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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Flávio Campos de Lima
A Falência da Razão
O Fracasso da razão na
Lettre à D’Alembert sur le théâtre Français,
de Jean-Jacques Rousseau
Mestrado em Filosofia
São Paulo
2015
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Flávio Campos de Lima
A Falência da Razão
O Fracasso da razão na
Lettre à D’Alembert sur le théâtre Français,
De Jean-Jacques Rousseau
Mestrado em Filosofia
Dissertação apresentada a Faculdade de
Filosofia, Comunicação, Letras e artes da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em filosofia,
sob a orientação da professora doutora
Maria Constança Peres Pissara.
São Paulo
2015
Agradecimentos À prof. Dra. Maria Constança Peres Pissarra, minha orientadora, que me encorajou para que fosse possível o desenvolvimento deste trabalho na PUC-SP. Agradeço por ter me despertado a paixão pela leitura e em particular da obra de Jean-Jacques Rousseau que muito me seduz. À prof e humorista. Dra. Yolanda Gloria Gamboa Muñoz. Muito obrigado pelo carinho não só por minha pessoa, mas também pelos alunos da filosofia tanto da graduação quanto da pós da PUC-SP e pela paciência que teve comigo, pois lhe dei bastante trabalho quando esta esteve na coordenação da graduação. À prof. Dra. Sônia Campaner Miguel Ferrari pelas oportunidades que sempre tive de apresentar trabalhos relacionados Ao tema de minha dissertação nos simpósios e colóquios da PUC-SP. À prof. Dra. Maria das Graças de Souza, pelas sugestões feitas no exame de qualificação que me levaram a rever alguns pontos importantes do texto e a ler algumas obras ainda não lidas, dentre elas, o Verbete Genebra. À prof. Célia Cintrão Forghieri que na assessoria da VRACOM me recebeu com muito carinho e atenção e me ajudou muito nesta caminhada da graduação até aqui. Espero ter honrado o que esta amável pessoa fez por mim. Ao meu amigo e irmão Carlos Eduardo Bernardo pelas dicas tão necessárias e pela correção de varias passagens de meu texto. Agradeço ainda, sua amizade desde o tempo em que éramos da mesma turma na graduação em filosofia na PUC-SP. Ao amigo que deve ser guardado no lado esquerdo do peito (como diz o poeta), Raimundo Ferreira (Rhayfer), de onde saíram às primeiras letras, antes da escola primária. Obrigado poeta pelo carinho e pela oportunidade de viajar em sua companhia no encantador mundo da música popular Brasileira. Música esta que, me despertou o pensamento critica até o fascinante e infinito universo filosófico. À prof. Inês Rabaneda de Sousa que na Escola pública me influenciou e me fez crer ser possível a luta pelo conhecimento tão distante para alguns no Brasil. Obrigado pela amizade de sempre. A ideia de amizade não deve ser confundida aqui com o uso vulgar que muitos fazer dela na atualidade. A CAPES, pelo apoio financeiro sem o qual este trabalho não teria acontecido. Agradeço por fim, aqueles que me reprovaram que, talvez, sejam o primeiro motor de minha luta.
Banca Examinadora ______________________
______________________ ______________________
As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam1.
1 Descartes. O Discurso do Método Brasil: Editora Nova Cultura, 1999, p, 35(primeira parte).
Resumo
A Carta a D’Alembert de Jean-Jacques Rousseau escrita na segunda metade do século XVIII é um importante texto sobre o teatro. O objetivo do presente texto é mostrar as contradições que segundo Rousseau existem na proposta de D’Alembert de se instalar um teatro de comédia em sua pátria, a saber, Genebra. A principal contradição para Rousseau existente em tal proposta é a argumentação de D’Alembert quanto à possibilidade deste teatro, cujo modelo é francês, poder afinar os hábitos e costumes do povo genebrino, uma vez que seus hábitos e seus costumes são tão diferentes. Para que o teatro de comédia proposto para Genebra pudesse afinar os hábitos e costumes dos cidadãos genebrinos a razão teria que possuir efeitos eficazes nos espetáculos que fossem ali apresentados, mas segundo Rousseau isso não acontece. Tendo em vista que, segundo Rousseau, o homem, ao mudar de seu estado natural para o estado social, foi corrompido, não é possível afinar os hábitos e costumes de um povo através de artes imitativas e representativas conforme sustenta D’Alembert. Além do mais, Paris, ao ver de Rousseau, é uma grande cidade degenerada e depravada. Genebra por sua vez, é uma pequena cidade que ainda preserva os costumes moderados e onde o povo é pacato. Assim, Rousseau diz não ser possível calar-se diante de tal acontecimento. Palavras chave: teatro, representação, corrupção, Genebra, Paris.
