PALOA TABOADA476 que admitindo a vigecircncia e
manutenccedilatildeo do cumprimento coativo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a respetiva puniccedilatildeo em caso
de incumprimento apenas defende que estes deveres cessariam quando existe o risco de
autoincriminaccedilatildeo (caso em que o incumprimento jaacute natildeo deveria ser sancionado) Seria o proacuteprio
contribuinte que se poderia recusar ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ndash ficava agrave
circunstacircncia e apreciaccedilatildeo do contribuinte a realizaccedilatildeo deste juiacutezo de autoincriminaccedilatildeo o
contribuinte dispunha do procedimento Por outro lado a partir do momento que surgissem
indiacutecios de infraccedilatildeo ou delito ou as atuaccedilotildees da AT pretendessem a comprovaccedilatildeo dos
elementos constitutivos da dita infraccedilatildeo o contribuinte deveria ser advertido do seu direito a natildeo
colaborar
475 Cf RODRIGUEZ Rafael Luna op cit p 277 ndash ldquoPor otro lado la postura mayoritaria que ahora analizamos tiene como argumento principal de
criacutetica el hecho de que al permitir al ciudadano no colaborar con la Administracioacuten Tributaria admitiendo el derecho a no auto incriminarse
desde el procedimiento de inspeccioacuten podriacutea devenir en la imposibilidad o al menos mayor complicacioacuten para verificar la situacioacuten tributaria del
contribuyente y con ello vulnerarse el deber de contribuir al sostenimiento de los gastos puacuteblico es decir el intereacutes fiscalrdquo
Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm 15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de 2013 relatado pelo Desembargador Ernesto
Nascimento disponiacutevel em (link) [em linha] httpwwwdgsipt ldquoA imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo visa a salvaguarda de direitos e
interesses constitucionalmente protegidos Essa restriccedilatildeo eacute necessaacuteria para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos e natildeo diminui a extensatildeo e o alcance do conteuacutedo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silecircncio Do dever de
colaboraccedilatildeo depende a cobranccedila de impostos Eacute com essa receita que o Estado ldquopromove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a
igualdade real entre os portugueses bem como a efectivaccedilatildeo dos direitos econoacutemicos sociais culturais e ambientais mediante a transformaccedilatildeo
e modernizaccedilatildeo das estruturas econoacutemicas e sociais tarefas fundamentais do Estadordquo al d) do artigo 9ordm da CRP Eacute com a receita dos impostos
que o Estado al b) do artigo 81ordm ldquopromove a justiccedila social assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessaacuterias correcccedilotildees das
desigualdades na distribuiccedilatildeo da riqueza e do rendimentordquo
476 PALOA TABOADA Carlos - Lo blando y lo duro del Proyecto de Ley de derechos y garantiacuteas de los contribuyentes Estudios financieros -
Revista de contabilidad y tributacioacuten Nordm171 (junio 1997) pp 7-10
159
Cremos tal como RAFAEL LUNA RODRIGUEZ477 que as teses que advogam uma antecipaccedilatildeo
do direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo acarretam diversas complicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas Desde
logo colocar nas matildeos do contribuinte o poder de discernir qual o momento em que a
informaccedilatildeo fornecida poderaacute ser autoincriminadora revela-se extremamente complicado e
transforma o dever de colaboraccedilatildeo numa realidade inoacutecua irrelevante ndash paradigma que como jaacute
se constatou eacute constitucionalmente desadequado Pensemos no indiviacuteduo que tenha cometido
infraccedilotildees ou iliacutecitos tributaacuterios Se este pode negar-se a colaborar desde o momento que surge o
risco de incriminaccedilatildeo e o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo natildeo pode (nessas
circunstacircncias) ser sancionado entatildeo poderaacute recusar-se a colaborar mal lhe seja solicitada
qualquer informaccedilatildeo ndash perguntar-se-aacute entatildeo que efetividade tem nestes casos a imposiccedilatildeo de
deveres de cooperaccedilatildeo e a respetiva cominaccedilatildeo em sanccedilotildees Existiria um dever de colaborar e
um direito a natildeo colaborar e o acircmbito de exerciacutecio do direito ou do dever estaria ao criteacuterio do
contribuinte (era ele que decidia quando estava presente diante da autoincriminaccedilatildeo) ndash
consequentemente na praacutetica verificar-se-ia a inexistecircncia do dever de colaboraccedilatildeo
Por uacuteltimo uma posiccedilatildeo como a referida que implica um sistema de advertecircncia ao
suspeito do seu direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo quando existem indiacutecios de infraccedilotildees ou delitos
tributaacuterios acarreta sempre problemas e inconveniecircncias de abuso procedimental Em primeiro
lugar existe ainda que de modo involuntaacuterio ou instintivo o interesse por parte da AT (dos
funcionaacuterios que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria) em natildeo o fazer e em segundo lugar eacute bastante
complicado determinar quando os agentes da inspeccedilatildeo tributaacuteria tomaram verdadeiramente
conhecimento de uma suspeita razoaacutevel da praacutetica do iliacutecito tributaacuterio Ou seja muito embora
exista uma presunccedilatildeo de atuaccedilatildeo em boa-feacute da AT (art59ordm nordm2 da LGT) seraacute difiacutecil determinar
do se e do quando a AT tomou conhecimento da suspeita ou da convicccedilatildeo da praacutetica do iliacutecito
tributaacuterio e com isso atrasou deliberadamente a advertecircncia ao contribuinte do seu direito agrave
natildeo autoincriminaccedilatildeo de maneira a este natildeo evitar a sua atuaccedilatildeo com a recusa em colaborar
Face ao exposto tendemos a reconduzir o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo ao acircmbito a que
ele geneticamente pertence ao punitivo isto eacute ao procedimento para a imposiccedilatildeo de
477 Op cit pp276 e 284
160
contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal478 ndash recusamos assim a aplicabilidade do
nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
Contudo natildeo descuramos o seguinte problema tendo em conta a possiacutevel utilizaccedilatildeo
penal dos materiais probatoacuterios coativamente fornecidos em inspeccedilatildeo tributaacuteria tudo apontaria
para uma defesa da necessidade de as atuaccedilotildees do dito procedimento tributaacuterio natildeo implicarem
a autoincriminaccedilatildeo e tal passaria agrave partida pelo reconhecimento do nemo tenetur em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ndash se o problema reside na obtenccedilatildeo de prova autoincriminatoacuteria teriacuteamos de prevenir
esse mesma obtenccedilatildeo (aceitar que nemo tenetur trespasse o limite do procedimento ou
processo sancionador e seja encarado como um direito do obrigado tributaacuterio a ser exercido em
inspeccedilatildeo)
Todavia na ponderaccedilatildeo concreta e na concordacircncia praacutetica pensamos ser desnecessaacuterio
estender o referido direito ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria Remetemos a vigecircncia do
nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe corresponde ao punitivo isto eacute ao procedimento
para imposiccedilatildeo de contraordenaccedilotildees tributaacuterias ou ao processo penal Consequentemente as
atuaccedilotildees tiacutepicas do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se veriam afetadas ou dificultadas
pelo exerciacutecio deste direito mas natildeo se admite com isso a utilizaccedilatildeo em processo penal das
informaccedilotildees autoincriminadoras coativamente recolhidas no procedimento tributaacuterio479
Alguma parte da doutrina que defende a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria admite como decorrecircncia a utilizaccedilatildeo no
processo penal da prova fornecida coativamente pelo contribuinte em inspeccedilatildeo tributaacuteria
ficando o contribuinte obrigado a fornecer todos os materiais solicitados pela AT (natildeo havendo
qualquer desconformidade constitucional nas normas que preveem sanccedilotildees para o
incumprimento do dever de cooperaccedilatildeo)480
478 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria
y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
479 Idem Ibidem - ldquoNo olvidemos que tanto la potestad para imponer sanciones tributarias a los infractores como la potestad para castigar
penalmente a los delincuentes son ambas manifestacioacuten del ius puniendi del Estado Y puesto que ello es asiacute el derecho a no auto incriminarse
debe reconocerse en el aacutembito administrativo sancionador y tributario sancionador en particular no soacutelo en el proceso penalrdquo ndash excluindo-se
assim a inspeccedilatildeo tributaacuteria do acircmbito normativo do direito face agrave inexistecircncia de uma matriz sancionatoacuteria
480 BAYONA DE PEROGORDO Juan Joseacute ndash El Proceso sancionador Revista Informacioacuten Fiscal Nordm16 (julio-Agosto 1996) pp22-23 LUNA
RODRIGUEZ Rafael op cit p270
161
Muito embora exista quem efetue esta ligaccedilatildeo de ideias cremos que o facto de se
defender a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare no procedimento de inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo faz com que seja obrigatoacuterio e logicamente dedutiacutevel a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre este procedimento tributaacuterio e o processo penal como manifestaccedilatildeo dessa
inaplicabilidade Por esse motivo temo-nos referido ao longo da monografia a um ldquoaparenterdquo
conflito entre o nemo tenetur se ipsum accusare e o dever de colaboraccedilatildeo embora sigamos pela
tese da inaplicabilidade do nemo tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo aceitamos
a intercomunicabilidade probatoacuteria defendemos antes uma separaccedilatildeo efetiva entre processo
penal e procedimento tributaacuterio para que os elementos probatoacuterios incriminadores coativamente
fornecidos na inspeccedilatildeo natildeo possam ser utilizados no acircmbito do processo penal481
Retomando a anaacutelise da posiccedilatildeo que reitera a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo
nordm3402013 considerou ser relevante analisar a extensatildeo do nemo tenetur para fora do
processo penal embora a proteccedilatildeo conferida por este princiacutepio tenda a relativizar-se cedendo
mais facilmente no confronto com outros princiacutepios direitos ou interesses merecedores de
tutela que tecircm de ser harmonizados em concreto Apoacutes constatar que a inspeccedilatildeo tributaacuteria com
a imposiccedilatildeo de deveres de colaboraccedilatildeo que a caracterizam constitui uma restriccedilatildeo ao nemo
tenetur o Tribunal Constitucional verificou se essa restriccedilatildeo eacute ou natildeo constitucionalmente
aceitaacutevel segundo os pressupostos do art18ordm nordm2 da CRP482 concluindo pela verificaccedilatildeo dos
pressupostos e pelo entendimento de que o contribuinte natildeo soacute estaacute impedido de invocar o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo para se desonerar da entrega e prestaccedilatildeo de
informaccedilotildeesdocumentos solicitados pela AT como tais documentos podem ainda ser usados
contra o contribuinte inspecionado num subsequente processo de natureza sancionatoacuteria penal
ndash consideraccedilatildeo que acolhe bastante defensores na jurisprudecircncia portuguesa483
Entendeu esta instacircncia judicial que o papel preponderante desempenhado pelos deveres
de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal no plano da fiscalizaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees
fiscais eacute encarado como uma restriccedilatildeo necessaacuteria ao nemo tenetur ldquono sentido de evitar que
481 Este tem sido o entendimento compaginado pelo TEDH nos diversos acoacuterdatildeos realizados sobretudo caso Saunders e Funke
482 Relembrando as restriccedilotildees estarem previstas em lei preacutevia e expressa (por forma a respeitar o princiacutepio da legalidade) e obedecerem agraves
exigecircncias de proporcionalidade tendo como finalidade a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos
483 Cf Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 97060IDBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 relatado pelo Desembargador
Antoacutenio Condesso processo nordm 191707-1 de 29 de janeiro de 2007 relator Desembargador Cruz Bucho processo nordm 82059IDBRG G1 de
12 de marccedilo de 2012 relator Desembargadora Ana Teixeira e Silva todos disponiacuteveis em httpwwwdgsipt (link) [em linha]
162
aquela superior e puacuteblica finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida Ou seja tais
restriccedilotildees estatildeo previstas no quadro das funccedilotildees exercidas pela administraccedilatildeo tributaacuteria
destinadas ao apuramento da situaccedilatildeo tributaacuteria dos contribuintes sendo que natildeo se poderaacute
