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A INFÂNCIA NO BANCO DOS RÉUS: CRIANÇAS DESVALIDAS NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA Ana Cristina Borges López Monteiro Francisco 1 Maria Celi Chaves Vasconcelos 2 1. Introdução. O presente estudo faz uma análise da situação das crianças órfãs, escravas e desvalidas, no Rio de Janeiro oitocentista, com foco nas ações levadas a cabo para conter os pequenos “infratores”. Nessa perspectiva, trata-se de uma pesquisa histórico-documental, que abrange a legislação sobre o tema, bem como outras investigações já realizadas que tomaram como objeto a mesma problemática. O referencial teórico utilizado, portanto, remete aos estudos de , que apresentam um panorama das circunstâncias que envolviam a infância desvalida ou desamparada, considerando-se a orfandade muito presente naquele período, século XIX, especialmente nas zonas urbanas mais populosas como a cidade do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que se trata de um recorte de uma investigação mais ampla, na qual as especificidades de cada condição de infância são estudadas e aprofundadas. Além dos autores citados, as fontes pesquisadas remetem a documentos contemporâneos ao tempo/espaço enfocado, com destaque para a legislação e suas formas de entendimento e aplicação. Seguindo esta linha de raciocínio, buscou-se, a partir da análise do tratamento dado às crianças, na vigência do 1º Código Criminal do Brasil, de 1830, estabelecer o surgimento e desenvolvimento de uma legislação voltada para a infância, bem como o papel da educação como via de recuperação e alternativa para 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis, e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centra seus estudos na área de História da Educação e Políticas Educacionais, com ênfase na educação doméstica no Brasil oitocentista e criação/consolidação dos sistemas educacionais, além da educação na casa (homeschooling) e suas implicações na atualidade. Bolsista de Produtividade do CNPq e Jovem Cientista da FAPERJ.

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A INFÂNCIA NO BANCO DOS RÉUS:

CRIANÇAS DESVALIDAS NO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA

Ana Cristina Borges López Monteiro Francisco1

Maria Celi Chaves Vasconcelos2

1. Introdução.

O presente estudo faz uma análise da situação das crianças órfãs, escravas e

desvalidas, no Rio de Janeiro oitocentista, com foco nas ações levadas a cabo para

conter os pequenos “infratores”.

Nessa perspectiva, trata-se de uma pesquisa histórico-documental, que

abrange a legislação sobre o tema, bem como outras investigações já realizadas que

tomaram como objeto a mesma problemática.

O referencial teórico utilizado, portanto, remete aos estudos de , que

apresentam um panorama das circunstâncias que envolviam a infância desvalida ou

desamparada, considerando-se a orfandade muito presente naquele período, século

XIX, especialmente nas zonas urbanas mais populosas como a cidade do Rio de

Janeiro.

Cabe ressaltar que se trata de um recorte de uma investigação mais ampla,

na qual as especificidades de cada condição de infância são estudadas e

aprofundadas.

Além dos autores citados, as fontes pesquisadas remetem a documentos

contemporâneos ao tempo/espaço enfocado, com destaque para a legislação e suas

formas de entendimento e aplicação.

Seguindo esta linha de raciocínio, buscou-se, a partir da análise do

tratamento dado às crianças, na vigência do 1º Código Criminal do Brasil, de 1830,

estabelecer o surgimento e desenvolvimento de uma legislação voltada para a

infância, bem como o papel da educação como via de recuperação e alternativa para

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis.

2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis, e da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Centra seus estudos na área de História da Educação e

Políticas Educacionais, com ênfase na educação doméstica no Brasil oitocentista e criação/consolidação

dos sistemas educacionais, além da educação na casa (homeschooling) e suas implicações na atualidade.

Bolsista de Produtividade do CNPq e Jovem Cientista da FAPERJ.

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o combate da marginalização dos adolescentes. Ou seja, a problemática desta

investigação trata de como as crianças e os adolescentes que cometiam delitos eram

tratados desde o primeiro Código Criminal Brasileiro e que função tinha a educação

nesse processo de resgate. Servirá de base para tanto a localização temporal do

Direito Penal desde as primeiras codificações até o Código Criminal de 1890,

perpassando, assim, por sua trajetória no decorrer do século XIX.

A análise da legislação mencionada é o fundamento para que se possa aferir

qual o papel da educação no resgate do adolescente infrator, ou em mão inversa, se a

dissociação entre correção e educação leva à persistência na criminalidade. O direito

do “menor infrator” decorre do Direito Penal, que é essencialmente repressivo.

Devido a sua falibilidade, vem se tornando cada vez menos recuperativo, o que o faz

ser alvo de críticas consideráveis desde o Brasil de oitocentos.

As categorias de pesquisa são, portanto, educação e correção, analisando as

aproximações e os distanciamentos entre esses dois tratamentos dados a crianças e

adolescentes, no período compreendido entre o Código Criminal do Império (1830)

e o 1º Código Criminal (1890).

Nesse sentido, outras questões surgem para complementar a delimitação do

tema, quais sejam: Qual era o enfoque, social e jurídico, dado a infância no Rio de

Janeiro Imperial? Que legislação vigorava no século XIX relativa a crianças

infratoras? Qual era a situação dos “menores infratores” internados e qual a

finalidade das Casas de Correção?

Como objetivos pretendeu-se localizar a situação das crianças infratoras no

século XIX e o tratamento a elas dispensado, dando enfoque ao que eram e em que

consistiam as Casas de Correção. Em decorrência, entender e conceituar a criança

órfã, desvalida e infratora.

É possível que importantes acontecimentos históricos ocorridos durante o

século XIX, tenham fragilizado a normatização e a reintegração social por meio da

educação do “menor infrator”. Os discursos e as tentativas de regulamentação de

uma legislação que atendesse a essas crianças só começaram a ser postos em prática,

de fato, no início do século XX. Dessa forma, aliadas a algumas fontes que

continham informações específicas, havia tantas outras com insuficientes subsídios

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ou que, por citações que apenas faziam menção ao tema, apenas aguçavam o

interesse por mais informações. Em decorrência, foram ainda usadas como

referência a literatura da época e as pesquisas relativas ao Brasil Imperial.

A literatura e parte da produção escrita sobre o tema, durante o século XIX

e a de seu antecedente, constituíram a fundamentação básica para o entendimento

aplicado à parca legislação existente. Os documentos oficiais traduzem o sentimento

político e social do Brasil dos oitocentos em relação à infância desamparada. A

partir deles, foi possível delinear as concepções e aspirações estatais, bem como da

elite política e econômica da época. Assim, foram analisados documentos como

relatórios, leis, decretos-lei, estatutos, processos judiciais e publicações oficiais.

Também foram analisadas pesquisas relativas ao cotidiano da sociedade imperial

brasileira.

Percorrendo os caminhos de Vasconcelos (2005, p. 22), foram igualmente

utilizados como fontes de pesquisa os periódicos e jornais que circulavam à época,

em especial o Jornal do Commercio, bem como a microfilmagem de notícias locais

da Corte Imperial arquivadas na Biblioteca Nacional.

2. A INFÂNCIA NO BANCO DOS RÉUS

A normatização de direitos e garantias no que tange à infância brasileira no

século XIX, acarretaram fortes consequências para a atual composição sócio-jurídica

brasileira. Nessa perspectiva, busca-se identificar a trajetória legislativa brasileira

sobre as crianças que cometiam delitos, procurando identificar que leis foram

destinadas aos “menores” excluídos da sociedade, que não “prometiam ser bons

cidadãos” aos olhos da maioria e, ainda, de que forma a educação contribuiu para o

tipo de correção reservada a elas.

O final do século XIX delineia um período histórico em que a infância e a

sua educação integram grande parte dos discursos sobre a criação e solidificação de

uma sociedade moderna. Ou seja, estão inseridos no modelo geral referencial das

instituições e da estrutura do Estado para uma nação avançada, que se difunde no

processo de transformação mundial ocorrido durante a “Era dos Impérios”, como

aponta Hobsbawn (1988, p. 41) em relação ao período de 1870 a 1914.

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Foucault (1992) chama a atenção sobre a questão de estabilizar certezas e

sentidos. Em relação à delinquência e sua ameaça à geração e preservação da riqueza

originada da capitalização não só da burguesia, mas também da classe popular,

preleciona ele que:

Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito

moral, portanto separando-o da delinqüência, portanto separando o

grupo de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para

os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de

todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. Desde o

nascimento da literatura policial e da importância, nos jornais, das

páginas policiais, das horríveis narrativas de crimes (FOUCAULT,

1992, p. 133).