Abstract
The Letter to D'Alembert Jean-Jacques Rousseau written in the second half of the eighteenth century is an important text on the theater. The objective of this paper is to show the contradictions that according to Rousseau exists in the proposed D'Alembert to install a comedy theater in Rousseau's homeland, namely Geneva. The main contradiction to Rousseau existing in this proposal is the argument of D'Alembert as to whether this theater modeled on French power tune the habits and customs of the Genevan people, since their habits and customs are so different. For the comedy theater proposed to Geneva could tune the habits and customs of the Genevan citizens the reason would have to have effective effects on shows that were presented there, but according to Rousseau it does not. Considering that, for Rousseau the man to change their natural state to the welfare state has been corrupted, you can not tune the habits and customs of a people through imitative and performing arts as it tries to sustain D'Alembert, moreover, Paris to see Rousseau is a great degenerate and depraved city, Geneva in turn, is a small town that still preserves the moderate customs and where the people are quiet. Thus, Rousseau says it is not possible to be silent before such an event. Keywords: theater, representation, corruption, Geneva, Paris.
Sumário
Introdução...............................................................................................................5
Parte I
1. O que significou o século das luzes?,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,12
2. A hipótese do homem natural................................................................16
3. Por que Hobbes “confunde” o estado de natureza?...........................20
4. Rousseau objeta a tese Robbesiana....................................................21
5. A crítica de Rousseau ao teatro Francês..............................................26
6. A defesa da cultura popular...................................................................29
7. As leis de Genebra podem corrigir os maus hábitos?........................37
8. Rousseau objeta a tese Aristotélica......................................................39
9. Considerações acerca da comédia........................................................42
Parte II
1. Reflexões sobre as peças dramáticas...................................................47
2. As possíveis causas da queda...............................................................52
3. Rousseau leitor de Sêneca.....................................................................62
4. O papel do velho no teatro.....................................................................64
5. O mundo das aparências............................................................................69
Parte III
1. O primeiro motor do teatro........................................................................78
2. O reino dado à mulher é verdadeiro?.......................................................87
Conclusão......................................................................................................106
Bibliografia....................................................................................................114
5
Introdução
Rousseau, na Carta a D’Alembert, defende ideias que tem início em sua
primeira obra intitulada “Discurso sobre as ciências e as artes” (Discours sur
l’sciences et les arts). Tal obra possibilita a celebridade a seu autor. Rousseau
ganhou o prêmio oferecido pela academia de Dijon2 que propôs a seguinte
pergunta: o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para
aperfeiçoar os costumes? Ao que se sabe, Rousseau responde a esta questão
de forma negativa, a saber, que o avanço das Ciências e das Artes contribui
para corromper os hábitos e costumes dos povos, uma vez que, as Ciências e
as Artes existentes nas sociedades degeneradas não podem corrigir erros
dessas sociedades.
Pode parecer num primeiro momento estranho que um filósofo afirme que
as Ciências e as Artes não contribuam para a educação de um povo, mais isso
só no primeiro momento. Ao trafegar pelos trilhos da obra de Rousseau, o leitor
observa, ou pode chegar à conclusão que, Rousseau não está se referindo às
Ciências e as Artes de modo geral, mas as artes imitativas (mimese) que ao
invés de esclarecer podem confundir aqueles que as observam uma vez que, a
seu ver, estas artes são filhas da corrupção ocorrida ao longo do tempo no
meio social3.
Mas o que é imitação? É importante lembrar que Rousseau é leitor de
Platão, e, aceita a ideia defendida na República4, que a arte mente. Para
Platão, imitador é aquele autor de uma arte afastada da obra da natureza.
