A Formação Docente e a Fonetica e Fonologia

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237 SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 15/2, p. 237-256, dez. 2012 * Doutora em Linguística pela UFSC (2011), mesma instituição em que realizou seu mestrado (2006). Professora adjunta da Universidade Federal do Tocantins, vinculada ao curso de Letras do campus de Porto Nacional. Contato: [email protected]. Formação Docente e a Fonética e Fonologia: o Ensino da Ortografia TEACHING TRAINING AND THE PHONETICS AND PHONOLOGY: THE TEACHING OF ORTHOGRAPHY Carine HAUPT* Resumo: O presente artigo é uma discussão a respeito do ensino da ortografia, com foco nos ciclos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano). Essa discussão é pautada na análise de atividades do livro didático “Português Linguagens” (MAGALHÃES; CEREJA, 2009). Primeiramente, apresentamos uma breve exposição a respeito das características do sistema ortográfico do português brasileiro, das suas regularidades e irregularidades, para, em seguida, verificar como o livro aborda as normas ortográficas. A análise objetiva encaminhar uma reflexão sobre o trabalho e formação docente, uma vez que o professor deve ter a habilidade de avaliar as propostas dos livros didáticos. Concluímos que a preocupação com a ortografia é periférica nesses livros, nos quais o foco é o uso de algumas letras que se encontram em contextos competitivos. Em virtude disso, insistimos na necessidade de uma boa formação, na qual a disciplina de Fonética e Fonologia e seus modelos baseados no uso desempenham importante papel. Palavras-chave: Ortografia. Livro didático. Formação docente. Abstract: This article is a discussion about the teaching of orthography in the final grades of elementary school (6th to 9th grade). This discussion is based in the analysis of activities of the textbook “Portuguese Languages “ (MAGALHÃES; CEREJA, 2009). First, we present a brief statement about the characteristics of the Brazilian Portuguese orthography system, its regularities and irregularities, to then see how the book approaches the orthographic rules. The analysis aims a reflection on the teacher work and

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ensino, linguística, fonética e fonologia.

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    * Doutora em Lingustica pela UFSC (2011), mesma instituio em que realizou seumestrado (2006). Professora adjunta da Universidade Federal do Tocantins, vinculadaao curso de Letras do campus de Porto Nacional. Contato: [email protected].

    Formao Docente e a Fontica e Fonologia:o Ensino da Ortografia

    TEACHING TRAINING AND THE PHONETICS AND PHONOLOGY:THE TEACHING OF ORTHOGRAPHY

    Carine HAUPT*

    Resumo: O presente artigo uma discusso a respeito do ensino daortografia, com foco nos ciclos finais do Ensino Fundamental (do 6 ao 9ano). Essa discusso pautada na anlise de atividades do livro didticoPortugus Linguagens (MAGALHES; CEREJA, 2009). Primeiramente,apresentamos uma breve exposio a respeito das caractersticas do sistemaortogrfico do portugus brasileiro, das suas regularidades e irregularidades,para, em seguida, verificar como o livro aborda as normas ortogrficas. Aanlise objetiva encaminhar uma reflexo sobre o trabalho e formaodocente, uma vez que o professor deve ter a habilidade de avaliar as propostasdos livros didticos. Conclumos que a preocupao com a ortografia perifrica nesses livros, nos quais o foco o uso de algumas letras que seencontram em contextos competitivos. Em virtude disso, insistimos nanecessidade de uma boa formao, na qual a disciplina de Fontica eFonologia e seus modelos baseados no uso desempenham importante papel.Palavras-chave: Ortografia. Livro didtico. Formao docente.

    Abstract: This article is a discussion about the teaching of orthography inthe final grades of elementary school (6th to 9th grade). This discussion isbased in the analysis of activities of the textbook Portuguese Languages (MAGALHES; CEREJA, 2009). First, we present a brief statement aboutthe characteristics of the Brazilian Portuguese orthography system, itsregularities and irregularities, to then see how the book approaches theorthographic rules. The analysis aims a reflection on the teacher work and

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    training, since the teacher must have the ability to evaluate the proposalsfrom textbooks. We concluded that the preoccupation about the orthographyis circumferential in these books, in which the focus is the use of someletters that are in competitive contexts. As a result, we insist on the need fora good training, in which the discipline of Phonetics and Phonology andtheir models based on usage play an important role.Key-words: Orthography. Textbooks. Teacher training.

    Introduo

    Desvios em relao norma ortogrfica so comuns entre alunos dediversas faixas etrias, o que significa que o problema merece ateno tambmnos ciclos finais do Ensino Fundamental e no somente na fase dealfabetizao, em que comum, seno central, a preocupao com aaprendizagem das corretas correspondncias entre som e letra e da normaortogrfica. Por isso, escolhemos, como objeto de estudo, material didticodestinado ao 6, 7, 8 e 9 anos. Um levantamento feito com professoresde Lngua Portuguesa desses anos de escolas da rede pblica do estado doTocantins, atravs de um breve questionrio, evidenciou que eles:

    avaliam o desempenho dos alunos em relao ortografia comoruim;

    atribuem os problemas de ortografia a falhas na alfabetizao; reconhecem a influncia da fala na escrita; trabalham com treinos ortogrficos, como ditados e reescrita de

    textos; entendem que devem mostrar ao aluno onde acorrem os erros.Tendo em vista esses dados, o presente artigo tem como objetivos: i)

    discutir o tratamento dado pelo livro didtico usado por esses professoress questes de ortografia, a fim de verificar em que medida eles podemauxiliar o professor nas atividades com esse tema; ii) refletir sobre a formaoe prtica docente. Trata-se de um estudo de caso, pois analisamos apenasuma obra usada em uma escola especificamente. No entanto, acreditamosque a discusso possa contribuir para um olhar sobre outros livros didticose fomentar reflexes acerca da formao de professores para que eles possamavaliar adequadamente as propostas desses livros.