deixar de reconhecer a importacircncia e necessidade dessa fiscalizaccedilatildeo sendo imprescindiacutevel quer
a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo aos contribuintes quer a possibilidade da posterior
utilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificaccedilatildeo de
indiacutecios de infraccedilatildeo criminalrdquo484 ndash a necessidade de imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo como
veiacuteculo imprescindiacutevel para a cobranccedila de impostos e prossecuccedilatildeo de todas as finalidades
comunitaacuterias asseguradas pelas receitas tributaacuterias apresenta-se como um interesse
prevalecente que no acircmbito da colisatildeo de direitos ou princiacutepios justifica a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur Em suma o Tribunal Constitucional assume posiccedilatildeo no sentido da inaplicabilidade do
princiacutepio ao procedimento tributaacuterio em causa e da aceitaccedilatildeo da intercomunicabilidade
probatoacuteria485
Atendendo ao contexto histoacuterico e juriacutedico que despoletou o aparecimento do nemo
tenetur se ipsum accusare consideramos que a sua vigecircncia apenas se deve confinar aos
processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi486 Esta realidade
torna-se mais facilmente percetiacutevel se considerarmos que tanto o processo penal como o
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria desempenham objetivos e finalidades distintas A inspeccedilatildeo
tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio tem como finalidades a observaccedilatildeo das
realidades tributaacuterias a verificaccedilatildeo do cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias e a prevenccedilatildeo das
infraccedilotildees tributaacuterias Estritamente proacutexima dos processos e procedimentos sancionatoacuterios ndash
considerando-se uma ldquoberccedilordquo487 dos mesmos pois eacute na inspeccedilatildeo tributaacuteria que muitas das
infraccedilotildees tributaacuterias se podem revelar ndash a inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo faz parte do ius puniendi
estadual pois que natildeo tem como objetivo o sancionamento de infraccedilotildees da mesma forma que
natildeo seraacute exigiacutevel que num processo ou procedimento que visa a puniccedilatildeo de determinado
comportamento do sujeito exigir que este uacuteltimo colabore autoincriminando-se Assumindo
484 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
485 No mesmo sentido mas sob o paradigma regulatoacuterio da CMVM ver PINTO Frederico Costa op cit (parecer) pp106 e ss ndash ldquoEm suma [hellip]
todos os elementos recolhidos apontam no sentido de ser perfeitamente legal integrar num processo sancionatoacuterio documentos entregues pelo
arguido em momento anterior ao abrigo de deveres de colaboraccedilatildeo que visam corresponder a solicitaccedilotildees realizadas com prerrogativas ou
poderes de supervisatildeordquo (p110)
486 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p284
487 Cf MARQUES Paulo op cit pp169 e ss
163
finalidades distintas satildeo tambeacutem distintos os princiacutepios que enformam cada um em especial
em inspeccedilatildeo tributaacuteria devem vigorar princiacutepios de cooperaccedilatildeo verdade material
proporcionalidade prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico e contraditoacuterio ao inveacutes do processo penal
onde de entre outros princiacutepios orientadores avoca especial relevo o estatuto de arguido
enquanto sujeito processual a presunccedilatildeo da inocecircncia o direito ao processo equitativo o direito
ao silecircncio e a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo488
Em virtude de todos os argumentos invocados a propoacutesito da inaplicabilidade do nemo
tenetur ao procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria cremos que a soluccedilatildeo teraacute obrigatoriamente de
passar por um equiliacutebrio entre o dever de colaboraccedilatildeo e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
Defendemos a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo em mateacuteria tributaacuteria ndash satildeo elementos
fulcrais e restriccedilotildees legiacutetimas e proporcionais ao nemo tenetur para a viabilidade de todo o
sistema fiscal489 Ademais a natureza da inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo se compagina com o exerciacutecio
de direitos e garantias de defesa tiacutepicas de processos ou procedimentos sancionatoacuterios Todavia
a manutenccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo e a inaplicabilidade do nemo tenetur se ipsum
accusare em inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo resolvem em nada o problema que nos propusemos
solucionar se existe uma identidade entre as entidades que realizam a inspeccedilatildeo tributaacuteria e as
que tecircm competecircncias de inqueacuterito no processo penal tributaacuterio (podem natildeo ser os mesmo
funcionaacuterios ou os mesmo oacutergatildeos mas acabam por ser as mesmas entidades puacuteblicas) e se agrave
partida nada obsta agrave plena comunicaccedilatildeo de informaccedilatildeo entre procedimento inspetor e processo
penal (a imposiccedilatildeo de deveres de cooperaccedilatildeo eacute considerada uma restriccedilatildeo proporcional e
constitucional admissiacutevel ao nemo tenetur) em bom rigor o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do
sujeito natildeo estaacute a ser perfeitamente assegurado A soluccedilatildeo teraacute de passar como adiante
veremos pela efetiva separaccedilatildeo processual
Consideramos tal como ALBERTO SANZ DIacuteAZ-PALACIOS490 que eacute facilmente admissiacutevel a
colaboraccedilatildeo do obrigado tributaacuterio com a inspeccedilatildeo sem a possibilidade de invocar o direito a
natildeo se autoinculpar Poreacutem como existe a possibilidade de transmissatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora fornecida pelo obrigado tributaacuterio sob coaccedilatildeo para o processo sancionatoacuterio
poder-se-ia justificar uma reforma normativa que permitisse ao sujeito negar-se a colaborar com
a inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando os seus direitos fundamentais agrave presunccedilatildeo da inocecircncia e
488 Cf PALOA TABOADA Carlos op cit p27
489 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz ndash Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica Madrid Editorial Colex 2004 p208
490 Idem ibidem pp209 e ss
164
agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo O mesmo autor acaba por rejeitar uma posiccedilatildeo como esta preferindo a
manutenccedilatildeo da configuraccedilatildeo atual do dever de colaboraccedilatildeo e ldquoy negar virtualidad sancionadora
al material obtenido en las declaraciones autoinculpatorias realizadas coactivamente por el
sujeto en dicho procedimientordquo Cremos que o que resulta iliacutecito e constitucionalmente
inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade
diferente daquela que gerou precisamente a sua razatildeo de ser a informaccedilatildeo foi obtida para a
correta liquidaccedilatildeo dos tributos e estaacute a ser utilizada para incriminar quem a forneceu Manter a
comunicabilidade da informaccedilatildeo entre procedimentos e antecipar o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo aleacutem de ter grandes complicaccedilotildees praacuteticas e teacutecnicas soacute significa perpetuar a
praacutetica abusiva que gerou o problema ndash seraacute sempre preferiacutevel eliminar essa comunicabilidade
entre procedimentos de inspeccedilatildeo e processos sancionatoacuterios do que antecipar a vigecircncia do
nemo tenetur para a inspeccedilatildeo tributaacuteria
4 A intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo
penal
A questatildeo que agora nos propomos tratar prende-se com a possibilidade de se utilizar em
processo penal tributaacuterio a informaccedilatildeo ou documentos autoincriminatoacuterios fornecidos pelo
sujeito sob a cominaccedilatildeo de sanccedilotildees juriacutedicas no acircmbito de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo do
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo Poderaacute o Ministeacuterio Puacuteblico no acircmbito de um
inqueacuterito criminal lanccedilar matildeo de documentos ou declaraccedilotildees obtidos licitamente em inspeccedilatildeo
tributaacuteria ao abrigo do dever de cooperaccedilatildeo que impende sobre o contribuinte Trata-se de uma
questatildeo de intercomunicabilidade probatoacuteria491
Resulta claro que o nemo tenetur se ipsum accusare e seus corolaacuterios vivem em
constante tensatildeo com o dever de cooperaccedilatildeo do contribuinte para efeitos de tributaccedilatildeo e
controlo da tributaccedilatildeo Efetivamente a infraccedilatildeo pode ser detetada no decurso do procedimento
de fiscalizaccedilatildeo e nesse caso incide sobre os funcionaacuterios da administraccedilatildeo tributaacuteria o dever de
comunicar o crime ao oacutergatildeo da administraccedilatildeo com competecircncia delegada para o inqueacuterito
491 Cf ldquo[hellip] a suscetibilidade de utilizaccedilatildeo num meio de investigatoacuterio de provas [rectius de meios de prova declaraccedilotildees documentos
pareceres] obtidas no decurso de um outro anteriorrdquo ndash ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp101
e ss
165
(art35ordm do RGIT) Ademais cabe agrave mesma Administraccedilatildeo no decurso do procedimento de
fiscalizaccedilatildeo o poder de exigir a colaboraccedilatildeo e intimar o contribuinte a prestar informaccedilotildees e
tambeacutem o direito de instaurar o processo penal para a averiguaccedilatildeo do crime fiscal decidindo
inclusive sobre o momento de o fazer devendo apenas participar tal ocorrecircncia ao Ministeacuterio
Puacuteblico ndash ldquoe satildeo precisamente os mesmos funcionaacuterios que interrogam o contribuinte e lhe
solicitaram os elementos informativos sob pena de tributaccedilatildeo por meacutetodos indiciaacuterios e de
instauraccedilatildeo de processo de contraordenaccedilatildeo por falta de cooperaccedilatildeo que por sua vez tecircm o
poder de simultaneamente instaurarem os processos de averiguaccedilotildees aproveitando-se
eventualmente das informaccedilotildees obtidas e prestadas por ele em violaccedilatildeo das garantias do direito
ao silecircncio do arguido em processo penalrdquo492
Natildeo existe uma demarcaccedilatildeo precisa e exata entre o procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e o processo sancionatoacuterio pois quando o sujeito adquire todos os direitos e
garantias tiacutepicas do estatuto processual penal de arguido pode jaacute ter sido coagido a fornecer
informaccedilotildees autoincriminadoras num procedimento administrativo de controlo anterior Ateacute que
ponto estatildeo nestas circunstacircncias salvaguardas as exigecircncias constitucionais do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e do nemo tenetur
O debate juriacutedico tem-se centrado em torno de consideraccedilotildees e argumentos bipolares que
circundam em torno de teses de rejeiccedilatildeo liminar ou de admissibilidade dessa
intercomunicabilidade probatoacuteria
A tese da admissibilidade coloca o acento toacutenico nos argumentos de que o nemo tenetur
se ipsum accusare natildeo eacute um valor ou princiacutepio absoluto admitindo restriccedilotildees legalmente
impostas e constitucionalmente admissiacuteveis os elementos probatoacuterios adquiridos em inspeccedilatildeo
tributaacuteria mesmo que natildeo obedeccedilam agraves exigecircncias de obtenccedilatildeo de prova em processo criminal
natildeo constituem prova proibida nos termos do art126ordm do CPP (de resto advogam que ateacute foram
recolhidas de modo legiacutetimo por entidades com competecircncia para tal ndash a AT ndash e no plano de
uma atividade juridicamente enquadrada sob observacircncia dos princiacutepios da legalidade
prossecuccedilatildeo do interesse puacuteblico da verdade material e da imparcialidade) e por uacuteltimo o
transporte e subsequente utilizaccedilatildeo do material probatoacuterio obtido natildeo implica de per si a
imediata condenaccedilatildeo do sujeito jaacute que toda a prova pode ser contraditada em sede de instruccedilatildeo
492 Cf GOMES Nuno Saacute ndash op cit pp134-135
166
processual penal e julgamento ndash natildeo se atingindo a estrutura acusatoacuteria e as garantias de defesa
do processo penal portuguecircs493
Marco relevante na adoccedilatildeo desta corrente foi a decisatildeo anteriormente referida do
Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash tal como a maioria da jurisprudecircncia nacional
ndash que enveredou pela natildeo inconstitucionalidade da utilizaccedilatildeo como prova em processo criminal
posterior dos documentos obtidos por uma inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo de dever de
cooperaccedilatildeo Para tal fundamentou a sua posiccedilatildeo no facto da admissatildeo de restriccedilatildeo ao nemo
tenetur se basear no interesse prevalecente justo e proporcional segundo os criteacuterios do