Desse ponto de vista, um pintor, por exemplo, imita um objeto por meio de um
quadro que pode parecer aos olhos de muitos, verdadeiro, mas o que há na
2 O prêmio é oferecido pela Academia em 1750.
3 Sobre este ponto, o livro de Jacira de Freitas intitulado: “Política e Festa popular em
Rousseau: a recusa da representação” é muito importante, porque nele, o leitor encontrará explicações precisas que lhe ajudarão a compreender o que Rousseau entende por arte. 4 Na República (livro X) Platão defende a tese que a arte mente. Assim, a arte mimética está
afastada do real. A partir de (595a-c), Sócrates conduz Glauco, a sustentar que a arte (poesia, pintura, escultura) é apenas aparência da realidade
6
verdade é uma sombra daquele que seria real. Assim, segundo Platão, o pintor
nos engana uma vez que faz passar por real aquilo que é falso. Então, essa
ideia é valida para a tragédia, pois, pode ser que nela as coisas sejam imitadas
com objetivo de nos enganar. Vejamos o que diz Platão com respeito à arte da
imitação quando põe as seguintes palavras na boca de Sócrates em um
diálogo com Glauco:
Chamas, portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza. Glauco-- Com certeza. Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores. [...] a imitação está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de uma sombra. Diremos, por exemplo, que o pintor nos representará um sapateiro, um carpinteiro ou qualquer outro artesão, sem ter o mínimo conhecimento do seu ofício. Contudo, se for bom pintor, tendo representado um carpinteiro e mostrando-o de longe, enganará as crianças e os homens tolos, porque terá dado a sua pintura a aparência de um carpinteiro autêntico5.
Se o imitador na opinião de Platão não possui o conhecimento da arte
que aparenta possuir, não se deve pedir-lhe explicações. Pois este só
enganará o homem desprovido de conhecimento. Mas quando se trata de
Homero, Platão diz que é necessário interrogá-lo, uma vez que Homero tratou
de assuntos de interesse público, como por exemplo, da política (Politeia) que
para Platão é um assunto de extrema importância:
Caro Homero, se é verdade que, no que respeita á virtude, não estás afastado no terceiro grau da verdade, artífice da imagem, como definimos o imitador, se te encontras no segundo grau e nunca foste capaz de saber que práticas tornam os homens melhores ou piores, na vida particular e na vida pública, diz-nos qual, entre as cidades, graças a ti, se governou melhor, como, graças a Licurgo, o Lacedemônio, e graças a muitos outros, muitas cidades, grandes e pequenas? Que Estado reconhece que foste para ele um bom legislador e um benfeitor? A Itália e a Sicília tiveram Carondas, e nós, Sólon, mas a ti que Estado pode citar? Poderia indicar um só que fosse? Glauco- Não acredito. Os próprios homéridas não dizem nada6.
5 República. pp, 324-325.
6 Idem, 327.
7
Na citação acima Platão deixa claro que a arte imitativa não possui
condições de educar os homens, uma vez que está afastada da realidade e
próxima das aparências. Para que a arte imitativa pudesse educar os homens,
ela teria de ser capaz de criar um novo homem com uma nova técnica, (a
palavra técnica – téchne – tem aqui o sentido de arte), e segundo Platão isso
não acontece. Tendo em vista que o método existente na arte imitativa não
possui aquilo que caracteriza a Paidéia no sentido grego, tal arte deve ser
desconsiderada, no entanto, quando se trata de enganar os homens se faz
necessário muita cautela, pois aquilo que não pode afinar os costumes, talvez
contribua para sua degeneração.
Como “sabemos” Platão expulsa da República os sofistas e os poetas,
pois a seu ver, eles não possuem a arte de educar, ou seja, a Paidéia que
dizem possuir. Mas o que significa para o homem Grego esta Paidéia?
