A Garota Silenciosa - Tess Gerritsen

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Livro

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  • DADOS DE COPYRIGHT

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Traduo deRicardo Gomes Quintana

    2014

  • CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    G326gGerritsen, Tess, 1953-

    A garota silenciosa [recurso eletrnico] / Tess Gerritsen ; traduo Ricardo Gomes Quintana. - 1. ed. - Rio deJaneiro : Record, 2013.

    recurso digitalTraduo de: The silent girlFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-01-09865-8 (recurso eletrnico)1. Fico americana. 2. Livros eletrnicos. I. Quintana, Ricardo Gomes, 1957-. II. Ttulo.

    13-07892CDD: 813

    CDU: 821.111(73)-3

    Ttulo original em ingls:The silent girl

    Copyright 2011 by Tess Gerritsen

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, no todo ou em parte, atravs de quaisquer meios. Os direitos moraisda autora foram assegurados.

    Reviso tcnica: Srgio Luiz Salek TeixeiraEditorao eletrnica da verso impressa: Abreus System

    Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa somente para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literria desta traduo.Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-09865-8

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    Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

  • A Bill Haber e Janet Tamaro,por acreditarem em minhas garotas

  • O que voc tem de fazer disse o Macaco atrair o monstroara fora do esconderijo,

    mas tenha certeza de que vai sobreviver ao combate.

    Wu Chengen,O rei dos macacos: jornada ao oeste (1500 1582)*

    Nota:* Traduo livre. (N. do E.)

  • 1SO FRANCISCO

    Fiquei o dia todo observando a garota.Ela no d o menor sinal de que me percebe, embora meu carro alugado seja visvel da

    esquina onde ela e os outros adolescentes se reuniram esta tarde, fazendo o que quer que osjovens entediados fazem para passar o tempo. Parece mais nova que os demais, mas talvezisso acontea porque asitica e pequena, um fiapo de garota. O cabelo negro curto comoo de um menino, e o jeans, rasgado e esfiapado. No porque esteja na moda, acho, mas emvirtude do excesso de uso e da vida na rua. D uma tragada no cigarro e exala uma nuvemde fumaa com o atrevimento de um trombadinha, atitude que no combina com o rostoplido e os traos chineses, delicados. bonita o bastante para atrair os olhares cobiosos dedois homens que passam. Percebe as olhadas e os encara de volta, destemida, mas fcil noter medo quando o perigo apenas um conceito abstrato. Diante de uma ameaa real, mepergunto como essa menina reagiria. Ofereceria resistncia ou se acovardaria? Quero saberdo que feita, mas ainda no a vi posta prova.

    Quando anoitece, os adolescentes comeam a debandar. Primeiro um, depois outro, voindo embora. Em So Francisco, at as noites de vero so frias, e os que ficam se mantmprximos uns dos outros, vestindo suteres e casacos, acendendo os cigarros doscompanheiros, desfrutando o calor efmero da chama. Frio e fome, entretanto, dispersam osltimos, restando apenas a garota, que no tem para onde ir. Ela acena para os amigos quepartem e permanece s por um momento, como se esperasse algum. Por fim, d de ombrose deixa a esquina, caminhando em minha direo, as mos enfiadas nos bolsos. Quandopassa pelo meu carro, sequer olha para mim, mas para a frente, com um olhar fixo e feroz,como se estivesse concentrada em algum dilema interior. Talvez pensasse em comoconseguiria o jantar daquela noite. Talvez em algo mais srio. Futuro. Sobrevivncia.

    provvel que no perceba que dois homens esto seguindo-a.Segundos depois de passarem pelo meu carro, vejo-os saindo de um beco. Reconheo-os:

    a mesma dupla que havia olhado para ela antes. Quando passam pelo carro, no rastro damenina, um deles olha para mim atravs do para-brisa. Apenas um rpido vislumbre, paraavaliar se represento alguma ameaa. O que v no o preocupa nem um pouco, e ele e o

  • companheiro continuam andando. Movem-se como os predadores confiantes que so,perseguindo uma presa mais fraca, que no pode lhes oferecer resistncia.

    Saio do carro e os sigo. Da mesma forma como fazem com a garota.Ela se dirige para uma regio de prdios abandonados, em que a calada parece

    pavimentada com garrafas quebradas. No traz qualquer medo ou hesitao, como se aquelelhe fosse um territrio familiar. No olha para trs uma nica vez, o que me revela que imprudente ou ignorante em relao ao mundo e ao que ele pode fazer com garotas comoela. Os homens que a seguem tampouco olham para trs. Mesmo que me notassem, o queno permito, no veriam nada que lhes pusesse medo. Ningum nunca v.

    Um quarteiro depois, a garota dobra direita e desaparece por uma porta.Me escondo na sombra e assisto ao que acontece em seguida. Os dois homens param do

    lado de fora do prdio em que a menina entrou, arquitetando uma estratgia. Depois entramtambm.

    Da calada, olho para cima e vejo as janelas pregadas com tbuas. um armazm

    abandonado, que tem uma placa de PROIBIDA A ENTRADA. A porta estentreaberta. Entro e dou com uma escurido to intensa que preciso parar para meus olhosse adaptarem, enquanto confio nos demais sentidos para decifrar o que ainda no possoenxergar. Ouo o assoalho ranger. Sinto cheiro de cera de vela queimando. Vejo a ligeiraclaridade de uma porta esquerda. Parando em frente a ela, perscruto o aposento.

    A garota est ajoelhada diante de uma mesa improvisada, o rosto iluminado pela luzinstvel de uma vela. A seu redor, h sinais de uma moradia temporria: saco de dormir,comida enlatada e um pequeno fogareiro. Est s voltas com um velho abridor de latas ealheia aos dois homens que se aproximam por trs.

    Justamente quando abro a boca para lhe dar um alerta, a garota se vira e encara osinvasores. Tudo que tem nas mos o abridor de latas, arma insignificante contra doissujeitos grandes.

    Aqui minha casa diz ela. Vo embora.J estava me preparando para intervir, mas paro onde estou para observar o que vai

    acontecer. Para ver do que a garota feita.Um dos homens ri. S viemos fazer uma visita, benzinho. Convidei vocs? Acho que voc precisa de companhia. E acho que voc precisa de um crebro.No a forma mais prudente de lidar com uma situao dessas, penso. Agora, o desejo

    deles est misturado com raiva, uma combinao perigosa. A garota, porm, continuaperfeitamente imvel e calma, segurando aquele apetrecho de cozinha deplorvel. Quandoos homens se arremessam, j estou na ponta dos ps, em vias de pular.

    Ela pula primeiro. Um salto e seu p acerta em cheio o osso esterno do primeiro homem. um golpe deselegante, mas eficaz, e ele cambaleia segurando o peito, como se noconseguisse respirar. Antes de o segundo poder reagir, ela j est girando em direo a ele eatirando o abridor de latas contra a lateral da sua cabea. O sujeito grita e retrocede.

  • A coisa ficou interessante.O primeiro deles se recupera e corre para a garota, impelindo-se com tanta fora que os

    dois caem esparramados no cho. Ela chuta e soqueia: seu punho o atinge no queixo. Afria, no entanto, o imunizou contra a dor, e, com um urro, ele se joga em cima dela,imobilizando-a com seu peso.

    O segundo homem volta cena e lhe prende os punhos contra o piso. Juventude einexperincia a colocaram numa situao de calamidade da qual no tem como escapar.Apesar de toda a ferocidade, a garota imatura e destreinada; o inevitvel est paraacontecer. O primeiro homem abre o zper do jeans dela e o abaixa pelos quadris estreitos.Sua excitao evidente pela cala inflada. Nunca um homem fica mais vulnervel aoataque.

    Ele no me ouve chegando. Num instante, est abrindo a prpria braguilha. Noprximo, est no cho, com a mandbula destroada, cuspindo dentes da boca.

    O segundo homem mal tem tempo de soltar as mos da garota e ficar de p, mas no rpido o suficiente. Sou um tigre, e ele no passa de um bfalo lento, idiota e impotentecontra o meu golpe. Com um grito, ele cai no cho, e, a julgar pelo ngulo grotesco do brao,seu osso est partido em dois.

    Agarro a garota e a coloco de p: Voc est machucada?Ela fecha o zper do jeans e olha para mim: Quem diabo voc? Deixa isso para mais tarde. Agora vamos sair daqui! berro. Como fez isso? Como os derrubou com tanta facilidade? Quer aprender? Sim!Olho para os dois homens que gemem e se contorcem a nossos ps. A primeira lio : saiba a hora de sair correndo digo, empurrando-a em direo

    porta. Que agora.

    Observo-a comer. Para uma garota pequena, tem um apetite de lobo. Devora trs tacos defrango, uma poro enorme de feijes fritos e um copo grande de Coca-Cola. Queria comidamexicana, ento nos sentamos num caf, com msica mariachi e paredes enfeitadas comquadros berrantes de seoritas danando. Embora os traos da garota sejam chineses, evidente que ela americana, do cabelo cortado muito curto ao jeans rasgado. Uma criaturagrosseira e selvagem, que, de forma ruidosa, toma o ltimo gole de Coca e passa a mastigar ogelo.

    Comeo a duvidar do bom senso dessa empreitada. Ela j est grande demais paraaprender, muito rude para ser disciplinada. Eu deveria solt-la de volta na rua, se para lque quer ir, e procurar uma alternativa. Reparo ento nas cicatrizes nos ns dos seus dedos eme lembro de como quase conseguiu, sozinha, derrubar os dois homens. A garota possuitalento bruto e destemida: duas coisas que no se pode aprender.

  • Voc se lembra de mim? pergunto.A garota pousa o copo e franze o cenho. Por um instante, acho que noto um lampejo de

    reconhecimento, mas passa logo. Ela balana a cabea. Faz muito tempo falo. Doze anos.Uma eternidade para uma garota to jovem. Voc era pequena.Ela d de ombros: Por isso no me lembro de voc.Pega o casaco, tira um cigarro e comea a acend-lo. Voc est estragando o seu corpo. O corpo meu rebate ela. No se voc est a fim de treinar digo, esticando o brao e arrancando o cigarro de

    sua boca. Se quer aprender, tem que mudar de atitude, demonstrar respeito.Ela bufa. Voc parece minha me. Conheci sua me. Em Boston. Bem, ela morreu. Eu sei. Ela me escreveu no ms passado. Contou que estava doente e tinha muito

    pouco tempo de vida. Por isso estou aqui.Me surpreende ver lgrimas surgindo nos olhos da garota, e ela se vira rpido, como se

    envergonhada de revelar um sinal de fraqueza. Mas esse instante vulnervel, antes deesconder os olhos, me faz lembrar da minha prpria filha, que era mais nova que ela quandoeu a perdi. Lgrimas provocam uma ardncia nos meus olhos, mas no tento disfar-las. Osofrimento me fez a pessoa que sou. Foi o fogo purificador que refinou minha resoluo eafinou meu propsito.

    Preciso dessa garota. Obviamente, ela tambm precisa de mim. Levei semanas para encontrar voc digo. O lar adotivo era uma chatice. Estou muito melhor sozinha. Se sua me visse voc agora, ia ficar de corao partido. Ela nunca teve tempo para mim. Talvez porque tivesse dois empregos, para tentar manter voc de barriga cheia?