art18ordm nordm2 da CRP da necessidade de imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema de
gestatildeo fiscal Tambeacutem no acoacuterdatildeo do Tribunal de Relaccedilatildeo de Guimaratildees de 12 de marccedilo de
2012494 o coletivo de juiacutezes na colisatildeo de princiacutepios direitos e interesses em jogo considerou
que os deveres de informaccedilatildeo e de colaboraccedilatildeo a cargo dos contribuintes satildeo instrumentos
indispensaacuteveis para o funcionamento efetivo e eficaz da maacutequina fiscal indispensaacutevel portanto
agrave prossecuccedilatildeo de outros interesses constitucionalmente relevantes O dever de colaboraccedilatildeo
constitui uma restriccedilatildeo do princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo justificada pela necessidade de
assegurar a incumbecircncia constitucional da tutela do sistema fiscal e legiacutetima por estar
expressamente prevista na legislaccedilatildeo tributaacuteria ordinaacuteria
Em termos doutrinais satildeo vaacuterias as vozes que admitem a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal495
ANTOacuteNIO GAMA496 defende que os documentos e elementos recolhidos pela Administraccedilatildeo
Fiscal junto dos obrigados tributaacuterios ao abrigo do dever geral de colaboraccedilatildeo natildeo constituem
prova proibida A regra em mateacuteria de prova eacute a admissibilidade das provas que natildeo forem
proibidas por lei (art 125ordm CPP) Se o adquirido na fase administrativa natildeo constituir meacutetodo
proibido de prova (art126ordm do CPP) e obedecer na sua recolha agraves regras aplicaacuteveis nada obsta
493 Cf Acoacuterdatildeo Tribunal da Relaccedilatildeo de Guimaratildees processo nordm 82059IDBRG G1 de 12 de marccedilo de 2012
494 Idecircntica posiccedilatildeo foi assumida pelo mesmo Tribunal no acoacuterdatildeo 970601DBRGG2 de 20 de janeiro de 2014 citando as principais ideias e
argumentos apresentados no acoacuterdatildeo do Tribunal Constitucional
495 Neste sentido ROCHA Joaquim Freitas op cit (Liccedilotildees de Procedimento e Processo Tributaacuterio) pp 101-104 e 186 MARQUES Paulo tambeacutem
natildeo vislumbra qualquer oacutebice agrave colaboraccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria em mateacuteria de investigaccedilatildeo criminal De resto o autor aponta mesmo
vantagens da simultaneidade dos procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e de investigaccedilatildeo criminal tais como evitar a duplicaccedilatildeo de diligecircncias de
investigaccedilatildeo e inspeccedilatildeo potenciando sinergias dos procedimentos respetivos e permissatildeo da recolha de prova documental obstando agrave sua
destruiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo ndash Op cit pp 170-173
496 Op cit pp 332 e ss
167
em princiacutepio a que possa ser valorado em inqueacuterito instruccedilatildeo e julgamento Defende o autor
que o constrangimento legal causado ao sujeito pela imposiccedilatildeo do dever de colaboraccedilatildeo natildeo
constitui ameaccedila com medida legalmente inadmissiacutevel nos termos do art126ordm nordm2 ald) do
CPP pois que esse constrangimento e a sanccedilatildeo da falta de colaboraccedilatildeo estatildeo legalmente
previstos Apenas no caso dos documentos e informaccedilotildees obtidas se subsumirem a alguma das
circunstacircncias referidas no art126ordm eacute que constituem prova proibida e como tal insuscetiacuteveis
de serem utilizados em processo penal posterior
Contudo tal natildeo invalida o dever de a administraccedilatildeo verificar se o contribuinte deve ser
constituiacutedo em arguido e o direito por sua vez do contribuinte mesmo na fase administrativa
requerer a sua constituiccedilatildeo em arguido como forma de evitar a sua autoincriminaccedilatildeo pelo
fornecimento de provas ldquo[p]oreacutem se na pendecircncia do procedimento inspectivo se indiciar crime
tributaacuterio verificando-se os pressupostos do artigo 58ordm C P Penal ex vi artigo 3ordm aliacutenea a) 2ordf
parte do RGIT o sujeito passivo tributaacuterio deve ser tem de ser constituiacutedo arguido cessando o
seu dever de colaboraccedilatildeo soacute colaboraraacute se livre e esclarecidamente assim o entender
passando a beneficiar do cataacutelogo de garantias constitucionais [] artigo 32ordm da Constituiccedilatildeo []
assegurando-se-lhe o exerciacutecio de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57ordm a 67ordm
Coacutedigo de Processo Penal nomeadamente do direito de natildeo responder a perguntas feitas por
qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteuacutedo das declaraccedilotildees
que acerca deles prestar Como eacute sabido a falta de explicitaccedilatildeo deste direito tem como
consequecircncia que as declaraccedilotildees prestadas posteriormente natildeo podem ser utilizadas como
prova ocorrendo proibiccedilatildeo de valoraccedilatildeo artigo 58ordm2 e 5 C P Penalrdquo497
FREDERICO COSTA PINTO num estudo sobre a utilizaccedilatildeo contra o arguido num processo de
contraordenaccedilatildeo dos elementos obrigatoriamente fornecidos no acircmbito da atividade supervisora
ndash cujas conclusotildees consideramos relevantes na monografia que estamos a desenvolver498 ndash
conclui que o uso de tais elementos estaacute legitimado por lei e defender o inverso seria criar um
497 Idem pp339-340 No mesmo sentido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto processo nordm15048091IDPRTP1 de 27 de fevereiro de
2013 Ac do Tribunal Constitucional nordm3402013 ndash ldquoAleacutem disso assistiraacute tambeacutem ao contribuinte sujeito a fiscalizaccedilatildeo o direito a requerer a
sua constituiccedilatildeo como arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligecircncias destinadas a comprovar a suspeita da praacutetica de um crime nos
termos do artigo 59ordm nordm 2 do Coacutedigo de Processo Penal o que permitiraacute que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto
designadamente o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeordquo
498 Numa comparaccedilatildeo um pouco forccedilada tal como em inspeccedilatildeo tributaacuteria as entidades que atuam profissionalmente ou de forma qualificada no
mercado de valores mobiliaacuterios e que estatildeo por isso sujeitas a um acompanhamento regular pela CMVM (art359ordm do Coacutedigo de Valores
Mobiliaacuterios ndash adiante CdVM) estatildeo adstritas a um dever legal de prestar toda a colaboraccedilatildeo solicitada agrave autoridade de supervisatildeo (art359ordm nordm3
do CdVM)
168
vazio absurdo e contraditoacuterio ldquoqualquer elemento entregue agrave supervisatildeo que viesse mais tarde a
ser relacionado com uma infracccedilatildeo natildeo poderia ser usada como prova Como natildeo haacute processo
sancionatoacuterio sem prova as competecircncias contra-ordenacionais das autoridades de supervisatildeo
ficariam inutilizadas atraveacutes de uma espeacutecie de imunidade antecipada conseguida na fase de
supervisatildeo Ou seja o cumprimento da lei (na fase de supervisatildeo) acabaria por impedir o
cumprimento da lei (na fase sancionatoacuteria) rdquo499 ndash o mesmo aconteceria no domiacutenio tributaacuterio500
Com total respeito por posiccedilatildeo contraacuteria natildeo cremos ser esta a melhor soluccedilatildeo
compaginaacutevel com os princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana do processo
equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia dos direitos e garantias de defesa do processo penal e do
estatuto do arguido como sujeito processual penal que natildeo deve em qualquer circunstacircncia ser
obrigado ou coagido a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo Admitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal seria permitir transformar o inspecionado-
arguido num mero objeto do processo investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo ndash
em termos de desconsiderar totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados e a liberdade
decisoacuteria de que cada ser humano eacute detentor
O que resulta constitucionalmente iliacutecito por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo autoincriminatoacuteria coativamente fornecida pelos contribuintes com
uma finalidade diversa daquela que gerou a sua entrega (a verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees
tributaacuterias)501 Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo
normativa de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos sob pena
da inviabilidade de todo o sistema fiscal Contudo parece-nos abusivo permitir que a informaccedilatildeo
obtida ao abrigo destes deveres transforme subsequentemente o indiviacuteduo em instrutor do
proacuteprio processo O problema natildeo reside na imposiccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo mas sim no
aproveitamento (autoincriminatoacuterio) que eacute dado a essa informaccedilatildeo (coativamente fornecida pelo
499 Cf Op cit pp106-107 No mesmo sentido JORGE DE FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE afirmam ldquoa obrigaccedilatildeo de prestar informaccedilotildees agrave
entidade reguladora do mercado nos termos do regime legal de supervisatildeo impotildee-se dadas as funccedilotildees estaduais de controlo e vigilacircncia
exercidas por esta entidade podendo essas informaccedilotildees nos termos da lei ser usadas na instruccedilatildeo de um processo contra-ordenacional O
aproveitamento das informaccedilotildees recolhidas no acircmbito da supervisatildeo para instruir um processo contra-ordenacional natildeo constitui uma violaccedilatildeo do
princiacutepio da proibiccedilatildeo da auto-incriminaccedilatildeo antes conforma uma restriccedilatildeo a este direito prevista na lei e permitida pela Constituiccedilatildeo [hellip]rdquo ndash Cf
Op cit (parecer) p49
500 Cf Ac Tribunal Constitucional nordm3402013
501 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp280-281
169
contribuinte) num processo penal posterior Realccedilamos novamente o caraacuteter coativo que subjaz
agrave entrega dos documentos ou prestaccedilatildeo de informaccedilatildeo num procedimento fora e anterior ao
processo sancionatoacuterio ndash apenas neste caso o nemo tenetur sai fragilizado (a informaccedilatildeo
autoincriminadora voluntariamente cedida natildeo afeta o nemo tenetur porque cada indiviacuteduo eacute
livre de escolher por se autoinculpar pressupondo essa escolha uma manifestaccedilatildeo de vontade
livre e esclarecida)
Seguindo de perto os argumentos de FALCOacuteN Y TELLA502 ldquoen todo caso si desde la
perspectiva de asegurar la plena efectividad del deber de contribuir no se considerasen
suficientes estos mecanismos es decir si se estimara imprescindible la obligacioacuten de
proporcionar cuantos documentos datos con transcendencia tributaria se soliciten al
procedimiento inspector ello tambieacuten seriacutea perfectamente posible sin vulnerar el derecho a no
declarar consagrado en el art24 de la Constitucioacuten [espantildeola] pero en tal caso necesariamente
el procedimiento inspector deberiacutea separarse totalmente del procedimiento de imposicioacuten de
sanciones asegurando plenamente que los datos facilitados por el sujeto pasivo en el primero a
efectos de liquidacioacuten no pudieran ser usados en el segundo lo que entre otras cosas exigiriacutea
atribuir competencia a oacuterganos distintos Soacutelo en este contexto seriacutea admisible a la luz de las
sentencias Funke y Bendenoun atribuir a la Administracioacuten el derecho de obtener cualquier tipo
de documentacioacuten con transcendencia tributaria en poder de los particulares en contra de la
voluntad de eacutestos y de adoptar medidas cautelares para asegurar su conservacioacutenrdquo
Eacute percetiacutevel pela doutrina e jurisprudecircncia um conflito entre as normas que impotildeem no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria o dever de colaboraccedilatildeo aos sujeitos inspecionados e o
princiacutepio processual penal do nemo tenetur se ipsum accusare Para melhor compreendermos a
questatildeo a referida colisatildeo de interesses gera-se porque caso se reconheccedila o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e desta maneira eliminar o dever de
colaboraccedilatildeo na obtenccedilatildeo da informaccedilatildeo tributaacuteria relevante a AT ficaria sem a possibilidade de
verificar o correto cumprimento das obrigaccedilotildees tributaacuterias dos contribuintes Inversamente se
natildeo se reconhecer validade ao nemo tenetur se ipsum accusare na inspeccedilatildeo tributaacuteria estar-se-aacute
a obrigar o contribuinte a fornecer informaccedilatildeo e documentos que posteriormente podem servir
para a sua incriminaccedilatildeo e desta maneira violando o referido direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo
502 Cf FALCOacuteN Y TELLA Ramoacuten - Un giro trascendental en la jurisprudencia del Tribunal de Estrasburgo con incidencia inmediata en el
procedimiento inspector el derecho a no declarar Revista Quincena Fiscal Nordm22 (deciembro 1995) p10
170
Ora se aceitarmos e entendermos que estamos perante um caso de colisatildeo de interesses a