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    Antes, porm, de apresentar a anlise dos livros didticos, elaboramosuma seo com algumas consideraes sobre o ensino da ortografia, tomandocomo base autores com diversos trabalhos na rea. Aps a discusso dolivro didtico, pretendemos tecer algumas consideraes a partir da seguintepergunta: o que fazer diante dos erros de ortografia dos alunos?Evidentemente no se trata de apresentar receitas que resolvero osproblemas, mas sim de trazer reflexes a partir do que foi apresentado nassees anteriores e, ainda, trazer tona a Fontica e Fonologia comoimportante disciplina na formao dos professores de Lngua Portuguesa.

    1 Algumas Consideraes sobre o Ensino de Ortografia

    O ensino de lngua materna respaldado por diretrizes e parmetrosque prescrevem e orientam um ensino voltado para a construo decompetncias e habilidades, tendo como objeto de ensino o texto comounidade e a diversidade de gneros textuais. Segundo os PCN de LnguaPortuguesa para os 2 e 3 ciclos do Ensino Fundamental, o objeto deensino e, portanto, de aprendizagem o conhecimento lingustico e discursivocom o qual o sujeito opera ao participar das prticas sociais mediadas pelalinguagem. (PCN, 1998, p. 22). Espera-se que o aluno seja capaz de utilizara lngua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido eadequar o texto a diferentes situaes de interlocuo oral e escrita (PCN,1998, p. 23).

    Dessa forma, no podemos mais pensar em uma escola que trabalhea linguagem sem considerar a sua dimenso social. Uma escola que continuatendo como objeto base uma lngua, ou a produo de uma lnguacristalizada, apartada da lngua orgnica, dinmica e calcada em umanecessidade comunicativa real est fadada ao insucesso (KUPSKE, 2010). Aescrita e, consequentemente, a ortografia, tambm deve ser ensinada de formadinmica e natural, no como um treinamento imposto. Podemos dizer queno se trata de aprender a escrever, mas sim de descobrir a escrita. Nessesentido, o aluno deve ter espao para elaborar as suas hipteses acerca dasnormas ortogrficas e o professor deve dar condies para que o aprendizpossa avali-las, elaborar novas hipteses e assim, apropriar-se do sistemaortogrfico da lngua portuguesa. Convergem para essa perspectiva ascontribuies da Fonologia de Uso (BYBEE, 2000, 2001, 2002, 2003), queno v os processos de fala e escrita como mapeamento de uma forma

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    subjacente, mas como um reflexo do uso. Assim a jornada de escritorprincipiante a escritor maduro condicionada pelo uso da linguagem escrita em sua forma natural e de forma natural tal qual na oralidade (KUPSKE,2010, p. 614).

    Isso significa que expor o aluno s condies de escrita o suficientepara que ele se aproprie das normas ortogrficas? Acreditamos que a prticade leitura e de produo de diferentes gneros textuais importante para aaprendizagem da ortografia, no entanto, estudos tm mostrado que o ensinosistemtico das normas ortogrficas traz impacto positivo na sua aquisio(REGO; BUARQUE, 1997; MELO; REGO, 1998; MELO, 2002). Paradiscutir essa questo, temos que considerar que nosso sistema ortogrficoapresenta regularidades e irregularidades, que podem ser descritas em regras.Pautaremos a explanao dessas regras em Scliar-Cabral (2003) e Morais(2007).

    Scliar-Cabral (2003) divide as regras em: regras independentes docontexto; regras dependentes s do contexto fontico; regras em contextoscompetitivos e regras dependentes da morfossintaxe e do contexto fontico.As regras independentes de contextos englobam a correspondncia biunvocaentre som (fonema)1 e grafema, ou seja, h apenas uma forma de transcrevera realizao de cada fonema. o caso das consoantes p, b, t, d, f , v,m e n em incio de slaba, e dos dgrafos nh e lh. Embora aparentementesem complicaes, h tambm problemas na ortografia que envolvem essasletras, como a troca entre consoantes surdas e sonoras (p por b) edificuldades com os dgrafos, decorrentes, em alguns casos, da variedade eda fala do aluno, como, por exemplo, a escrita de familha no lugar defamlia, uma vez que pode-se pronunciar [].

    As regras dependentes de contexto fontico so aquelas em que ouso de determinado grafema determinado pelo contexto fonticoprecedente ou seguinte, ou pela posio que ocupa na palavra. o caso douso do fonema /k/: quando a vogal seguinte for anterior (/ /),usa-se o dgrafo qu; quando a vogal seguinte for posterior ou central(/ /), usa-se a letra c. So outros exemplos o uso de g e gu

    1 A distino entre som enquanto fone ou fonema no ser feita nesse trabalho.Adotamos as nomenclaturas usadas pelos autores citados fonema paraScliar-Cabral (2003) e som no livro didtico.

