A IDENTIDADE DO SUJEITO PÓS-MODERNO

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ADEUS LÊNIN: A IDENTIDADE DO SUJEITO PÓS-MODERNO Orientação: Profª Ms Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira Acadêmica: Érica Fernandes Silva * Resumo: Este artigo pretende traçar um panorama acerca da condição do sujeito pós-moderno através das temáticas que interpenetram o filme alemão Adeus Lênin (2003), do diretor Wolfgang Becker. Nossa análise procura estabelecer uma relação entre o discurso fílmico, a constituição da identidade e o impacto da imagem neste sujeito a partir da teoria bakhtiana e da perspectiva pós-moderna de Jean-François Lyotard. Palavras-chaves: Adeus Lênin, identidade, pós-modernismo, sujeito. * Aluna do quarto semestre do curso de Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda no Uni-Facef Centro Universitário, em 2005. 1

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Este artigo pretende traçar um panorama acerca da condição do sujeito pós-moderno através das temáticas que interpenetram o filme alemão Adeus Lênin (2003), do diretor Wolfgang Becker. Nossa análise procura estabelecer uma relação entre o discurso fílmico, a constituição da identidade e o impacto da imagem neste sujeito a partir da teoria bakhtiana e da perspectiva pós-moderna de Jean-François Lyotard.

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ADEUS LÊNIN:

A IDENTIDADE DO SUJEITO PÓS-MODERNO

Orientação: Profª Ms Sheila Fernandes Pimenta e Oliveira

Acadêmica: Érica Fernandes Silva *

Resumo: Este artigo pretende traçar um panorama acerca da condição do sujeito pós-moderno através das temáticas que interpenetram o filme alemão Adeus Lênin (2003), do diretor Wolfgang Becker. Nossa análise procura estabelecer uma relação entre o discurso fílmico, a constituição da identidade e o impacto da imagem neste sujeito a partir da teoria bakhtiana e da perspectiva pós-moderna de Jean-François Lyotard.

Palavras-chaves: Adeus Lênin, identidade, pós-modernismo, sujeito.

INTRODUÇÃO

And all you touch and all you see is all your life will ever be.

* Aluna do quarto semestre do curso de Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda no Uni-Facef Centro Universitário, em 2005.

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Roger Waters

Adeus Lênin, filme alemão de 2003, é uma obra despretensiosa, mas que apresenta

uma visão penetrante sobre as relações humanas e a identidade do sujeito pós-moderno.

Aliás, o pós-modernismo é um paradigma amplamente discutido e contestado.

Neste artigo, não entraremos no mérito de solucionar estes impasses. Trataremos do assunto

conforme a perspectiva do filósofo francês Jean-François Lyotard.

O filme é contextualizado na Berlim oriental à época da queda do muro. Talvez,

somente esta premissa já servisse de justificativa à escolha do tema frente à perspectiva pós-

moderna, já que o conceito surgiu a partir de importantes rupturas teóricas e sociais nas quais

estão refletidas o pensamento marxista e o declínio socialista.

No entanto, Adeus Lênin trata das escolhas humanas numa realidade em

desmoronamento e da relação indivíduo-mídia-bens de consumo como fator que constrói e

determina a identidade do sujeito.

Sobre este aspecto (a constituição do sujeito) pesquisamos o dialogismo inerente

ao processo conforme postulado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin. A seguir, confrontamos

teorias e o discurso fílmico a fim de identificar os traços que compõem a identidade do sujeito

pós-moderno.

1 PERSPECTIVA TEÓRICA

1.1 Constituição do Sujeito

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou

escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más,

importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. (...) É

assim que compreendemos as palavras e somente reagimos

àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou

concernentes à vida.

BAKHTIN, 2002, p. 95

A análise do processo discursivo, através das formas de produção do sentido,

constitui o tema central de Mikhail Bakhtin, que teorizou a “lingüística social”, uma perspectiva

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marxista do processo de significação e sentido da linguagem. Nestes termos, o dialogismo

inerente ao processo lingüístico constitui a forma como o enunciado se imbui da natureza dos

meios sócio-históricos em que são proferidos e, ou recebidos pelo outro1.