questatildeo ter-se-aacute de resolver recorrendo agraves ldquoregrasrdquo da colisatildeo ou conflito de interesses eou
direitos constitucionalmente assegurados isto eacute pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica
dos valores em jogo e forccedilosamente neste caso decidir qual interesse deve prevalecer sobre o
outro ndash caminho particularmente seguido pela jurisprudecircncia nacional503
Natildeo obstante em nossa opiniatildeo aquilo que se constata eacute um mero e aparente conflito de
interesses e valores504 O que ocorre na atualidade juriacutedica natildeo eacute verdadeiramente uma colisatildeo
de ldquobens juriacutedicos ndash [dever de colaboraccedilatildeo versus nemo tenetur se ipsum accusare] ndash mas
apenas a violaccedilatildeo de um deles ndash [o nemo tenetur] ndash em virtude de um abuso cometido em
nome do outro ndash [dever de colaboraccedilatildeo] Aceitando isto a soluccedilatildeo natildeo passa por alterar o
regime atual de modo a salvaguardar o [nemo tenetur se ipsum accusare] por causa do citado
abuso mas sim por eliminar o abuso o uacutenico que eacute verdadeiramente inconstitucionalrdquo505 Como
noutras circunstacircncias tivemos oportunidade de afirmar a soluccedilatildeo natildeo passa pelo afrouxamento
dos deveres de colaboraccedilatildeo eou do direito a natildeo contribuir para a proacutepria condenaccedilatildeo ou a
antecipaccedilatildeo da validade nemo tenetur no procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ndash o problema natildeo
reside na vigecircncia dos deveres e do direito em jogo ambos desempenham legitimamente a sua
funccedilatildeo na ordem juriacutedica506 A resposta passa e este sim eacute que eacute o problema pela eliminaccedilatildeo do
abuso que se consubstancia no aproveitamento probatoacuterio que transforma o arguido em
503 De forma geneacuterica o pensamento metodoloacutegico levado a cabo pela maioria das decisotildees jurisprudenciais portuguesas sobre este tema parte
da ideia do nemo tenetur como um princiacutepio suscetiacutevel de restriccedilatildeo os deveres de cooperaccedilatildeo em inspeccedilatildeo tributaacuteria constituem uma restriccedilatildeo
legalmente expressa e prevista ao nemo tenetur e na apreciaccedilatildeo da proporcionalidade justiccedila adequaccedilatildeo e necessidade da restriccedilatildeo ndash na
ponderaccedilatildeo concreta dos interesses em causa ndash conclui pela prevalecircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo sobre o nemo tenetur Advertimos que pelo
facto de este ser o pensamento predominante na jurisprudecircncia portuguesa natildeo implica que concordemos com o mesmo como adiante
veremos
504 HUGO DE BRITO MACHADO conclui por natildeo haver qualquer incompatibilidade entre o dever de cooperaccedilatildeo e o direito ao silecircncio pois que como
sustenta o autor ldquoas informaccedilotildees cuja prestaccedilatildeo constitui dever do contribuinte e em alguns casos ateacute de terceiros e cuja omissatildeo ou falsidade
configuram crime nos termos do dispositivo acima citado satildeo apenas aquelas necessaacuterias ao lanccedilamento regular dos tributos Natildeo quaisquer
outras informaccedilotildees necessaacuterias ao exerciacutecio da fiscalizaccedilatildeo tributaacuteria Tal compreensatildeo concilia o dever de informar ao Fisco com o direito ao
silecircncio assegurado constitucionalmente a todos os acusados O dever de informar precede a configuraccedilatildeo do crime contra a ordem tributaacuteria
Cometido este seu autor natildeo tem o dever de prestar informaccedilatildeo alguma uacutetil para a comprovaccedilatildeo daquele cometimento que configuraria auto-
incriminaccedilatildeordquo ndash a prestaccedilatildeo de informaccedilotildees ao abrigo do dever de colaboraccedilatildeo eacute anterior ao fornecimento de elementos para efeitos de
investigaccedilatildeo criminal In MACHADO Hugo de Brito - Algumas questotildees relativas aos crimes contra a ordem tributaacuteria Revista Ciecircncia e Teacutecnica
Fiscal Lisboa Centro de Estudos Direccedilatildeo Geral de contribuiccedilotildees e imposto (Ministeacuterio das Financcedilas) Nordm394ordm (abril-junho 1999) p94
505 LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p 283 [traduccedilatildeo nossa]
506 No mesmo sentido Ac TEDH ndash Saunders v Reino Unido MACHADO Joacutenatas EM RAPOSO Vera ndash ldquoAfigura-se inteiramente legiacutetima a
imposiccedilatildeo de um dever de colaboraccedilatildeo agraves entidades reguladas em contextos regulatoacuterios e de supervisatildeo mesmo garantidos por uma sanccedilatildeo ed
natureza contraordenacional ou criminal desde que os documentos assim obtidos natildeo venham a ser posteriormente utilizados em processo
penalrdquo ndash p45
171
instrutor do proacuteprio processo (ainda que essa contribuiccedilatildeo se tenha manifestado antes da
abertura do processo penal tributaacuterio)507
Entendemos que esta eacute tambeacutem a soluccedilatildeo que melhor se coaduna com a jurisprudecircncia
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Das diversas decisotildees tomadas pelo TEDH em
torno desta temaacutetica verificamos uma certa relutacircncia em admitir a posterior utilizaccedilatildeo de
documentos obtidos mediante a utilizaccedilatildeo de mecanismos coercivos em processos penais
instaurados posteriormente contra os indiviacuteduos Parece conclusivo que se o Estado lanccedila matildeo
de um sistema compulsoacuterio de obtenccedilatildeo de informaccedilotildees no contexto regulatoacuterio ou
inspeccedilatildeofiscalizaccedilatildeo administrativa baseado na ameaccedila de sanccedilotildees no caso da recusa em
colaborar o mesmo natildeo pode mais tarde servir-se da informaccedilatildeo assim recolhida para garantir
e fundamentar a condenaccedilatildeo penal ndash o TEDH considerou violadora do art6ordm da CEDH a
condenaccedilatildeo baseada em provas autoincriminatoacuterias coativamente adquiridas A violaccedilatildeo
consumar-se-ia no momento da utilizaccedilatildeo em processo penal do material probatoacuterio colocando
em causa a justiccedila do processo
Marco importante na solidificaccedilatildeo desta corrente de pensamento jurisprudencial foi a
sentenccedila Saunders v Reino Unido508 O objeto da queixa nesta particular decisatildeo circunscrevia-
se agrave utilizaccedilatildeo no processo criminal movido contra o queixoso das declaraccedilotildees dele obtidas pelos
investigadores nomeadamente saber se essa utilizaccedilatildeo afronta o sentido baacutesico do processo
equitativo em que se insere o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo Na densificaccedilatildeo do conceito de
ldquoprova autoincriminadorardquo sustentou o Tribunal que o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo pode
ser razoavelmente limitado agrave confissatildeo da praacutetica dos factos ou a declaraccedilotildees diretamente
autoincriminatoacuterias pois que as declaraccedilotildees obtidas sob coerccedilatildeo que aparentam natildeo ter caraacuteter
autoincriminador (ou ateacute mesmo exoneratoacuterias) podem ser utilizadas em favor da acusaccedilatildeo
507 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica) p209
508 Muito embora natildeo estivesse em causa o exerciacutecio da atividade tributaacuteria os direitos e deveres das partes satildeo praticamente idecircnticos aos
abordados na monografia Como mencionou o TEDH no presente caso pretendia-se analisar a legalidade do uso - agrave luz do art6ordm da CEDH -
durante o julgamento de provas recolhidas (concretamente de depoimentos prestados pelo investigado) por inspetores do Departamento de
Comeacutercio e Induacutestria Os depoimentos prestados pelo sujeito junto dos Inspetores da Secretaria de Estado do Comeacutercio e Induacutestria na fase de
inqueacuterito preliminar foram um dos meios de prova fundamentais em que se alicerccedilou a acusaccedilatildeo ndash o inqueacuterito preliminar servia para averiguar a
existecircncia de factos suscetiacuteveis de justificar a intervenccedilatildeo de outras entidades reguladoras disciplinares legislativas ou titulares da accedilatildeo penal
Na sequecircncia da investigaccedilatildeo os responsaacuteveis e trabalhadores da empresa Guinness na qual Ernest Saunders assumia funccedilotildees de chefe
executivo ficaram obrigados no cumprimento do estrito dever de colaboraccedilatildeo (sob pena de puniccedilatildeo a titulo de desobediecircncia qualificada em
caso de incumprimento destes deveres) agrave entrega de todos os livros e documentos referentes agraves atividades da sociedade Os depoimentos
prestados podiam contribuir para futura incriminaccedilatildeo de quem os prestasse As provas obtidas contra o Sr Saunders foram utilizadas no
processo penal tendo sido condenado a 5 anos de prisatildeo
172
para contraditar ou criar duacutevida sobra a veracidade das declaraccedilotildees prestadas em julgamento
ou para diminuir a credibilidade do acusado509 Pelo que mesmo natildeo sendo absoluto o princiacutepio
segundo o qual ningueacutem pode ser obrigado a contribuir para a autoinculpaccedilatildeo ancorado na
garantia do processo equitativo natildeo admite a intercomunicabilidade probatoacuteria
autoincriminadora e o interesse puacuteblico natildeo eacute fundamento bastante para justificar o uso em
tribunal para incriminaccedilatildeo do acusado de respostas dadas pelo mesmo sob coerccedilatildeo no acircmbito
de uma investigaccedilatildeo natildeo judicial510
Verifica-se jaacute uma clivagem entre o pensamento adotado pelo TEDH e aquele que vem
sendo o argumento principal da jurisprudecircncia portuguesa enquanto o TEDH natildeo admite a
invocaccedilatildeo do interesse puacuteblico na efetiva perseguiccedilatildeo dos crimes os tribunais portugueses ndash
salientamos a decisatildeo do Tribunal Constitucional no acoacuterdatildeo nordm3402013 ndash estabelecem
genericamente a relevacircncia dos deveres de cooperaccedilatildeo no sistema fiscal e a sua imperiosa
vigecircncia no auxiacutelio da atividade fiscalizadora como instrumento cabal de verificaccedilatildeo das
obrigaccedilotildees tributaacuterias como um interesse que justifica a restriccedilatildeo ao nemo tenetur e a admissatildeo
da intercomunicabilidade probatoacuteria como forma de perseguir e punir os crimes tributaacuterios
(citando esta decisatildeo jurisprudencial nacional ldquocomo a aplicaccedilatildeo duma sanccedilatildeo penal exige a
prova da praacutetica do iliacutecito imputado ao arguido a inutilizaccedilatildeo dos elementos recolhidos durante a
inspeccedilatildeo agrave situaccedilatildeo tributaacuteria conduziria a uma quase certa imunidade penalrdquo)
Natildeo satildeo poucas as vozes a defenderem que a proteccedilatildeo do interesse puacuteblico na
perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da justiccedila justifica uma limitaccedilatildeo ao nemo tenetur Este
argumento sustenta que o interesse puacuteblico que existe na perseguiccedilatildeo de aqueles que
transgridem o ordenamento tributaacuterio fundamenta a atenuaccedilatildeo do direito a natildeo se autoinculpar
509 Cf Paragraph 71 ndash ldquo [hellip]the right not to incriminate oneself cannot reasonably be confined to statements of admission of wrongdoing or to
remarks which are directly incriminating Testimony obtained under compulsion which appears on its face to be of a non-incriminating nature -
such as exculpatory remarks or mere information on questions of fact - may later be deployed in criminal proceedings in support of the
prosecution case for example to contradict or cast doubt upon other statements of the accused or evidence given by him during the trial or to
otherwise undermine his credibility [hellip]rdquo
510 Cf Paragraph 74 ndash ldquo [hellip] It does not accept the Governmentrsquos argument that the complexity of corporate fraud and the vital public interest
in the investigation of such fraud and the punishment of those responsible could justify such a marked departure as that which occurred in the
present case from one of the basic principles of a fair procedure Like the Commission it considers that the general requirements of fairness
contained in Article 6 (art 6) including the right not to incriminate oneself apply to criminal proceedings in respect of all types of criminal
offences without distinction from the most simple to the most complex The public interest cannot be invoked to justify the use of answers
compulsorily obtained in a non-judicial investigation to incriminate the accused during the trial proceedings [hellip]rdquo
173
com a finalidade de poder detetar e sancionar os responsaacuteveis das infraccedilotildees e delitos evitando a
impunidade
Logicamente natildeo se pode negar o interesse puacuteblico subjacente agrave investigaccedilatildeo e
perseguiccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias Poreacutem ldquolo que no es vaacutelido es utilizar ese intereacutes puacuteblico
hasta el extremo de menoscabar derechos fundamentales consagrados por la Constitucioacuten y los
tratados internacionales [hellip] porque entonces el remedio resultariacutea peor que la enfermedadrdquo511