    Porque no podia contar com mais ningum para ajudar nisso? Minha me deixava todo mundo pisar nela. Nunca a vi lutando por nada. Nem por

    mim. Sua me tinha medo. No tinha fibra.Eu me inclino para a frente, sentindo raiva daquela moleca ingrata. Sua pobre me sofreu coisas que voc no pode nem imaginar. Tudo o que fez foi por

    voc.Com indignao, jogo o cigarro de volta para ela. No a garota que eu esperava

    encontrar. Pode ser forte e destemida, mas nenhum sentimento de dever filial a une me eao pai mortos, nenhuma noo de honra familiar. Sem o elo com nossos ancestrais, somos

  • gros de poeira solitrios, deriva, flutuando, sem vnculo com nada nem com ningum.Pago a conta e me levanto. Espero que um dia voc adquira sabedoria suficiente para entender o que sua me

    sacrificou por voc. Est indo embora? No tem nada que eu possa ensinar a voc. E por que voc iria querer, alis? Por que veio me procurar? Pensei que fosse encontrar algum diferente, algum a quem pudesse ensinar, que me

    ajudaria. A fazer o qu?No sei responder sua pergunta. Por um instante, o nico som que se ouve o

    metlico da msica mariachi, saindo pelos alto-falantes do restaurante. Voc se lembra do seu pai? pergunto. Lembra do que aconteceu com ele?Ela me olha fixamente. o motivo por trs de tudo isto, no ? Voc ter vindo me procurar. Porque minha

    me escreveu contando sobre ele. Seu pai era um homem bom. Adorava voc, que o desonra. Voc desonra os dois, seu

    pai e sua me falo, colocando um pacote de dinheiro na frente dela. Isto em memriadeles. Saia das ruas e volte para a escola. L, pelo menos, no vai precisar lutar contrahomens estranhos. Eu me viro e saio do restaurante.

    Em segundos, ela j est na porta, correndo atrs de mim. Espera! grita. Para onde voc vai? Para casa, em Boston. Lembro de voc. Acho que sei o que quer.Paro e olho para ela. Replico: O mesmo que voc tambm deveria querer. O que preciso fazer?Olho-a de cima a baixo: vejo ombros mirrados e quadris to estreitos que mal seguram o

    jeans. No o que voc precisa fazer respondo. o que precisa ser.Viro-me devagar em sua direo. At aquele momento, ela no tinha notado qualquer

    razo para me temer, e por que deveria? Sou apenas uma mulher. No entanto, alguma coisaque v agora nos meus olhos a faz dar um passo para trs.

    Est com medo? pergunto, com suavidade.Ela levanta o queixo e responde com uma bravata boba: No, no estou. Pois deveria.

  • 2SETE ANOS DEPOIS

    Meu nome Dra. Maura Isles. O sobrenome se escreve I-s-l-e-s. Sou patologista etrabalho no departamento forense do estado de Massachusetts.

    Por favor, descreva para o tribunal o seu grau de escolaridade e seus antecedentes,Dra. Isles disse Carmela Aguilar, promotora-assistente do condado de Suffolk.

    Maura manteve o olhar na promotora enquanto respondia solicitao. Era muito maisfcil concentrar-se no rosto neutro de Carmela do que ver os olhares hostis do ru e de seusdefensores, dezenas dos quais se haviam reunido na sala do tribunal. A promotora noparecia notar ou importar-se com o fato de que estava defendendo um caso diante de umpblico contrrio, mas Maura encontrava-se plenamente consciente disso. Um grandesegmento daqueles espectadores era composto de policiais e amigos. No iam gostar do queela tinha a dizer.

    O ru era o policial Wayne Brian Graff, um homem de queixo quadrado e ombroslargos, a sntese do heri americano. A simpatia do pblico estava com ele, e no com avtima, um indivduo que tinha sido espancado e arrebentado e acabara sobre a mesa denecropsias de Maura havia seis meses. Enterrado sem choro e sem ser reclamado porningum. Um homem que, duas horas antes de morrer, cometera o pecado mortal de atirarcontra um policial e mat-lo.

    Maura sentia todos aqueles olhares queimando-lhe o rosto, quentes como pontos delaser, enquanto recitava seu currculo.

    Me graduei em antropologia pela Universidade de Stanford. Recebi o diploma demdica na Universidade da Califrnia, em So Francisco, e fiz cinco anos de residncia namesma instituio. Sou especialista em patologia anatmica e clnica. Depois, fiz umacomplementao de mais dois anos, na subespecialidade de patologia forense, naUniversidade da Califrnia, no campus de Los Angeles.

    A senhora tem certificao nacional na sua rea? Sim. Em patologia geral e forense. E onde trabalhou antes de entrar para o departamento forense de Boston? Durante sete anos, fui patologista do departamento forense de So Francisco, na

  • Califrnia. Tambm trabalhei como professora de patologia clnica na Universidade daCalifrnia. Tenho licena para clinicar tanto em Massachusetts quanto na Califrnia.

    Era mais informao do que lhe havia sido pedida, e ela viu Aguilar franzir o cenho,porque Maura frustrara sua sequncia planejada de perguntas. J tinha dado aquelasinformaes tantas vezes antes, perante um tribunal, que sabia com exatido o que seriaperguntado, e suas respostas eram igualmente automticas. Onde estudara, o que seutrabalho requeria e se era qualificada para testemunhar naquele caso em particular.

    Terminadas as formalidades, finalmente Aguilar partiu para o que interessava: A senhora realizou uma necropsia em um indivduo chamado Fabian Dixon, em

    outubro do ano passado? Sim respondeu Maura, de forma trivial, embora sentisse de imediato a tenso

    aumentar no tribunal. Conte-nos como o Sr. Dixon veio a ser um caso para uma patologista.Aguilar mantinha os olhos fixos em Maura, como se dissesse: Ignore todos nesta sala.

    Olhe apenas para mim e relate os fatos.Maura aprumou-se e comeou a falar, alto o bastante para todos ouvirem: O falecido era um homem de 24 anos, que foi encontrado sem sentidos no banco de

    trs de uma patrulha do Departamento de Polcia de Boston. Isso ocorreu aproximadamenteuns vinte minutos depois de ter sido preso. Foi transportado de ambulncia at oMassachusetts General Hospital, onde foi declarado morto na chegada emergncia.

    E isso o tornava um caso apto para uma patologista? Sim. Foi transferido em seguida para o nosso necrotrio. Descreva para o tribunal a aparncia do Sr. Dixon quando o viu.No escapou ateno de Maura que Aguilar se referia ao homem morto pelo nome.

    No como o cadver ou o falecido. Era sua forma de lembrar ao tribunal que a vtima possuauma identidade. Um nome, um rosto e uma vida.

    Maura respondeu do mesmo modo: O Sr. Dixon era um homem bem-nutrido, de altura e peso medianos, que chegou s

    nossas instalaes vestindo apenas cuecas e meias de algodo. Suas outras roupas tinhamsido retiradas antes, durante as tentativas de ressuscitao na emergncia. Ventosas deeletrocardiograma ainda estavam presas em seu peito, e um cateter intravenoso permaneciano brao esquerdo... Ela fez uma pausa. Era a que as coisas se tornavam desconfortveis.Embora evitasse olhar para o pblico e para o ru, sabia que todos tinham os olhos fixos nela.

    E em que condies estava o corpo dele? A senhora poderia nos descrever? incitouAguilar.

    Havia muitas contuses na regio do peito, do flanco esquerdo e do abdome superior.Os olhos estavam inchados e cerrados, e havia laceraes no lbio e no couro cabeludo. Doisdentes, os incisivos superiores, estavam faltando.

    Objeo disse o advogado de defesa, levantando-se. No tem como saberquando ele perdeu esses dentes. Podiam estar faltando h anos.

    Um deles apareceu nas radiografias. Dentro do estmago retrucou Maura. A testemunha deve evitar comentrios at que eu permita interrompeu o juiz, com

  • severidade, olhando para o advogado de defesa. Objeo deferida. Continue, Srta.Aguilar.

    A promotora-assistente balanou a cabea, tentando suprimir um sorriso, e voltou aateno para Maura:

    Ento o Sr. Dixon estava muito contundido, apresentava laceraes pelo corpo e pelomenos um dos seus dentes havia sido arrancado recentemente.

    Sim falou Maura. Como se pode ver nas fotos do necrotrio. Se for da vontade do tribunal, gostaramos de mostrar essas fotos agora disse

    Aguilar. Aviso que elas no so agradveis de se ver. Se algum do pblico preferir noolhar, sugiro que saia agora completou ela, fazendo uma pausa e olhando em volta.

    Ningum saiu da sala.Quando apareceu o primeiro slide, mostrando o corpo espancado de Fabian Dixon, foi

    possvel ouvir pessoas prendendo o flego. Em sua descrio, Maura deixara as contuses deDixon apenas insinuadas, pois sabia que as fotos contariam a histria melhor que ela. E, almdisso, as imagens no poderiam ser acusadas de tomar partido ou mentir. A verdade daquelacena ficou bvia para todos: o rapaz tinha sido espancado com brutalidade antes de sercolocado no banco de trs da patrulha.

    Outros slides apareceram enquanto Maura narrava as descobertas da necropsia.Mltiplas costelas quebradas. Um dente engolido no estmago. Sangue aspirado nospulmes. E a causa da morte: uma ruptura do bao que tinha levado a uma intensahemorragia intraperitoneal.

    E qual foi a forma da morte do Sr. Dixon, Dra. Isles? perguntou Aguilar.Era a pergunta-chave, a que ela temia responder diante das consequncias que adviriam. Homicdio falou Maura.No cabia a ela apontar culpados. Restringiu, portanto, sua resposta quela nica

    palavra, mas no pde evitar lanar um olhar furtivo para Wayne Graff. O policial acusadopermaneceu imvel, o rosto impenetrvel como granito. Durante mais de uma dcada,servira a cidade de Boston com distino. Uma dezena de testemunhas de carter havia seapresentado para declarar ao tribunal como o policial Graff fora corajosamente em sua ajuda.Era um heri, disseram, e Maura acreditava.

    Entretanto, na noite de 31 de outubro, em que Fabian Dixon assassinou um policial,Wayne Graff e seu parceiro transformaram-se em anjos vingadores. Fizeram a priso, eDixon estava sob sua custdia quando morreu. O detido encontrava-se agitado e violento,como se sob influncia de fenciclidina ou crack, escreveram eles no boletim de ocorrncia.Descreveram a resistncia enlouquecida de Dixon, sua fora sobre-humana. Fora necessrioque os dois policiais juntos o colocassem dentro da patrulha. Control-lo requeria fora, masele no parecia dar importncia dor. Durante a luta, rosnava, emitia sons animalescos etentava arrancar a roupa, mesmo na temperatura de 4C daquela noite. Descreveram, quasecom perfeio, a condio mdica conhecida como sndrome do delrio agitado, que j tinhamatado outros detidos sob efeito de cocana.

    Meses antes, porm, o relatrio toxicolgico revelou apenas a presena de lcool no

  • corpo de Dixon. Maura no tinha dvidas de que a forma da morte havia sido homicdio. Eum dos assassinos estava agora no banco dos rus, encarando-a.

    No tenho mais perguntas disse Aguilar, sentando-se, segura de ter feito um bomtrabalho.

    Morris Whaley, advogado de defesa, levantou-se para seu turno de perguntas, e Maurasentiu os msculos retesarem-se. Ele parecia muito cordial enquanto se aproximava do bancodas testemunhas, como se pretendesse ter apenas um bate-papo amigvel. Se os doistivessem se conhecido em algum coquetel, ela poderia consider-lo uma companhiaagradvel, um homem bastante atraente em seu terno da Brooks Brothers.

    Acho que ficamos todos impressionados com suas credenciais, Dra. Isles disse ele. Ento no vou mais tomar o tempo do tribunal examinando seus feitos acadmicos.

    Ela no disse nada, apenas olhou para seu rosto sorridente, perguntando-se de ondeviria o ataque.

    No creio que algum nesta sala duvide de que a senhora trabalhou muito parachegar onde est hoje continuou Whaley. Especialmente levando-se em conta osdesafios que enfrentou em sua vida pessoal nos ltimos meses.