Com isto, Bakhtin insere a noção de tema2, querendo dizer que a linguagem não

deve ser compreendida ou estudada como combinação abstrata de signos, já que ela é viva e se

desenvolve no âmbito social. O signo carrega em si o sentido ideológico da relação dialógica

entre o enunciador e o outro; sem, contudo, limar a relação estabelecida entre significante e

significado3. O dialogismo bakhtiano propõe, portanto, que o papel do outro se inclui e implica a

enunciação. Ou seja, a palavra “é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como

pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do

locutor e do ouvinte” (BAKHTIN, 2002, p. 113).

A teoria bakhtiana instaura, desta forma, pelo menos dois pressupostos ao

processo de comunicação: a natureza ideológica do signo e o dialogismo da relação enunciador-

ouvinte.

A partir desta perspectiva, vale citar Sodré, em seu Discurso da Neobarbárie, onde

“fica bastante claro que a linguagem cria, mais do que reflete, a realidade” (1997, p. 116).

Neste texto, o autor alerta de que forma uma ideologia aceita pelo corpo social se propaga

legitimando o discurso hegemônico através da linguagem e universalizando valores e pontos de

vista particulares. O discurso da neobarbárie dita e comanda uma “direção cultural” (SODRÉ,

1997, p. 166), criando uma universalidade ilusória. Sodré ainda trata do “racismo” que surge

neste contexto, já que o discurso neobárbaro que não é aceito alija o individuo da integração

social.

A seguir, veremos como os esclarecimentos de Lyotard acerca dos jogos de

linguagem e da natureza do vínculo social4, justificam e completam a visão bakthiana.

1.2 A Condição Pós-Moderna:

1 “[...] a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado.” (BRAIT, 1997, p. 97).2 Tema “é a expressão da situação histórica concreta em que se pronuncia o enunciado.” (DIAS, 1997, p. 106).3 “[...] a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação no sentido da evolução e não do imobilismo.” ( BAKHTIN, 2002, p. 94). E ainda, “[...] se concedermos um estatuto separado à forma lingüística vazia de ideologia, só encontraremos sinais e não mais signos.” ( BAKTHIN, 2002, p. 96).4 Cf. capítulos 3, 4 e 5 em LYOTARD, 1998.

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Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as

maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu

todas as ilusões e ideais.

Yehudi Menuhin

Somente para traçar um panorama superficial do contexto em que surge o

pensamento pós-moderno, podemos dizer que a modernidade surgiu a partir do advento do

capitalismo e da valorização do sujeito da razão em detrimento do sujeito teocêntrico da Idade

Média. Este modelo moderno do sujeito cartesiano passou a ser desafiado por uma série de

rupturas teóricas e sociais que vemos refletidas nos trabalhos de pensadores como Freud, Marx,

Foulcault, etc. O filósofo francês Jean-François Lyotard denominou esta antítese ao pensamento

moderno de A condição pós-moderna (1998), texto que resenhamos neste artigo a fim de extrair

as bases teóricas de nossa análise.

A brochura de Lyotard é preciosa por popularizar um conceito que,

hodiernamente, tornou-se vedete da mídia e serve para adjetivar toda sorte de instrumental

contemporâneo sem, muitas vezes, designá-lo. Não queremos incorrer no mesmo erro, portanto,

tentaremos verificar quais os traços do texto interpenetram o discurso fílmico e, desse modo,

identificar de que modo o sujeito pós-moderno é metaforizado na película.

Nos cinco capítulos iniciais de sua obra, o pensador francês demonstra seu campo

e seu método de trabalho. Ele se propõe a desvendar o estatuto do saber na sociedade pós-

moderna e o faz a partir de uma perspectiva lingüística5. Ele expõe brevemente acerca dos jogos

de linguagem, que se estruturam a partir dos elementos do processo de comunicação, onde o

enunciado é legitimado pela autoridade de que se imbui o remetente6 ante o destinatário. Para

Lyotard existem diversas categorias de enunciados que pressupõem regras próprias. Os jogos de

linguagem são, dessa maneira, caracterizados pelo pensador:

Suas regras (...) constituem objeto de um

contrato explícito entre os jogadores (o que não

quer dizer todavia que estes as inventem). (...)

na ausência de regras não existe jogo, que uma

modificação, por mínima que seja, de uma 5 “Pelo que antecede, já se observou que, para analisar este problema no quadro que determinamos, preferimos um procedimento: o de enfatizar os fatos de linguagem e, nestes fatos, seu aspecto pragmático.” (LYOTARD, 1998, p. 15).6 Sachant, isto é, aquele que sabe (LYOTARD, 1998, p. 15).