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    para o fonema /g/; o uso da j para o fonema // quando seguido devogal anterior; o uso de z para a transcrio do fonema /z/ em incio depalavras; o uso do x para o fonema // precedido de ditongos. O objetivono apresentar a lista completa2, mas apontar para a importncia de oprofessor conhecer essas regras para que possa fazer um trabalho reflexivocom os alunos, muito alm da memorizao.

    Os contextos competitivos so aqueles em que as correspondnciasentre fonema e grafema no podem ser explicados por regras. Esses, sim,demandam memorizao. Como exemplo, podemos citar as diferentesformas de transcrever o fonema /s/: em caa, usamos ; em devassa, ss;em mximo, usamos a letra x; em desa, o dgrafo s, etc. Observemos queo fonema /s/ encontra-se em incio de slaba e em posio intervoclica, ouseja, no mesmo contexto fontico, portanto, no temos uma regra que prevo uso de determinada letra ou dgrafo (salvo informaes lexicais, mas quetambm exigem memorizao). Comparemos esses contextos com as regrasdependentes de contexto fontico: previsvel que no se use a letra s emcontexto intervoclico para transcrever o fonema /s/, pois ela passa a tervalor de /z/ nesse contexto. Tambm previsvel que no se use a letra cpara o fonema /s/ quando seguido da vogal /a/, por exemplo, pois nessecontexto, a letra passa a ter valor de /k/.

    Por fim, temos as regras dependentes da morfossintaxe e do contextofontico. Scliar-Cabral (2003) descreve algumas regras nas quais entram emjogo tanto informaes morfolgicas quanto fonticas. Restringe-se a poucoscasos, como exemplo, as regras referentes ao uso de o e am em verbose substantivos e a acentuao nos oxtonos e paroxtonos terminados em// (tambm, homem). Alm disso, trata do uso das formas oblquas -no/ae -lo/a, do acento diferencial, do uso da crase e da mudana de vocbulotono para tnico.

    Morais (2007) nos apresenta uma diviso semelhante. Ao invs deregras, esse autor usa os termos regularidades e irregularidades.Estabelecendo um paralelo, temos para as regras independentes de contextoas regularidades diretas; para as regras dependentes de contexto fontico, asregularidades contextuais; para os contextos competitivos temos asirregularidades. Alm disso, Morais apresenta tambm as regularidades

    2 Boa parte das regras de acentuao tambm dependente do contexto fontico.

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    morfossintticas, dentre as quais inclui o uso do r nas formas de infinitivo(jogar, ceder, consuzir), o uso de u nas flexes do pretrito perfeito do indicativo(cantou, bebeu, dirigiu), a distino entre am e o nas formas verbais (amaram,amaro), o uso de d no gerndio (cantando) e o emprego de ss nas flexesdo imperfeito do subjuntivo (cantasse). Alm disso, trata tambm de questesreferentes derivao. Observamos um tratamento diferenciado em relaos regras dependentes do contexto morfolgico: enquanto Scliar-Cabral(2003) inclui nessas regras apenas aquelas que tambm tm dependncia decontexto fontico, Morais (2007) abarca tambm contextos fonticoscompetitivos, como, por exemplo, o uso de ss no imperfeito do subjuntivo.Disso resulta uma lista maior de regularidades morfossintticas.

    Conhecer essas caractersticas do sistema ortogrfico do portugusbrasileiro, de suas regularidades e irregularidades, fundamental para oprofessor de lngua. Alm disso, tambm fundamental que o professorconhea as diferentes variedades e os diversos falares de seus alunos.Consideramos que debruar-se sobre essas variedades o primeiro passopara se fazer um bom trabalho com a ortografia. Nessa perspectiva, oprofessor poder entender o que h por trs dos desvios ortogrficos deseus alunos decorrentes das transcries da fala e de analogias que resultamem casos de hipercorreo, por exemplo.

    Diante dessa exposio, podemos voltar questo supracitada: necessrio trabalhar a ortografia sistematicamente? Se sim, como faz-lo?Vimos que os contextos competitivos ou as irregularidades demandammemorizao. Nesse caso, podemos supor que a exposio s atividades deleitura e escrita so cruciais, sem que haja a necessidade de propor listas depalavras isoladas para a memorizao ou outras atividades especficas deortografia. Para as regularidades ou as regras dependentes de contexto, sejaele fontico ou morfossinttico, acreditamos que tornar as regras conscientespara os alunos s tem a contribuir para a apropriao do sistema ortogrfico.Todavia, no descartamos, para essas regularidades, a importncia daexposio, pois a partir do uso, do input ao qual o aluno exposto, emergemgeneralizaes que podem dar conta das regras dependentes de contexto.

    com esse olhar que passaremos agora para a anlise dos livrosdidticos. Pretendemos verificar se as regularidades e irregularidades soabordadas nos livros e como so apresentadas aos alunos. Tambmverificaremos se os livros didticos apresentam contedos referentes fontica e fonologia para, em seguida, discutir acerca das contribuies queessas disciplinas podem dar para o ensino da ortografia.