Em boa verdade observadas as normas processuais penais encontramos um vasto
elenco de direitos e garantias dos arguidos que mesmo diante de um sujeito culpado acabam
inuacutemeras vezes por determinar a impunidade do agente Falamos de mecanismos formais que
na praacutetica podem favorecer quem incumpre a lei Todavia natildeo devemos esquecer que esses
aspetos teacutecnicos ou formais satildeo consequecircncia da aplicaccedilatildeo praacutetica dos princiacutepios estruturantes
e basilares da nossa sociedade (como as garantias de defesa e contraditoacuterio do processo
equitativo entre outros) sem os quais natildeo se poderia falar em Estado de Direito e portanto
natildeo menosprezaacuteveis num caso concreto e singelo Aleacutem disso advogar a afetaccedilatildeo do nemo
tenetur se ipsum accusare em prol da tutela do interesse puacuteblico na organizaccedilatildeo do sistema
fiscal na perseguiccedilatildeo e prossecuccedilatildeo da justiccedila no acircmbito das infraccedilotildees tributaacuterias eacute
simultaneamente negar outro interesse puacuteblico de todos os cidadatildeos o interesse a natildeo ser
instrutor do proacuteprio processo a natildeo contribuir para a proacutepria incriminaccedilatildeo
Como se afirmou o TEDH faz depender a aplicaccedilatildeo do art6ordm da CEDH aos casos em que
se verifique uma ldquoacusaccedilatildeo em mateacuteria criminalrdquo e esta da existecircncia de um procedimento
sancionatoacuterio pendente ou antecipaacutevel no acircmbito do qual a informaccedilatildeo pretendida obter sob
coerccedilatildeo seja suscetiacutevel de ser utilizada em desfavor do arguido512 ndash tal juiacutezo permite que as
garantias do processo penal funcionem em pleno nos ldquofalsosrdquo procedimentos administrativos513
Segundo o TEDH o privileacutegio contra a autoincriminaccedilatildeo natildeo proiacutebe soacute por si o uso de poderes
coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo fora do acircmbito processual penal contra a pessoa visada
pelo que se os poderes coercivos satildeo exercidos contra a pessoa sobre a qual natildeo recai qualquer 511 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit p168 no mesmo sentido SAacute Liliana da Silva op cit p160 ndash ldquo[hellip] o interesse puacuteblico subjacente agrave
actividade da IT [inspeccedilatildeo tributaacuteria] natildeo justifica que o princiacutepio da presunccedilatildeo da inocecircncia [encarada como fundamento do nemo tenetur pela
autora] seja franqueado uma vez que em um Estado de Direito os meacutetodos utilizados pelo direito sancionatoacuterio deveratildeo assumir uma forma
processualmente validade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadatildeosrdquo
512 Cf COSTA Joana op cit pp143 e ss
513 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
p145
174
suspeita o respetivo uso de poderes coercivos na obtenccedilatildeo de informaccedilatildeo eacute compatiacutevel com a
CEDH ndash o privileacutegio natildeo pode ser interpretado como conferindo uma imunidade a accedilotildees
tomadas pelo proacuteprio visado como forma de se eximir agrave prestaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre
exemplificativamente determinadas atividades financeira ou empresariais de modo a possibilitar
o caacutelculo do imposto
Retiram-se assim da sentenccedila Saunders algumas consideraccedilotildees relevantes a
intercomunicabilidade probatoacuteria nos moldes jaacute descritos eacute incompatiacutevel com o direito agrave natildeo
autoincriminaccedilatildeo pois que pressupotildee em mateacuteria penal uma acusaccedilatildeo fundamentada numa
argumentaccedilatildeo apoiada em elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou
opressivas desrespeitando a vontade do arguido514 a delimitaccedilatildeo negativa do direito isto eacute o
direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo natildeo abrange a utilizaccedilatildeo num processo penal de dados que
podem ser obtidos do acusado mediante o recurso a poderes coercivos mas que existem
independentemente da sua vontade por exemplo recolha de haacutelito sangue urina entre
outros515 o facto de no momento da inquiriccedilatildeo o sujeito natildeo ser arguido natildeo impede que as
declaraccedilotildees coativamente prestadas constituam violaccedilatildeo ao nemo tenetur por uacuteltimo eacute
descabido invocar razotildees de interesse puacuteblico como a perseguiccedilatildeo penal e prossecuccedilatildeo da
justiccedila ndash argumentos invocados pelo Governo britacircnico ndash para justificar o uso de material
probatoacuterio coercivamente obtido numa investigaccedilatildeo natildeo penal para incriminar o acusado num
processo penal516
Preconizamos uma soluccedilatildeo que estabeleccedila que os materiais autoincriminadores
proporcionados pelo obrigado tributaacuterio em cumprimento dos deveres formais de colaboraccedilatildeo
natildeo devam ter eficaacutecia probatoacuteria contra si dentro de um procedimento tributaacuterio sancionatoacuterio
ou processo penal que posteriormente pode ser instaurado A sua validade limitar-se-ia ao
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria salvaguardando-se desta maneira tanto o preceito
constitucional que legitima e fundamenta o dever de participar nos gastos puacuteblicos no qual se
514 Cf Paraacutegrafo 68 SAacute Liliana da Silva op cit p152
515 Cf Paraacutegrafo 69
516 Cf RAMOS Vacircnia Costa op cit (Imposiccedilatildeo ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare ndash Parte I)
pp147-148
175
ancora o dever de colaboraccedilatildeo como a os direitos fundamentais de natildeo autoincriminaccedilatildeo e
presunccedilatildeo da inocecircncia517
Para concluir e em modo de siacutentese diremos que a nossa posiccedilatildeo e argumentaccedilatildeo
permite redirecionar o nemo tenetur ao acircmbito que realmente lhe pertence o punitivo e
consequentemente as atuaccedilotildees inspetivas de comprovaccedilatildeo ou de verificaccedilatildeo das realidades
tributaacuterias relevantes natildeo se veriam afetadas pelo exerciacutecio deste direito Contudo o material
obtido em inspeccedilatildeo tributaacuteria nos moldes jaacute descritos natildeo pode ser aproveitado em processo
penal para fundamentar a repressatildeo de iliacutecitos tributaacuterios o dito material constituiraacute prova
ilegiacutetima por ofender vaacuterios princiacutepios constitucionais estruturantes da presunccedilatildeo da inocecircncia
do processo equitativo e do nemo tenetur (os oacutergatildeos inspetores devem assim recolher outros
elementos probatoacuterios capazes e legiacutetimos de fundamentar a imposiccedilatildeo de sanccedilotildees agraves infraccedilotildees
detetadas ndash provas suscetiacuteveis de serem valoradas ulteriormente de modo liacutecito)518 Apenas
quando estes princiacutepios natildeo satildeo afetados (e tal verificar-se-aacute quando a informaccedilatildeo fornecida natildeo
apresenta caraacuteter autoincriminatoacuterio ou apresentando eacute fornecida pelo sujeito de modo
voluntaacuterio) a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute admissiacutevel ldquoEsto significa que toda informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente con una finalidad de verificacioacuten de las obligaciones
tributarias no puede ser utilizada en otro procedimiento de distinta finalidad como lo es el
procedimiento sancionador tributario Es decir en nuestra opinioacuten [hellip] es que la informacioacuten
aportada coactivamente por el contribuyente es liacutecitamente obtenida por la Administracioacuten pero
iliacutecitamente trasladada o comunicada al procedimiento sancionador tributario [esta foi a
principal consequecircncia a retirar da sentenccedila Saunders v Reino Unido] Si lo que el derecho a no
auto incriminarse protege en uacuteltima instancia es la libre voluntad del individuo asiacute como su
intimidad e integridad fiacutesica y psiacutequica es claro que estos valores estariacutean siendo violados si se
utiliza informacioacuten aportada por el sujeto pasivo que de no ser por la coaccioacuten ejercida a traveacutes
de las sanciones por falta de colaboracioacuten no habriacutea aportado Es decir ya que no se puede no
debe evitar que el sujeto colabore en la etapa de gestioacuten lo uacutenico que puede prevenir una
517 Cf FLORES Joaquiacuten Gallegos - op cit p79 [traduccedilatildeo nossa] DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op cit (El Derecho a no declarar contra siacute mismo
ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte)
518 DIacuteAZ-PALACIOS Alberto Sanz op Cit El Derecho a no declarar contra siacute mismo ndash la articulacioacuten entre los procedimientos de gestioacuten tributaria y
el proceso penal por delito fiscal ndash Segunda Parte Derecho a no autoinculparse y delitos contra la Hacienda Puacuteblica p217 Elementos
adicionales de anaacutelisis en materia de no autoincriminacioacuten tributaria p11
176
eventual violacioacuten del derecho a no auto incriminarse es no utilizar esa misma informacioacuten en
un ulterior procedimiento sancionadorrdquo519
5 Soluccedilatildeo proposta separaccedilatildeo efetiva de processos
Em face da situaccedilatildeo descrita nos paraacutegrafos anteriores cabe agora refletir e apresentar a
soluccedilatildeo que melhor evita o sacrifiacutecio ou distorccedilotildees no nemo tenetur se ipsum accusare nos
processos sancionatoacuterios de natureza fiscal Devemos contudo advertir que esta ainda natildeo eacute
uma questatildeo que tenha merecido intenso e profundo debate e atenccedilatildeo pela doutrina pelo que
as soluccedilotildees que tecircm sido apresentadas satildeo escassas ou quase inexistentes (jaacute que nenhuma se
apresenta sem qualquer desvantagem)
No nosso entender e acompanhados por alguma doutrina520 a separaccedilatildeo efetiva entre
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal eacute soluccedilatildeo que melhor compatibiliza e
respeita a vigecircncia dos deveres de colaboraccedilatildeo e tutela o nemo tenetur se ipsum accusare Com
esta soluccedilatildeo assegura-se ao indiviacuteduo que a informaccedilatildeo que estaacute obrigado a prestar ao abrigo
da imposiccedilatildeo de colaboraccedilatildeo apenas poderaacute ser utilizada para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo
tributaacuteria mas natildeo seraacute aproveitada em futuro processo sancionador (natildeo se verificando a
compressatildeo do nemo tenetur) ao mesmo tempo que o interesse fiscal natildeo sai prejudicado uma
vez que a AT conserva os poderes de verificaccedilatildeo e comprovaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e o
poder de sancionar o incumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo ldquoPor certo que a eventual
consequecircncia de ter de pagar imposto em falta e demais acreacutescimos legais lhe eacute desfavoraacutevel
mas o direito agrave natildeo auto-inculpaccedilatildeo natildeo eacute invocaacutevel neste contexto simplesmente porque nele
natildeo tecircm cabimento as noccedilotildees de iliacutecito e puniccedilatildeordquo521
519 Cf LUNA RODRIGUEZ Rafael op cit pp298-299
520 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit pp52 e ss PALAO TABOADA Carlos ndashEl Derecho a no autoinculparse en el aacutembito
tributaacuterio Civitas Ediciones 2008 pp60 e ss Semelhante posiccedilatildeo foi adotada nos sistema fiscal da Beacutelgica onde a doutrina se tem preocupada
com maior afinco sobre estes temas ndash Cf GOMES Nuno Saacute op cit pp136-138 Este uacuteltimo autor embora natildeo aceitando plenamente a soluccedilatildeo
belga da dissociaccedilatildeo ou separaccedilatildeo de processos (pois no seu entender acabaraacute sempre por sacrificar um interesse contraditoacuterio em presenccedila)
admite a necessidade de separar processos de modo a evitar que os mesmos funcionaacuterios administrativos obtenham informaccedilotildees e exerccedilam
atividades instrutoacuterias em dois processos (p138)
521 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p 52 Os autores apenas conferem (e bem no nosso entender) uma uacutenica exceccedilatildeo agrave
separaccedilatildeo de processos a situaccedilatildeo reconduz-se agraves informaccedilotildees e documentos exigidos em sede de fiscalizaccedilatildeo administrativa que apontam para
a realizaccedilatildeo no futuro ou em curso de crimes de terrorismo contra a paz e a humanidade contra a vida ou gravemente lesivos de bens
juriacutedicos pessoas (rapto violaccedilatildeo entre outros) Nesse caso a compressatildeo do nemo tenetur justifica-se pela gravidade dos crimes em causa e
177
Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres de
colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de qualquer
inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja interpretaccedilatildeo faz aceitar a
comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum
accusare
Umas das criacuteticas apontadas agrave separaccedilatildeo efetiva de processos eacute o facto de poder implicar
uma multiplicidade de entidades administrativas transformando-se numa soluccedilatildeo burocraacutetica