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regra, modifica a natureza do jogo, e que um

‘lance’ ou um enunciado que não satisfaça as

regras, não pertence ao jogo definido por elas.

(...) todo enunciado deve ser considerado como

um ‘lance’ feito no jogo. (LYOTARD, 1998,

p.17)

Dessa forma, ele conclui que “falar é combater” (LYOTARD, 1998, p.17), que

são os lances que fazem a língua evoluir e, a partir deles, pode-se observar o vínculo social.

Na perspectiva pós-moderna de Lyotard, o vínculo social está em extinção. Ele

postula acerca da “(...) dissolução do vínculo social e a passagem das coletividades sociais ao

estado de uma massa composta de átomos individuais lançados num absurdo movimento

browniano” (LYOTARD, 1998, p. 28). O indivíduo está entregue a si mesmo. E o si mesmo está

exposto a todos os efeitos dos jogos de linguagem7, leia-se, o discurso travado entre indivíduo e a

ideologia hegemônica.

Aqui podemos traçar um paralelo com o pensamento dos frankfurtianos, que

teorizaram a indústria cultural e sua capacidade de atomizar o indíviduo, clivando-o de seu eu

mesmo8. Lyotard também diz que “o si mesmo é pouco” (LYOTARD, 1998, p. 28). Se as

premissas da sociedade constituem-se a partir dos jogos de linguagem, na sociedade pós-moderna

observamos que estes vínculos são muito mais estreitos entre o indíviduo e a aparelhagem técnica

do sistema do que entre os homens e seus semelhantes.

Em termos gerais, a contribuição do filósofo francês para o pensamento

contemporâneo foi identificar como condição pós-moderna “a decomposição dos grandes

Relatos” (Lyotard, 1998, p. 28), ou seja, a substituição das grandes verdades ou das narrativas

absolutas por verdades provisórias e mutantes. Lyotard reconhece o sujeito fragmentado e

socialmente determinado, apesar de ignorar o papel da mídia na formação do sujeito. Ele afirma

que o conhecimento valorizado nas sociedades pós-industriais, ou seja, nas sociedades

capitalistas, é o conhecimento como valor de troca. O saber torna-se mercadoria e privilegia-se as

áreas do saber que são potencialmente e imediatamente lucrativas. O saber reificado torna-se

facilmente substituível.

7 “Os átomos são colocados em encruzilhadas de relações pragmáticas.” (LYOTARD, 1998, p. 30).8 ADORNO, 1990.

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2 ANÁLISE CRÍTICA

2.1 Sinopse

Adeus Lênin situa-se nos momentos que antecedem e que precedem a queda do

Muro de Berlim. Seu tom nostálgico já pode ser sentido durante os créditos iniciais: Fragmentos

da felicidade singela do período de férias das crianças Kerner, registrados pela Super 8 de um pai

amoroso.

O filme começa. Alex e Ariane, as crianças Kerner, assistem pela TV o

lançamento espacial do primeiro astronauta da Alemanha Oriental, Sigmund Jaehn. A história é

narrada por Alex, que conta ter sido este o momento em que sua família desmoronara. O pai,

Robert Kerner, havia trocado mulher e filhos por uma alemã ocidental. A mãe atravessa uma

grave depressão, abandona os filhos aos cuidados de uma vizinha. Após algum tempo, ela retorna

curada e completamente diferente. Dedica-se à casa, aos filhos e à licenciatura. “Casa-se com a

pátria socialista” e devota sua vida à ideologia marxista.

Anos depois, ela ainda é uma ativa militante. Seus filhos cresceram. Alex rejeita o

sistema que a mãe tanto ama. Numa noite, Christiane vê seu filho em uma manifestação contra o

regime. Ela não agüenta e sofre um ataque cardíaco, permanecendo em coma durante 8 meses.

Neste período, cai o Muro e tudo o que representava o ideal socialista. Alex arranja um emprego

como vendedor de antenas parabólicas e sua irmã, Ariane, abandona a faculdade para vender

hambúrgueres na rede internacional Burger King. Christiane acorda num mundo novo e, temendo

uma recaída, Alex empreende um plano absurdo para reconstruir a extinta República

Democrática Alemã no quarto de sua mãe.