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    2 A Ortografia no Livro Didtico Portugus Linguagens

    Os livros analisados so da coletnea Portugus Linguagens(CEREJA; MAGALHES, 2009). So quatro livros destinados aos ciclosfinais do Ensino Fundamental (6 ao 9 ano), aprovados pelo ProgramaNacional do Livro Didtico (PNLD MEC, 2008). Com base na exposioda seo anterior, a anlise das atividades desses livros ser pautada nosseguintes questionamentos:

    1) O manual do professor oferece orientaes para o trabalho coma ortografia?

    2) Que atividades so propostas para ensinar ortografia?3) O livro didtico trata diferentemente os casos irregulares e os

    casos regulares da norma ortogrfica?4) Que correspondncias entre letra e som o livro didtico prope

    que se ensine?No Quadro 1, fizemos um levantamento de todas as atividades sobre

    ortografia, distribudas por ano. Inclumos tambm os contedos referentes fontica e fonologia apresentados aos alunos. Um rpido olhar sobre oquadro evidencia que, no 6 ano, h uma preocupao em introduzir aspectostericos sobre a lngua e conceitos que sero importantes para os demaisanos. Nos anos subsequentes, percebemos preocupaes mais pontuais,especialmente referentes s irregularidades, isto , aos contextos competitivos,como, por exemplo, ao uso da letra s; e ao emprego adequado de palavrascom escrita muito semelhante, algumas homfonas. Fica evidente, ainda,que o foco o emprego de determinada letra e no a transcrio dedeterminado som/fonema.

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    Quadro 1 Contedos referentes fontica/fonologia e ortografia nolivro didtico Portugus Linguagens (CEREJA; MAGALHES, 2009)

    2.1 O manual do professor oferece orientaes para o trabalho com aortografia?

    H dois momentos, no manual do professor, em que se faz algumaremisso ao ensino de ortografia. O primeiro momento quando os autoresapresentam as sees que compem cada captulo do livro didtico. A seo

    6 ano

    Fonema e letra Emprego da letra h Dgrafo e encontro consonantal Encontros voclicos Diviso silbica Slaba tona e tnica Acentuao das oxtonas e proparoxtonas Acentuao das paroxtonas

    7 ano

    j ou g (parte I) j ou g (parte II) h ou a mal ou mau mas ou mais

    8 ano

    Emprego da letra s (parte I) Emprego da letra s (parte II) Emprego da letra z x ou ch Emprego da palavra porque (parte I) Emprego da palavra porque (parte II)

    9 ano Tem ou tm? vem ou vm? c, ou ss e ou i? o ou u?

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    que trata dos contedos listados no Quadro 1 tem o ttulo De olho naescrita. Fazem parte dessa seo ainda outros contedos gramaticais, denatureza morfolgica e sinttica, que no so o foco do presente trabalho. Adescrio para essa seo a seguinte:

    Nesta seo, os problemas notacionais da lngua ortografia eacentuao, por exemplo recebem uma ateno especial, comtrabalho contnuo e sistematizado. Em dois ou mais captulos de cadaunidade didtica, o aluno desenvolve, pelo mtodo indutivo, umaatividade relacionada ao assunto, inferindo as regras a partir dasrecorrncias e pondo-as em prtica. (MAGALHES; CEREJA,2009).

    Observamos, pela descrio, pontos positivos em relao proposta.Chama-nos especial ateno a meno ao mtodo indutivo, ou seja, a proposta que o aluno, observando e analisando o uso de determina letra, porexemplo, possa inferir a regra de seu uso. um mtodo pertinente paradepreender as regularidades das normas ortogrficas, embora o mesmono seja possvel para as irregularidades. Acreditamos que a proposta condizente com um ensino atualizado de lngua, uma vez que o aluno assumeposio ativa ao observar e elaborar hipteses acerca da normatizaoortogrfica. Verificaremos, em seguida, a partir da anlise de algumasatividades, se a descrio apresentada no manual confere com a abordagemapresentada aos alunos.

    A outra passagem do manual do professor que trata do ensino daortografia est na seo de sugestes de estratgias para o professor. Para aseo De olho na escrita, as estratgias propostas so a resoluo dosexerccios oferecidos pelo livro individualmente ou em pequenos grupos.Alm disso, h tambm a sugesto de fazer uso de jornais e revistas pararecolher exemplos que ilustrem o tpico que est sendo estudado e de exporesses exemplos reunidos em cartazes. No h nenhum encaminhamentoespecfico para o trabalho com a ortografia. No h meno alguma sobreas regularidades e irregularidades da norma ortogrfica ou sobre acorrespondncia de letra e som/fonema, por exemplo. So, portanto, poucasas orientaes que o manual oferece ao professor para trabalhar a ortografia.Alm do manual em si, h as respostas s atividades propostas nas unidades,com observaes espordicas em relao s variedades lingusticas. Passemos,

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    ento, a mostrar algumas atividades para responder aos demaisquestionamentos.

    2.2 Que atividades so propostas para ensinar ortografia?

    Primeiramente, trazemos a abordagem feita ao contedo Fonema eletra. H a introduo do assunto com um pequeno texto (essa umaprtica constante em todos os contedos). Em seguida, compara-se o nmerode letras com o de sons das palavras posso e dedos. Depois, apresenta-se arepresentao fonolgica das palavras vem e quem, para, finalmente, apresentara definio de fonema e de letra. Aps vm os exerccios, cujo foco evidenciar que a relao entre letra e som nem sempre biunvoca, comoevidenciam os exemplos abaixo:

    (1) Nas palavras choque, chuvoso, xadrez, enxaguar, que letras representamo fonema //?Leia as palavras: fixo, pretexto, xampu, txico, mexerica, extico,inexperincia, exibir. Em quais delas a letra x corresponde:

    a) ao fonema // (ch)?b) aos fonemas /ks/?c) ao fonema /s/ (s)?d) ao fonema /z/ (z)?