    Objeo interps Aguilar, com um suspiro de exasperao e levantando-se. Issono relevante.

    , sim, Meritssimo. Interfere na capacidade de julgamento da testemunha rebateuWhaley.

    Como assim? perguntou o juiz. Experincias passadas podem afetar a forma como uma testemunha interpreta as

    provas. A quais experincias o senhor est se referindo? Se o Meritssimo me permitir explorar esta questo, vai ficar claro.O juiz encarou Whaley com dureza. Declarou: Por ora, vou permitir essa linha de perguntas. Mas apenas por ora.Aguilar recostou-se na cadeira, franzindo a testa.O advogado voltou a ateno para Maura: Dra. Isles, a senhora por um acaso se lembra da data em que examinou o falecido?Maura hesitou, surpreendida pelo retorno abrupto do tema da necropsia. No lhe

    passou despercebido o fato de que o advogado evitou usar o nome da vtima. O senhor est se referindo ao Sr. Dixon? perguntou ela, vendo uma fagulha de

    irritao surgir nos olhos dele. Estou. A data da necropsia foi primeiro de novembro do ano passado. E nessa data, a senhora determinou a causa da morte? Sim. Como disse antes, ele morreu de hemorragia interna intensa, aps uma ruptura

    do bao. Nessa mesma data, a senhora tambm especificou a forma de morte?Ela hesitou: No. Pelo menos no uma concluso final...

  • Por que no?Maura tomou flego, consciente de que todos os olhares estavam sobre ela: Quis esperar os resultados do exame toxicolgico. Para ver se o Sr. Dixon estava de

    fato sob influncia de cocana ou outra substncia qumica. Procurei agir com prudncia. E deve. Quando a sua deciso pode destruir as carreiras, e at as vidas, de dois

    dedicados agentes da lei. Eu me preocupo apenas com os fatos, Sr. Whaley, seja qual for a direo a que levem.Ele no gostou da resposta. Maura percebeu isso pelo tremor de seu msculo da

    mandbula. Qualquer simulacro de cordialidade desaparecera: a coisa havia se transformadonuma batalha.

    A senhora ento realizou a necropsia em primeiro de novembro continuou ele. Sim. O que aconteceu depois? No sei ao que o senhor est se referindo. A senhora ficou com o fim de semana livre? Passou a semana seguinte realizando

    outras necropsias?Maura olhou-o fixamente, a ansiedade enroscando-se como uma serpente em seu

    estmago. No sabia para onde ele estava seguindo, mas no gostou da direo. Fui a uma conferncia de patologia respondeu ela. Em Wyoming, creio. Sim. Onde a senhora teve uma espcie de experincia traumtica. Foi atacada por um

    policial perigoso.Aguilar deu um pulo da cadeira: Objeo! Irrelevante! Indeferida replicou o juiz.Whaley sorriu, com o caminho agora livre para fazer as perguntas que Maura temia. Isto est correto, Dra. Isles? A senhora foi atacada por um policial? Sim sussurrou ela. Acho que no ouvi a resposta. Sim repetiu, mais alto. E como a senhora sobreviveu a esse ataque?Um silncio mortal havia tomado conta da sala: todos aguardando a histria na qual ela

    no queria sequer pensar, porque ainda lhe dava pesadelos. Lembrou-se da solitriamontanha em Wyoming, da batida da porta do veculo do policial ao fechar, aprisionando-ano banco traseiro, por trs das grades. Lembrou-se do pnico enquanto batia inutilmentecom as mos contra a janela, tentando fugir de um homem que sabia estar prestes a mat-la.

    Dra. Isles, como a senhora sobreviveu? Quem veio em sua ajuda?Ela engoliu em seco: Um garoto. Julian Perkins, de 16 anos, creio. O jovem que atirou e matou aquele policial. Ele no teve escolha!

  • Whaley inclinou a cabea. A senhora est defendendo um garoto que matou um policial? Um mau policial! Ento a senhora voltou para Boston. E declarou que a morte do Sr. Dixon foi

    homicdio. Porque foi. Ou foi apenas um acidente trgico? Consequncia inevitvel aps um prisioneiro

    violento resistir e precisar ser dominado? O senhor viu as fotos do necrotrio. A polcia usou muito mais fora que o necessrio. A mesma coisa que fez o garoto em Wyoming, Julian Perkins. Ele atirou e matou um

    subdelegado. A senhora considera isso justificvel? Objeo disse Aguilar. A Dra. Isles no est sendo julgada aqui!Whaley prosseguiu com uma nova pergunta, com o olhar fixo em Maura: O que aconteceu em Wyoming, Dra. Isles? Enquanto lutava para defender sua vida,

    houve alguma epifania? A percepo sbita de que os policiais so o inimigo? Objeo! Ou os policiais sempre foram o inimigo? Membros da sua prpria famlia parecem

    pensar assim.O martelo do juiz soou. Sr. Whaley, aproxime-se agora ordenou ele.Maura encontrava-se estupefata, enquanto os dois advogados debruavam-se sobre a

    bancada do juiz. Ento as coisas haviam chegado quele ponto, de desenterrar informaessobre sua famlia. Todos os policiais de Boston provavelmente sabiam sobre sua me,Amalthea, que cumpria priso perptua numa penitenciria feminina em Framingham. Omonstro que me deu luz, pensou. Todos que me olham devem se perguntar se a mesmamaldade estar tambm no meu sangue. Ela viu que o ru, o policial Graff, estavaencarando-a. Seus olhares encontraram-se, e um sorriso curvou-lhe os lbios. Bem-vinda sconsequncias, seus olhos pareciam dizer. isso o que acontece quando se trai a fora policial.

    O tribunal est em recesso anunciou o juiz. Retomamos s duas desta tarde.Enquanto o jri saa, Maura recostou-se contra a cadeira, sem notar que a promotora

    estava de p ao seu lado. Foi um golpe baixo falou Aguilar. No se devia permitir uma coisa dessas. Ele concentrou tudo em mim. Sim, verdade. Porque tudo que ele tem. As fotos da necropsia convencem

    qualquer um argumentou Aguilar, olhando depois com severidade para ela. Existemais alguma coisa que eu deveria saber sobre voc, Dra. Isles?

    Alm do fato de que minha me uma assassina condenada e de que torturogatinhos para me divertir?

    No estou brincando. Foi voc quem disse. No sou eu quem est sendo julgada. No, mas eles vo se concentrar em voc. Se voc odeia policiais, se tem segundas

  • intenes... Podemos perder este caso se esse jri achar que no est sendo sincera. Entome diga se existe mais alguma coisa que eles possam trazer tona. Qualquer segredo que notenha mencionado a mim.

    Maura considerou as vergonhas particulares que escondia. O caso ilcito que acabara determinar. O histrico violento de sua famlia.

    Todos tm segredos. Os meus no so relevantes. Vamos torcer para que no sejam replicou Aguilar.

  • 3Para todos os lugares que se olhasse na Chinatown de Boston, havia fantasmas. Elesassombravam Tai Tung Village, assim como a espalhafatosa Beach Street, pairando sobrePing On Alley e esvoaando pela rua escura atrs da Oxford Place. Estavam em todos oslugares. Essa era, pelo menos, a histria do guia turstico Billy Foo, que se mantinha fiel aela. Se ele prprio acreditava em fantasmas no importava muito: seu trabalho implicavaconvencer os turistas de que espritos povoavam aquelas ruas. As pessoas queriam acreditarem fantasmas, e era por isso que muitas delas estavam dispostas a pagar 15 dlares porcabea para ficar tremendo de frio na esquina da Beach com a Oxford, ouvindo histriassangrentas de assassinatos. Treze felizardos tinham se inscrito para o Passeio Fantasmagricode Chinatown, realizado a altas horas, e que nessa noite inclua uma dupla de gmeostravessos, de 10 anos, que j deveriam estar na cama havia muito. Porm, quando se precisade dinheiro, no se pode desprezar pagantes, mesmo que sejam garotos levados. Billy eraformado em teatro, sem qualquer perspectiva de trabalho no horizonte, e os ganhos daquelanoite eram esplndidos 195 dlares, mais gorjetas. No era uma m arrecadao para duashoras de histrias improvveis, mesmo que viesse com a humilhao de vestir um trajeacetinado de mandarim e um rabo de cavalo falso.

    Billy limpou a garganta e levantou os braos, fazendo uso das habilidades que aprenderaem seis semestres de curso de teatro, a fim de prender a ateno dos ouvintes.

    O ano 1907! Dia 2 de agosto, uma noite agradvel de sexta-feira. Sua voz,profunda e sinistra, ergue-se acima do rudo dispersivo do trfego. Como a Morteescolhendo a prxima vtima, Billy aponta para o outro lado da rua: Ali, na praachamada Oxford Place, pulsa o corao da Chinatown de Boston. Caminhem comigo agora,enquanto voltamos para a poca em que estas ruas transbordavam de imigrantes. Quando asnoites enevoadas cheiravam a corpos suados e especiarias estranhas. Voltemos a uma noitequando o assassinato estava no ar! Com um aceno dramtico, convidou o grupo a segui-loat Oxford Place, onde todos chegaram mais perto para ouvir. Contemplando-lhes os rostosatentos, ele pensava: agora a hora de encant-los, de lanar o feitio que s um bom atorconsegue. Abriu os braos, e as mangas do traje de mandarim ondularam como asas de

  • cetim, enquanto enchia os pulmes para ter flego. Maame! choramingou uma das crianas. Ele est me chutando! Para com isso, Michael rosnou a me. Para neste minuto. No fiz nada! Voc est perturbando seu irmo. Ele que est me perturbando. Esto querendo voltar para o hotel, isso?Ah, Deus, por favor, voltem para o hotel, pensou Billy. Os dois irmos, no entanto,

    mantiveram-se encarando um ao outro, de braos cruzados, recusando-se a se divertir. Como eu estava dizendo... falou Billy. A interrupo, contudo, havia arruinado sua

    concentrao, e quase conseguia visualizar a tenso dramtica escapando-lhe pelo ar, comoum balo furado. Rangendo os dentes, continuou: Era uma enevoada noite de agosto.Nesta praa, aps um longo dia de trabalho nas lavanderias e mercearias, uma multido dechinas estava sentada, descansando.

    Odiava a palavra chinas, mas forou-se a diz-la a fim de evocar a poca em que osjornais se referiam com regularidade a orientais furtivos e sinistros. Uma poca na qual aprpria revista Time achava apropriado descrever a malcia plida de meios sorrisos, em rostosto amarelos quanto formulrios de telegramas. Um tempo em que Billy Foo, um sino-americano, no encontraria outro trabalho que no fosse de tintureiro, cozinheiro ouoperrio.

    Aqui nesta praa, uma batalha est prestes a surgir entre dois cls rivais chineses: osOn Leong e os Hip Sing. Batalha que deixar esta praa banhada de sangue...

    Algum acende um morteiro. De repente, a noite explode em tiros! Dezenas de chinasfogem aterrorizados! Mas alguns no conseguem correr rpido o suficiente, e, quando otiroteio silencia, cinco homens jazem mortos ou moribundos. Eles so apenas as ltimasvtimas das sangrentas e infames guerras tong...

    Mame, vamos embora? Shhhh. Ouve a histria do rapaz. Mas ele chaaa-to.Billy hesitou, com as mos prontas para agarrar o garoto pelo pescoo. Lanou-lhe um

    olhar cheio de veneno. Indiferente, o menino apenas deu de ombros. Em noites de neblina, como esta prosseguiu Billy, entre os dentes , possvel s

    vezes ouvir o som longnquo daqueles morteiros. Podem-se ver figuras sombrias passandorpido, presas em um terror mortal, eternamente desesperadas para fugir das balas quevoaram aquela noite!