Segundo Werner Jaeger, a Paidéia era para os Gregos um “método” pelo qual
se poderia educar o homem. Esta educação deve ser entendida do ponto de
vista humano, pois deve educar o homem segundo a natureza não o afastando
de sua essência. Ainda com respeito à imitação vale conferimos o comentário
de Jaeger:
O ataque de Platão é dirigido principalmente contra a poesia imitativa. Mas o que é imitação? Platão esclarece-o pelo processo habitual, partindo da hipótese das ideias, que designam a unidade da pluralidade, opera no pensamento. As coisas que os sentidos nos transmitem são reflexos das ideias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou imitação da ideia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro cria os seus produtos, tendo presente à ideia, como modelo. O que ele produz é a mesa ou a cadeira, não a sua ideia. O pintor toma como modelo as mesas e as cadeiras perceptíveis aos sentidos feitas pelo carpinteiro, e imita-as no seu quadro. Tal como alguém que pretendesse criar um segundo mundo, colocando a imagem deste no espelho, assim o pintor se limita a traçar a simples imagem refletida das coisas e da sua realidade aparente. O pintor é, assim, o criador imitativo de um produto que, á luz da verdade, ocupa o terceiro lugar. O poeta pertence à mesma categoria: cria um mundo de mera aparência7.
7 W.Jaeger. 2001 pp,982-983.
8
Estes profissionais aqui apresentados por Jaeger podem ser
relacionados com os comediantes da Carta a D’Alembert de Rousseau?
Sustentamos que sim, pois, na Carta a D’Alembert, não é a profissão de
comediante em si que Rousseau condena, mas o que está em jogo é se os
comediantes realmente são capazes de tornarem os homens melhores do que
são, e a resposta de Rousseau a esta questão, como veremos, é negativa, os
comediantes para Rousseau, são meros imitadores e não podem contribuir
para melhorar os hábitos e costumes dos cidadãos Genebrinos. Ao criticar a
poesia imitativa Platão defende algo semelhante, pois a seu ver, o poeta não
possui conhecimento verdadeiro, mas imita a vida com objetivo de agradar o
público.
Parece não restar dúvida que as Ciências e as Artes sejam necessárias
para um determinado povo, mas, é necessário que se tenha como pré-requisito
a que tipo de povo tais Ciências e Artes se dirigem. Rousseau fornece
exemplos de povos que as Artes ou a “civilização” conduziram à servidão,
como: os romanos, os gregos e os chineses. É importante ressaltar a maestria
rousseauniana no início da primeira parte do “Discurso sobre as Ciências e as
Artes”. Ele começa elogiando o avanço extraordinário que o homem alcançou
graças às ciências e as artes, que lhe deram a possibilidade de chegar a
pontos nunca alcançados por gerações passadas. A razão, diz Rousseau,
ajudou o homem a sair da escuridão na qual havia lhe imposto à natureza.
Agora, ele, o homem, pode caminhar por conta própria em direção a um novo
mundo esplendoroso nunca imaginado por aqueles que viviam no estado de
ignorância, ou pior que bestial8.
Fica claro de início que Rousseau elogia o restabelecimento das Ciências e
das Artes, talvez porque esteja diante de homens acadêmicos que lhe propõem
escrever justamente sobre este assunto. Mas, logo em seguida, o filósofo
surpreende seus leitores com afirmações do tipo:
Antes que as a artes polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos
8 Rousseau, 1990, p, 189. 1992(original), p, 30.
9
costumes eram rústicos, mas naturais, e a diferença dos procedimentos denunciava, à primeira vista, a dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor, mas os homens encontravam sua segurança na facilidade para se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, de cujo valor não tem mais noção, poupava-lhes muitos vícios 9.
Com o elogio a vida natural feito acima, Rousseau convida seus leitores a
uma reflexão cujo objetivo parece ser a relação existente entre o homem e a
natureza, tão explicitada, por exemplo, pelos estoicos, e, em particular pelo
filósofo Sêneca nas Cartas a Lucilio e também na obra intitula Da Tranquilidade
da Alma10. Mas, não serão anacrônicas tais referências as obras de Sêneca,
uma vez que este filósofo é do século I e Rousseau, por sua vez pertencia ao
século XVIII o assim chamado “século das luzes”? Tal objeção nos parece
cabível e legitima, mas é possível respondê-la dizendo que não se trata aqui de
algo fora de moda, isso porque os estoicos defendiam uma harmonia que para
eles, era necessária, a saber, a relação entre o homem e a natureza, que já
tinha suas raízes bem fundamentadas e sólidas nos escritos dos assim
chamados pré-socráticos. Como parece deixar claro Rachel Gazolla, no
primeiro capitulo de seu livro sobre os estoicos:
Os estoicos eram herdeiros das reflexões e discussões sobre a natureza, a lei e as formas de relação entre elas, conforme expressam os poemas de míticos de Homero e Hesíodo e os lógoi criados pelos sophoí. Os nomeados filósofos pré-socráticos, os Jônios em particular, refletiam sobre essas duas noções tendo o alargamento das relações entre os gregos- e posteriormente entre os gregos e não gregos [...].