    Notamos que h uma preocupao em fazer com que o aluno observealguns dados para tirar suas prprias concluses, conferindo, assim, umcarter indutivo. A pertinncia de se ensinar conceitos como fonema noser discutida neste trabalho. Queremos evidenciar como ponto positivo ofato de mostrar ao aluno que nem sempre h uma relao biunvoca entresom e letra, uma vez que isto se constitui de um conhecimento til paracompreender algumas regularidades contextuais, como as referentes ao usode alguns dgrafos, conceito trabalhado em unidade subsequente.Consideramos problemtica a transcrio fonolgica de palavras como vem(//) e quem (//)3, sem maiores detalhes sobre a particularidade da

    3 Os exemplos so especialmente complexos, tendo em vista que envolvem ampladiscusso acerca das vogais nasais, para a qual existem diferentes posies (MATTOSOJR., 1979; WETZELS, 1988, 1997 apud BATISTI; VIEIRA, 2005).

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    ditongao que no marcada na escrita. Diante disso, salientamos que oprofessor precisa de uma boa bagagem de conhecimento de fontica efonologia para dar conta dessa exposio. Reforamos, aqui, a importnciadessa disciplina nos cursos de licenciatura.

    Essa abordagem de carter indutivo observada no contedo Fonemae letra no uma constante nas atividades sobre ortografia. Pelo contrrio,quando se trata de discutir o uso de determinadas letras, as regras sosimplesmente apresentadas e os exerccios remetem para a repetio, para ouso sem reflexo a partir de faa como no modelo, como podemos verificarnos excertos 2 (explanao do contedo) e 3 (exerccio) referentes ao usoda letra s.

    (2) Assim, conforme voc observou, emprega-se a letra s: quando a palavra formada com sufixos oso, -osa, que indicam qualidade em

    abundncia, intensidade: atenciosa cheiroso charmosa furiosa nas formas verbais dos verbos pr e querer e seus derivados: puser quiser

    supusermos quisermosTambm se emprega a letra s: nos sufixos s, -esa, que indicam origem, naturalidade: tailands tailandesa

    japons japonesa no sufixo ense, que indica origem, naturalidade: amapaense esprito-santense.

    (3) Faa como no exemplo:Este almoo est uma delcia.Este almoo est delicioso.

    a) No gosto de pessoas cheias de rancor.b) uma joia de muito valor.c) A aluna cheia de ateno e capricho.d) A personagem do filme cheia de mistrio.

    salutar observarmos que os autores fazem uma introduointeressante sobre o uso da letra s, induzindo o aluno a concluir que som/s/ pode ser transcrito por vrias letras e dgrafos e que o som /z/ podeser transcrito pelas letras s e z. No entanto, ao apresentarem as regras(excerto 2), desviam o foco para questes morfolgicas. No se discutemais o som que a letra s pode representar, tanto que so apresentadosexemplos em que o s transcreve o fonema /z/ tailandesa e o fonema

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    /s/ - amapaense. Assim, a distino feita na introduo acaba sendo acessria,uma vez que o foco passa a ser o uso de alguns sufixos.

    A discusso sobre o uso da letra s se estende por mais uma unidade.Na sequncia, mesclam-se regras morfolgicas (adjetivos derivados desubstantivos; derivao de palavras) com regras dependentes de contextofontico (s aps ditongos). Transcrevemos abaixo um exerccio dessa unidade.A ideia de propor ao aluno justificar a sua resposta interessante, poispressupe reflexo, no entanto, consideramos o exerccio bastante bvio,pois todas as palavras que esto grafadas com z esto em desacordo coma norma ortogrfica. Logo, no se impe grande desafio ao aluno.

    (4) Identifique entre as palavras a seguir as que esto grafadas em desacordo com as regrasortogrficas vistas. Justifique sua resposta.

    virose defesa cauza invs atrazado atrs tesoura tezouro nusea gostoso vaidoso aviso diverso pouso.

    O excerto 5 parte do trabalho proposto sob o ttulo o uso da letraz. Observamos uma proposta que encaminha o aluno a deduzir a regra,que depende da classificao morfolgica da palavra e da sua origem. Noentanto, logo aps as perguntas e a deduo da regra, volta-se abordagemtradicional, incluindo novas regras em que se usa a letra z. Embora hajaalguns momentos em que se busque a construo do conhecimento a partirda observao, h predominantemente a exposio de regras de formaacabada para o aluno.

    (5) a) A que classe gramatical pertencem as palavras esperto, certo, pobre, belo,rido e plido?

    b) Os substantivos esperteza, certeza, pobreza, beleza, aridez e palidez soconcretos ou abstratos?

    c) Deduza a regra: Em que tipo de palavra so empregados os sufixos ez e eza?

    Veja outros casos do emprego da letra z: em verbos derivados de palavras que no contm s na slaba final + izar: frgil +

    izar = fragilizar civil + izar = civilizar. em palavras derivadas de outras que no contm s na slaba final + zinho ou

    zinha: pai + zinho = paizinho irm + zinha = irmzinha.