    Billy virou-se, acenando com o brao: Agora me sigam at Beach Street. Outro lugar em que os fantasmas habitam. Mame. Mame!Billy ignorou o moleque e conduziu o grupo para o outro lado da rua. Continue sorrindo,

  • tagarelando. Tudo pelas gorjetas. Precisava de energia para apenas mais uma hora. Teriamcomo prxima parada a Knapp Street. Depois, a Tyler Street e o cassino, onde cinco homensforam massacrados em 1991. Em Chinatown, no faltavam locais onde ocorreramassassinatos.

    Ele os guiou pela Knapp Street. Era pouco mais que um beco, escassamente iluminado epouco frequentado. Quando deixaram para trs as luzes e o trfego da Beach Street, atemperatura pareceu despencar de repente. Tremendo, ele ajustou mais o traje demandarim. J havia notado esse estranho fenmeno antes, toda vez que se aventurava nessetrecho da Knapp. Mesmo em noites quentes de vero, sempre sentia um arrepio ali, como seum frio tivesse tomado conta do beco, muitos anos antes, e nunca mais houvesse sedissipado. O grupo pareceu sentir tambm, e Billy ouviu o som de zperes de casacos subindoe viu luvas saindo de bolsos. Todos ficaram calados, seus passos ecoando nos prdios que seerguiam de ambos os lados. At os dois pirralhos estavam quietos, como se percebessem queo ar era diferente ali, alguma coisa que pairava na atmosfera, devorando risos e alegria.

    Billy parou em frente a uma construo abandonada, onde um porto trancado cobria aporta e barras protegiam as janelas do trreo. Uma escada de incndio enferrujada subia ato terceiro e quarto pisos, onde todas as janelas encontravam-se fechadas com tbuas, comose para aprisionar algo que se ocultava no interior. As pessoas do grupo aproximaram-se maisumas das outras, tentando escapar do frio. Ou seria alguma outra coisa que experimentavamnaquele beco que as fazia formar um crculo apertado, como se em busca de proteo?

    Bem-vindos cena de um dos crimes mais hediondos j ocorridos em Chinatown exclamou Billy. A placa no prdio j no existe, mas h 19 anos, por trs dessas janelasgradeadas, havia um pequeno restaurante chins de frutos do mar, chamado Red Phoenix.Era um estabelecimento modesto, com apenas oito mesas, mas famoso pelos mariscos frescos.Era tarde da noite mida e fria de 30 de maro. Como a de hoje, em que as ruas em geralmovimentadas de Chinatown ficam estranhamente calmas. Dentro do Red Phoenix, s doisempregados estavam trabalhando: o garom, Jimmy Fang, e o cozinheiro, um imigranteilegal chins chamado Wu Weimin. Trs fregueses apareceram para comer naquela noite,que seria a sua ltima. Porque, na cozinha, havia algo de muito errado. Nunca saberemos oque fez o cozinheiro ficar louco de repente. Talvez tenha sido o excesso e a dureza das horasde trabalho. Ou a dor de viver como um estranho numa terra estranha.

    Billy fez uma pausa. Sua voz transformou-se num sussurro arrepiante: Ou talvez fosse alguma fora estranha que tomou conta dele, um mal que o possuiu.

    Que o fez sacar uma arma e irromper pelo salo. Um mal que ainda paira por aqui, nesta ruaescura. Tudo que se sabe que ele apontou a arma e... Billy parou.

    E o qu? indagou algum ansiosamente.A ateno de Billy, todavia, estava fixa no alto, os olhos cravados no telhado, onde

    jurava que alguma coisa tinha se movido. Fora apenas uma ondulao negra contra o fundonegro, como a asa de um pssaro gigante batendo no cu. Ele forou a vista para ter outrovislumbre, mas tudo que viu ento foi o contorno esqueltico da escada de incndio,abraando a parede.

    O que aconteceu depois? perguntou um dos moleques.

  • Billy encarou os 13 rostos que o fitavam, cheios de expectativa, e tentou lembrar-se deonde havia parado. Entretanto, encontrava-se ainda perturbado pelo que passararapidamente contra o cu. De sbito, sentiu-se desesperado para sair daquele beco escuro efugir do prdio. To desesperado que precisou de cada fiapo de fora de vontade para nocorrer de volta Beach Street. Em direo s luzes. Respirou fundo e disparou:

    O cozinheiro atirou em todo mundo e depois se matou.Com essa, Billy deu meia-volta e acenou para que o seguissem, levando-os para longe

    daquela construo deteriorada, com seus fantasmas e ecos de terror. Harrison Avenueficava um quarteiro adiante, com luzes e trfego que eram como um sinal de simpatia. Umlugar para os vivos, no para os mortos. Caminhava to rpido que o grupo ficou para trs,mas no conseguia livrar-se da sensao de ameaa que parecia envolv-los cada vez mais.Sensao de que algum os observava. Observava-o.

    Um grito agudo de mulher o fez voltar-se para trs, com o corao disparado. Depois, ogrupo soltou de repente uma enorme gargalhada, e um dos homens disse:

    Ei, que truque interessante! Voc o usa em todos os passeios? O qu? falou Billy. Quase nos matou de susto! Parece to real. No sei do que est falando retrucou Billy.O homem apontou para o que imaginava ser parte do espetculo: Ei, garoto, mostra para ele o que encontrou. Achei ali, ao lado da lata de lixo disse um dos moleques, erguendo a descoberta.

    Parece real mesmo. Nojento!Billy aproximou-se alguns passos e, de repente, percebeu que no conseguia se mexer

    nem falar. Estava paralisado, contemplando o que o garoto segurava. Viu pequenas gotasescuras escorrendo e pingando no casaco do menino, que parecia no notar.

    Foi a me quem comeou a berrar primeiro. Depois, os demais se juntaram a ela, aosgritos, correndo para longe. O moleque, aturdido, ficou parado ali, segurando seu trofu,enquanto o sangue gotejava sobre sua manga.

  • 4 Jantei l no sbado passado disse o detetive Barry Frost, enquanto dirigiam-se paraChinatown. Levei Liz para ver um bal no Wang Theater. Ela adora, mas, cara, para mimno d. Dormi da metade em diante. Depois andamos at o restaurante Ocean City parajantar.

    Eram duas da manh, tarde demais para algum estar to falante, mas a detetive JaneRizzoli deixava o colega tagarelar sobre a ltima namorada, enquanto se concentrava emdirigir. Para seus olhos cansados, todo poste de iluminao parecia brilhante demais, e cadafarol que passava era uma agresso s retinas. Uma hora antes, estava deliciosamenteaninhada na cama com o marido; agora tentava manter-se acordada enquanto suportava umtrfego que, inexplicavelmente, havia passado a arrastar-se num horrio em que as pessoasdeveriam estar em casa dormindo.

    Voc j comeu l? perguntou Frost. O qu? No restaurante Ocean City. Liz pediu um desses mariscos enormes, com alho e caldo

    de feijo-preto. Me d fome s de pensar. No vejo a hora de voltar l. Quem Liz? Falei sobre ela para voc semana passada. Nos conhecemos na academia. Pensei que estivesse saindo com uma garota chamada Muffy. Maggie corrigiu ele, dando de ombros. No deu certo. Nem com a outra antes dela. J nem me lembro o nome. Ei, ainda estou tentando descobrir o que quero numa mulher, sabia? Estava fora do

    mercado h uma eternidade. Cara, no fazia ideia de que tinha tantas garotas solteiras pora.

    Mulheres.Ele suspirou: . Alice costumava martelar isso na minha cabea. Agora tem que se falar mulheres.Jane freou diante de um sinal vermelho e olhou para o parceiro. Voc e Alice tm se falado muito ultimamente? perguntou ela.

  • No h muito o que falar. Sobre um casamento de dez anos, que tal?Ele olhou pela janela, para nada em particular: No temos mais nada que falar. Ela virou a pgina.Frost, contudo, no, pensou Jane. Oito meses antes, a esposa dele, Alice, sara de casa.

    Desde ento, Jane vinha sendo submetida a uma crnica constante das desinteressantesaventuras do colega com as mulheres. Teve a loura peituda que dissera no estar vestindoroupa de baixo. A bibliotecria incrivelmente atltica com sua cpia surrada do Kama Sutra.A quacre de cara lavada que o chupara debaixo da mesa. Ele contava todas essas histriasnum misto de incredulidade e espanto; porm o que ela via em seus olhos era apenastristeza. E ele no era de se jogar fora, nem um pouco. Esbelto, em forma e de uma belezasuave, encontrar namoradas deveria ser-lhe mais fcil do que vinha sendo.

    Mas ele ainda sente falta de Alice.Entraram na Beach Street, percorrendo o corao de Chinatown, e ficaram quase cegos

    com as luzes piscantes de uma patrulha do Departamento de Polcia de Boston. Ela parou ocarro atrs e os dois saltaram para a umidade, que gelava at os ossos, de uma noite deprimavera. Apesar da hora ingrata, havia alguns curiosos na calada, e Jane ouviumurmrios tanto em chins como em ingls, todos fazendo sem dvida a pergunta clssica: oque aconteceu?

    Ela e Frost deram alguns passos pela Knapp Street e abaixaram-se para passar sob a faixade isolamento que a polcia havia instalado e onde um patrulheiro estava de guarda.

    Detetives Rizzoli e Frost, da Unidade de Homicdios anunciou ela. Est ali. Foi a resposta curta do policial, apontando para um lato de lixo no beco,

    onde outro colega vigiava.Quando Jane e Frost aproximaram-se, ela percebeu que no era o lato que o

    patrulheiro estava guardando, mas alguma coisa sobre a calada. Jane parou e olhou para amo direita amputada.

    Uau! exclamou Frost.O policial riu: Foi exatamente a minha reao. Quem encontrou? Umas pessoas que estavam fazendo o Passeio Fantasmagrico de Chinatown. Um

    garoto do grupo pegou, achando que era falso. Ainda estava fresco o suficiente para pingarsangue. Assim que percebeu que era de verdade, deixou cair a, exatamente onde est agora.Acho que jamais esperaram encontrar isso no passeio.

    Onde esto esses turistas agora? Estavam bem apavorados. Insistiram em voltar para os hotis, mas peguei nomes e

    informaes de contato. O guia turstico um rapaz chins local, disse que estar disposio para falar com vocs quando quiserem. Ningum viu nada, a no ser a mo.Ligaram para a emergncia, e o pessoal de l achou que era algum trote. Levamos um tempopara chegar, porque tivemos que acalmar uns arruaceiros em Charlestown.

  • Jane agachou-se e apontou a lanterna para a mo. Era uma amputaoassustadoramente precisa: a extremidade cortada apresentava uma crosta de sanguecoagulado. Parecia haver pertencido a uma mulher, pelos dedos plidos, finos, de unhaspintadas com uma elegncia desconcertante. Sem anel nem relgio.