Gazolla deixa claro acima que já existia tanto nas obras dos pré-socráticos
quanto dos estoicos a defesa da relação homem natureza e é importante
salientarmos que os primeiros, ou seja, os pré-socráticos filosofam em um
período muito recuado de antecedência à Era Cristã, ou seja, da nossa Era. O
filósofo Sêneca por sua vez, a que se sabe, encontra-se no primeiro século da
Era Cristã. Rousseau, como já foi dito, escreve no século XVIII, mas isso não o
9 Neste momento do primeiro Discurso, Rousseau já deixa clara a questão que será
desenvolvida no segundo Discurso, ou Discurso sobre a desigualdade entre os homens. Fica claro que, no estado de natureza o homem é bom, ou melhor, não é bom nem mal, uma vez que, os vícios ou virtudes são adquiridos no estado social, ou seja, quando ele, o homem, passa a viver em sociedade. 10
Ao longo deste texto, daremos as referencias devidas as obra neste momento citadas.
10
impede de retomar alguns conceitos existentes na época desses filósofos,
sobretudo de Sêneca, e antes deste, de Platão, pois a que se sabe Rousseau é
leitor da obra de Platão principalmente da talvez mais ilustre, a saber, a
República, tanto que chega a afirmar que a República de Platão é o mais belo
tratado político e de educação que o mundo já conheceu”. Então não se deve
estranhar que o século das luzes busque inspiração tão longe, na Grécia e na
Roma antiga:
Não deve causar espanto a aproximação de tais afirmações com o pensamento clássico dos séculos XVII e XVIII que nos é mais próximo, como o de J. Locke ou de J-J. Rousseau. Respeitada a diferença histórica, são as mesmas noções ético-políticas edificadas pelos estoicos [...] 11.
É bem provável que Gazolla tenha razão quando afirma que os trabalhos do
pensamento de filósofos como os citados acima, tenham se aproximado
daqueles de alguns filósofos antigos. O grande interprete de Jean-Jacques
Rousseau, Jean Starobinski, defende em uma passagem da obra “a
Transparência e O Obstáculo”, o seguinte:
Insistiu-se no tom “moderno” ou “romântico” do individualismo de Rousseau. Mostrar-se iam facilmente suas fontes antigas e, sobretudo, estoicas. Viver de acordo consigo mesmo e com a natureza é um preceito que Rousseau pôde encontrar em Sêneca ou em Montaigne. (Starobinski, 1991, p, 49).
Não podemos esquecer que Rousseau é “filho” do Iluminismo, entretanto é
contra este, pois, defende conceitos que estão na contramão de sua época,
como por exemplo, que com o uso da razão, o homem poderia chegar a uma
possível perfeição. Ora, a razão é um dos meios que, para Rousseau, pode-se
encontrar a origem dos vícios adquiridos na vida social, uma vez que, quando
este homem passa do estado de natureza (primeira) para o estado social, que
Rousseau vai classificar de (segunda natureza) tem início sua degeneração.
Este homem fica tão modificado que para Rousseau é impossível reconhecê-lo.
11
Gazolla. 1999, p, 39.
11
Segundo Rousseau, a causa da degeneração do homem pode ser
encontrada na passagem do estado de natureza para o estado social. Um dos
motivos de tal corrupção acontece devido o despertar do raciocínio. A partir
desse momento, o homem Vê no outro, que na verdade é ele mesmo, aquilo
que ele não é, ou não possui. Tem-se neste momento para Rousseau, o
surgimento do amor próprio, em oposição ao amor de si, que havia no estado
de natureza. A pós este acontecimento, diz Rousseau, o homem pode ser
considerado mau, pois, agora vale tudo para mostra-se superior ao outro.