A principio o plano consiste em apenas redecorar o quarto, no qual sua irmã tinha

rapidamente acumulado toda sorte de bugiganga capitalista. É preciso encontrar as marcas de

gêneros alimentícios da RDA, que não são mais vendidos em nenhum supermercado Seu plano

torna-se cada vez mais audacioso, Alex e um amigo videomaker produzem noticiários fictícios

simulando os antigos programas do canal socialista. Através destes noticiários, eles negam a

realidade e justificam todos os acontecimentos que se passam do outro lado da janela de

Christiane.

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O ápice da narrativa acontece quando, já recuperada, Christiane deixa o

apartamento e depara-se com a realidade que Alex teima em negar. A paisagem de Berlim

Oriental agora se constitui de outdoors e feirões de automóveis. Um helicóptero sobrevoa a

cidade levando a estátua de Lênin. O noticiário de Alex salva a situação. O jornalista atesta que

os alemães ocidentais, acuados pelo capitalismo selvagem, buscam refúgio no lado leste da

cortina de ferro.

Numa das seqüências mais hilariantes do filme, Alex convida velhos amigos para

comemorar o aniversário da mãe. “Contrata” os ex-alunos de Christiane para entoarem as, agora,

mudas canções socialistas. Enquanto Alex discursa, uma Christiane estarrecida, assiste pela

janela um gigantesco banner da Coca Cola ser desdobrado no prédio em frente. Alex não se

aflige, na próxima edição do telejornal da RDA uma notícia bombástica afirma que a marca de

refrigerantes era invenção comunista que agora o governo decidiu reaver.

Alex não mede esforços para preservar a mãe. Por amor a ela, desdobra-se para

reerguer um sistema em que ele mesmo não acreditava. O desfecho da trama permanecerá oculto,

para que o leitor não perca o prazer de desvenda-lo. A partir destes elementos já podemos

empreender a análise proposta.

2.2 Breve história da Alemanha Oriental

Após a 2ª guerra mundial a Alemanha foi dividida em quatro zonas de ocupação e

posteriormente em dois países. Os EUA lideravam a parte ocidental e a URSS o lado oriental.

Durante os quatro primeiros anos do pós-guerra a maior preocupação era capturar e punir os

líderes nazistas.

Porém, as desavenças entre russos e norte-americanos tornaram-se insustentáveis e

em 1949 a zona de ocupação estadunidense transformou-se na República Federal da Alemanha

(Bundesrepublik Deutshland – BDR ou RFA) e a zona soviética tornou-se República

Democrática Alemã (Deutsche Demokratische Republik – DDR ou RDA). A RFA seguiu a linha

capitalista estadunidense, e graças ao Plano Marshall9 viu florescer sua economia. No início dos

anos 60 já era uma das maiores potências mundiais. Por sua vez, a RDA, conduzida pelos

9 “(...) Washington sentiu que o fortalecimento da economia européia (...) era a prioridade mais urgente, e o Plano Marshall, um projeto maciço para a recuperação européia (...) assumiu mais a forma de verbas que de empréstimos.” (HOBSBAWN, 1995, p. 237).

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soviéticos seguia sua economia estratificada. Muitos cidadãos do leste, pressionados pela

opressão russa, começam a escapar em massa para o lado ocidental.

Em 1953, acontece o primeiro levante contra os soviéticos na RDA. A revolta de

trabalhadores na Berlim Oriental foi suprimida pelo exército russo. Quase todos os países da

Europa Oriental sofreram revoltas, a população sentia que os soviéticos haviam invadido seu

território e não pretendiam sair.

O Muro de Berlim, construído em 1961 pelo governo oriental servia para deter os

‘imigrantes’. A metade ocidental da cidade era uma ilha dentro da Alemanha Oriental. No pós-

guerra os cidadãos ocidentais deixaram de ser reféns dos soviéticos graças a uma ponte aérea de

medicamentos e alimentos liderada pelos EUA.

Apesar da Guerra Fria, os dois países ingressam na ONU em 1973 e no ano

seguinte se reconhecem mutuamente. A corrida armamentista no lado ocidental em 1983, quando

Helmut Kohl era o líder da RFA, criou uma crise entre as diversas promessas de acordos mútuos

e reaproximação das duas Alemanhas.