    Estava aqui no cho? Sim. To fresca como agora. Os ratos iriam atac-la logo. No vejo marcas de mordidas. No devia estar aqui h muito tempo. Ah, achei outra coisa tambm disse o patrulheiro, apontando a lanterna para um

    objeto acinzentado, a poucos metros de distncia.Frost aproximou-se para examinar melhor: uma Heckler & Koch. Custa caro comentou, olhando para Jane. E com

    silenciador. Algum dos turistas tocou na arma? perguntou Jane. Ningum respondeu o policial. Nem viram. Ento temos aqui uma pistola automtica com silenciador e uma mo recm-

    decepada falou Jane. Quem duvida de que as duas coisas esto ligadas? um artigo muito bom disse Frost, ainda admirando a arma. No consigo

    imaginar algum jogando isso fora desse jeito.Jane ps-se de p e olhou para o lato de lixo. Voc deu uma olhada dentro para ver se o resto do corpo no est l? No, senhora. Achei que uma mo amputada era mais que suficiente para cham-los

    imediatamente. No queria contaminar nada antes que chegassem.Ela tirou do bolso um par de luvas. Ao coloc-las, sentiu que o corao comeava a bater

    mais forte, na expectativa do que poderia encontrar. Ela e Frost, juntos, levantaram a tampa,e o cheiro de mariscos podres subiu, atingindo-os em cheio. Combatendo a nusea, viucaixas de papelo amassadas e um enorme saco preto de lixo. Jane e Frost entreolharam-se.

    Gostaria de fazer as honras? perguntou ele.Jane enfiou a mo, deu um puxo no saco e soube logo que no continha nenhum

    cadver. Era leve demais. Com uma careta por causa do mau cheiro, abriu-o e olhou seuinterior. S cascas de camaro e caranguejo.

    Os dois recolocaram ruidosamente a tampa sobre o lato e se afastaram. Ningum em casa? indagou o patrulheiro. No ali respondeu Jane, olhando outra vez para a mo decepada. Onde estar o

    restante dela? Talvez algum esteja espalhando os pedaos pela cidade sugeriu Frost.O policial riu: Ou talvez algum desses restaurantes chineses a tenha cozinhado e servido com um

    bom molho.Jane olhou para Frost. Ainda bem que voc pediu marisco. Demos uma volta por a disse o policial. No encontramos nada. Mesmo assim, acho que vamos dar uma volta no quarteiro replicou Jane.

  • Juntos, ela e Frost percorreram lentamente a Knapp Street, as lanternas cortando assombras. Viram cacos de garrafas quebradas, pedaos de papel, guimbas de cigarro. Nenhumpedao de corpo. Os prdios que se erguiam dos dois lados tinham as janelas escuras, masela se perguntava se acima haveria olhos observando desses aposentos sem iluminao,rastreando-lhes o percurso pelo caminho silencioso. Teriam que fazer de novo essa mesmainspeo luz do dia, mas Jane no queria perder nenhuma pista que fosse sensvel aotempo. Assim, ela e Frost prosseguiram pelo beco at outro trecho isolado com faixas pelapolcia, que bloqueava o acesso pela Harrison Avenue. Ali, havia caladas, postes deiluminao e trfego. Entretanto, a dupla continuou a fazer sua cuidadosa volta em torno doquarteiro, da Harrison Beach Street, com os olhos varrendo o cho. Quando terminaramo circuito e retornaram ao lato de lixo, a percia havia chegado.

    Pelo visto vocs tambm no encontraram o resto dela disse o patrulheiro a Jane eFrost.

    Jane observou a arma e a mo decepada serem recolhidas, perguntando-se por que umassassino deixaria um pedao de corpo num local to exposto, onde algum acabaria porencontr-lo. Teria sido uma coisa rpida? Fora deixado ali de propsito, como uma espciede mensagem? Depois, seu olhar encontrou uma escada de incndio que serpenteava peloprdio de quatro andares que dava para o beco.

    Precisamos dar uma checada naquele telhado observou ela.O primeiro degrau da escada estava enferrujado, e eles no conseguiram abaix-la:

    teriam de chegar ao telhado pela forma convencional, subindo a escadaria do prdio.Deixaram o beco e retornaram Beach Street, de onde podiam ter acesso s portas da frentedaqueles edifcios. Estabelecimentos comerciais ocupavam os primeiros pisos: um restaurantechins, uma padaria e uma loja de verduras asitica todos fechados quela hora. Acima,havia apartamentos. Olhando para o alto, Jane viu que as janelas dos andares mais altosestavam todas escuras.

    Vamos ter que acordar algum para nos abrir a porta falou Frost.Jane aproximou-se de um grupo de velhos chineses, que havia se reunido na calada

    para observar o movimento. Algum de vocs conhece os moradores desse prdio? Precisamos entrar.Eles a encararam sem expresso. Esse prdio disse Jane, outra vez, apontando. Precisamos subir. Falar mais alto no adianta nada interps Frost. Acho que eles no entendem

    ingls.Jane suspirou. Isto que Chinatown. Precisamos de um intrprete. O Distrito A-1 tem um novo detetive. Acho que chins. Vai demorar muito esperar por ele falou Jane, aproximando-se da porta da frente,

    examinando os nomes dos moradores e apertando um boto ao acaso. Apesar de pression-lo repetidas vezes, ningum atendeu.

    Jane tentou outro, e, dessa vez, uma voz falou no interfone. Wei? disse uma mulher.

  • a polcia replicou Jane. A senhora pode nos abrir a porta, por favor? Wei? Abra a porta, por favor!Passaram-se alguns minutos antes de uma voz de criana falar: Minha av quer saber quem voc. Detetive Jane Rizzoli, do Departamento de Polcia de Boston. Precisamos subir at o

    telhado. possvel abrir a porta?Por fim, ouviu-se o som da porta abrindo.O prdio tinha no mnimo cem anos, e seus degraus de madeira rangeram quando Jane

    e Frost subiram a escada. Ao chegar no segundo andar, uma porta abriu-se e Janevislumbrou um apartamento pequeno, do qual duas garotas espiavam com olhos curiosos. Amais nova tinha mais ou menos a idade de sua filha, Regina, e Jane parou para sorrir e dizeroi.

    Na mesma hora, a menor das meninas foi agarrada pelos braos de uma mulher e aporta se fechou.

    Acho que somos os estranhos grandalhes e malvados comentou Frost.Os dois continuaram a subir. Passaram pelo quarto andar e, depois, por um estreito

    lance de escadas, at o telhado. A sada no estava trancada, mas a porta rangeu alto quandoa abriram.

    Eles saram para a escurido que antecede o amanhecer, iluminada apenas pelo brilhodifuso das luzes da cidade. Acendendo a lanterna, Jane viu uma mesa e cadeiras de plstico,vasos de plantas com ervas. Num varal arqueado, uma boa quantidade de roupaspenduradas danava como fantasmas ao vento. Em meio aos lenis balouantes, Jane viualgo mais, uma coisa que se encontrava perto da beirada do telhado, alm daquela cortina detecido.

    Sem dizer nada, ela e Frost tiraram automaticamente do bolso protetores de sapatos, depapel, e os colocaram. S depois se abaixaram para atravessar a linha de roupas penduradas edirigir-se at o que tinham vislumbrado.

    Por um momento, nenhum dos dois falou. Permaneceram lado a lado, com as lanternasapontadas para uma enorme poa de sangue congelado e para o que boiava nela.

    Acho que encontramos o restante disse Frost.

  • 5Chinatown ficava no corao de Boston, espremida entre a zona do mercado financeiro, aonorte, e o gramado verde do parque pblico central, a oeste.

    Quando Maura, entretanto, passou sob o porto paifang, com seus quatro leesesculpidos, sentiu-se como se estivesse entrando numa cidade e num mundo diferentes.Visitara o bairro pela ltima vez num sbado de manh, em outubro, quando havia gruposde idosos sentados sob o porto, tomando ch e jogando damas enquanto tagarelavam emchins. Naquele dia frio, encontrara Daniel ali para um caf da manh dim sum. Havia sidouma das ltimas refeies que fizeram juntos, e a lembrana daquele dia doa agora comouma punhalada no corao. Embora aquele fosse um claro amanhecer de primavera, e osmesmos jogadores de damas estivessem conversando no alvorecer frio, a melancolia turvavatudo o que via, transformando dia em noite.

    Passou por restaurantes onde peixes prateados pululavam em tanques; por lojasempoeiradas de artigos importados, apinhadas de mveis de pau-rosa, pulseiras de jade eesculturas de marfim falso; at chegar a uma multido de curiosos. Viu um policial com ouniforme do Departamento de Polcia de Boston sobressaindo-se no ajuntamento, compostomajoritariamente de asiticos, e dirigiu-se at ele.

    Com licena. Sou a patologista anunciou.O olhar frio que ele lhe lanou no deixava dvidas de que sabia com exatido quem ela

    era. A Dra. Maura Isles, que trara a irmandade dos encarregados de servir e proteger. Cujotestemunho poderia mandar um deles para a priso. O policial no disse uma palavra,apenas encarou-a, como se no fizesse ideia do que Maura esperava dele.

    Ela retribuiu o olhar, com a mesma frieza. Onde est a morta? falou. Melhor perguntar detetive Rizzoli. No estava disposto a facilitar-lhe as coisas. E onde est ela?Antes que o patrulheiro pudesse responder, ouviu algum chamar: Dra. Isles?Um jovem asitico, de terno e gravata, atravessou a rua em sua direo:

  • Esto esperando por voc no telhado. Como chego l? Venha comigo. Subo as escadas com voc. novo na Unidade de Homicdios? Acho que nunca vi voc antes. Perdo, devia ter me apresentado. Sou o detetive Johnny Tam, do Distrito A-1.

    Rizzoli precisava de algum da rea para traduzir, e, como sou o cara chins, me colocaramna equipe.

    sua primeira vez trabalhando em um homicdio? Sim. Sempre foi um sonho para mim. Sou detetive h apenas dois meses, ento estou

    bastante empolgado. Afastando com energia os curiosos para um lado, conseguiu umespao para ela em meio multido e abriu a porta de um prdio que cheirava a alho eincenso.

    Vejo que fala mandarim. Cantons tambm? perguntou ela. Percebe a diferena? Morei em So Francisco. Tinha vrios colegas chineses. Gostaria de falar cantons, mas para mim como grego observou ele, enquanto

    subiam a escada. Acho que o meu mandarim no muito til por aqui. A maioria dessesidosos fala cantons ou o dialeto toisan. Quase sempre, eu mesmo preciso de intrprete.

    Ento no de Boston? Nascido e criado em Nova York. Meus pais vieram da provncia de Fujian.Eles chegaram at a porta do telhado e cruzaram-na, entrando na luminosidade do sol

    da manh que se iniciava. Franzindo os olhos contra a claridade, Maura viu o pessoal dapercia vasculhando o telhado e ouviu algum dizer:

    Encontrei outro cartucho de bala aqui em cima. o quinto, esse? Etiquete e guarde.De repente, as vozes calaram-se, e Maura percebeu que haviam notado sua entrada e

    estavam todos olhando para ela. A traidora chegara. Oi, doutora chamou Jane, caminhando em sua direo, o vento a despentear-lhe o

    cabelo. Vejo que Tam finalmente a encontrou. Que histria essa de cartuchos de balas? perguntou Maura. No telefone, voc

    falou de amputao. Foi. Mas encontramos uma Heckler & Koch automtica no beco, l embaixo. Parece

    que algum andou dando uns tiros aqui em cima. No mnimo, cinco. Algum mencionou ter ouvido disparos? Temos uma hora aproximada? A arma tinha silenciador. Ningum ouviu nada respondeu Jane, virando-se. A

    vtima est ali.Maura colocou protetores nos sapatos e luvas e ento seguiu Jane at o corpo coberto,

    prximo beirada do telhado. Inclinando-se, levantou a cobertura de plstico e olhou,incapaz de falar por um momento.