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    2.3 O livro didtico trata diferentemente os casos irregulares e oscasos regulares da norma ortogrfica?

    A distino entre as regularidades e irregularidades na normaortogrfica no discutida nesse livro didtico. O trabalho proposto comas letras x e ch evidenciam isso. Na exposio, apresentam-se regras(contextos fonticos previsveis para o uso do x e para o uso do dgrafo).Nos exerccios, conforme podemos ver no excerto 6, so includas palavrasem que o uso dessas letras no previsvel ao lado de palavras em que oemprego da letra x contextualmente regular (x depois de ditongos edepois de en). So irregularidades, como o caso das palavras cachimbo,xingar e puxar. Essa mistura recorrente em outros exerccios, como, porexemplo, no apresentado no excerto 7, que trata do uso das vogais e e i.Observemos que, na palavra quase, o uso da letra e, mesmo sendopronunciada como i, previsvel pelo contexto fontico de slaba tonafinal, enquanto todas as outras palavras se constituem de casos deirregularidades, que exigiro do aluno a memorizao da forma ortogrfica.

    (6) Na sequncia de palavras abaixo, todos esto corretamente grafadas, exceto uma.Reescreva-a em seu caderno com a grafia apropriada.

    cachimbo xingar puchar enxurrada enxame trouxa.

    (7) Nos pares de palavras a seguir, qual a forma adequada, de acordo com a variedadepadro? Escreva-a em seu caderno.

    a) empecilho ou impecilho?b) quase ou quasi?c) seno ou sino?d) previlgio ou privilgio?e) siquer ou sequer?f) penicilina ou pinicilina?g) criao ou creao?

    Ao retomar as atividades referentes ao uso das letras s e z, vemosque os casos dos sufixos oso e eza, por exemplo, constituem-se decontextos competitivos, pois esto no mesmo contexto fontico(intervoclico) e h duas representaes para o mesmo fonema. Podem,portanto, ser considerados como irregularidades da norma ortogrfica,

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    mesmo que haja dependncia de contexto morfolgico, conforme Scliar-Cabral (2003). O que se observa que os autores optaram, provavelmentecomo tentativa de diminuir a incidncia de erros envolvendo essas letras,explorar essas regularidades morfolgicas, mais especificamente de derivao.No se observa um tratamento voltado para a discusso das regularidadese irregularidades em nvel fontico, que poderia ser feito ao tratar-se, porexemplo, do uso de s e ss para transcrever o som /s/. Ao invs de explicaro uso dessas letras em duas sees distintas, poder-se-ia abord-las em umamesma seo, a fim de discutir as regularidades e irregularidades.

    A proposta de trabalho desse livro didtico com as letras s e zmostra que o foco so as regularidades morfossintticas, sem distino entreregras que tambm dependem de contexto fontico e as regras que seencontram em contexto fontico competitivo (com exceo do uso do xe do ch, para o qual so apresentadas regras dependentes de contextofontico). Isso exige do aluno a memorizao de diversas regras, conclusoque podemos tirar a partir das listas de exerccios de completar, de reescrevercorretamente e de seguir o modelo. A quantidade de regras dependentes docontexto morfolgico, portanto, acaba sendo bastante grande. A propostade trabalho com as letras c, e ss, no 9 ano, refora essa concluso aoapresentar uma extensa lista de regras, algumas para dar conta de um nmeroreduzido de palavras, como, por exemplo, a derivao de intercesso da palavrainterceder (regra ced-cess).

    As regras dependentes de contexto morfossintticos e de derivaoso pertinentes, no entanto, o que questionamos a sua quantidade e a maneiracomo so apresentadas. Na forma de lista, elas acabam remetendo para amemorizao. Nesse caso, seria mais pertinente considerar o emprego dessasletras como irregularidades da norma ortogrfica, j que temos contextoscompetitivos, e esperar que o aluno, a partir do contato com a escrita, passea memorizar aquelas que so mais frequentes no seu cotidiano. As regrasdependentes do contexto morfolgico podem auxiliar quando se trata decasos que abrangem muitas palavras, como o uso de ss na conjugaoverbal do subjuntivo (ex. comprasse). Consideramos pertinente, ento, avaliara produtividade dessas regras de cunho morfossinttico para nosobrecarregar o aluno.

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    2.4 Que correspondncias entre letra e som o livro didtico propeque se ensine?

    As correspondncias entre som e letra so discutidas em algunsmomentos no decorrer dos quatro livros. No 7 ano, ao estudar o uso dasletras j e g, na parte I, so feitas perguntas sobre os valores dessas letras,que dependem da vogal que as segue (valor do /g/ ou /Z/). No 8 ano,explora-se as formas de escrever o fonema /s/. Em ambos os casos, sofeitas aos alunos apenas perguntas sobre a correspondncia entre som eletra na parte introdutria da seo e, depois, passa-se para uma abordagemmorfossinttica. Como exemplo, temos a introduo do estudo da letra s.Aps as perguntas listadas no excerto 7, apresentam-se as regras dos usosdos sufixos, conforme apresentadas no excerto 2. Alm disso, trata-se deexerccios que remetem para a mera identificao.

    (7) 1. Identifique no poema palavras que apresentam o som /s/ (s)?2. Em qual(is) dessas palavras o som /s/ (s) representado, na escrita, pela letra:

    a) s? c) c/?b) x? d) ss?