Em termos foucaultianos, a nova característica do encarceramento penal

“desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação da liberdade e a

transformação técnica dos indivíduos”. Para Marcílio (1998), esta transformação

continua sendo almejada através da aplicação dos princípios da correção, da

classificação, da modulação das penas, do trabalho como obrigação e direito, da

educação penitenciária, do controle técnico da detenção e instituições anexas, que

constituem o corpo das técnicas penitenciárias (MARCÍLIO, 1998).

O tema sobre a responsabilidade do menor foi alvo de acaloradas e

constantes discussões nos sistemas jurídicos. Entendia-se que o homem não poderia

ser responsabilizado pessoalmente pela prática de um ato tido como contrário ao

julgamento da sociedade, sem que para isso tivesse alcançado certa etapa de seu

desenvolvimento mental e social. Entretanto, os menores enfrentaram exaustivas

dificuldades, inclusive sacrificando a própria vida até garantir uma normatização de

seus direitos básicos, mais fundamentais.

O Direito Romano exerceu significativa influência sobre o direito de todo o

Ocidente, em especial quanto ao conceito de que a família organiza-se sob um forte

poder patriarcal. Entretanto, o caminhar da história nos séculos acabou por atenuar

esse poder absoluto, que permitia matar, maltratar, vender ou abandonar os filhos.

Mesmo assim, o Direito Romano tomou a dianteira ao estabelecer, de forma

específica e taxativa, uma legislação penal adotada aos menores, diferenciando os

seres humanos entre duas classes: púberes e impúberes. Estes últimos estavam

adstritos ao discernimento do juiz e ao juízo de valoração do mesmo, porém tendo

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este a obrigação de aplicar penas bem mais moderadas. As primeiras normatizações

relativas à infância estabeleciam que os menores de até sete anos eram considerados

infantes absolutamente inimputáveis. Entre as sanções cabíveis, destacavam-se a

obrigação de reparar o dano causado e o açoite, sendo, contudo, proibida a pena de

morte, como se depreende da Lei das XII Tábuas.

Por meio dos Glosadores3, a Idade Média apresentava uma legislação que

impossibilitava que os adultos fossem punidos pelos crimes por eles praticados na

infância. De seu lado, o Direito Canônico reproduziu fielmente as diretrizes

cronológicas de responsabilidade preestabelecidas pelo Direito Romano.

As Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil, no âmbito criminal, até

1830, espelhavam o espírito da época. O título CXXXV do Livro Quinto pregava

que:

Quando os menores eram punidos, por delitos que fizerem.

Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte anos cometer

qualquer delito, dar-se-lhe-á a pena total, que lhe seria dada, se de

vinte e cinco anos passasse.

E se for de idade de dezessete anos até vinte, ficará ao arbítrio dos

julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha.

E neste caso olhará o julgador o modo, com que o delito foi cometido,

e as circunstâncias dele, e a pessoa do menor; e se achar em tanta

malícia, que lhe pareça que merece pena total, dar-lhe-á, porto que

seja de morte natural.

E parecendo-lhe que não a merece, poder-lhe-á diminuir, segundo a

qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delito foi cometido.

Enquando o delinqüente for menor de dezessete anos cumpridos,

posto que o delito mereça morte natural, em nenhum caso lhe será

dada, mas ficará em arbítrio do julgador dar-lhe outra menor pena.

E não sendo o delito tal, em que caiba pena de morte natural, se

guardará a disposição do Direito comum (PIERANGELLI, 1980, p.

133-134).

Em 1791, o Código Penal Francês, embora de forma tímida, propõe nova

forma de conter a delinquência juvenil, numa visão recuperativa. Surgem as

primeiras medidas de reeducação dentro de um sistema de atenuação de penas.

TÍTULO V

Da influência da idade dos condenados na natureza e duração das

penas.

3 Indivíduo que glosa; intérprete, hermeneuta. Aquele que comenta, anota, explica, critica. Nota

explicativa sobre palavras ou o sentido de um texto.

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Artigo 1. Quando um acusado declarado culpado pelo júri tiver

cometido o crime pelo qual é procurado antes de cumprir a idade de

dezesseis anos, os jurados decidirão na forma ordinária de suas

deliberações a seguinte questão: O culpado cometeu o crime com ou

sem discernimento?

Artigo 2. Se os jurados decidirem que o culpado cometeu o crime sem

discernimento, será absolvido; mas o tribunal penal poderá,

dependendo das circunstâncias, ordenar que o culpado seja entregue

aos seus parentes ou que seja conduzido a uma casa de correção para

ser detido e educado ali pelo número de anos fixado na sentença,

número que, em qualquer caso, não poderá exceder a época em que o

mesmo alcançar a idade de vinte anos.

Artigo 3. Se os jurados decidirem que o culpado cometeu o crime com

discernimento, será condenado; mas, em razão da sua idade, as penas

seguintes serão comutadas da seguinte forma:

Se o culpado incorreu em pena de morte, será condenado a vinte anos

de detenção em uma casa de correção.

Se incorreu em penas de restrição de liberdade, reclusão em

estabelecimento de segurança máxima, presídio ou detenção, será

condenado a recolhimento em casa de correção por um número de

anos igual àquele que lhe corresponderia nas ditas penas segundo o

crime cometido.

Artigo 4. Nos casos assinalados no artigo precedente, o condenado

não sofrerá exposição ao público, salvo se a pena de morte tiver sido

comutada por vinte anos de detenção em casa de correção, caso em

que a exposição do condenado ocorrerá durante seis horas, nas formas

acima prescritas.

Contudo, o movimento a favor da “infância delinquente” começa com

grande vigor nos Estados Unidos. As sociedades protetoras da infância e os grupos

em favor da mulher mobilizaram a opinião pública em favor de uma nova Lei

criadora dos Tribunais de Menores, datada de 21 de abril de 1899, que entrou em

vigor no dia 1 de julho do ano seguinte. Logo em seguida, estes Tribunais Tutelares

surgiram em toda Europa. As classes políticas e juristas começaram a perceber que

as medidas pedagógicas podiam ser mais eficazes que as medidas repressivas, tanto

em relação à infância quanto em relação aos adultos delinquentes (DELGADO,

2000, p. 199).

Camara (2010) informa que o controle feito em relação às crianças que

perambulavam pelas ruas era o mesmo daqueles deserdados e desprovidos de tudo,

que, atirados à mercê da sorte, encontravam no ócio seu maior passatempo. Expulsar

das ruas os “maus que, porventura, a emporcalhassem”, era uma prática da polícia

que agia em prol da regeneração dos costumes. Uma matéria da edição de 11 de

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outubro de 1898 do Jornal Gazeta de Notícias ilustra bem este fato, conforme

demonstra a autora:

Adotando a opinião dos microbiologistas, que encontram origem para

os maiores pistes (sic) nos ‘infinitamente pequenos’, a esforçada

autoridade tratou de ir colhendo as crianças que encontrou vagando,

sem saber das exatas notícias de um lar, nem de um pai, e pela simples

razão de nunca haverem conhecido essas supremas garantias da vida

social.

Menores vagabundos! – exclamou o delegado, enfurecido com esses

pequenos ‘judeus errantes’, sujos, sarnentos, mostrando nos olhos

inquietos [...] uma triste história de viciosidade precoce [...] Que

grandíssimos patifes! (Gazeta, apud CAMARA, 2010, p. 60).

Para a autora, os sentidos atribuídos à infância como “criminalizada, vadia,

pervertida, estereótipo da criança frequentadora das vias públicas”, causavam mal -

estar à sociedade, trazendo à tona as discussões sobre as causas e os fatores que

endossavam a perversão desses “menores”, tornando-os potencial ameaça à ordem e

ao poder constituído (CAMARA, 2010).

Cerne de observação e cuidados, as crianças desvalidas, desviadas e

abandonadas foram problematizadas com intuito de que as suas

diferenças e imperfeições fossem eliminadas, numa sociedade que,

embora proclamasse, como bem afirmou Freitas, sua destinação à

civilização, via de regra, não cessou de embrutecer-se. Desse modo,

princípios moralizantes, costumes regrados e uma ética própria às

classes populares foram estabelecidos com o intuito de se produzir o

pertencimento dos indivíduos, num esforço de compor as

representações do seu papel social (CAMARA, 2010, p. 61-62).