Quando Gorbachev subiu ao poder russo, a Guerra Fria chegava a seu fim e com

isto, chegava ao fim a influência soviética no leste europeu. Uma série de acontecimentos que

forçavam o fim do regime impulsionou a renúncia de Erich Honecker, o líder linha dura da RDA.

Esta renúncia acelerou ainda mais o processo de unificação e em novembro de 89 o muro era

enfim destruído. No primeiro semestre de 1990, o país teve eleições livres e Alemanha ocidental

acelera a unificação monetária para engendrar o processo de anexação.

É importante lembrar, que como o filme retrata, a Copa do Mundo de 1990 foi um

importante fator de união entre o povo alemão. O time da Alemanha Ocidental venceu o

campeonato, mas o título foi comemorado igualmente nos dois lados do país.

Outro ponto relevante é o fato de a corrida espacial ter importância fundamental na

superioridade dos regimes. Em 26 de agosto de 1978, o astronauta Sigmund Jaehn era o primeiro

alemão oriental a ir para o espaço a bordo de uma nave soviética. Este acontecimento é retratado

em Adeus Lênin e mostra como Jaehn tornou-se um herói nacional que após a queda do Muro,

torna-se um anônimo taxista.

2.3 O sujeito pós-moderno

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Em Adeus Lênin, os personagens estão desmoronando como o muro que os cerca.

A identidade do sujeito pós-moderno “torna-se cada vez mais frágil e instável” (KELLNER,

2001, p. 298). A tentativa de perpetuar um sistema decadente pode ser entendida como um último

esforço de preservar os papéis que cada membro da família de Alex representavam. Aceitar a

queda do muro implica em aceitar que aquelas identidades também se extinguiam.

As identidades fragmentam-se após a unificação da Alemanha e reduzem-se aos

objetos que compõem a estética socialista do quarto de Christiane, à estrutura discursiva do

noticiário da RDA, às marcas dos produtos que os cidadãos orientais consumiam.

É muito interessante observar como esta relação entre pessoas e coisas é tratada no

filme. Para Alex, encontrar os pepinos Spreewald, café Mocca, ervilhas Globus torna-se uma

espécie de cruzada. Nos novos hipermercados que agora dominam a capital germânica estas

marcas não existem e Alex fica desorientado diante da diversidade capitalista.

Numa outra seqüência, a RFA estipula um prazo para a unificação monetária. Os

filhos não conseguem fazer com que Christiane se lembre do esconderijo de suas economias

antes que o prazo expire. Alex não consegue efetuar a troca e, colérico, indigna-se contra a

rapidez com que este símbolo da solidez socialista, o dinheiro, perdeu seu valor.

Outro aspecto importante da narrativa trata da relação entre indivíduo e mídia. O

noticiário fajuto que Alex criou tem que dar conta de toda realidade que se passa do lado de fora

da janela de Christiane.

Conforme o esquema de Lyotard a respeito dos jogos de linguagem, observamos

que a mãe de Alex deposita total confiança no que diz o pseudojornalista da RDA. A todo

momento, a realidade do avanço capitalista estampa-se com todas as cores, porém a autoridade

que ela deposita naquelas notícias legitima todas as mentiras do filho.

O que Alex conseguiu, foi identificar e reproduzir a estrutura discursiva dos

telejornais socialistas. A partir de então, ele poderia manipular as imagens em favor de seu

propósito. De que outra forma ele poderia convencer a mãe do absurdo da autoria da fórmula da

Coca Cola? Este fato é um exemplo explícito de como a realidade é mediatizada para o sujeito

pós-moderno. Creio que não é por acaso que o novo emprego de Alex é o de vendedor de antenas

parabólicas, disponibilizando o mundo nas salas dos alemães.

Quanto à origem da marca de refrigerantes, lembremo-nos do que Lyotard

escreveu sobre a relação entre domínio do conhecimento técnico e a hegemonia das nações: “Sob

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a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um

desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder.” (LYOTARD,

1998, p.05).