Voltando às ciências e as artes, vale dizer que na segunda parte do primeiro
Discurso, Rousseau afirma que foi um deus inimigo da tranquilidade existente
entre os homens, o criador das ciências e que estas, as ciências, são filhas do
orgulho humano e da avareza que reina na corrupção adquirida na vida em
sociedade. Rousseau faz referência neste momento ao Mito de Prometeu, que
na Mitologia (grosso modo) tenta se igualar a um deus roubando o fogo de
Zeus e revelando os segredos dos deuses aos homens. A que se sabe,
Prometeu fracassa e é rigorosamente punido.
Uma questão não menos importante que Rousseau aponta é a seguinte:
D’Alembert não teria levado em consideração as diferenças existentes entre os
povos. É certo que Rousseau diz ser o homem uno, mas cada povo possui
hábitos e costumes que são muito diferentes entre si. De tal modo que os
espetáculos feitos, por exemplo, para Paris, que é ao ver de Rousseau uma
grande cidade depravada e degenerada pelo ócio, pela vagabundagem e pelo
amor ao luxo, não pode ser adequada para Genebra que é uma pequena
cidade que ainda preserva os hábitos e costumes moderados. D’Alembert diz
ainda que os jovens poderiam lutar contra as leis de Genebra que proíbem a
implantação de qualquer espécie de teatro em seu território. Rousseau, no
entanto, sustenta que as leis Genebrinas nada podem fazer no sentido de
corrigir os maus hábitos apresentados no teatro, para Rousseau, tanto a
tragédia, quanto a comédia possuem leis próprias, assim, Rousseau diz não
ser possível calar-se diante de tal acontecimento.
12
Outra questão também muito importante diz respeito ao conteúdo das
peças a ser apresentadas, e uma grande ameaça vista por Rousseau era o
filosofo e escritor de peças teatrais Voltaire12. Voltaire escrevia tanto peças
trágicas quanto cômicas e estava na ocasião nas proximidades de Genebra
pronto para atuar com todo seu gosto pela libertinagem existente no mundo
moderno, sobretudo neste cujo modelo é francês. Então, o objetivo aqui, é
mostrar que a razão fracassa na Carta a D’Alembert, e, por que ela, a razão,
não tem vez no teatro.
Parte I
1. O que significou o século das Luzes?
O século das luzes, ou seja, o século XVIII, parece não ter sido uma
época em que se criaram novos conceitos filosóficos ou novas linhas de
pensamentos, mas seus seguidores e admiradores empolgados com suas
crenças13 na razão pegaram de empréstimo as linhas de pensamento já
desenvolvidas nos séculos anteriores, a saber, no XVI e XVII. Mas, é
importante ressaltarmos que o século XVIII não meramente copia aquilo
existente em seus antecessores, mas dá nova interpretação, de maneira
organizada e sistemática, ás “verdades” estabelecidas por aqueles filósofos e
cientistas que haviam descoberto maneiras revolucionárias de interpretar os
fatos ainda não esclarecidos. Assim, a filosofia do Iluminismo aparentemente
teve como função trazer à tona aquilo que não tinha ficado claro por seus
antecessores, o papel da criação14 talvez não tenha sido sua preocupação.
Como parece ficar claro nas palavras de Ernst Cassirer:
12
François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire. Foi escritor, ensaísta, filósofo Frances, poeta... 13
É preciso que se observe que crença aqui não deve ser entendida como sinônimo de verdade. 14
Parece se sustentar neste momento a tese que “nada se cria tudo se transforma” (Antoine Laurent Lavoisier), mas se voltarmos na história podemos observar que Lavoisier por sua vez,
13
[...] a época das luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com ideias originais e sua demonstração. Entretanto, a filosofia do Iluminismo, apesar de ter adotado a maioria dos seus materiais de outras fontes e de ter desempenhado, neste sentido, um papel subalterno, nem por isso deixou de instituir uma forma de pensamento perfeitamente nova e original. O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. A razão é una e idêntica para todo o individuo pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura. (Cassirer. 1994, p, 23).