A Declaração de Genebra4 (1924) ofereceu grande contribuição para a

garantia dos direitos dos menores porque, além de ter sido a primeira manifestação

internacional nesse sentido, serviu como base para o 1º Código de Menores de 1927.

Em continuidade, tem-se a Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada

pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1959, na qual os 11 princípios ali

enumerados contemplam a criança e o adolescente na sua imaturidade física e

mental, destacando a necessidade de proteção estatal.

Uma vez conhecida e apontada a situação do “menor”, há que se questionar

o nascedouro e a trajetória das circunstâncias que culminaram nessa realidade,

4 Na Declaração de Genebra já se nota a preocupação internacional em assegurar os direitos de crianças e

adolescentes, como foco de discussão entre as nações.

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delimitando o berço da legislação menorista e, por conseguinte, analisando as

implicações sofridas até o início do século XX.

A resposta para tais questionamentos fundamenta o objeto do presente

estudo, levando-se em consideração que antes do Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), de 1990, o menor era amparado pelos Códigos de 1979 e de

1927 e este último, precedido pelo Código de 1830.

2.1- A infância no Rio de Janeiro imperial: crianças órfãs, escravas e desvalidas.

Até 1822, período conhecido como Colonial, o Brasil estruturou-se

econômica e politicamente da mesma forma que a metrópole portuguesa. Dessa

forma, as leis e ordenamentos para as crianças eram ditados pela metrópole e

aplicados pelo tríduo: burocracia, representantes da Corte e Igreja Católica. Estado e

Igreja eram aliados no processo de manutenção do poder, articulando a conquista

armada com a dogmatização religiosa. Arantes, no prefácio de Rizzini (1993, p. 11)

acrescenta que “uma análise das práticas que incidiram sobre a criança no Brasil

vem revelar, inicialmente, o predomínio de instituições religiosas – de cunho

eminentemente caritativo –, na assistência à infância desvalida ou abandonada”.

Conforme Faleiros (1995), o cuidado e a educação das crianças índias era

prerrogativa dos padres jesuítas que objetivavam batizá-las, educá-las e incorporá-

las ao trabalho. Daí, o surgimento de casas de recolhimento ou casas para meninos e

meninas índias. Vale lembrar que, para os silvícolas, as crianças eram

responsabilidade de toda a tribo, enquanto que na Europa a infância não era vista

nem entendida como uma categoria específica, mas como um “adulto em miniatura”.

As crianças e adolescentes abandonados e marginalizados em Portugal foram

trazidos para o Brasil para colaborar na aproximação com os silvícolas e ajudar na

catequese.

O trabalho escravocrata que, durante o Império, sustentava a economia

exportadora apresentava, na sua essência, os escravos como objeto econômico.

Faleiros (1995) aponta que, levando-se em consideração que um ano de trabalho de

determinado escravo equivalia ao preço pago na sua compra, conclui-se que a

criação de crianças escravas era mais cara que a importação de um escravo adulto. A

mortalidade infantil era expressiva e as mães eram alugadas como mães de leite, fato

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que na prática, nada mais representava do que a ação social e política de produzir a

separação dos filhos do seio materno. Até os oito anos, as crianças negras serviam

de brinquedos e animais de estimação para as crianças brancas, sendo classificadas

como “coisas”, objetos de propriedade individual do senhor seu dono, patrimônio e

mão de obra (VASCONCELOS, 2005, p. 150-151).

Os delitos cometidos por esses “menores”, crianças negro-escravas,

invariavelmente, eram noticiados sem maiores detalhes e remissões à criança

atendo-se, tão somente, ao relato sucinto do fato ocorrido, porém, com detalhes

minuciosos das questões patrimoniais. Tome-se como exemplo, duas notícias

veiculadas no Jornal do Commercio em 1827:

27. Hontem de manha das nove para as onze horas hum preto de 12 a

14 annos, vestido com calças pretas e camiza azul rasgada, introduzio-

se em casa da Viuva Gautier, que trabalha em rendas, na rua do Cano

nº 57 e furtou hum pequeno relógio de ouro, esmaltado de azul por

hum lado com hum passaro e pelo outro lado distingue se hum Amor a

Cavallo em hum cão, huma corrente de ouro que dá tres voltas, huma

pequena chave de ouro preza á mesma, hum bilhete de quatro mil réis

e hum patacão; roga-se a quem souber de tal roubo o obzequio de

participa-lo em casa de M. Guademer rua dos Ourives nº 41.

(...)

28. No dia 2 do corrente mês roubarão a hum moleque Mina

Quitandeiro huma caixinha de folha contendo dentro 28 pessas de

rendas; a quem as mesmas forem offerecidas he obzequio aprehende-

las, e participar na rua larga de S. Joaquim nº 74, que se lhe gratificara

o seu trabalho (JORNAL DO COMMERCIO, nov./1827, p. 4).

Del Priore (1999) pontua que, ainda que consideradas imorais e ilegítimas,

eram comuns as relações sexuais entre senhores e escravas ou senhores e índias,

advindo daí um grande número de filhos ilegítimos, não raras vezes fadados ao

abandono, principalmente por fragilizarem a moral do casamento e da família. Na

tentativa de amenizar tal situação, foram propostas pelo vice-rei (Brasil/Colônia)

duas medidas que consistiam basicamente em coletar esmolas na comunidade para

recolher e abrigar tais crianças e a integração das mesmas em casas de família. Essa

conduta nada mais espelhava do que a tentativa de esconder a ilegitimidade com um

véu assistencialista e religioso. Assim, visando a esse objetivo e no intuito de

viabilizar e facilitar a internação dessas crianças foi implantada, no século XVIII, a

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Roda5, que nada mais era que um cilindro giratório na parede da Santa Casa da

Misericórdia que fazia com que a criança quando colocada na parte de fora não fosse

vista pela parte de dentro. Eram então recolhidas pela Instituição, que criou um local

específico para elas, denominado Casa de Expostos.

As Casas de Expostos, além de recolherem recém-nascidos através da Roda,

abrigavam também desvalidos de dois ou três anos de idade. Contudo, as condições

destes estabelecimentos eram bastante precárias, sofrendo muitas críticas. A Roda

garantia o anonimato e, ainda, garantia a moralidade das crianças e das mães. Servia

também como forma de preservar a sociedade dos enjeitados, vistos como desviantes

em potencial. A estrutura física da Roda atendia a necessidade de anonimato das mães,

que, pelos padrões da época, não podiam assumir a condição de mães solteiras.

Posteriormente, em 1927, o Código de Menores proibiu o sistema das Rodas e, a partir

daí, os bebês foram entregues diretamente a pessoas destas entidades, ainda que o

anonimato dos pais fosse garantido. O registro da criança era outra obrigatoriedade

deste novo procedimento.

Portanto, a noção vigente à época era, por um lado, salvar recém-nascidos

abandonados para no futuro encaminhá-los a trabalhos nos quais pudessem ser

produtivos para a sociedade, afastando-os, assim, da marginalidade; por outro havia

uma justificativa moral, qual seja, o encobrimento dos frutos de relacionamentos

ilícitos. Dessa forma, a Roda enfrentava uma questão social: seria um dispositivo capaz

de salvar vidas de abandonados, ou seria o abandono de crianças estimulado por sua

existência?6

Cumpre lembrar que, antes da Independência do Brasil em 1822, o que

preponderava e vigorava eram as Ordenações do Reino de Portugal7 (Alfonsinas,

Manuelinas e Filipinas), ou seja, até 1830, puniam-se crianças e adolescentes com

severidade extrema e com medidas cruéis. A mutilação era uma das espécies de pena

5 Marcílio (2006) informa que, em 1726, devido à precária situação das crianças sem família e, ainda, pela

atitude negligente da Câmara em atender essas crianças, o arcebispo de Salvador e o vice-rei pleitearam

junto à Mesa da Irmandade da Santa Casa a abertura de uma Roda de Expostos, nos moldes da que existia

em Lisboa (MARCÍLIO, 2006, p. 148). 6 Fato é que a prática de abandono de crianças em igrejas e portas de casa era corrente, antes mesmo da

implantação da Roda. 7 As Ordenações do Reino de Portugal representam o esforço pioneiro de sistematização do que podemos

chamar um direito nacional, fato que ajuda a caracterizar Portugal como um dos primeiros Estados da

época moderna.