    . Tambm ficamos sem flego comentou Jane.A mulher era branca, aparentava 30 e poucos anos, tinha o corpo esbelto e atltico,

  • vestia moletom com capuz e cala justa de malha, tudo em preto. O corpo apresentavarigidez cadavrica total. Estava cado de costas; o rosto encarando o cu, como se tivesse seesticado para admirar as estrelas. O cabelo, de um belo castanho-avermelhado, estava presonum simples rabo de cavalo. A pele era clara e imaculada; as mas do rosto projetavam-secomo as de uma modelo, ligeiramente eslavas. Maura, porm, concentrou-se no ferimento:um corte to profundo que separou pele, msculos e cartilagem, decepando o lmen datraqueia e expondo a superfcie perolada da coluna cervical. O jorro arterial resultante tevefora suficiente para espalhar sangue num raio apavorantemente amplo, deixando borrifosna cortina de lenis pendurados no varal ao lado.

    A mo amputada caiu no beco aqui embaixo disse Jane. Assim como a Heckler& Koch. Meu palpite que as digitais dela esto no cabo da arma. E que vamos encontrarvestgios de plvora naquela mo.

    Maura tirou os olhos do pescoo, concentrou-se no punho direito, que havia sidocortado de forma bastante precisa, e tentou imaginar que tipo de instrumento poderia terfeito aquele talhe to eficiente, passando por cartilagem e ossos. Tinha de ser algoincrivelmente afiado, manejado sem hesitao. Pensou no corte da lmina e na mo caindo,despencando da beira do telhado. Imaginou essa mesma lmina abrindo o pescoo fino.

    Estremecendo, ps-se de p e olhou para baixo, do telhado, para os policiais de p, naextremidade da Knapp Street, contendo os curiosos. A multido parecia ter dobrado detamanho quanto ao que fora momentos antes, e o dia mal havia comeado. Genteimplacvel, que sempre fareja o cheiro de sangue.

    Voc tem certeza de que quer estar aqui, Maura? perguntou Jane, em voz baixa.A legista voltou-se para ela: Por que no iria querer? S estou pensando se no muito cedo para voltar rotina. Sei que foi uma semana

    difcil para voc, com o julgamento e tudo mais respondeu Jane e, aps uma hesitao: As coisas no esto nada boas para Graff no momento.

    E no tm que estar. Ele matou um homem. E esse homem matou um policial. Um bom policial, que tinha mulher e filhos. Tenho

    de admitir, eu poderia ter perdido o controle tambm. Por favor, Jane. No me diga que voc est defendendo o policial Graff. Trabalhei com ele, e no tinha homem melhor para dar cobertura. Voc sabe o que

    acontece com um policial que acaba na priso, no ? Eu no deveria ter que me defender nesse caso. J recebo muitas cartas de ameaa.

    No se junte ao coro. S estou dizendo que esse um momento muito delicado. Todos ns respeitamos

    Graff e entendemos como ele perdeu o juzo aquela noite. Um homem que assassinou umpolicial morreu, e isso talvez seja uma espcie de justia inerente.

    Fazer justia no o meu trabalho. S apresento os fatos.A risada de Jane foi ferina. , o seu negcio so os fatos, no mesmo?Maura virou-se e olhou pelo telhado para os peritos que vasculhavam a cena. Deixe o

  • barco correr e se concentre no trabalho. Voc est aqui para falar em nome dessa mulhermorta, e de ningum mais.

    O que ela estava fazendo no telhado? perguntou.Jane olhou para o corpo: No fao ideia. J se sabe como ela conseguiu subir? Pode ter sido por uma escada de incndio ou pela escada interna de um prdio. Uma

    vez que se chegue a um telhado, d para passar para qualquer outro, neste quarteiro, daHarrison Avenue Knapp Street. Ela pode ter entrado por qualquer um destes edifcios. Outer sido deixada de helicptero, em ltima hiptese. Nenhuma das pessoas com quemfalamos se lembra de t-la visto ontem noite. E temos certeza de que aconteceu ontem noite. Quando a encontramos, a rigidez cadavrica estava apenas comeando.

    Maura concentrou-se outra vez na vtima: estranho ela estar toda de preto. Preto combina com tudo, no o que dizem? Identidade? Nada. Tudo que encontramos nos bolsos foram trezentos dlares e a chave de um

    Honda. Estamos vasculhando a rea atrs do veculo falou Jane, balanando a cabea. Pena que ela no estava dirigindo um Yugo. como procurar uma agulha numa droga depalheiro de Hondas.

    Maura recolocou a cobertura sobre o cadver, e o ferimento aberto desapareceu outravez sob o plstico:

    Onde est a mo? J foi recolhida. Tem certeza de que deste corpo?Jane riu, surpresa: Quais so as chances de que no seja? Nunca trabalho com hipteses. Voc sabe disto respondeu ela, virando-se. Maura?Ela olhou novamente para Jane. Ficaram cara a cara na claridade ofuscante, onde

    parecia que todo o Departamento de Polcia de Boston podia v-las e ouvi-las. Sobre o julgamento. Entendo o que voc est fazendo falou Jane. Sabe disso. E no aprova. Mas entendo. Da mesma forma que espero que voc entenda que so caras como

    Graff que tm de lidar com o mundo l fora. So eles que esto na linha de frente. A justiano to precisa quanto uma experincia cientfica. s vezes confusa, e os fatos sconfundem voc ainda mais.

    Eu devia ter mentido, ento? S no esquea quem so os verdadeiros bandidos. Isso no est na descrio do meu trabalho retrucou Maura.Ela deixou o telhado e dirigiu-se escada, feliz por escapar do brilho ofuscante do sol e

    dos olhares do pessoal do Departamento de Polcia de Boston. No entanto, quando chegou

  • ao trreo, viu-se mais uma vez cara a cara com o detetive Tam. Tem muito sangue l em cima, no ? perguntou ele. Mais que o normal. E quando vai ser a necropsia? Vou faz-la amanh de manh. Posso assistir? Vai ser bem-vindo, se tiver estmago para isso. Assisti a algumas quando estava na academia de polcia. Consegui no desmaiar.Ela parou um instante para observ-lo. Viu olhos escuros, sem humor, e belos traos

    bem-definidos, mas nenhuma hostilidade. Numa manh em que todo o Departamento dePolcia de Boston parecia v-la como a inimiga, o detetive Johnny Tam era o nico policialque parecia no critic-la.

    s oito disse ela. At l.

  • 6Maura no dormiu bem aquela noite. Aps uma lasanha pesada, saboreada com trs coposde vinho, foi para a cama, exausta. Acordou horas depois, com a dolorosa percepo do lugarvazio a seu lado. Esticando o brao, tocou em lenis frios e perguntou-se, como j haviafeito tantas outras noites, ao longo daqueles ltimos quatro meses, se Daniel Brophy tambmestaria acordado e s. Se tambm estaria louco para pegar o telefone e acabar com o silncioentre eles. Ou dormiria profundamente, sem arrependimentos, aliviado por o caso dos doister terminado? Ao mesmo tempo que Maura se sentia independente outra vez, essaliberdade tinha um preo. Uma cama vazia, noites sem dormir e a pergunta sem resposta:fico melhor com ou sem ele?

    Na manh seguinte, chegou ao trabalho grogue e enjoada de tanto caf que bebera paraficar desperta. Na antessala do necrotrio, enquanto colocava protetores de sapatos, mscarae touca de papel, olhou pelo vidro da porta e viu que Jane j estava ao lado da mesa,esperando por ela. No dia anterior, as duas no haviam se despedido nos termos maiscordiais, e Maura ainda se sentia ferida pela observao sarcstica da amiga: o seu negcio soos fatos, no mesmo? Sim, os fatos eram importantes para ela. Eram coisas imutveis queno podiam ser negadas, mesmo quando ameaavam uma amizade. O julgamento dopolicial Graff cavara um abismo entre as duas, lembrando Maura de que a relao delas foraimprovvel desde o incio. Enquanto amarrava o jaleco, no era o cadver que ela temiaencarar, mas Jane.

    Respirando fundo, abriu a porta.Seu assistente, Yoshima, j tinha colocado o saco com o corpo sobre a mesa. Numa

    bandeja ao lado estava a mo decepada, coberta por um pano. Muito consciente de queYoshima estava escutando a conversa, Maura cumprimentou Jane de forma neutra eperguntou:

    Frost no vem? No, vai perder esta, mas Johnny Tam est vindo. Na verdade, acho que mal pode

    esperar para ver voc comear a cortar.

  • O detetive Tam parece ansioso por mostrar seu valor. Acho que tem planos de entrar para a Unidade de Homicdios. Pelo que vi at agora,

    parece ser qualificado disse ela, levantando a cabea. Falando no diabo...Pelo vidro da porta, Maura viu que Tam havia chegado e estava colocando um jaleco

    cirrgico. Um instante depois entrava, com o cabelo negro oculto sob uma touca de papel.Aproximou-se da mesa, exibindo um olhar calmo e impassvel, enquanto contemplava ocorpo encoberto.

    Antes de comearmos, Tam falou Jane , s queria mostrar a voc que a pia paravomitar fica ali.

    Ele deu de ombros: No vou precisar dela. Est dizendo isso agora. Vamos comear pela parte fcil disse Maura, descobrindo a bandeja com a mo

    amputada.Parecia feita de plstico. No era de admirar que o grupo do passeio a tivesse tomado por

    um acessrio de Halloween, com sangue falso. J havia sido periciada, e o resultado pararesduo de plvora dera positivo. Digitais daquela mo foram encontradas no cabo daHeckler & Koch, no deixando qualquer dvida de que a vtima tinha disparado as balas,espalhando cinco cartuchos pelo telhado. Maura colocou a lente de aumento sobre a mo eexaminou o punho decepado.

    O corte foi exatamente entre o rdio distal e o semilunar observou ela. Masposso ver um bom pedao do piramidal aqui.

    E isso quer dizer...? perguntou Jane. Que o que fez este corte dividiu um osso do carpo. E esses ossos so muito densos. Ento deve ter sido uma lmina afiada. Afiada o suficiente para amputar de uma vez s disse Maura, levantando a cabea.

    No vejo nenhuma marca de um segundo corte. Me diga se essa mo faz parte desse corpo.Maura virou-se para a mesa e desceu o zper do saco no qual estava o cadver. O plstico

    abriu-se, exalando um odor repulsivo de carne refrigerada e sangue velho. O corpo aindaestava com todas as roupas, a cabea cada para trs, expondo o ferimento profundo nopescoo. Enquanto Yoshima tirava fotos, o olhar de Maura era atrado pelo cabelo castanho-avermelhado da mulher, endurecido de sangue. Lindos cabelos, pensou, e que bela mulher,que estivera armada e atirando em algum naquele telhado.

    Dra. Isles, temos aqui fios de cabelo e fibras disse Yoshima, curvando-se sobre omoletom preto do cadver e examinando um nico filamento de cor clara, preso manga.

    Com uma pina, Maura pegou o fio de cabelo e examinou-o sob a luz. Tinha cerca de 5centmetros, era grisalho e ligeiramente curvo. Ela olhou para o cadver:

    bvio que no dela. Olhe ali, tem outro comentou Jane, apontando para um segundo fio, preso na

    cala preta da vtima. Talvez seja pelo de animal falou Yoshima. Pode ser de um golden retriever.

  • Ou talvez ela tenha sido assassinada por um vov grisalho.Maura guardou os fios em envelopes diferentes e os colocou de lado: OK, vamos despi-la.Primeiro, foi retirado do punho esquerdo o nico adorno que ela usava, um relgio

    preto Swiss Hanowa. Depois, o tnis Reebok preto seguido do moletom com capuz, umacamiseta de manga comprida, a cala, calcinhas de algodo e um top. O que surgiu foi umcorpo bronzeado, magro, porm musculoso. Maura escutou certa vez um professor depatologia afirmar que, em seus muitos anos de necropsias, nunca tinha visto um cadveratraente. Aquela mulher provava que havia excees regra. Apesar do ferimento aberto,das manchas nas costas e ndegas e dos olhos vidrados, ainda era uma mulherextraordinariamente bela.