A respeito do tema da vinculação social, o filme mostra as divergências entre Alex

e sua irmã. Ariane deixa a faculdade de economia para vender hambúrgueres numa rede de

lanchonetes americana, arranja um namorado ocidental e em pouco tempo, após a queda do muro,

consegue redecorar a casa toda de acordo com as influências capitalistas. Ela muda o cabelo e o

estilo de se vestir. Quando Alex empreende sua mentira para salvar a mãe, ela se irrita por ter de

voltar a usar as roupas antigas, que agora ela considera lixo. Esta atitude de ânsia consumista

compreende um mecanismo de busca por integração social frente ao novo regime10.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É o ovo de Colombo: não se consegue manter de pé a

promessa de que, agora, o livre mercado trará a todos a tão

sonhada emancipação humana. Mas que importa que fique

deitado, desde que cada um ‘fique na sua’?

Frei Betto

Longe de apologizar o socialismo, Adeus Lênin empreende uma dupla crítica:

reconhece as limitações de ambos os sistemas econômicos. O filme mostra que uma alienação foi

substituída por outra e que, como proposto pelo pensador pós-moderno, qualquer ação dentro do

sistema é uma ferramenta que o regula11. Assim há a desintegração do sujeito, atomizando-os e

convertendo-os em massa, entregues a si-mesmos.

O fim da cortina de ferro talvez tenha significado o fim dos embates que moviam a

história contemporânea. A supremacia capitalista venceu e todas as utopias foram soterradas. A

atitude de Alex de reconstruir a História no quarto de Christiane é uma tentativa de resgatar a

temporalidade que o neoliberalismo assassinou quando derrubou o muro. O neoliberalismo

desistorizou o tempo. Sem a História, todas as verdades e valores tornam-se circunstanciais.

10 “Nas sociedades de consumo e de predomínio da mídia, surgidas depois da Segunda Guerra Mundial, a identidade tem sido cada vez mais vinculada ao modo de ser, à produção de uma imagem, à aparência pessoal.” (KELLNER, 2001, p. 297).11 LYOTARD, 1998.

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Alex tenta recuperar os grandes Relatos e os antigos heróis nacionais. Tanto, que

em sua farsa, na última edição de seu noticiário, o ex astronauta agora anônimo taxista Sigmund

Jaehn torna-se o chanceler da nova Alemanha socialista e unificada.

O próprio Lyotard (1998), ao expor a decomposição dos grandes Relatos e a

dificuldade de identificação com grandes heróis da história atual, cita os nomes dos líderes das

revoluções que tomaram lugar no breve século XX12. Dizer adeus a Lênin é dizer adeus à visão

crítica da história. A nostalgia que dá tom ao filme mostra que o muro era o espelho que permitia

à humanidade confrontar suas duas faces e assim, quem sabe, recuperar a Verdade.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. et al. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. . In: LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1990.

BAKTHIN, Mikhail. Língua, fala e enunciação. In: _______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume: Hucitec, 2002.

__________. A interação verbal. In: _______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume: Hucitec, 2002.

BRAIT, Beth. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: _______(Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. São Paulo: Unicamp, 1997.

DIAS, Luiz Francisco. Significação e forma lingüística na visão de Bakhtin. In: BRAIT, Beth(Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. São Paulo: Unicamp, 1997.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

__________. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

SODRÉ, Muniz. O discurso da neobarbárie. In: MORAES, Denis de (Org.). Globalização, mídia e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Letra Livre, 1997.

12 HOBSBAWM, 1995.

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ANEXO

Ficha técnica

Título original: Good bye Lenin!

Gênero: Drama

Duração: 118 min

Ano: 2003 (Alemanha)

Site oficial: <http://www.good-bye-lenin.de>

Estúdio: arte/ Westdreutscher Rundfunk/ X-Filme Creative Pool

Distribuição: Sony Pictures Classics

Direção: Wolfgang Becker

Roteiro: Wolfgang Becker e Bernd Lichtenberg

Produção: Stefan Arndt

Música: Yann Tiersen

Fotografia: Martin Kukula

Desenho de produção: Daniele Drobny e Lothar Heller

Edição: Peter R. Adam

Efeitos especiais: Das Werk

Elenco: Daniel Brühl, Katrin Sass, Maria Simon, Chulpan Khamatova, Florian Lukas, Alexander

Beyer, Burghart Klaubner, Michael Gwisdek, Christine Schorn, Rudi Völler, Helmut Kohl.

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