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e a de morte era estabelecida para a maioria das infrações. Em que pese, desde o

Direito Romano, ser menor de idade, já ser sinônimo de atenuante para aplicação da

pena, no Brasil, anterior a 1830, as crianças e jovens eram punidos da mesma forma

que os adultos. Ou seja, seguiam os costumes europeus, punindo a criança como um

“mini adulto”.

Em meados do século XIX, passa a ser uma questão de ordem pública a

formulação de políticas para a infância. Em 1854 começam as primeiras ações,

através de um Decreto Imperial, para recolhimento de meninos que vagavam nas

ruas, enquanto as meninas desvalidas indigentes eram recolhidas, há tempos, na

Santa Casa. Em 1871, o Asilo de Meninos Desvalidos é criado e o século XIX finda

com 30 asilos de órfãos, sete escolas industriais e de artífices e quatro escolas

agrícolas, evidenciando-se a vinculação da atenção à criança ao trabalho subalterno.

Tem-se, então, no Brasil Império, a ampliação de instituições destinadas a

atender crianças e adolescentes órfãos, pobres e abandonados. Somente em 1850 é

que houve a divisão em alas separadas nas Casas de Correção8, ou seja, alas de

cunho correcional destinadas a menores delinquentes, mendigos e vadios e alas

destinadas a menores órfãos e desvalidos.

O Brasil Império preocupa-se com a criança órfã e exposta e tem como

fundamento a ideologia cristã, aplicando medidas de caráter assistencial, lideradas

pela iniciativa privada de cunho religioso e caritativo. Tome-se como exemplo, o

texto legal do Aviso nº 478, de 17 de outubro de 1863, que complementava o art. 13

do Código Criminal que determinava que se ficasse comprovado que o menor de 14

anos tivesse praticado um crime com discernimento, ou seja, com entendimento de

que o estava praticando, deveria ser recolhido à Casa de Correção pelo tempo que o

juiz entendesse melhor, desde que o menor não excedesse a idade de 17 anos.

§2º. Tendo sido commettido pelo menor antes de completar 14 annos

de idade, deve ser punido de conformidade com o art. 13 do Código

Criminal, visto que o Juiz tem de atender para o estado do menor na

época do crime e não na do julgamento, não podendo influir sobre a

natureza do delicto e da pena a circumstancia de ter o menor passado a

idade de 14 annos por causa da demora do processo.

Deus Guarde á V. Exa. (...)

8 A Casa de Correção da Corte (CCC) é o mais antigo modelo de penitenciária.

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12

A questão da educação começa a se fazer presente a partir do século XIX,

quando é usada como via para o ensino religioso e para a salvaguarda dos costumes.

A educação passa, então, a servir como meio de resgate e recuperação do “menor

infrator” (RIZZINI, 1997).

Com D. Pedro II no poder, busca-se dar fim a um período obscuro no qual

ocorriam grandes injustiças penais praticadas contra a infância. A materialização

deste avanço está na edição do texto constitucional em 1824 e do Código Criminal

em 1830, que limitou a responsabilidade penal e a aplicação das sanções penais

apenas para os maiores de 14 anos, representando assim, o início de um novo

modelo.

Conforme Marcílio (1998), o Brasil Império, no plano do atendimento

assistencial, centrou sua preocupação e atenção no recolhimento de crianças órfãs e

expostas, usando como ferramenta específica a regulamentação9 e sistematização do

ensino dos “filhos do povo”, aqueles de origem das classes populares, para os quais

deveria ser oferecida a instrução primária e a formação profissional. Essas atividades

ficavam a cargo das Províncias brasileiras e o Governo Imperial se ocupou da

educação da Corte, criando instituições voltadas para as atividades de guerra10

que

passaram a receber os meninos dos colégios de órfãos e das casas de educandos e,

ainda, aqueles recolhidos nas ruas pelas polícias das capitais brasileiras, para os

quais se reservavam os ofícios militares. Todavia, enquanto o Império mantinha as

instituições de caráter educativo, a assistência às crianças órfãs e expostas ficou à

mercê de alianças com entidades privadas de cunho religioso e caritativo, mantidas

pela Igreja, que se responsabilizaram pela administração e edificação das mais

diversas instituições, de caráter invariavelmente asilar, mas com fartos subsídios

financeiros provenientes dos cofres públicos do Império.

Vale lembrar que, segundo Marcílio (1998), se para os meninos havia

instituições públicas e privadas, as meninas órfãs e desvalidas foram mantidas nas

mesmas instituições religiosas de Recolhimentos criadas no século XVIII. Ressalte-

9 A Lei nº 16, de 12/8/1834, estabeleceu a responsabilidade das Províncias pelo ensino primário e

profissional, sendo que nove Províncias instalaram Casas de Educandos Artífices, nas quais os meninos

pobres recebiam instrução primária, musical e religiosa, além do aprendizado de ofícios mecânicos, tais

como os de sapateiro, alfaiate, marceneiro e carpinteiro, dentre outros. 10

Companhias de Aprendizes Marinheiros e Escolas/Companhias de Aprendizes dos Arsenais de Guerra.

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13

se que, no período imperial, a prática foi difundida com a criação de novas unidades

em várias capitais11

, que passaram a se dedicar às peculiaridades dos novos grupos

étnicos de meninas agregadas, como as indígenas (geralmente capturadas pelas

missões religiosas), as indigentes (filhas naturais de mães pobres), as órfãs brancas e

as meninas de cor. Certo é que a educação era voltada ao papel social reservado para

elas nos padrões da rígida hierarquia social da época, quase sempre voltada para

atividades subalternas, inclusive para outros grupos sociais e étnicos (MARCÍLIO,

1998, p. 163).

O Decreto 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, cria a possibilidade de

admitir alunos pobres em escolas particulares mediante gratificação do Estado e a

assistência educacional a meninos menores de 12 anos pobres e indigentes, para os

quais se fornecia “vestuário decente e simples”, desde que a indigência fosse

justificada perante o Inspetor Geral. Instituía também o ensino para todos os

meninos maiores de sete anos sem impedimento físico ou moral.

Art. 69 . Não serão admittidos a matrícula, nem poderão freqüentar as

escolas: os meninos que padecerem de moléstias contagiosas; os que

não tiverem sido vaccinados, e os escravos12

. (BRASIL, Decreto nº

1331-A, 1854).

Embora excluídos da obrigatoriedade do ensino, a partir de 1850, há a

inclusão de escravos na legislação que, através do Aviso nº 190, de 1852, declara

que os artigos do Código Criminal também se aplicavam aos escravos menores. A

título de ilustração, tem-se o caso da escrava Ambrozina13

, narrado por Capelo

(2009). Presa aos 12 anos de idade, em janeiro de 1852, ela foi acusada de matar a

machadadas uma jovem branca, Antonina Joaquina Fernandez, esposa do capataz do

seu senhor. O verdadeiro autor do crime era o marido da jovem assassinada que,

ameaçando Ambrozina de morte, obriga-a a assumir toda a culpa. A menina padeceu

na prisão por quatro anos à espera de justiça. O processo arquivado no Fórum da

11

Informam que foram criadas, entre os séculos XVII e XIX, as unidades do Rio de Janeiro, Salvador,

Pernambuco, Maranhão, Bahia e Pará. 12

O Decreto 1331A reforma os ensinos primário e secundário, exigindo professores credenciados e a

volta da fiscalização oficial; cria a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária. 13

A escrava Ambrozina foi presa na região de Palmas, Vila de Castro, sudoeste do atual Estado do

Paraná. Sua história está narrada no apêndice A. Encontra-se, em pesquisas, o nome da escrava escrito de

formas distintas: Ambrozina e Ambrosina. Além disso, o Aviso nº 190 de 17 de julho de 1854, que dispõe

sobre a aplicação do art. 10 aos escravos menores, traz Ambrosiana como nome da referida menor

escrava.

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14

cidade de Palmas informa que ela não sabia ler e desconhecia sua data de

nascimento. Aliás, sua idade foi determinada, no decorrer do processo, pela

avaliação de testemunhas que lhe deram aproximadamente 12 ou 13 anos. Separada

de seus pais muito cedo, foi inserida no mundo do trabalho precocemente e, aos seis

anos já lavava roupas, carregava água e fazia outros serviços na propriedade.