    Com o cadver agora sem roupas, Maura e os dois detetives saram do necrotrio paraque Yoshima pudesse tirar os raios X. Na antessala, observaram-no pelo vidro da portacolocar o avental de chumbo e os cartuchos de filme.

    Algum vai dar falta de uma mulher como essa disse Maura. Voc est dizendo isso porque ela bonita? perguntou Jane. Estou dizendo porque estava em excelente forma, com dentes perfeitos, e a cala que

    estava usando era Donna Karan. Desculpem a pergunta de homem ignorante falou Tam. Isso significa que

    cara?Jane respondeu: Aposto que a Dra. Isles aqui pode dizer para voc o preo exato. A questo continuou Maura que no se trata de um p-rapado qualquer. Ela

    estava com muito dinheiro e tinha uma Heckler & Koch, que, creio eu, no uma armacomum.

    Mas tambm no tinha identidade interps Tam. Pode ter sido roubada. E o ladro ia deixar para trs 300 dlares? replicou ele, balanando a cabea.

    Estranho...Pelo vidro da porta, Maura viu Yoshima fazer um sinal. Ele terminou falou ela, voltando ao laboratrio.Maura examinou primeiro a inciso no pescoo. Como o corte que amputara a mo, o

    ferimento parecia obra de um golpe s, dado sem hesitao. Medindo-o com uma rgua, eladisse:

    Tem quase 8 centmetros de profundidade. Atravessa a traqueia e penetra at acoluna cervical. Ela mudou a rgua de posio. Tem mais largura que profundidade,mais ou menos 12 centmetros de lado a lado. mais um talho que uma perfurao declarou Maura, fazendo uma pausa para estudar a inciso exposta. Incrvel como ele liso. No tem serrilhado nem corte secundrio. Nenhuma contuso, nada esmagado. Foimuito rpido, a vtima no teve a menor chance de se defender continuou ela, pegando acabea e inclinando-a para a frente. Algum pode segurar para mim o crnio na posio?Quero aproximar as bordas do ferimento.

  • Sem nenhuma hesitao, o detetive Tam deu um passo frente e segurou a cabea comas mos enluvadas. Embora um tronco humano possa ser visto apenas como carne, osso emsculo, um conjunto impessoal, o rosto de um cadver revela mais do que a maioria dospoliciais quer ver. Johnny Tam, contudo, no se esquivou da viso. Olhou direto nos olhosda morta, como se esperasse que fornecessem respostas a vrias perguntas.

    Isso. A falou Maura, passando a lente de aumento pela pele. No temnenhuma marca de serrilhado. Nada que me diga que tipo de faca... Ela hesitou.

    O qu? perguntou Jane. Esse ngulo estranho. No como as gargantas cortadas que vejo normalmente. , essas so muito chatas. Pensa em como voc cortaria uma garganta sugeriu Maura. Para penetrar numa

    profundidade dessas, at as vrtebras, seria preciso se aproximar pelas costas da vtima.Agarrar o cabelo dela, puxar sua cabea para trs e cortar pela frente, de uma orelha a outra.

    O mtodo do pessoal do Exrcito comentou Tam. A abordagem pelas costas d a voc controle sobre a vtima e deixa a garganta mais

    exposta. E em geral resulta numa inciso curva, quando se examina depois o ferimento. Maseste corte revela um ngulo um pouco acima, da esquerda para a direita. Foi feito com acabea numa posio neutra, e no inclinada para trs.

    Talvez o assassino estivesse na frente dela sugeriu Jane. Ento por que ela no resistiu? Ela no tem nenhuma contuso que sugira que lutou.

    Por que ia ficar ali parada enquanto algum quase decepava a sua cabea?Yoshima falou: J coloquei os raios X.Todos se viraram para a caixa de luz, onde estavam agora as radiografias expostas, os

    ossos brancos sobre a tela. Maura concentrou-se primeiro nas chapas que mostravam opunho direito e a mo decepada, comparando mentalmente os ngulos do osso piramidal.Encaixavam-se.

    A mo realmente dela confirmou. Nunca tive dvida replicou Jane.Em seguida, Maura deu ateno s radiografias do pescoo, brecha nos tecidos moles,

    onde a carne fora cortada de forma to precisa. Seu olhar fixou-se de imediato numa lascabrilhante, na vrtebra cervical.

    Voc tirou alguma lateral da coluna? perguntou.Yoshima claramente antecipara o pedido, porque retirou de imediato as radiografias da

    mo e do punho e prendeu uma nova, uma incidncia lateral do pescoo: Tambm percebi isso e achei que voc ia querer ver melhor.Maura contemplou um ngulo lateral da quinta vrtebra cervical. O objeto, finssimo,

    tambm aparecia naquela radiografia. O que isso? perguntou Jane, chegando mais perto. alguma coisa metlica e est engastada na quinta vrtebra cervical respondeu ela,

    voltando-se para a mesa de necropsia. Acho que um pedao da lmina se partiu quando oassassino deu o golpe, e um fragmento ficou alojado no pescoo.

  • O que significa que poderamos analisar o metal comentou Jane. Identificarquem fabricou a faca.

    No acho que tenha sido uma faca retrucou Maura. Um machado? Um machado deixaria uma fissura, e veramos triturao dos tecidos moles. Ela no

    apresenta nenhum dos dois. Essa inciso fina e linear. Foi feita por uma lmina muitoafiada e longa o suficiente para cortar praticamente o pescoo da vtima com um golpe s.

    Algo como um faco? perguntou Jane. Ou uma espada.Jane olhou para Tam. Estamos procurando o Zorro falou. Sua risada foi interrompida pelo som do celular

    tocando. Ela tirou as luvas e pegou o telefone, preso na cintura. Rizzoli. Voc j viu ferimentos de espada antes, Dra. Isles? perguntou Tam, ainda

    examinando o raio X. Vi um, em So Francisco. Um homem retalhou a namorada at a morte com uma

    espada samurai. Uma anlise do metal poderia dizer se essa era uma espada samurai? Elas so produzidas em srie atualmente, de modo que isso no nos ajudaria, a menos

    que pudssemos encontrar a arma em si. Mesmo assim, nunca se sabe quando evidnciasmnimas como esta acabam sendo a pea do quebra-cabea necessria para condenaralgum.

    Ela olhou para Tam, cujo rosto se encontrava banhado pela luz da caixa. Mesmo comuma touca bizarra cobrindo-lhe o cabelo, mais uma vez ela ficou impressionada com suaintensidade. E falta de humor.

    Voc faz boas perguntas disse Maura. S estou tentando aprender. Rizzoli uma policial esperta. Ande com ela e voc vai aprender muito. Tam chamou Jane, desligando o telefone. Voc fica e termina a coisa aqui.

    Tenho que ir. O que aconteceu? Era Frost. Encontramos o carro da vtima.

    O quarto andar do edifcio-garagem da Tyler Street estava quase vazio, e o Honda Civic azulencontrava-se estacionado numa vaga longnqua, em um canto. Era um lugar escuro eisolado, o tipo de local que se escolhe quando no se deseja ser visto andando at o carro.Enquanto Jane e Frost inspecionavam o veculo, o pblico resumia-se ao nico empregadoda garagem e os dois policiais do Departamento de Polcia de Boston que haviam descobertoo automvel naquela manh.

    O tquete de entrada no para-brisa de quarta-feira, oito e quinze da noite disseFrost. Chequei o filme da cmera de segurana, e ele mostra o Honda entrando nessehorrio. Cinco minutos depois, uma mulher sai da garagem. Est de capuz e no d para verseu rosto, mas parece com ela. Depois disso, o carro no saiu mais daqui.

  • Enquanto Frost falava, Jane andava ao redor do Honda vagarosamente. Era um modelode trs anos antes, sem grandes amassados ou arranhes. Os pneus encontravam-se em boascondies. O porta-malas estava aberto, o cap levantado para que ela examinasse seuinterior.

    A placa foi roubada cinco dias atrs em Springfield relatou Frost. E o veculo,uma semana atrs, tambm em Springfield.

    Jane franziu o cenho diante do porta-malas vazio, a no ser pelo estepe: Uau, est muito mais arrumado que o meu.Frost riu e replicou: Pode-se dizer o mesmo de vrios outros carros. Olha s quem fala! Um obsessivo-compulsivo. Parece que andou recebendo uma guaribada recentemente. A carteira de motorista

    do verdadeiro dono do carro e o carto do seguro esto no porta-luvas. E voc vai adorar oque estava no banco da frente falou ele, colocando luvas e abrindo a porta do motorista. Um GPS porttil.

    Por que voc sempre consegue encontrar coisas interessantes? Acho que novo, porque ela s ps dois endereos. Ambos aqui em Boston. Onde? O primeiro de uma residncia particular em Roxbury Crossing, pertencente a Louis

    Ingersoll.Jane olhou para ele, surpresa: Ser a do detetive Lou Ingersoll? Do prprio. o endereo que o Departamento de Polcia de Boston tem dele. Quanto tempo faz mesmo? Ele se aposentou da Unidade de Homicdios faz 16 ou 17

    anos? Dezesseis. No consegui encontr-lo. Liguei para a filha, e ela disse que Lou foi passar

    o fim de semana no norte, pescando. Parece que o celular no pega l. Ou ento ele desligoupara no ser incomodado.

    E o segundo endereo no GPS? de um estabelecimento comercial, bem aqui em Chinatown. Um lugar chamado

    Academia de Artes Marciais Dragon and Stars. A secretria eletrnica deles disse que abremao meio-dia falou Frost, olhando para o relgio. Ou seja, dez minutos atrs.

  • 7A Academia de Artes Marciais Dragon and Stars ficava no segundo andar de um velhoprdio de tijolos aparentes na Harrison Avenue, e, medida que Jane e Frost subiam aescada estreita, iam ouvindo cantos, gemidos e o som de ps batendo no cho: dava quasepara sentir o cheiro de suor do vestirio. Dentro da academia, uma dezena de alunos,vestidos com roupas que pareciam pijamas pretos, moviam-se to concentrados que ningumnotou a entrada dos dois detetives. exceo de um pster desbotado de artes marciais, erauma sala totalmente vazia, com paredes nuas e piso de madeira gasta. Por um instante, Janee Frost permaneceram ignorados perto da porta, assistindo turma pular e chutar.

    De repente, uma jovem asitica saiu da formao e disse: Terminem o exerccio!Depois, atravessou a sala para falar com os dois visitantes. Era esbelta como uma

    bailarina, a pele reluzindo de suor, mas, apesar do esforo, no parecia nem um pouco semflego.

    Em que posso ajudar? perguntou. Somos do Departamento de Polcia de Boston. Sou a detetive Jane Rizzoli, e este o

    detetive Frost. Gostaramos de falar com o dono da academia. Posso ver a identificao de vocs?O pedido foi brusco e nem um pouco o que Jane esperava, vindo de algum que parecia

    ter acabado de se formar no ensino mdio. Enquanto a garota examinava a identidade deJane, a detetive a estudava. Chegou concluso de que ela talvez no fosse to jovem quantoaparentava ser. Vinte e poucos anos e sino-americana, pela voz, ostentando uma tatuagemde tigre no antebrao esquerdo. Com o cabelo curto, espetado e um olhar mal-humorado,parecia uma verso asitica de uma garota gtica, pequena, mas perigosa.

    Ela devolveu a identificao. Vejo que vocs so da Unidade de Homicdios. Por que esto aqui? Primeiro, posso perguntar seu nome? falou Jane, tirando um bloco de anotaes. Bella Li. Sou professora de nvel bsico e intermedirio. Seus alunos so incrveis comentou Frost, maravilhado, ainda assistindo aula,

  • vendo-os saltar e girar. Esse o nvel intermedirio. Eles esto ensaiando para uma exibio de artes marciais

    que vai acontecer ms que vem, em Nova York. Agora esto praticando os movimentos doleopardo.