dispendiosa e talvez impraticaacutevel AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS refutam esta objeccedilatildeo
afirmando que se se tratar de uma entidade com uma organizaccedilatildeo suficientemente complexa a
separaccedilatildeo de processos pode ter lugar dentro da mesma entidade bastando somente que os
procedimentos de fiscalizaccedilatildeo e sancionatoacuterio sejam regulados legalmente sem funcionalidade
entre si que natildeo sejam os mesmos funcionaacuterios a realizarem um e outro e que o cumprimento
do dever de denunciar a existecircncia de uma infraccedilatildeo fiscal que recai sobre qualquer funcionaacuterio
das autoridades administrativas natildeo seja acompanhado com o envio de documentos e
informaccedilotildees que tivessem obtido sob ameaccedila de sanccedilatildeo522 A entidade com competecircncia para a
investigaccedilatildeo dos crimes tributaacuterios ficaria assim impedida de aceder agrave informaccedilatildeo fornecida pelo
contribuinte sob coaccedilatildeo e jaacute utilizada para a regularizaccedilatildeo da respetiva situaccedilatildeo tributaacuteria mas
natildeo fica impedida de receber a notiacutecia do crime e perante esta se socorrer dos meios habituais
de obtenccedilatildeo probatoacuteria
Outra criacutetica apresentada eacute a de que ao natildeo se permitir a intercomunicabilidade
probatoacuteria podem surgir diversas situaccedilotildees que constatadas as infraccedilotildees tributaacuterias estas
acabaratildeo por ficar impunes por falta de provas523 Ademais este eacute um dos argumentos que
alguma doutrina e jurisprudecircncia apresentam para justificar e defender a restriccedilatildeo ao nemo
tenetur em favor dos deveres de cooperaccedilatildeo Tal como no momento oportuno foi referido e para
laacute remetemos este eacute um problema comum a diversos mecanismos processuais no sistema
juriacutedico nacional onde em tutela de interesses e princiacutepios relevantes na comunidade juriacutedica e
social certas circunstacircncias natildeo satildeo sancionadas derivado a meros formalismos processuais
pela extrema e prevalecente importacircncia dos bens juriacutedicos colocados em perigo e tambeacutem pelo eminente caraacuteter preventivo que se exige da
atuaccedilatildeo das autoridades Aqui o princiacutepio natildeo cede em funccedilatildeo de interesses de investigaccedilatildeo (como aqueles que suportam a tese da
admissibilidade da intercomunicabilidade probatoacuteria e a consequente inaplicaccedilatildeo do nemo tenetur agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria) trata-se de interesses de
tutela de bens juriacutedicos essenciais na comunidade
522 Cf DIAS Augusto Silva RAMOS Vacircnia Costa op cit pp 53-54
523 Cf PINTO Frederico Lacerda da Costa op cit (parecer) p106
178
(pense-se no caso do destino dos factos natildeo autonomizaacuteveis relativamente ao instituto juriacutedico da
alteraccedilatildeo substancial dos factos) Este eacute um problema de oacutenus da prova comum a todo o direito
sancionatoacuterio penal e administrativo natildeo se verificando apenas no domiacutenio sancionatoacuterio
tributaacuterio E tambeacutem natildeo eacute completamente verdade que a situaccedilatildeo em causa pode ficar impune
as autoridades competentes para a investigaccedilatildeo sancionatoacuteria-tributaacuteria natildeo ficam impedidas de
recorrer aos meacutetodos comuns de obtenccedilatildeo de prova (como as buscas revistas e apreensotildees)
nem ficam impedidas de receber a notiacutecia do crime Tecircm eacute contudo de assumir um papel mais
ativo na investigaccedilatildeo e instruccedilatildeo das infraccedilotildees tributaacuterias natildeo ficando dependentes ou agrave espera
da autoincriminaccedilatildeo do arguido ndash essa sim absolutamente inaceitaacutevel
Procurando evitar que cada um desses procedimentos (procedimento administrativo de
fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio) terminassem com decisotildees diacutespares ndash fruto da separaccedilatildeo
de processos ndash eacute ainda apresentada a soluccedilatildeo de que sempre que surgisse no decurso do
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria uma firme convicccedilatildeo da existecircncia de infraccedilotildees tributaacuterias
poder-se-ia optar pela conversatildeo do referido procedimento num processo sancionatoacuterio onde o
investigado sob o escopo de sujeito processual se encontrava na plena possibilidade de exercer
todos os direitos e garantias compreendidas nesse estatuto processual524 Contudo numa
soluccedilatildeo como esta fica por resolver a questatildeo das provas fornecidas antes dessa convolaccedilatildeo
processual
Ora num quadro como o tecido anteriormente onde existe a interligaccedilatildeo de funccedilotildees e de
procedimentos de inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal (mais que natildeo seja interligaccedilatildeo orgacircnica
das entidades que desenvolvem um e outro) onde existe a faculdade de no cumprimento dos
deveres de cooperaccedilatildeo legalmente impostos o indiviacuteduo entregar documentos e informaccedilotildees
que potenciam a sua responsabilizaccedilatildeo ndash e tal acontece quer no domiacutenio tributaacuterio quer noutros
domiacutenios como do mercado de valores mobiliaacuterios ou no da concorrecircncia ndash uma maneira de
evitar distorccedilotildees ao nemo tenetur eventualmente poderia passar pela criaccedilatildeo de uma preceito
normativo que determinasse que os elementos assim obtidos natildeo poderiam fundamentar
exclusivamente ou de modo decisivo a decisatildeo condenatoacuteria525
Natildeo se encontrando previstas no nosso ordenamento juriacutedico nenhuma das soluccedilotildees
preconizadas caberaacute determinar se de entre as normas com relevacircncia para a questatildeo existe
524 Cf SAacute Liliana da Silva op cit pp161-162
525 Cf DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p54
179
alguma alternativa para que uma pessoa sob investigaccedilatildeo da inspeccedilatildeo tributaacuteria vendo-se
confrontada com a suspeita de ter cometido um crime tributaacuterio possa natildeo cumprir os deveres
de colaboraccedilatildeo imposto sempre que tal leva a atuar como fator e ator principal da proacutepria
condenaccedilatildeo
A resposta maioritariamente apresentada passa pela constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
quer por iniciativa das autoridades competentes (art58ordm nordm1 al a) do CPP) quer a pedido do
suspeito da praacutetica de infraccedilatildeo tributaacuteria (art59ordm nordm2 do CPP) adquirindo a partir desse
momento um estatuto que lhe permita invocar entre outros o direito ao silecircncio natildeo podendo
ser utilizadas como meio de prova contra ele as declaraccedilotildees prestadas anteriormente a essa
constituiccedilatildeo526 A reforccedilar a soluccedilatildeo apresentada encontramos o art63ordm nordm5 ald) da LGT e o
art117ordm nordm2 al c) do CPA (subsidiariamente aplicaacutevel ao domiacutenio tributaacuterio e em especial agrave
inspeccedilatildeo tributaacuteria de acordo com o art 2ordm da LGT e o art 4ordm do RCPITA) que permitem
respetivamente a recusa em colaborar quando tal determine a violaccedilatildeo dos direitos de
personalidade e outros direitos liberdades e garantias dos cidadatildeos nos termos e limites
previstos na lei e na Constituiccedilatildeo onde se enquadra o nemo tenetur e a recusa em prestar
informaccedilotildees documentos sujeitar-se a inspeccedilotildees ou colaborar noutros meios de prova sempre
tal implique a ldquoa revelaccedilatildeo de factos puniacuteveis praticados pelo proacuteprio interessadordquo (art117ordm do
CPA)
Entendem AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS que esta soluccedilatildeo constitui uma ldquovaacutelvula
de escaperdquo que evita o completo sacrifiacutecio do nemo tenetur no caso concreto embora coloque o
indiviacuteduo sujeito agrave abertura do inqueacuterito criminal e agrave aplicaccedilatildeo das subsequentes medidas
processuais possiacuteveis (como por exemplo medidas de coaccedilatildeo e garantia patrimonial)
A primeira objeccedilatildeo apresentada agrave constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no curso da
inspeccedilatildeo tributaacuteria contende com a ineficaacutecia dos deveres de cooperaccedilatildeo que utilidade estes
teriam se o indiviacuteduo pudesse eximir-se do seu cumprimento sempre que tal lhe conviesse
Admitir nesta fase preacutevia e procedimental a constituiccedilatildeo de arguido para que se possa invocar o
nemo tenetur seria negar qualquer utilidade agrave inspeccedilatildeo tributaacuteria e aos deveres de cooperaccedilatildeo
anulando as funccedilotildees estaduais fazendo valer em absoluto um direito em detrimento do outro 526 Neste sentido SAacute Liliana da Silva op cit pp162-163 DIAS Augusto SilvaRAMOS Vacircnia Costa op cit p55 (estes autores entendem que
esta soluccedilatildeo eacute aplicaacutevel mutatis mutandis no acircmbito das contraordenaccedilotildees por via do art41ordm nordm1 do RGIMOS que estipula a aplicaccedilatildeo
subsidiaacuteria no processo contraordenacional o CPP e por forccedila do art32ordm nordm10 da CRP) RAMOS Vacircnia Costa op cit (Nemo tenetur se ipsum
accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa) pp193-196
180
interesse527 Na refutaccedilatildeo a esta objeccedilatildeo AUGUSTO SILVA DIAS e VAcircNIA COSTA RAMOS528 alertam para
que natildeo basta ao indiviacuteduo requerer a constituiccedilatildeo em arguido para se exonerar do cumprimento
dos deveres de colaboraccedilatildeo Tendo em conta a natureza natildeo absoluta do nemo tenetur e a sua
sujeiccedilatildeo agrave concordacircncia praacutetica ou harmonizaccedilatildeo de interesses em concreto caberaacute ao tribunal
de acordo com os criteacuterios do art 18ordm nordm2 da CRP aferir se naquela situaccedilatildeo prevalece o
direito do arguido agrave natildeo entrega de documentos e outras informaccedilotildees ou o interesse puacuteblico da
AT na prossecuccedilatildeo e realizaccedilatildeo dos deveres de cooperaccedilatildeo Nesta ponderaccedilatildeo concluem os
autores o direito individual agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo deveraacute sempre prevalecer quando a AT
podendo obter o material probatoacuterio com recurso aos meios habituais de obtenccedilatildeo de prova
protela e abusa dos deveres de cooperaccedilatildeo do contribuinte transformando-o em instrutor da
proacutepria condenaccedilatildeo
As razotildees poliacutetico-administrativas que abonam a favor da interligaccedilatildeo de procedimento
inspetivo e processo penal natildeo podem justificar um total desrespeito pelos direitos e garantias
processuais dos indiviacuteduos Tal natildeo pode justificar um regresso ao sistema inquisitorial onde o
indiviacuteduo era parte central da condenaccedilatildeo Por forma a evitar essa realidade alguns autores
antecipam a vigecircncia do nemo tenetur mediante a constituiccedilatildeo em arguido para o
procedimento administrativo de fiscalizaccedilatildeo de outro modo facilmente se alcanccedilava a
edificaccedilatildeo de um processo penal assente na totalidade ou em parte em informaccedilotildees fornecidas
anteriormente ao abrigo do cumprimento coativo de obrigaccedilotildees de colaboraccedilatildeo Perante tal
cenaacuterio os direitos agrave natildeo autoinculpaccedilatildeo e a um processo equitativo sairiam fortemente
afetados e subsequentemente a estrutura acusatoacuteria do processo penal ldquo [S]empre que os
direitos e garantias sejam flanqueados pelas autoridades fiscalizadoras tentadas por vezes a
servir-se da observacircncia coactiva dos deveres de cooperaccedilatildeo para subverterem as regras do
oacutenus da prova o visado deve poder encontrar refuacutegio no nemo teneturrdquo529 A recusa em colaborar
jaacute natildeo seria enquadrada como juridicamente iliacutecita nem haveria lugar a responsabilizaccedilatildeo penal
por desobediecircncia simultaneamente os elementos probatoacuterios recolhidos natildeo poderiam ser
utilizados em posterior processo penal
527 Argumentos tambeacutem apresentados por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE como fundamento de recusa da constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido
no processo contraordenacional ndash cf DIAS Jorge de Figueiredo ANDRADE Manuel da Costa op cit (parecer) p50
528 Cf Op cit pp56-57
529 Cf Idem pp58-59
181
Apenas se ressalvam os casos da entrega voluntaacuteria de documentos e informaccedilotildees por
parte das pessoas visadas que teraacute como consequecircncia a admissibilidade da sua utilizaccedilatildeo
como prova em processo penal Esta utilizaccedilatildeo tem como pressuposto logicamente a
comunicaccedilatildeo ao visado do direito de recusar a colaboraccedilatildeo sempre que dela decorra a revelaccedilatildeo
de factos autoincriminatoacuterios sob pena dos mesmos natildeo poderem ser valorados posteriormente
(art58ordm nordm2 e nordm5 do CPP)530 A razatildeo de ser desta comunicaccedilatildeo prende-se com o facto de que
soacute plenamente informado da possibilidade de recusa em colaborar eacute que o indiviacuteduo pode