Encarcerada, três anos depois, após vários interrogatórios, oitivas de testemunhas

controversas e dois arquivamentos, Ambrozina contou em uma audiência que havia

sido amarrada pelo capataz e mais cinco homens, sendo ameaçada de morte caso não

dissesse ter sido a assassina de Antonina. Em 15 de fevereiro de 1856, ela enfim é

absolvida por “inexistência de provas jurídicas”. O magistrado levou em

consideração também que as três confissões haviam sido feitas mediante grave

ameaça e que a escrava era menor de idade na época do crime. Aos 16 anos,

Ambrozina finalmente consegue ter seu nome excluído do rol dos culpados.

Mesmo após a Lei do Ventre Livre14

, em 1871, a criança escrava podia ser

utilizada pelo seu senhor dos oito aos 21 anos caso, mediante indenização do Estado,

não fosse libertada.

A Lei do Ventre Livre, embora tenha uma inegável importância no processo

abolicionista desde os anos de 1850, não altera substancialmente o tratamento dado ao

“menor”, naquilo que já dispunha o Código Criminal de 1830, havendo uma quase

associação entre crianças escravas livres e crianças abandonadas, órfãs e desvalidas.

A Abolição da Escravatura, em 1888, e a Proclamação da República, no ano

seguinte, não alteraram o enfoque social sobre os asilos que, como consequência da

ruptura das relações entre a Igreja e o Estado, teve expansão através de iniciativas

privadas e com subsídio público. Nesse cenário social e político, de acordo com

Berger (2005, p. 170), à questão da ordem aliou-se a questão da higiene, uma vez

que os médicos começam a focar atenção a questões como a mortalidade infantil,

amamentação, inspeção escolar e, ainda, com o vislumbre da possibilidade da creche

em substituição a Roda. Por conseguinte, a ordem social teria que ser priorizada por

14

Por esta lei toda criança, filha de escrava, que nascesse a partir daquela data não era mais escravo, mas

livre. A mãe continuava escrava, mas a criança era livre. Até os oito anos a criança ficava com a mãe.

Depois dessa idade, se fosse embora, o senhor da mãe recebia uma indenização do estado, mas a criança

não recebia nada. Caso contrário, ficaria até os 21 anos de idade prestando serviços ao senhor.

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15

meio do comportamento desviante com casas correcionais e orfanatos preparatórios

para o trabalho.

Para Benacchio (2004), a introdução e a popularização dos ideais

higienistas acarretam consequências diretas ao atendimento à infância por parte da

sociedade civil e do Estado. Ao passo que as teorias científicas da época diziam que

os comportamentos desviados eram fruto do somatório de características herdadas e

hábitos aprendidos nos meios sociais. A princípio, a internação desses menores em

instituições era indispensável para a melhoria da “raça brasileira”, desde que se

tornassem locais de educação e formação moral.

Novos olhares passam a focar a infância. Além dos religiosos, juristas e

médicos passaram a se preocupar com a vida moral e familiar da criança. Qualquer

fato que significasse ameaça à ordem pública era carecedor de atenção. Por outro

viés, a criança que ameaçava a ordem pública era vista e entendida como um

problema a ser sanado.

‘O problema da criança’ começa a adquirir uma dimensão política,

consubstanciada no que muitos denominavam de ‘ideal republicano’

na época. Não se tratava mais de ressaltar a importância, mas sim a

urgência de se intervir, educando ou corrigindo ‘os menores’ para que

se transformassem em cidadãos úteis e produtivos para o país,

assegurando a organização moral da sociedade (RIZZINI, 1993, p.

112).

Em fins do século XIX, paulatinamente, a mão de obra escrava dá lugar à

mão de obra assalariada. Conforme Rizzini (2000), muitas crianças precisavam

trabalhar para complementar a renda familiar e os patrões justificavam a exploração

dessas crianças com o discurso da proteção do menor, pautando seus atos no intuito

de evitar que ficassem jogados nas ruas. Certo é que foram de encontro ao que

preconizava o primeiro Código de Menores, que autorizava o trabalho somente a

partir dos 12 anos se o menino estivesse frequentando o ensino primário, ou, senão,

a partir dos 14 anos.

Questões como higiene e delinquência, na infância, são consolidadas no 1º

Código de Menores, que normatizou a vigilância pública sobre a infância. A partir

de então, tem-se legalmente a diferenciação entre menores abandonados e

delinquentes.

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16

Art. 1º. O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente,

que tiver menos de 18 annos de idade, será submetido pela autoridade

competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste

Código.

(...)

Art.12. A vigilancia instituída por esta lei é confiada no Distrito

Federal á Inspetoria de Hygiene Infantil.

(...)

Art.13. O Governo Federal é autorizado a auxiliar, de acordo com a lei

de subvenções, as creches, os institutos de gotta de leite, ou

congêneres de assistencia á primeira infancia e puericultura.

(BRASIL, 1890 - grifo nosso).

Cabe pontuar que as legislações que antecederam ao primeiro Código de

Menores, embora prevendo tratamento diferenciado entre abandonados e

delinquentes, mantinham o espírito de entendê-los como se iguais fossem. É o caso

do Projeto nº 94, de 17 de julho de 1912, que preconizava, no final do parágrafo

único do art. 13, que os menores que tivessem delinquido não viveriam em contato

com aqueles não delinquentes, “embora apresentassem o mesmo grau de

moralidade”. O Decreto nº 16.272, de 20 de dezembro de 1923, ao titular o

regulamento a que se referia o Decreto, o faz da seguinte forma: “Da assistencia e

proteção aos menores abandonados e delinquentes” (grifo nosso). Por este Decreto,

o menor de 14 anos não seria mais submetido ao processo penal, enquanto que o

maior de 16 e menor de 18 anos se praticasse algum crime, poderia ir para a prisão

desde que separado dos adultos. O juiz devia trabalhar em prol da regeneração do

menor, o que indica que a questão da infância abandonada e delinquente era um

assunto de caráter público.

2.2 - A legislação e a criança de 1830 a 1890.

O Código Criminal do Império, de 1830, prescrevia que os menores de 14

anos que tivessem cometido, com discernimento, atos indesejados pela sociedade

deveriam ser internados em “Casa de Correção”.

Art.10. Também não julgarão criminosos:

Parágrafo 1º. Os menores de quatorze annos.

(...)

Art.13. Se se provarem que os menores de 14annos, que tiverem

commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser

recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer,

comtanto que o recolhimento não exceda á de dezessete annos.

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17

Os tribunais especiais, voltados para as questões do “menor”, e as Casas de

Correção, segundo Rizzini (1997), tinham como objetivo corrigir o mau

comportamento desses menores, além de salvá-los dos chamados “venenos sociais”,

ou seja, do meio do vício, das más companhias, dos perigos da rua e, principalmente,

das prisões abarrotadas de adultos já corrompidos.

A questão central da legislação nas primeiras décadas do Brasil Império,

conforme Fortes (2007), diz respeito à infância, em torno do recolhimento de

crianças órfãs e expostas, calcada na ideologia cristã de amparar a infância órfã e

abandonada. A Igreja Católica, que exercia significativa influência nas searas

política e jurídica e representava as iniciativas privadas de cunho religioso e

caritativo, praticava medidas de caráter assistencial com fim precípuo de recolher,

corrigir e educar. Por sua vez, devido a essa influência, a administração pública agia

através das instituições católicas, que eram as primeiras a se preocupar com a

questão das crianças e adolescentes órfãos e abandonados.

Para Camara (2010), a partir do Código de 1830, estabeleceu-se que a

responsabilidade penal seria atribuída aos maiores de 14 anos e para os menores

desta idade, desde que tivessem praticado o delito com discernimento. A autora

(2010, p. 205) informa que o fervoroso defensor da questão do menor, Tobias

Barreto15

, por meio de sua obra Menores e Loucos em Direito Criminal16

, tece

críticas às lacunas e incongruências do Código, em especial à associação do

discernimento com a idade, do gênero e da normalidade como pressupostos no

julgamento dos indivíduos. Questiona a falta de atenção para as diversidades de

raça, cultura e desenvolvimento que cada indivíduo apresenta. Na esteira de outros

países, o Código de 1830 não punia os menores de 14 anos e os loucos de todo o

15

Tobias Barreto de Meneses (1839-1889) foi um filósofo, poeta, professor, crítico e jurista brasileiro e

fervoroso integrante da Escola do Recife (movimento filosófico de grande força calcado no monismo e

evolucionismo europeu). Foi o patrono da cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras. 16

Camara afirma que,“ enquanto Tobias Barreto lançou luz sobre os menores e loucos como foco da

discussão, bem como dos limites da sua ação consciente, Nina Rodrigues buscou combinar princípios de

autonomia e determinação, criticando Barreto e difundindo, como quesito importante para a discussão da

responsabilidade penal, a raça. Adianta Vianna que, em seu livro, As raças humanas e a responsabilidade

penal no Brasil, publicado em 1854, Nina Rodrigues adicionou à analogia menores e loucos um ‘mal

mais profundo que o uniria em uma sociedade mestiça: a luta contra o atraso ocasionado pelas raças’”

(CAMARA, 2010, p. 205).