    Leopardo? uma das antigas tcnicas de animais do norte da China. O leopardo confia na

    velocidade e na agressividade, caractersticas que vocs esto vendo nesse exerccio. Cadatcnica de um animal reflexo da natureza dele. A cobra astuciosa e insinuante. Acegonha prima pelo equilbrio e o poder de evaso. O macaco rpido e inteligente. Osalunos escolhem qual animal se adapta melhor sua personalidade, e assim que adquiremhabilidades.

    Frost riu. como se v nos filmes de kung fu.Sua observao foi recebida com um olhar glacial. O nome dessa arte wushu, e ela foi criada h milhares de anos. O que se v nesses

    filmes lixo hollywoodiano, falso. Parou de falar quando percebeu que a turma haviaacabado o exerccio e estava imvel, olhando para ela, espera de novas instrues. Peguem as espadas. Treinem uns com os outros mandou.

    Os alunos dirigiram-se at a prateleira na qual ficavam guardadas as espadas de madeira,usadas em treinos, e cada um pegou uma.

    Podemos falar com o dono? perguntou Jane. Sifu Fang est na sala dos fundos, dando uma aula particular. Como se escreve o nome? Voc disse Shi... Sifu no nome corrigiu Bella. Quer dizer mestre ou professor em chins.

    Um termo que demonstra respeito. Podemos falar ento com o mestre? retorquiu Jane, irritada com a atitude da

    garota. Isto no uma visita social, Srta. Li. Viemos em carter oficial.Bella analisou o pedido. Os alunos comearam a praticar entre si, e a sala ecoava com as

    batidas das espadas de madeira. Um minuto disse, por fim. Bateu na porta, esperou respeitosamente um momento,

    abriu-a e anunciou: Sifu, tem dois policiais aqui solicitando um encontro. Mande-os entrar falou uma voz. De mulher.Ao contrrio da esguia Bella Li, a chinesa que se levantou da cadeira para saud-los

    movia-se devagar, como se sentisse as juntas doloridas, embora no aparentasse mais que 50e poucos anos. A meia-idade quase no estava gravada em seu rosto, e o cabelo negro ecomprido mostrava apenas alguns fios brancos. Ela os encarou com a confiana de umaimperatriz. Apesar de ser da mesma altura que Jane, a postura rgia fazia-a aparecer muitomais alta. A seu lado estava um menino pequeno, louro, com cerca de 6 anos, vestindo umuniforme de artes marciais e segurando uma vara de madeira, quase do seu tamanho.

    Sou Iris Fang disse a mulher. Em que posso ajud-los?Tanto a formalidade quanto o sotaque disseram a Jane que a mulher era estrangeira.

  • Detetive Rizzoli e detetive Frost apresentou Jane. Ela olhou para o menino, quesustentou o olhar, com destemor combativo. Seu aluno poderia sair um instante?Precisamos falar a ss.

    Iris concordou com a cabea. Bella, leve Adam at a outra sala para esperar a me dele. Mas, sifu protestou o garoto. Quero mostrar para voc como pratiquei com a

    vara do macaco!Iris sorriu para ele. Voc vai me mostrar na semana que vem, Adam disse ela, passando afetuosamente

    os dedos pelo cabelo do pequeno aluno. Os macacos tm de aprender tambm a serpacientes. Agora v. O sorriso permaneceu-lhe nos lbios enquanto Bella conduzia ogaroto para fora da sala.

    Esse garotinho aluno de artes marciais? perguntou Frost. Sim, tem talento e paixo. No perco tempo com qualquer um. O sorriso

    desapareceu do rosto de Iris quando contemplou os visitantes, fazendo uma fria avaliao.Seu olhar fixou-se em Jane, como se compreendesse com quem estava a autoridade.

    Por que a polcia est na minha academia? Somos da Unidade de Homicdios do Departamento de Polcia de Boston

    respondeu Jane. Precisamos lhe fazer umas perguntas sobre algo que aconteceu emChinatown ontem noite.

    Imagino que seja sobre a mulher morta no telhado? Ento j sabe. Todo mundo est comentando. Este um bairro pequeno. Como todo vilarejo chins,

    tem muita fofoca e bisbilhoteiros. Dizem que cortaram a garganta dela, que a mo foi atiradado telhado e que tinha uma arma.

    Seja l quem estivesse dizendo, estava muito bem-informado, pensou Jane. Isso tudo verdade? perguntou Iris. No podemos comentar disse Jane. Mas por isso que esto aqui, no? Para falar sobre o que aconteceu? argumentou

    Iris, com toda placidez.Entreolharam-se por um instante, e Jane entendeu de sbito: no sou a nica em busca

    de informaes. Temos uma foto que gostaramos que visse falou. Existe alguma razo para me pedirem isto? perguntou Iris. Estamos conversando com vrias pessoas do bairro. Mas a primeira vez que ouo falar em foto. J teriam me contado. Primeiro, precisamos mostrar a voc uma foto. Depois falaremos sobre o porqu

    disse Jane, olhando para Frost. Sinto muito que tenha de ver isto acrescentou ele. Pode ser um pouco

    desagradvel. Talvez queira se sentar primeiro.Seu tom calmamente respeitoso pareceu derreter um pouco o gelo nos olhos da mulher,

    e ela concordou.

  • Me sinto cansada hoje. Acho que vou sentar, obrigada.Frost puxou rapidamente uma cadeira mais para perto, e Iris sentou-se com um suspiro

    de alvio, que lhes revelou o quanto apreciara seu gesto. S ento ele mostrou uma fototirada no necrotrio, que Maura tinha mandado por e-mail. Embora o ferimento da vtimaestivesse coberto de uma forma discreta por um pano, a palidez do rosto, a mandbula solta eos olhos semiabertos no deixavam dvidas de que aquela era a foto de uma mulher morta.

    Em silncio, Iris contemplou a imagem por quase um minuto, com uma expressoinalterada no rosto.

    Reconhece-a? perguntou Frost. Uma bela mulher, no? comentou Iris, levantando a cabea. Mas no a

    conheo. Tem certeza de que nunca a viu? Moro em Chinatown h 35 anos, desde que meu marido e eu emigramos de Taiwan.

    Se essa mulher fosse daqui, eu a conheceria falou ela, olhando para Jane. Isto tudo?Jane no respondeu de imediato, porque havia notado a escada de incndio que passava

    pela janela. Daquela sala, pensou ela, seria possvel ter acesso ao telhado. O que significavater acesso a todos os telhados daquele quarteiro, inclusive o do prdio no qual a vtimamorrera. Ela se virou para Iris:

    Quantos funcionrios trabalham aqui? Sou a professora principal. E essa jovem que nos recebeu? perguntou Jane, procurando o nome em seu bloco

    de anotaes. Bella Li. Bella trabalha aqui h quase um ano. D algumas aulas, e recebe honorrios de seus

    alunos particulares. Seu marido, Sr. Fang, tambm trabalha aqui?A mulher piscou os olhos algumas vezes e desviou o olhar. Meu marido morreu respondeu calmamente. Faz 19 anos que James morreu. Sinto muito, Sra. Fang replicou Frost em voz baixa, e ficou claro que estava sendo

    sincero.Passou-se um momento de silncio, a no ser pelo rudo das espadas de madeira

    chocando-se na sala ao lado, onde a aula prosseguia. Sou a nica dona desta escola. Se vocs tm perguntas a fazer, sou eu que tenho de

    responder. Ela se endireitou. A frieza retornara, e seu olhar pousou em Jane, como sepercebesse quem tinha mais chances de desafi-la. Por que acham que eu conheceria essamulher?

    No tinha mais como evitar aquela pergunta. Jane respondeu: Encontramos o carro da vtima hoje de manh, estacionado numa garagem aqui do

    bairro. Tinha um GPS dentro, e um dos endereos na memria era o seu.Iris franziu o cenho. Aqui? Da minha academia? Era o destino da vtima. Tem alguma ideia do motivo? No. A resposta foi imediata.

  • Posso perguntar onde estava na quarta noite, Sra. Fang?Iris hesitou, apertando os olhos enquanto olhava para Jane. Dei uma aula aqui e

    depois fui para casa. A que horas saiu daqui? L pelas dez. J estava em casa s dez e quinze. uma caminhada curta at Tai Tung

    Village. Moro na Hudson Street, no final de Chinatown. Algum a acompanhou? Fui sozinha. Vive sozinha? No tenho famlia, detetive. Meu marido se foi, e minha filha... Ela hesitou.

    Sim, moro sozinha disse, erguendo o queixo, como se para afastar qualquer sentimento depiedade que a resposta pudesse inspirar. Havia, contudo, um brilho em seus olhos; lgrimasque, com algumas piscadas, desapareceram rapidamente. Embora tentasse parecer impvida,era uma mulher ainda marcada pela perda.

    Na sala ao lado, a aula terminara, e era possvel ouvir o som de passos descendo aescada. Iris olhou para o relgio na parede e disse:

    Meu prximo aluno j deve estar chegando. Terminamos? No exatamente falou Jane. Tenho mais uma pergunta. Havia outro endereo

    no GPS da vtima. De uma residncia, aqui em Boston. A senhora conhece um detetiveaposentado do Departamento de Polcia de Boston, chamado Louis Ingersoll?

    Em um instante, a cor desapareceu do rosto da mulher. Ficou paralisada, as feiesduras como pedra.

    Est se sentindo bem, Sra. Fang? perguntou Frost. Ele apoiou a mo no ombro damulher, e ela se encolheu como se tocada por fogo.

    Jane disse, calmamente: A senhora conhece este nome ento.Iris engoliu em seco. Conheci o detetive Ingersoll 19 anos atrs. Quando meu marido morreu. E ele... A

    voz faltou-lhe.Jane e Frost entreolharam-se. Ingersoll trabalhava na Unidade de Homicdios. Sra. Fang falou Frost, tocando-a de novo, mas dessa vez ela no recuou e deixou

    que pousasse a mo em seu ombro. O que aconteceu com seu marido?Iris baixou a cabea, e sua resposta foi pouco mais que um sussurro: Foi morto a tiros. No restaurante Red Phoenix.

  • 8Da janela da minha academia, vejo os dois detetives sarem do prdio e pararem abaixo, narua. Eles olham para cima, e, embora todos os meus instintos me digam para me afastar,permaneo obstinadamente vista, sabendo que esto me vendo observando-os. Recuso-mea me esconder, seja de amigos ou de inimigos, ento os encaro atravs da vidraa, com o

    olhar fixo na mulher. DETETIVE JANE RIZZOLI o que est escrito no cartoque ela me deixou. primeira impresso, pareceu-me uma oponente pouco promissora:mais uma mulher trabalhadora de terninho cinza e sapatos prticos; o cabelo, uma massaconfusa de cachos escuros. Os olhos, porm, revelam muito mais. Investigam, observam,avaliam. Ela tem olhos de caador e est tentando descobrir se sou sua presa.

    Permaneo vista, sem medo, onde ela e o resto do mundo possam me avistar, meestudar o quanto quiserem, porque tudo que enxergaro uma mulher tranquila edespretensiosa, de cabelos marcados pela primeira e ligeira neve do tempo. A velhice aindaest a muitos anos de distncia, mas hoje sinto sua aproximao inexorvel. Sei que o tempoest acabando para terminar o que comecei. E com essa visita dos dois detetives, o caminhousofreu um desvio preocupante, que eu no tinha previsto.

    L embaixo, na rua, os detetives vo finalmente embora. De volta caada, aonde querque ela os leve.

    Sifu, algum problema? No sei.Vi