construir uma declaraccedilatildeo de vontade totalmente esclarecida e informada em autoincriminar-se
Ora admitindo que a constituiccedilatildeo do indiviacuteduo em arguido no decurso da inspeccedilatildeo
tributaacuteria nos moldes descritos eacute uma das soluccedilotildees que melhor se compatibiliza com as
exigecircncias constitucionais do nemo tenetur do processo equitativo da presunccedilatildeo da inocecircncia e
da tutela da dignidade humana pois que evita em uacuteltima instacircncia a intercomunicabilidade
probatoacuteria ndash realidade contraacuteria agrave Constituiccedilatildeo ndash a verdade eacute que a mesma natildeo elimina alguns
inconvenientes tambeacutem associados agrave tese da aplicabilidade do nemo tenetur se ipsum accusare
abordada anteriormente Em primeiro lugar colocar nas matildeos da Administraccedilatildeo Tributaacuteria o
dever de advertir o indiviacuteduo do seu direito a recusar colaborar e a constituiacute-lo em arguido diante
da forte possibilidade de autoincriminaccedilatildeo poderaacute revelar-se num abuso procedimental isto eacute a
AT pode protelar ilegitimamente a imposiccedilatildeo dos deveres de colaboraccedilatildeo para obter informaccedilatildeo
do indiviacuteduo (muito embora exista uma presunccedilatildeo de boa feacute das atuaccedilotildees da AT dificilmente se
conseguiria saber do momento preciso em que a AT tomou suspeita ou conhecimento das
infraccedilotildees tributaacuterias e a partir daiacute constituir o indiviacuteduo em arguido salvaguardando os seus
direitos e posiccedilatildeo processual) Em segundo lugar estando o indiviacuteduo imbuiacutedo no direito de
exigir a sua constituiccedilatildeo como arguido quando entender que exista o risco de se autoincriminar
isso eacute permitir-lhe que mal seja apresentada qualquer notificaccedilatildeo para colaborar se frustre ao
cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo sem fundamento plausiacutevel (toda a informaccedilatildeo a
prestar pode no entendimento do indiviacuteduo ser autoincriminatoacuteria) Tal circunstacircncia inutiliza os
deveres de cooperaccedilatildeo retira-lhes eficaacutecia torna-os inoacutecuos
Face ao exposto ateacute este momento tendo em conta as consideraccedilotildees que tecemos a
propoacutesito das proibiccedilotildees probatoacuterias531 e as normas existentes no nosso ordenamento juriacutedico
530 Cf RAMOS Vacircnia Costa Ramos op cit (Nemo tenetur se ipsum accusare e Concorrecircncia Jurisprudecircncia do Tribunal de Comeacutercio de Lisboa)
p195
531 Ver supra 5 Consequecircncias juriacutedicas da violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare
182
sobre esta questatildeo entendemos haver fundamento para invocar o art126ordm nordm2 ala) do CPP e
considerar que a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade probatoacuteria
entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal constitui prova proibida A prova agora considerada
em processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de decisatildeo do
indiviacuteduo
Como se retira do art125ordm do CPP soacute natildeo seratildeo admitidas no processo penal as provas
proibidas por lei (nomeadamente pelo art126ordm do CPP e pelo art32ordm nordm8 da CRP) sendo que
apoiando-nos nos ensinamentos de MAacuteRIO FERREIRA MONTE nem tudo o que natildeo estaacute proibido eacute
permitido As provas obtidas no exerciacutecio legal da inspeccedilatildeo tributaacuteria com respeito pelas devidas
normas legais que regulam esse procedimento natildeo estatildeo incluiacutedas no leque das provas
proibidas agrave luz daquela disposiccedilatildeo legislativa ndash art126ordm Todavia uma vasta doutrina advoga a
enumeraccedilatildeo natildeo taxativa desse artigo ndash ldquohaacute meacutetodos de prova que podem ofender a integridade
fiacutesica ou moral das pessoas e que natildeo estatildeo expressamente previstos no referido nordm2rdquo532
E nesse sentido as provas obtidas em violaccedilatildeo do princiacutepio nemo tenetur configuraratildeo
inescapavelmente um atentado agrave integridade moral da pessoa A intercomunicabilidade
probatoacuteria pressupotildee a utilizaccedilatildeo de elementos probatoacuterios com uma finalidade diferente da que
a originou o indiviacuteduo foi obrigado a fornecer informaccedilotildees e documentos para regularizaccedilatildeo da
sua situaccedilatildeo tributaacuteria e subitamente vecirc a informaccedilatildeo que fornece sob coaccedilatildeo assumir uma
utilidade distinta de autoincriminaccedilatildeo A prova eacute utilizada em processo penal com total
desrespeito pela conformaccedilatildeo de uma vontade livre e esclarecida pelo indiviacuteduo Ora os
princiacutepios constitucionais violados satildeo vastos e importantes pelo que admitir outra soluccedilatildeo
seria ldquodeixar entrar pela janela aquilo que se proibiu pela portardquo ndash ou seja a proibiccedilatildeo da
autoincriminaccedilatildeo
No entanto natildeo deixamos de reforccedilar a necessidade de integrar no ordenamento juriacutedico
portuguecircs a separaccedilatildeo dos processos administrativos de fiscalizaccedilatildeo e processo sancionatoacuterio
soluccedilatildeo que melhor conciliaraacute todos os interesses e valores em jogo
532 Cf FIDALGO Soacutenia ndash op cit p133
183
REFLEXAtildeO FINAL
Como tivemos oportunidade de referir ao longo da presente monografia cremos que eacute
absoluta e constitucionalmente inadmissiacutevel o aproveitamento em processo penal das provas
obtidas de modo liacutecito e coativo no decurso do procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria ao abrigo
do cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo que incide sobre o inspecionado
O nemo tenetur se ipsum accusare ancorado na matriz juriacutedico-constitucional da
dignidade da pessoa humana e das garantias processuais de defesa implica que a utilizaccedilatildeo do
arguido como meio de prova esteja sempre limitada agrave sua decisatildeo de vontade livre e esclarecida
por essa razatildeo se afirma que ningueacutem deve ser obrigado a autoincriminar-se Esta realidade eacute
reforccedilada pela atribuiccedilatildeo ao indiviacuteduo do estatuto de sujeito processual (arguido) na medida em
que apenas se poderaacute falar de um verdadeiro sujeito processual detentor de legitimidade e
poder para conformar o processo quando o arguido sob o escopo da liberdade de declaraccedilatildeo
(corolaacuterio da dignidade humana) eacute livre de decidir do momento e conteuacutedo das declaraccedilotildees ou
posiccedilotildees que pretende tomar na causa (onde se inclui obviamente a prestaccedilatildeo de declaraccedilotildees
ou informaccedilotildees autoincriminatoacuterias) Por outras palavras a autoincriminaccedilatildeo no processo penal
deve ser o resultado de um juiacutezo pessoal livre esclarecido e autodeterminado
Assim quanto ao objeto do nosso estudo a questatildeo se resolveraacute por uma rejeiccedilatildeo liminar
da intercomunicabilidade probatoacuteria entre o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal Reconhecendo que tanto os deveres de colaboraccedilatildeo tributaacuteria como o nemo tenetur
contemplam assento constitucional e que prosseguem finalidades de extrema importacircncia no
sistema juriacutedico nacional a soluccedilatildeo para o nosso problema natildeo passa pelo afrouxamento de um
ou de outro ndash o dilema natildeo reside na vigecircncia dos deveres e do direito em causa ambos satildeo
necessaacuterios e desempenham funccedilotildees essenciais O problema estaacute na intercomunicabilidade
probatoacuteria que transforma o indiviacuteduo em instrutor e objeto do proacuteprio processo Esta eacute que eacute
constitucionalmente inadmissiacutevel devendo ser evitada por via da separaccedilatildeo efetiva dos
processos
A intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
pressupotildee a utilizaccedilatildeo de documentos e informaccedilotildees coativamente fornecidos pelo indiviacuteduo
com uma finalidade distinta daquela para a qual foram obtidos as informaccedilotildees foram recolhidas
no procedimento tributaacuterio com a finalidade de verificaccedilatildeo das obrigaccedilotildees tributaacuterias e seratildeo
utilizadas no processo penal para a (auto)incriminaccedilatildeo do sujeito A informaccedilatildeo prestada pelo
184
indiviacuteduo estaria agora a contribuir para a sua autoincriminaccedilatildeo de uma forma natildeo esclarecida
e natildeo livre em contravenccedilatildeo e desrespeito ao nemo tenetur se ipsum accusare e aos princiacutepios
constitucionais em que o mesmo se fundamenta como a dignidade da pessoa humana a
integridade pessoa o livre desenvolvimento da personalidade a presunccedilatildeo da inocecircncia e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal Por essas razotildees entendemos haver motivos para
considerar a prova utilizada em processo penal fruto da intercomunicabilidade com a inspeccedilatildeo
tributaacuteria uma prova nula por violaccedilatildeo do estipulado no art126ordm nordm2 ala) do CPP A prova
agora utilizada no processo penal resulta de uma perturbaccedilatildeo da liberdade de vontade ou de
decisatildeo do indiviacuteduo
185
CONCLUSOtildeES
I O princiacutepio juriacutedico do nemo tenetur se ipsum accusare traduz-se na prerrogativa
segundo a qual ningueacutem deve ser obrigado a colaborar para a proacutepria incriminaccedilatildeo ou
seja o arguido natildeo deve ser fraudulentamente coagido ou induzido a contribuir para a
sua condenaccedilatildeo O princiacutepio em questatildeo materializa-se em dois vetores o direito ao
silecircncio e a prerrogativa contra a autoincriminaccedilatildeo que natildeo tendo o mesmo conteuacutedo
satildeo corolaacuterios que se interligam
II Embora o direito ao silecircncio constitua o nuacutecleo essencial e quase absoluto do nemo
tenetur a amplitude do princiacutepio natildeo se reduz apenas agraves manifestaccedilotildees verbais
autoincriminatoacuterias abrangendo assim diversas manifestaccedilotildees natildeo-verbais
incriminadoras como eacute o caso da entrega de documentos ou as intervenccedilotildees corpoacutereas
para obtenccedilatildeo de material probatoacuterio
III A doutrina portuguesa tem maioritariamente reconduzido a origem do nemo tenetur se
ipsum accusare agrave transiccedilatildeo do processo penal de estrutura inquisitoacuteria para o processo
penal estruturalmente acusatoacuterio mais concretamente agraves reformas verificadas no Reino
Unido no seacutec XVII como reaccedilatildeo agraves praacuteticas inquisitoriais dos tribunais eclesiaacutesticos
IV A CRP natildeo conteacutem qualquer consagraccedilatildeo expressa do nemo tenetur Todavia tal
circunstacircncia natildeo tem impedido a Doutrina e a Jurisprudecircncia nacionais de admitirem a
sua vigecircncia no sistema juriacutedico portuguecircs reconhecendo-se-lhe uma consagraccedilatildeo
constitucional impliacutecita que resulta da tutela juriacutedico-constitucional de valores ou direitos
como a dignidade humana a liberdade de accedilatildeo e a presunccedilatildeo de inocecircncia
tradicionalmente configurados como fundamentos do nemo tenetur Natildeo obstante num
plano infraconstitucional tem-se verificado a estipulaccedilatildeo de vaacuterias disposiccedilotildees legais que
asseguram as exigecircncias do nemo tenetur como eacute o caso do direito ao silecircncio (entre
noacutes consagrado expressamente no CPP nos artigos 61ordm nordm1 ald) art141ordm nordm4 ala)
art343ordm nordm1 e art345ordm nordm1)
V Natildeo sendo discutiacutevel a geacutenese constitucional do nemo tenetur a comunidade juriacutedica
debate-se sobre quais os princiacutepios ou preceitos constitucionais donde este emana
Assim a doutrina portuguesa divide o fundamento do princiacutepio em duas correntes A
primeira corrente substantiva entende que o princiacutepio deriva de direitos fundamentais
como a dignidade da pessoa humana (art1ordm CRP) direito agrave integridade pessoal (art25ordm
186
CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (art26ordm CRP) A segunda corrente defende
um fundamento processual do princiacutepio ndash corrente processualista ndash isto eacute o princiacutepio e
seus corolaacuterios teriam como base as garantias processuais de defesa reconhecidas no
texto constitucional como art20ordm nordm4) presunccedilatildeo da inocecircncia (art32ordm nordm2) e a
estrutura acusatoacuteria do processo penal (art32ordm nordm5) Atendendo aos
circunstancialismos sociais e juriacutedicos que estiveram na geacutenese do nemo tenetur
cremos que este se coaduna mais com um fundamento constitucional de natureza
processual assente nas garantias de defesa do arguido do que propriamente em
princiacutepios como a dignidade da pessoa humana Natildeo se estaacute com isso a negar a matriz
juriacutedico-material que o nemo tenetur comporta baseada na dignidade da pessoa
humana enquanto princiacutepio gerador do nemo tenetur e tambeacutem enformador de forma
mediata de toda a mateacuteria penal e processual penal de um Estado de Direito apenas se
defende que o fundamento direto e imediato da natildeo autoincriminaccedilatildeo teraacute logicamente