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18

gênero que tivessem praticado delitos conscientes de sua ação17

(CAMARA, 2010,

pp. 205-206).

A idéia do criminoso envolve a idéia de um espírito que se acha no

exercício regular de suas funções, e tem, portanto, atravessado os

quatro seguintes momentos da evolução individual: - 1º a consciência

de si mesmo; - 2º a consciência do mundo externo; - 3º a consciência

do dever; - 4º a consciência do direito. O estado de irresponsabilidade

por causa de uma passagem ou duradoura perturbação do espírito, na

maioria dos casos, é um estado de perda das duas primeiras formas de

consciência ou da normalidade mental. Não assim, porém quanto à

carência de imputação de pessoas de tenra idade, e em geral de todas

aquelas que não atingiram um desenvolvimento suficiente; neste caso,

o que não existe, ou pelo menos o que se questiona, se existe ou não, é

a consciência do dever, e algumas vezes também a consciência do

direito.

O nosso Código, no artigo 10, não fez mais do que reconhecer uma

velha verdade, consagrada pela história em todos os períodos culturais

do direito penal. Cometeu, entretanto, além de outros, [...] um erro de

método: - foi reunir em uma só categoria diversas classes de sujeitos

irresponsáveis, que não se deixam reduzir a um denominador comum,

isto é, a ausência do que eu chamei normalidade mental18

(TOBIAS

BARRETO, apud CAMARA, 2010, p. 206).

Fazendo um pequeno desvio, vale alertar que as ideias de Tobias Barreto

tinham como berço o direito penal germanista. Dessa forma, para ele, a questão da

imputabilidade apoiava-se no fato indiscutível de que o homem normal, chegando a

determinada idade, legalmente estabelecida, adquiria maturidade e capacidade para

entender o valor jurídico de seus atos e, a partir daí, decidir-se livremente a praticá-

los ou não. Estabelecia, portanto, como condições fundamentais de uma ação

criminosa, o conhecimento da ilegalidade da ação pretendida e ainda, o poder do

agente de deliberar, por si mesmo, a prática do delito quer proveniente de uma ação

ou de uma omissão. Ou seja, o autor (1926, p. 7-12) defendia que o cerne da questão

não estava no momento da liberdade no ato do crime, já que a ideia de criminoso

englobava a ideia de um espírito que se achava no exercício regular de suas funções

e tinha passado pelas quatro fases da evolução individual, quais sejam, a consciência

de si mesmo, a consciência do mundo externo, a consciência do dever e a

consciência do direito.

Imputar, diz Zacharie, é julgar alguém autor de um certo fato, isto é,

julgá-lo causa de um certo efeito, segundo as leis da liberdade. (...) A

17

Menores e Loucos em Direito Criminal. 18

Ibidem, p. 12-13.

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19

teoria da imputação; ou a psicologia criminal, como a denominam os

juristas alemães, apoia-se no fato empírico, indiscutível, de que o

homem normal, chegando a uma certa idade, legalmente estabelecida,

tem adquirido a madureza e a capacidade precisas para conhecer o

valor jurídico de seus atos e determinar-se livremente a praticá-los.

São portanto, condições fundamentais de uma ação criminosa

imputável as seguintes: 1º o conhecimento da ilegalidade da ação

requerida (libertas judicii); 2º poder o agente, por si mesmo, deliberar-

se a praticá-la, quer comissiva, quer omissivamente (libertas consilii),

é o que resulta do próprio conceito de imputação (TOBIAS

BARRETO, 1951, p. 29).

Tobias Barreto advogava que, embora houvesse o reconhecimento desses

princípios por parte do Código de 1830, colocava no mesmo patamar diversos

sujeitos irresponsáveis. Nesse raciocínio estava a questão do menor, que era

elaborada a partir da ideia do discernimento e que, para ele, gerava possibilidades

para muitos abusos. Dessa forma, “a questão da fixação legal de uma época para o

homem criminalmente responsável era uma questão em aberto” (1926, p. 14). Daí, a

anuência do autor com o pensamento filosófico da época:

Em um Estado com muitas províncias, de diferentes graus de

desenvolvimento e de cultura, deveria prevalecer como base para

imputabilidade o ponto mais alto, que pudesse convir com todas as

províncias, pois não havia o perigo de se punir como criminoso quem

não tivesse atingido o discernimento necessário para firmar a

imputação (TOBIAS BARRETO, 1926, p. 14).

A legislação desse período é tão evidente que reflete a nítida associação

entre as ações do governo e da Igreja na esfera política e mesmo no âmbito mais

estritamente jurídico. Continuando nesse raciocínio, Fortes (2007) salienta que, no

que concerne à educação, é de se observar que, desde 1808, essa preocupação já se

faz presente e que, a partir da década seguinte, inicia-se o controle voltado para o

ensino religioso e para a salvaguarda dos costumes. Em consequência, a partir da

segunda metade do século, leis e decretos começam a ser criados no sentido de

regulamentação do ensino primário e secundário, com a criação de escolas públicas

de instrução primária.

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20

Baseado nestas ideias, já a sua época, Beccaria19

(2005, p. 103) preconizava

que “o homem com instrução sabe comparar os objetos, analisá-los de diferentes

pontos de vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros, pois vê nos

seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre seu

coração”. E completa:

O meio mais seguro, ainda que o mais difícil, para prevenir os delitos

é aperfeiçoar a educação, assunto demasiado vasto [...]. Ainda, ouso

dizer que ele está intrinsecamente ligado à natureza do governo, razão

para que seja um campo estéril, só cultivado por alguns poucos sábios

(BECCARIA, 2005, p. 62).

Era, então, dominante a preocupação fundada na ideologia cristã de amparar

a criança órfã e desvalida, recolhendo-a em instituições destinadas à sua criação,

mantidas pela Igreja Católica com subsídio do governo.

Vasquez (2008) informa que na entrada do século XIX, precisamente em

1819, Jeremy Bentham20

publica a obra Theory Penalty and Recompenses, trazendo

ideias para uma nova teoria penal que se baseava “na separação dos presos por sexo,

melhor alimentação, limpeza, trabalho, assistência à saúde e educação”, além de ser

o proponente de um modelo de prisão na forma panóptica21

, conforme citado

também nas obras de Michel Foucault. Na mesma esteira, os contemporâneos

Herbert Spencer22

e Enrico Ferri23

defendiam “o valor utilitário da educação” e

“formas de tratamento a ser dado aos criminosos”, exercendo influência nos

discursos que embasaram as legislações que se seguiriam. Spencer (apud

VASQUEZ, 2008) chamava a atenção para o valor utilitário da educação,

demonstrando que os conhecimentos mais importantes são os que servem para a

conservação e a melhoria do indivíduo, da família e da sociedade em geral. Ferri

19

Cesare Bonesana, marquês de Beccaria (1738-1794) foi um jurista, filósofo, economista e literato

italiano. Considerado um clássico do Direito Penal, Beccaria foi a primeira voz a levantar-se contra a

tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas

empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática de confiscar bens do condenado. Uma de

suas teses é a igualdade perante a lei dos criminosos que cometem o mesmo delito. 20

As idéias de Bentham influenciaram o radicalismo político inglês e constituíram a base do laissez-faire,

o liberalismo clássico, que caracterizou a economia do século XIX. 21

Corresponde à observação total, a tomada integral por parte do poder disciplinador da vida de um

indivíduo. 22

Teórico inglês (1820-1903) que buscou no evolucionismo os mecanismos e objetivos da sociedade e

defendeu o ensino da ciência para formar adultos competitivos. 23

Considerava a delinquência como consequência de fatores antropológicos e sociais.