De tal maneira que, segundo Cassirer, o movimento iluminista abriu novos
caminhos rumo ao trabalho do pensamento, uma vez que quebrou barreiras há
muito edificadas por aqueles seguidores de uma filosofia cujas raízes se
encontravam em sistemas metafísicos herdados da Escolástica. Os filósofos
iluministas quebram os velhos laços fundamentados nas crenças metafísicas
herdadas do passado, ou seja, da Escolástica, por não concordarem com suas
“verdades pré-estabelecidas”, uma vez que agora é a razão que tudo decide e
nada pode ser aceito sem que seja submetido ao seu tribunal e
cuidadosamente por ele analisado:
Na verdade, o que aí temos não é outra coisa senão uma visão nova e um novo destino do movimento universal do pensamento filosófico. Na Inglaterra e na França, o Iluminismo começa por quebrar o molde obsoleto do conhecimento filosófico, a forma do sistema metafísico, não acredita mais no privilégio nem na faculdade do “espírito de sistema”: vê neste não a força, mas o obstáculo e o freio da razão filosófica15.
Apesar das tentativas realizadas pelos filósofos iluministas de se
separarem da filosofia dos séculos XVI e XVII, esse distanciamento parece não
ter ocorrido de fato. Quando se observa a linha filosófica pela qual os filósofos
do Iluminismo trafegam, se pode ver que estes filósofos vão, senão na mesma
direção de seus antecessores, vão por caminhos bem semelhantes, sobretudo
quando se diz respeito, por exemplo, a questões relacionadas à ideia de
copia de alguém. Para um estudo detalhado sobre este assunto o texto de Michel Foucault “o que é um autor” é de importância fundamental. 15
Cassirer. 1994, (introdução).
14
unidade. Segundo Cassirer, a unidade existente no século XVII, jamais foi
desconsiderada. O império da razão considerado como indispensável pela
filosofia dos séculos XVI e XVII, sobretudo na autoridade de René Descartes
em nenhum momento é abandonado:
A “autoconfiança” da razão em momento nenhum é abalada. Antes de tudo, foi à exigência de unidade do racionalismo que conservou todo o seu poder sobre os espíritos. “todas as ciências, em seu conjunto”, escreve D’Alembert, retomando assim as teses iniciais de Descartes nas Regulae ad directionem ingenii, “nada mais são do que a força do pensamento humano, que é sempre uno e idêntico”, e que deve permanecer sempre semelhante a si mesmo, por mais variados e múltiplos que sejam os objetos a que esse pensamento se aplica” 16.
Se por um lado a filosofia iluminista não consegue se separar em sua
totalidade do pensamento anterior, ou seja, dos séculos XVI e XVII, sua
atuação no sentido de resgatar aquilo que parece ter sido o papel da filosofia
desde a antiguidade foi fundamental. Tal papel da filosofia desde a antiguidade
segundo Cassirer, é o de expandir as atividades do pensamento não
permitindo que este se feche em si mesmo. Deste ponto de vista, o trabalho do
pensamento deve ir além das fronteiras dogmáticas abrindo caminho para os
novos campos da ciência. É com esse caráter, diz Cassirer, que o século XVIII,
se auto-intitulou de “o século da filosofia”, uma vez que pretendia trazer de
volta aquilo que talvez houvesse ficado esquecido ou ignorado por alguns no
passado:
O século XVIII, que se auto-intitulou orgulhosamente de “o século da filosofia”, justificou essa pretensão na medida em que devolveu efetivamente a filosofia seus direitos originais, em que a restabeleceu em sua significação primeira, sua significação verdadeira “clássica”. Deixou de encerrar-se na esfera do pensamento, abriu caminho até aquela ordem mais profunda donde jorra, com o pensamento puro, toda a atividade intelectual do homem, e onde essa atividade deve encontrar seu alicerce, segundo a convicção profunda, da filosofia do iluminismo17.
O fenômeno iluminista presente na França do século XVIII cuja crença na
razão parece ser exagerada pode ser explicado levando em conta o espírito
cartesiano que ainda possuía grande influência no pensamento da época.
16
Ibid. p, 44. 17
Cassirer. 1994. (prefácio à filosofia do iluminismo).