amparo de natureza processual
VI Atualmente natildeo eacute tanto o reconhecimento do princiacutepio do nemo tenetur se ipsum
accusare que suscita dificuldades mas e sobretudo a determinaccedilatildeo da sua
compreensatildeo e alcance
VII Embora admitamos uma visatildeo alargada do princiacutepio nemo tenetur ndash natildeo se restringindo
exclusivamente ao direito ao silecircncio mas tambeacutem a outras formas de autoincriminaccedilatildeo
- natildeo atribuiacutemos ao princiacutepio uma vigecircncia absoluta incapaz de qualquer restriccedilatildeo O
nemo tenetur contempla vaacuterias restriccedilotildees legalmente admissiacuteveis no nosso
ordenamento juriacutedico
VIII A validade normativa relaciona-se com a determinaccedilatildeo dos ramos de direito em que o
princiacutepio tem aplicaccedilatildeo afirmando-se unissonamente que o princiacutepio vale em todo o
Direito sancionatoacuterio no plano do Direito portuguecircs equivale portanto ao Direito Penal e
ao Direito de Mera Ordenaccedilatildeo Social
IX O nemo tenetur vale mesmo antes da constituiccedilatildeo em arguido funcionando ateacute em
alguns casos como um fator de atribuiccedilatildeo dessa qualidade de sujeito processual
(arguido) Beneficiam do mesmo princiacutepio os suspeitos da praacutetica de um crime as
testemunhas e as pessoas coletivas ndash claro estaacute em proporccedilotildees e moldes distintos
entre si Enquanto emanaccedilatildeo indireta da dignidade humana e do livre desenvolvimento
da personalidade o nemo tenetur se ipsum accusare natildeo comporta interrupccedilotildees nas
187
sucessivas fases do processo ou na intervenccedilatildeo das diferentes instacircncias formais valeraacute
de igual forma perante autoridades judiciaacuterias como junto de oacutergatildeos de poliacutecia criminal
X O arguido tem o dever de se sujeitar apenas agravequelas diligecircncias probatoacuterias que estatildeo
expressamente previstas na lei como sugere o termo ldquoespecificadasrdquo introduzido no
art61ordm nordm3 ald) do CPP
XI O acircmbito de aplicaccedilatildeo (ou validade) material do nemo tenetur prende-se para aleacutem da
concreta determinaccedilatildeo da extensatildeo do princiacutepio e dos seus corolaacuterios essencialmente
com a anaacutelise sobre diligecircncias probatoacuterias coercivas autoincriminadoras ou ao inveacutes
tendo em conta o caraacuteter natildeo absoluto do princiacutepio legalmente impostas Ora o que se
pretende discernir satildeo as situaccedilotildees em que estamos perante diligecircncias probatoacuterias
coativa e legalmente impostas ou inversamente se invade jaacute o campo da inadmissiacutevel
autoincriminaccedilatildeo coerciva Para resolver esta questatildeo a doutrina e jurisprudecircncia
constitucional portuguesa tecircm acolhido o criteacuterio da concordacircncia praacutetica ou ponderaccedilatildeo
de interesses que determina que em caso de conflito ou colisatildeo entre princiacutepios direitos
ou interesses protegidos o modo de dirimir esse conflito passe pela compatibilizaccedilatildeo ou
concordacircncia praacutetica pretendendo aplicar-se todos os princiacutepios conflituantes
harmonizando-os entre si concretamente
XII A concordacircncia praacutetica executa-se atraveacutes do criteacuterio da proporcionalidade na
distribuiccedilatildeo dos custos do conflito exige-se que o sacrifiacutecio de cada um dos valores
constitucionais seja adequado agrave salvaguarda dos outros impondo-se que as formas para
resolver o conflito em questatildeo acarretem uma compressatildeo miacutenima possiacutevel dos valores
em causa Natildeo sendo possiacutevel graduar as soluccedilotildees concretamente torna-se necessaacuterio
recorrer agrave prevalecircncia de um direito ou valor comunitaacuterio sobre o outro direito em jogo ndash
prevalecircncia que pode significar o sacrifiacutecio total do direito preterido
XIII A imposiccedilatildeo forccedilada de fornecer prova e de contribuir para a autoincriminaccedilatildeo (como eacute
o caso da obtenccedilatildeo de prova atraveacutes de material corpoacutereo do arguido) contende
diretamente com o princiacutepio da natildeo autoincriminaccedilatildeo como com a dignidade humana
com a integridade pessoal com a liberdade no desenvolvimento da personalidade na
sua dimensatildeo de conformaccedilatildeo da vontade e com a intimidade da vida privada Nesse
sentido essa imposiccedilatildeo forccedilada soacute se justifica se do seu lado estiverem em jogo direitos
ou interesses de valor social e constitucional prevalecente
188
XIV As restriccedilotildees ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos devem estar
previstas em lei preacutevia e expressa de forma a respeitar a exigecircncia de legalidade e
devem tambeacutem obedecer ao princiacutepio da proporcionalidade previsto no art18ordm nordm2 da
CRP
XV O exerciacutecio do direito ao silecircncio por parte do arguido natildeo pode desfavorecer a sua
posiccedilatildeo juriacutedica isto eacute o exerciacutecio de um tal direito processual natildeo pode ser valorado
como indiacutecio ou presunccedilatildeo de culpa Todavia embora o arguido natildeo possa ser
juridicamente prejudicado pelo seu silecircncio jaacute o poderaacute ser de um ponto de vista faacutectico
na medida em que do seu silecircncio pode resultar o desconhecimento ou desconsideraccedilatildeo
de circunstacircncias que serviriam para justificar ou desculpar total ou de modo parcial a
infraccedilatildeo
XVI Natildeo existe na lei qualquer indiacutecio que faccedila supor a existecircncia de um direito a mentir
XVII Agraves provas obtidas em violaccedilatildeo do nemo tenetur deve ser associada uma autecircntica
proibiccedilatildeo de prova que impeccedila a sua valoraccedilatildeo no processo penal As provas que
atentam contra a natildeo autoincriminaccedilatildeo configuram uma ofensa agrave integridade moral da
pessoa colidindo assim com o preceito constitucional que determina a nulidade de
todas as provas obtidas mediante tortura coaccedilatildeo ofensa agrave integridade fiacutesica ou moral
(art32ordm nordm8 da CRP)
XVIII A relaccedilatildeo juriacutedica tributaacuteria eacute uma relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional complexa alicerccedilada
nesse viacutenculo obrigacional geralmente traduzido numa obrigaccedilatildeo principal (obrigaccedilatildeo de
pagar o tributo) e numa seacuterie de deveres secundaacuterios e acessoacuterios de conduta que giram
em redor desse dever principal e que se destinam de grosso modo agrave praacutetica dos atos
preparatoacuterios para a liquidaccedilatildeo do imposto e o cumprimento das imposiccedilotildees legais ou
administrativas
XIX Decorre do regime estipulado no RCPITA que o procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria eacute
norteado pelo princiacutepiodever de colaboraccedilatildeo reciacuteproco entre entidade inspecionada e
AT Ao abrigo deste dever (muacutetuo) de colaboraccedilatildeo o indiviacuteduo inspecionado estaacute
obrigado a esclarecer todas as duacutevidas que lhe sejam colocadas pelos funcionaacuterios da
inspeccedilatildeo relativamente agrave sua situaccedilatildeo tributaacuteria e a exibir os seus registos livros e
demais documentos respeitantes ao exerciacutecio da sua atividade
XX O dever de colaboraccedilatildeo eacute encarado pelo legislador como um verdadeiro dever juriacutedico e
natildeo como uma mera faculdade agrave disposiccedilatildeo dos sujeitos da relaccedilatildeo juriacutedica A confirmar
189
esta conclusatildeo a lei atribui diversas consequecircncias (sanccedilotildees) juriacutedicas para os casos de
incumprimento ilegiacutetimo deste dever
XXI O art63ordm nordm5 da LGT menciona os casos de incumprimento legiacutetimo do dever de
colaboraccedilatildeo ou seja aquelas circunstacircncias em que o administrado se pode furtar ao
cumprimento do dever de colaboraccedilatildeo sem que qualquer sanccedilatildeo juriacutedica resulte dessa
situaccedilatildeo
XXII Face agrave amplitude que os deveres de cooperaccedilatildeo em procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria
podem assumir e as subsequentes consequecircncias juriacutedicas aplicadas nos casos de
oposiccedilatildeo ilegiacutetima agrave inspeccedilatildeocolaboraccedilatildeo eacute facilmente percetiacutevel a tensatildeo existente
entre estes deveres e o direito agrave natildeo autoincriminaccedilatildeo do arguido em processo penal
pois que natildeo raras as vezes a inspeccedilatildeo funciona como antecacircmara do processo penal
por crimes fiscais nela se detetam os indiacutecios da praacutetica de crimes em mateacuteria
tributaacuteria e agrave partida existe a possibilidade da utilizaccedilatildeo no processo penal da
informaccedilatildeo obtida na inspeccedilatildeo tributaacuteria A questatildeo que se coloca eacute a de saber se seraacute
legiacutetima essa intercomunicabilidade probatoacuteria entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo
penal
XXIII Verifica-se que as entidades puacuteblicas com poderes de inspeccedilatildeo das realidades tributaacuterias
dos contribuintes satildeo as mesmas que exercem competecircncias de investigaccedilatildeo e inqueacuterito
no processo penal tributaacuterio
XXIV Natildeo eacute liacutecito ao contribuinte-inspecionado invocar o nemo tenetur se ipsum accusare no
procedimento de inspeccedilatildeo tributaacuteria como forma de se desobrigar do cumprimento dos
respetivos deveres de colaboraccedilatildeo A vigecircncia deste princiacutepio apenas se deve confinar
aos processos e procedimentos sancionatoacuterios representativos do ius puniendi do
Estado A inspeccedilatildeo tributaacuteria natildeo eacute um procedimento sancionatoacuterio
XXV O que resulta iliacutecito e constitucionalmente inadmissiacutevel eacute o abuso em utilizar a
informaccedilatildeo fornecida coativamente com uma finalidade diferente daquela que gerou
precisamente a sua razatildeo de ser
XXVI Admitir a intercomunicabilidade probatoacuteria entre inspeccedilatildeo tributaacuteria e processo penal
seria permitir transformar o inspecionado-arguido num mero objeto do processo
investigatoacuterio ndash elemento ativo na proacutepria incriminaccedilatildeo - em termos de desconsiderar
totalmente todos os princiacutepios e direitos mencionados (dignidade da pessoa processo
190
equitativo presunccedilatildeo da inocecircncia e demais garantias de defesa) e a liberdade decisoacuteria
de cada indiviacuteduo
XXVII Natildeo padece de inconstitucionalidade nem viola o nemo tenetur a imposiccedilatildeo normativa
de deveres de cooperaccedilatildeo e das respetivas sanccedilotildees para o seu incumprimento os
deveres de cooperaccedilatildeo existem e devem obrigatoriamente existir e serem cumpridos
sob pena da inviabilidade de todo o sistema fiscal O que afronta os princiacutepios
constitucionais e que deve ser liminarmente rejeitada eacute a utilizaccedilatildeo da informaccedilatildeo
autoincriminadora coativamente obtida em inspeccedilatildeo tributaacuteria e fornecida pelos
contribuintes no subsequente processo penal
XXVIII O que ocorre na realidade eacute um mero e aparente conflito de interesses natildeo se trata de
uma verdadeira colisatildeo de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
resolvida pela via da ponderaccedilatildeo e concordacircncia praacutetica dos valores em jogo O que se
verifica com a intercomunicabilidade probatoacuteria eacute apenas a violaccedilatildeo de um dos direitos
em jogo (o nemo tenetur) em virtude de um abuso cometido em nome do outro (o dever
de colaboraccedilatildeo) Aceitando isto a soluccedilatildeo passa por eliminar o abuso a
intercomunicabilidade probatoacuteria Caminho que deveraacute ser seguido pela efetiva
separaccedilatildeo entre a inspeccedilatildeo tributaacuteria e o processo penal
XXIX Verificando-se a efetiva separaccedilatildeo de processos nem as normas que impotildeem deveres
de colaboraccedilatildeo nem as que sancionem o seu eventual incumprimento padeceratildeo de
qualquer inconstitucionalidade padecem sim aquelas que permitem ou cuja
interpretaccedilatildeo faz aceitar a comunicabilidade probatoacuteria entre os procedimentos por
violaccedilatildeo do nemo tenetur se ipsum accusare Desse modo o indiviacuteduo inspecionado
continua adstrito e obrigado ao cumprimento dos deveres de colaboraccedilatildeo para com a
Administraccedilatildeo Tributaacuteria contudo a informaccedilatildeo fornecida nessas circunstacircncias apenas
poderaacute ser utilizada contra si para regularizaccedilatildeo da sua situaccedilatildeo tributaacuteria a utilizaccedilatildeo e
aproveitamento dessa informaccedilatildeo como elemento probatoacuterio em processo penal
posterior estaacute absolutamente proibida por atentar contra o princiacutepio da natildeo
autoincriminaccedilatildeo e seus fundamentos constitucionais (razotildees que legitimam o
chamamento agrave colaccedilatildeo do art126ordm nordm2 ala) do CPP)
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- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
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