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21

(apud VASQUEZ, 2008), por sua vez, apresentava a possibilidade da introdução da

educação como “forma de tratamento aos criminosos”.

A Lei nº 4, de 10 junho de 1835, determinava as penas com que deviam ser

punidos os escravos que cometiam qualquer ofensa contra os seus senhores,

estabelecendo as regras para o competente processo. Os “menores” escravos

recebiam o mesmo tratamento que os adultos, ficando a cargo do seu senhor a

melhor forma de puni-los, uma vez que pertenciam ao rol do patrimônio de seus

senhores, ficando à mercê do seu julgamento e punição. Com o episódio da escrava

Ambrozina, decidiu-se em 1852, que a mesma imputabilidade referendada pelo

Código Criminal aos menores de 14 anos seria também aplicável aos escravos

menores.

Em 1850, através do Decreto nº 678, a Casa de Correção do Rio de Janeiro

é regulamentada com destino à execução da pena de prisão com trabalho e tendo,

ainda, uma divisão correcional específica aos menores de 14 anos que,

conscientemente, tivessem cometido delitos. Entretanto, há que se observar que

somente 20 anos depois do Código Criminal de 1830, é que houve tentativas de

regulamentação das Casas de Correção, com proposta de divisão em alas distintas.

As crianças ficariam na ala de cunho correcional específica para “menores

delinquentes, mendigos e vadios”, significando com isso que os “menores” não

tinham um local específico para eles e com tratamento voltado ao seu

desenvolvimento físico e psíquico. Longe disso, essas crianças eram encaminhadas

para o mesmo ambiente de adultos pobres e desempregados.

A primeira Casa de Correção, no Brasil, teve sua base lançada em 1834 e foi

inaugurada em 1850, representando, para o contexto do século XIX, um ideal de

progresso e de modernidade, justificado pela necessidade de corrigir as classes

perigosas para a proteção da sociedade – os indivíduos ociosos e também inimigos da

ordem24

.

24

A história da Casa de Correção da Corte corre paralelamente à história do país. Após sua criação no

final do Império, atravessou a República Velha e o Estado Novo com muitos casos envolvendo presos

célebres, como os temidos e conhecidos capoeiras perseguidos pela polícia republicana, os amotinados da

Revolta da Vacina (1904) que caíram nas malhas da lei e os presos políticos da Era Vargas, ocasião em

que teve entre seus prisioneiros o escritor Graciliano Ramos, em 1936.

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22

Nesses espaços, pretendia-se que um novo olhar se voltasse para a questão

do “menor delinquente”, com a regulamentação do ensino no sentido de torná-lo

obrigatório. Esse é o espírito do Decreto nº 1331-A, de 1854, que denota sensível

incentivo à criação de escolas. Porém, tais escolas não eram, de fato, destinadas a

todos, tendo em vista que aos meninos que padeciam de moléstias contagiosas, que

não tivessem sido vacinados ou os escravos, não era permitido frequentá-las. As

crianças indígenas nem eram mencionadas, carentes, portanto, de recepção estatal.

Vasquez (2008) pondera que o controle político da nação esteve nas mãos

de D. Pedro I, das Regências Trina e Una e de D. Pedro II, entre 1822 a 1889, regido

pelos princípios da Constituição Política do Império do Brasil. Dessa forma, nos

anos do Segundo Reinado, de 1840 a 1889, o país foi organizado e regido por meio

dos Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador e marcado pela

economia cafeeira, pela difusão da instrução pública em nível primário, secundário e

superior, pela construção de instituições prisionais e pela implantação de novos

regulamentos penitenciários, como no caso da Casa de Correção da Corte, Casa de

Correção de São Paulo, Casa de Correção de Porto Alegre, Presídio de Fernando

de Noronha e Colônia Correcional de Dois Rios.

De acordo com Zaluar (1999), o século XIX finda como um período de

significativas transformações no Brasil, como o aumento da urbanização e

industrialização, que acarretam o crescimento e a concentração das populações

urbanas e, consequentemente, uma expressiva quantidade de crianças sem acesso à

escola (ZALUAR, 1999). A partir daí, um interesse crescente em relação à criança,

em particular aos cuidados a ela ministrados pela família, liderado pela medicina

higienista, notabilizou-se, abrindo caminho para a intervenção jurídica que ganharia

fôlego na passagem do século. Pinheiro (2003) endossa a necessidade do acesso a

escola ao ponderar que:

Compreende-se, facilmente, que, removidas as causas peculiares que

concorrem para o aumento dos crimes contra as pessoas, muito ainda

resta a fazer para impedir que o infante e o adulto, aquele apto para

receber as lições do mal, e este do vício, aquele exposto ao germem, e

este ao desenvolvimento da criminalidade, constituam constante

perigo para a sociedade. Se, pois, não é de pouca ponderação o que

acima indiquei, mais se me afigura inadiável o dever de atacar a

verdadeira fonte do mal, isto é, a falta do ensino moral e religioso, e a

ausência da educação moral e profissional dos meninos viciosos.

Combater sem tréguas o vício e a ignorância devem ser, pois, a

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primeira preocupação de todos os que visam o adiantamento moral da

pátria; e como meio eficaz para a consecução desse desideratum, é de

mister prestar desvelada atenção aos dois grandes princípios que

regem as sociedades modernas – a escola e o trabalho.Difundir a

instrução pelo povo, alargando-a de maneira a compreender o ensino

entre nós tão descurado dos princípios morais e religiosos, e sobretudo

promover a criação de escolas agrícolas ou industriais para a educação

dos menores, será prestar assinalado serviço à correção preventiva dos

que em verdes anos encontram na escola do vício bem fácil acesso...

(PINHEIRO, 2003, p. 46).25

Em 1889, o regime do Estado Brasileiro muda para República, acarretando

intensa preocupação com o reordenamento político e social. É nesse momento que a

ideia de identidade nacional se fortalece e novas discussões sobre a infância

começam a se desenvolver, em especial quanto à “infância delinquente”.

O Código Penal de 1890 ou Decreto nº 847 de 11/10/1890, altera a idade de

responsabilidade penal para os nove anos, mantendo o limite de 14 anos, e dispõe

sobre as crianças que perturbam a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Para

Rizzini (1997, p. 188), no que se refere aos dispositivos relativos à infância, o

Código de 1890 foi considerado um retrocesso em relação ao Código Criminal de

1830, uma vez que houve o rebaixamento da idade penal de 14 para 9, numa época

em que muito se discutia sobre a necessidade de evitar a punição aplicada a

menores.

Art. 27. Não são criminosos:

Parágrafo 1º. Os menores de 9 annos completos;

Parágrafo 2º. Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem

discernimento;

Art. 30. Os maiores de nove annos e menores de 14, que tiverem

obrado com discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos

disciplinares industriaes, pelo tempo que o juiz parecer, comtanto que

o recolhimento não exceda á idade de 17 annos. (BRASIL,1890).

Em meio às discussões sobre delinquência, correção e educação relativas à

infância, com base no que normatizava o parágrafo 2º do art. 27, do Código de 1890,

o foco central na discussão da aplicação de penas às crianças eram as questões do

discernimento e imputabilidade. A discussão sobre a questão da existência do

discernimento para haver a incidência da responsabilidade do “menor”, levava a

25

Relatório de Antônio Rodrigues Monteiro de Azevedo, Chefe de Polícia durante o mandato de

Bernardo Avelino Gavião Peixoto como Presidente da Província do Rio de Janeiro, 1882.

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doutrina a questionar, ainda, se esta seria uma questão de natureza moral ou jurídica.

Já em relação à imputabilidade, questionava-se em qual idade caberia a aplicação da

responsabilidade penal. Para Camara (2010, p. 205), a presença do discernimento era

o que indicava o indício da culpabilidade e, consequentemente, da atribuição da

responsabilidade ou inimputabilidade penal às crianças.