    Ao tratar do uso das vogais e e i, o e u, no 9 ano, h umaapresentao pertinente sobre a correspondncia entre letra e som, remetendopara a oralidade. Nesse momento, esclarecido ao aluno que nem sempre oque produzimos na fala representado na escrita, e coloca-se como exemploo uso das vogais e e o em contextos tonos, que normalmente sopronunciados como i e u. Em seguida, listam-se regras que envolvemdeterminadas sufixos e formas verbais para o emprego de e, i, o e u.Apenas para a letra o h uma regra que retoma a exposio anterior: usa-se a letra o no final de palavras, quando forem tonas: leio, mito, foto. Ignora-se, porexemplo, que a mesma regra se aplicaria tambm para o uso da letra e.

    importante esclarecer que no se trata de desmerecer as regras deorientao morfossinttica. Trata-se de avaliar a pertinncia, por exemplo,de uma regra como emprega-se o e nas formas dos verbos terminados emoar/uar. Sabemos que os alunos apresentam muitos erros decorrentesde transcrio de fala. E, ao introduzir o contedo referente ao uso dasvogais e, i, o e u, o prprio livro didtico menciona que no h umacorrespondncia entre o que falamos e escrevemos. Ento, no seria maispertinente discutir essa relao entre fala e escrita com os alunos, apresentando

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    os casos previsveis por regras de contexto fontico para explorar ascorrespondncias entre letra e som?

    3 Reflexes para o Ensino da Ortografia e Formao Docente

    A anlise das atividades sobre ortografia do livro didtico PortugusLinguagens evidenciou, primeiramente, que elas so em pequeno nmerodo 6 ao 9 ano. Depois, evidenciou que o foco so regras dependentes decontexto morfolgico, no sendo as regras dependentes de contexto fonticouma preocupao, talvez por pressupor-se que o aluno j tenha adquiridoesse conhecimento nas sries iniciais do Ensino Fundamental. Identificamos,assim, que no h discriminao entre os casos regulares e irregulares danossa ortografia, uma vez que essa distino no apresentada em detrimentoda lista de contextos morfolgicos do uso das letras discutidas. A falta dessadistino se evidencia quando nos exerccios so apresentados casos deirregularidades juntamente com os exerccios das regras estudadas. Em rarosmomentos, menciona-se uma regra de cunho fontico (uso de x depois deditongo; uso do e em final tono; uso do s depois de ditongo). Por fim,podemos concluir tambm que a correspondncia entre som e letra temaacessrio, configurando-se de questionrios introdutrios para o estudo douso de determinada letra que se encerram em listas de regras de derivao,em grande parte.

    esse o material que o professor tem como apoio para as suas aulas.Tendo-o como base4, voltamos pergunta inicial, lanada na introduodeste texto: o que fazer diante dos problemas de ortografia dos alunos? Aresposta j de senso comum, mas merece ser repetida: o livro didtico,qualquer que seja ele, no o suficiente para sanar as dificuldades ortogrficasdos alunos. Cabe ao professor identificar quais so essas dificuldades e tomarsuas decises diante desses problemas. Nesse sentido, os livros didticosdevem ser avaliados com muita cautela, para que no se tornem um guiainapropriado para as atividades referentes norma ortogrfica. As atividadesanalisadas neste texto evidenciam uma abordagem voltada para a repetioe memorizao, que no consideramos pertinente para o trabalho com aortografia, nem com a lngua, de forma geral, uma vez que no pressupea construo do conhecimento.

    4 No objetivo deste trabalho classificar o livro como bom ou ruim.

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    Ento, alm de conhecer as dificuldades ortogrficas de seus alunos ea variedade dialetal dos mesmos, cabe ao professor planejar o seu trabalho,tendo o proposto nos livros didticos apenas como apoio, sem medo dedescartar o que no converge para um ensino dinmico da lngua. Para umensino dinmico da ortografia, propomos um trabalho reflexivo, a exemplode alguns questionamentos feitos na obra analisada. No entanto, essametodologia deve ser uma constante e no apenas parte introdutria. Paraque o professor tenha sucesso nessa mediao do conhecimento sobre anorma ortogrfica, fundamental que ele mesmo a conhea, saiba classificaros erros dos alunos como decorrentes de transcrio de fala, ou de falta deconhecimento de alguma regra dependente de contexto, fontico e/oumorfolgico, ou de confuso gerada por contexto competitivo. Sem esseconhecimento, o professor corre o risco de ficar perplexo diante dos errosortogrficos e sem ao.

    interessante que o professor entenda que a maioria dos errosortogrficos apresenta uma lgica. Ou seja, o aluno, ao escolher determinadaletra para representar um fonema, pauta-se ou nas regras que j domina, ouna ortografia das palavras que j conhece, ou na transcrio da fala. Decorremdisso, por exemplo, erros baseados em analogias, como a escrita de saldadeao invs de saudade, uma vez que, em muitas palavras, escreve-se l, maspronuncia-se u. Explorar a lgica que os alunos usaram para suas escolhasortogrficas outro caminho para trabalhar de forma reflexiva os problemasde ortografia. Nesse sentido, o livro didtico analisado pouco, ou nada, tema contribuir. Alm do trabalho reflexivo, frisamos novamente a importnciade atividades diversificadas de leitura e produo como forma de expor oaluno ao mximo de experincias com o mundo letrado. A partir dessecontato, o aluno pode memorizar a escrita de palavras com irregularidadese at depreender, pelo uso, regras dependentes de contexto.