Com a passagem da Monarquia para a República, uma das sensíveis

mudanças trazidas pelo Código Penal de 1890 foi um projeto em relação aos

meninos, prevendo a medida de internação, objetivando a sua recuperação e/ou

educação. Para Benacchio (2004) a questão da delinquência infantil não nasceu com

a República, mas se ampliou com o crescimento populacional e, ao mesmo tempo,

com as medidas para combatê-la. A maioridade aos nove anos levou meninos muito

jovens ao convívio carcerário com delinquentes de todo tipo, incentivando-os e

condenando-os a estarem à margem da ordem. O tão almejado progresso exigia

implantação da ordem, impondo rigor em relação à criminalidade, em especial a

infantil. As crianças que vagavam pelas ruas, criminosas ou não, eram provenientes

das camadas populares. Assim, os pobres passaram a ser vistos como fonte de

crimes e vícios e considerados como responsáveis pelo seu estado de pobreza. Era a

expressão da ideologia progressista, trazendo um diferente olhar sobre a questão da

pobreza (BENACCHIO, 2004).

O parágrafo 2º do artigo 399 do Código de 1890 define uma situação

especial para os menores infratores que passam a ser confinados, entre os 14 e 21

anos, em estabelecimentos disciplinares industriais, configurando, na prática, uma

pena que poderia ser superior à dos maiores de idade condenados pela mesma

infração ou mesmo por outras mais graves.

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em

que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio

certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação

prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons

costumes:

Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.

Parágrafo segundo. Os maiores de 14 annos serão recolhidos a

estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser

conservados até a idade de 21 annos (CÓDIGO PENAL, 1890).

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Dessa forma, era explícita a intenção da norma em atrelar punição e

regeneração no tratamento dispensado ao contraventor. Em 1889 é aprovada uma lei

complementar que versava sobre os procedimentos a serem utilizados na prisão, no

processo e no julgamento dos tipos de contravenção, que iam desde as profanações

de túmulos à capoeiragem. Mendicância e vadiagem também eram abraçadas pela

norma. Mais conhecida como Lei Alfredo Pinto, a Lei nº 628, de 28 de outubro de

1899, tinha como objetivo dar celeridade ao julgamento e punição dos

contraventores. Com esse objetivo, a lei determinava que os delegados de polícia

passassem a ter a função e o poder de produzir os processos por contravenção.

Era claro o interesse de reprimir a delinquência, em especial a da infância,

como sinalizam as leis penais e regulamentações da época. Contudo, não chegava a

ser uma ameaça que ultrapassasse o controle das autoridades policiais e judiciárias.

A garantia do desenvolvimento econômico da nação passava pela crescente

oferta de pessoas disponíveis e dispostas para o trabalho. “Se a liberdade e as regras

do assalariamento não eram suficientemente atrativas” (BENACCHIO, 2004, p. 5),

restava a alternativa “educativa” do Estado, através da ação repressiva da polícia e

da punição exemplar e regenerativa da justiça.

Tem-se, então, que as escolas, asilos ou reformatórios tinham a função de

isolar os pequenos indivíduos do convívio com as possibilidades de sobrevivência

que as ruas lhes ofereciam e prepará-los, através da disciplina e do ensino

profissional, para a condição de futuro cidadão. Londoño (1996, p. 133) afirma que

as Casas de Correção para crianças infratoras, historicamente, foram se

diferenciando dos asilos para órfãos, caracterizando-se pelo princípio de regenerar, a

partir da disciplina, trabalho e educação. Assim, num mesmo lugar, regulando a vida

desses menores infratores, fundem-se a escola, a fábrica e a prisão (FOUCAULT,

1984, p. 209).

Outorgava-se ao Estado, em prol da sua tarefa assistencial, o direito sobre a

vida desses “menores” por períodos bastante longos. Enquanto que para os maiores

de 21 anos, considerados vagabundos, as penas estabelecidas pelo Código de 1890

chegavam no máximo a três anos de reclusão, à relativa aos que tinham entre 14 e 21

anos poderia chegar a sete anos de reclusão em estabelecimentos disciplinares

industriais.

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A promulgação do Código de 1890 sofreu influência dos ideais

civilizatórios europeus, como por exemplo, dos italianos, que da mesma forma

instituíram a maioridade penal aos nove anos, visando assim, à repressão da

marginalidade desde muito cedo. As crianças eram consideradas adultas e, em

consequência, respondiam penalmente pelos seus atos. A infância terminava aos sete

anos quando a criança era considerada apta a trabalhar (BULCÃO, 1992, p. 24).

Também de forma paradoxal, em seu art. 27, parágrafo 2º, o Código de

1890 manteve a tese do discernimento, indicando que o indivíduo deveria conhecer a

ilegalidade da ação praticada por ele quando do seu cometimento, para que fosse

considerado imputável, ou seja, passível de responsabilização pelo ato ilegal e,

portanto, passível de punição.

Segundo Bulcão (1992, p. 29), a ambiguidade da norma legal e o tratamento

jurídico inadequado, em especial na faixa dos nove aos 14 anos, favoreceram o

crescimento da delinquência infantil, contradizendo o que era preconizado nos

discursos dos defensores da ordem e de uma sociedade civilizada. Na verdade, o que

se escondia por trás do argumento de recuperação do “menor” era o objetivo

imediato de afastar e punir, compulsoriamente, os meninos considerados vadios e

perniciosos ao convívio social.

Nesta concepção paternalista, cabe retomar que a criança e o adolescente

carentes eram vistos como potencialmente criminosos e para eles, de forma

exclusiva, criou-se a categoria dos “menores”, configurando um direito especial, um

direito de exceção. Essa questão é bem explicitada por Machado (2003, p. 58):

E assim historicamente se construiu a categoria criança não-escola,

não-família, criança desviante, criança em situação irregular, enfim,

carente/delinqüente, que passa a receber um mesmo tratamento – e a

se distinguir de nossos filhos, que sempre foram vistos simplesmente

como crianças e jovens-, compondo uma nova categoria, os menores26

(MACHADO, 2003, p. 58).

Esse binômio carência/delinquência, junto à distinção que se fez entre a

infância desvalida e a boa infância, vai subsidiar o direito material da Infância e da

26

“Sintetiza os objetivos do Direito do Menor (...) o nascimento do direito do menor, preocupado quase

exclusivamente em dar combate à criminalidade juvenil – e o combate não apenas repressivo em face do

crime já praticado, mas também e, principalmente, preventivo, sob a ótica da criminologia positivista”. In:

MACHADO, 2003, p. 58.

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Juventude, bem como as instâncias judiciais criadas para aplicação desse direito

especial. O que se criou foi um direito à parte, exclusivo para crianças e

adolescentes “não bons”, um “direito menor” para os “menores”. A educação, que

deveria ter caráter preventivo através dos bancos escolares assume caráter punitivo,

ao colocar a infância nos bancos dos réus.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando houve a tentativa de unificação da legislação para os menores,

separando-a do restante do ordenamento jurídico, criou-se uma nova categoria de

crianças e adolescentes ainda mais excluída da sociedade, os quais, ao mesmo tempo

em que receberam o direito a um tratamento diferenciado (de acordo com a sua

idade e sexo), foram considerados ainda mais “diferentes” e opostos ao que se tinha

por futuro da sociedade. Na contramão da harmonia social destacou-se ainda mais a

figura do menor abandonado e delinquente, alvo a ser corrigido e destinatário da

repressão estatal.

Seguindo essa esteira, Rizzini (2000) acrescenta que foram criados

internatos para crianças e adolescentes, em especial para os carentes, nos quais se

adotava o sistema correcional-repressivo. Muito aquém de oferecer uma

reestruturação da vida desses menores e com comportamento desviante, as

instituições para onde eles eram enviados acabavam, muitas das vezes, por lhes

ensinar e incentivar práticas criminosas.

Concomitantemente, defendia-se a criação de uma legislação especial para

menores, sob a tutela oficial do Estado, a exemplo do que ocorria em outros países

da Europa e nos Estados Unidos. Ideias discutidas em congressos internacionais

sobre o problema do aumento da criminalidade infantil serviram de base para que se

pleiteasse uma “nova Justiça”, na qual a educação e a recuperação deveriam

prevalecer em detrimento da punição.

Surgem, por conseguinte, os estabelecimentos que receberiam e abrigariam

esses menores infratores, as Casas de Correção.

Em síntese, o presente estudo visou buscar e localizar, no decorrer do século

XIX, as normas vigentes e aplicadas às questões relativas à delinquência infantil

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que, de alguma forma, embasavam as formas de guarda e repressão aplicadas ao

“menor infrator” no Brasil do período citado, bem como analisar qual era o papel da

educação/correção na recuperação desta infância denominada “desamparada”, aqui

denominada: a “infância no banco dos réus”.

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