    Constatamos, a partir do questionrio realizado com os professores,que eles trabalham com treinos ortogrficos, como ditados e reescrita detextos, e que sentem a necessidade de mostrar ao aluno onde ocorrem oserros. A abordagem feita pelo livro didtico refora essa prtica, uma vezque prope exerccios em que o aluno precisa completar lacunas e seguir omodelo, alm de apresentar listas de regras para os alunos. No se trata depunir esse tipo de atividades, mas sim de questionar a pertinncia delas comoforma de promover a aprendizagem do aluno. Consideramos que ditados,por exemplo, podem ser muito teis para fins de diagnstico. Atividades dereescrita podem ser muito construtivas, desde que o aluno saiba por que

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    errou, isto , no basta apresentar a ortografia correta de determinada palavra,mas levar o aluno a refletir sobre a sua escolha e sobre a forma correta.

    Essa discusso nos leva, inevitavelmente, para a questo da formaodocente, tanto em relao ao domnio da lngua quanto das metodologiasde ensino. Em relao ortografia, acreditamos que uma boa formao emFontica e Fonologia seja crucial. O professor precisa conhecer o sistemavoclico e consonantal do portugus brasileiro, precisa compreender comose d a correspondncia entre sons e fonemas, sem perder de vista asvariedades. Propomos, ainda, ir alm das teorias tradicionais, como oestruturalismo e o gerativismo, a partir dos quais se discutem pares mninos,alofonia, traos distintivos, dentre outros conceitos. Sugerimos, j no inciodeste artigo, as contribuies da Fonologia de Uso. Trata-se de umaabordagem que diverge de abordagens tradicionais, dentre outras razes,por no compartilhar a ideia de forma subjacente, uma vez que o usodetermina as representaes mentais. Isso significa dizer que as representaesno so fixas5, pois mudam de acordo com as experincias de cada falantecom a lngua. Entender que o uso determina a gramtica de uma lnguadireciona-nos para outro olhar sobre o ensino da lngua, no mais comoproduto acabado.

    O modelo fonolgico de Bybee (2001) a Fonologia de Uso oferece uma proposta alternativa de anlise lingustica, e, ainda segundoa autora, embora tal modelo assuma princpios gerais doconexionismo, um ponto crucial que distancia o conexionismo deste o carter inerentemente social da linguagem, pois, para esse modelo,a gramtica emerge do uso apenas. Uso que tambm caractersticacerne do paradigma sociointeracionista. (KUPSKE, 2010, p. 610).

    Outra vantagem desse modelo terico consiste no seu cartercognitivo. Todas as experincias do falante so categorizadas, da mesma

    5 A experincia afeta a representao, isto , palavras e construes mais frequentes somais fortes no sentido de que so mais facilmente acessadas, enquanto as menosfrequentes tornam-se mais fracas, podendo at ser esquecidas. A fora lexical de umapalavra pode mudar medida que mais ou menos usada em diferentes contextos.Essa a principal diferena entre as abordagens modulares em que as representaes,regras ou restries so estticas e todas as regras ou representaes do mesmocomponente tm o mesmo status.

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    forma como outros objetos que no lingusticos tambm o so. Assim, asgeneralizaes emergem dessas categorizaes, ou seja, as regras resultamdas representaes armazenadas que resultam do uso. Ao aprendermos aescrita, categorizamos os dados escritos aos quais temos acesso, e fazemosgeneralizaes a partir das redes resultantes das categorizaes, por exemplo,generalizamos a escrita de /w/ como o quando tnico e am quandotono. Muitas vezes, a escrita de /w/ apresentada pelo professor aoaluno como regra, como produto acabado. O aluno no seria capaz de,atravs do input do lxico escrito generalizar, considerando as similaridadesfonticas das diferentes categorias? Nesse sentido, possvel discutir aaprendizagem da escrita/ortografia a partir de uma abordagem de fonologiabaseada no uso.

    Concluso

    Para encerrar esta discusso, reunimos alguns pontos que consideramosessenciais neste trabalho: i) a preocupao com o ensino da norma ortogrficano deve ser restrita alfabetizao, uma vez que muitos problemas persistemnas sries seguintes. Deve, portanto, ser objeto de ateno do professor; ii)os livros didticos devem ser analisados com critrios, considerando ametodologia pressuposta a partir das atividades sobre a ortografia, a distinode normas dependentes de contexto e as irregularidades e as correspondnciasentre letra e som; iii) o trabalho sistemtico com a ortografia, especialmentecom as regularidades contextuais, desde que feito de forma reflexiva, contribuipara o aluno apropriar-se das normas ortogrficas; iv) treinos ortogrficosque no exigem reflexo so pertinentes apenas como atividades diagnsticas;v) o professor deve conhecer a fundo o sistema ortogrfico para poderentender as dificuldades ortogrficas de seus alunos; vi) uma ampla formaoem Fontica e Fonologia, incluindo modelos baseados no uso, contribuipara o entendimento do funcionamento da lngua e, consequentemente, paraum ensino consciente, menos suscetvel a equvocos, muitas vezesreproduzidos nos livros didticos.

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