15
Descartes, não só determinava aquilo que seria objeto de estudo filosófico,
mas também influenciava a literatura, a política e a religião. Tal influência
sustenta a vitória obtida pela filosofia cartesiana no século XVII ao despertar o
mundo da ciência para uma nova forma de enxergar o mundo:
[...] a França era a pátria, a própria terra clássica da análise desde que Descartes consumara a reforma, a transformação radical da filosofia. A partir de meados do século XVII, esse espírito cartesiano penetra em todos os domínios. Ele não se impõe somente na filosofia, mas também na literatura, na moral, na política, na teoria do Estado e da sociedade18 [...].
Fica clara a influência da filosofia cartesiana no século das luzes
explicitada por Cassirer. Essa penetração Cartesiana parece ser visível
também em pensadores como, por exemplo, Immanuel Kant. Kant parece
deixar claro a importância que teve Descartes no século XVIII. Kant também
acreditava no progresso humano por meio de um uso correto da razão19. No
texto “O que é o Iluminismo”, Kant diz ser este o meio pelo qual o homem pode,
ou poderá chegar a sua maioridade, deixando assim, de submeter-se a tutores.
Assim, o filosofo acreditava que a razão poderia conduzir o homem para uma
possível “perfeição” uma vez que, o convidava a agir por sua própria conta:
O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A minoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Se, pois, se fizer a pergunta, vivemos nós agora numa época esclarecida? A resposta é: não. Mas vivemos numa época do iluminismo20.
Na introdução feita até este momento neste texto, vimos que o Iluminismo,
tinha como objetivo o progresso dos homens através do uso correto da razão.
Foram citados filósofos como Descartes e Immanuel Kant, sendo o primeiro do
século anterior ao iluminismo, mas que o influenciou e o último que viveu na
época das luzes, ou do auge da filosofia como o próprio iluminismo se auto
18
Ibid. p, 50. 19
Essa influência que Descartes provoca em Kant, parece ficar clara na obra do Filósofo Alemão “a Critica da razão pura”, onde Kant trata do problema da metafísica e defende que ela, a metafísica, sequer pode ser considerada ciência. 20
Kant. 1783, p, 516.
16
intitulava. Porém, Jean-Jacques Rousseau não concorda com essa crença na
razão, como já foi dito, é justamente a razão que contribui para a degeneração
do homem em sociedade.
2. A hipótese do homem natural
Para Rousseau de todos os conhecimentos existentes o mais importante,
porém, o menos estudado é aquele relacionado ao conhecimento do homem.
De tal modo que a mensagem enviada a Sócrates pelo oráculo de Delfos, ou
seja, pelo deus Apolo, a saber, “conhece a ti mesmo”, é de importância
fundamental21. Assim, diz Rousseau, esta afirmação do oráculo de Delfos, é
mais importante e útil do que os livros gigantescos escritos por aqueles
defensores da moral. Esta máxima atribuída a Sócrates, para Rousseau é
importantíssima para aquele ou aqueles que têm como objetivo estudar o
homem. A passagem do estado de natureza para o estado social segundo
Rousseau teria mudado o homem de tal modo e a ponto deste ficar
irreconhecível. Rousseau compara esta mudança com o ocorrido a estátua de
Glauco, que após ser exposta ao tempo, foi mudada de tal maneira a ponto de
se parecer mais a um mostro do que a um deus:
La plus utile et la moins avancée de toutes les connaissances humaines me paraît celle de l’homme et j’ose dire que la seule inription du temple de delphes contenait un précepte plus important et plus dificile que tous les gros livres des moralistes. Comment l’homme viendra-t-il à bout de se voir tel que l’a formé la nature, à travers tous les chagements que la succession des temps et dês choses a Dû produire dans sa constitution originelle, et de démêler ce qu’il tien de son propre fonds d’avec ce que les circonstances et ses progrès ont ajouté ou changé à son éta primitif. Semblable à la statue de Glaucus que le temps, la mer et les orages avaient tellement défigurée qu’elle ressemblait moins à um dieu qu’à bête22 féroce, l’âme humaine altérée au sein de la société par mille cause [...] changé d’apparence au point d’être presque méconnaissable [...].23
21
Essa máxima é atribuída a Sócrates, mas o pré-socrático Tales de Mileto, ao que se sabe, já afirmava que a coisa mais importante. Porém, a mais difícil que existe é o homem conhecer a si mesmo. 22
A um animal feroz. 23
Rousseau. 1992, PP. 157-158. O mais útil e o menos avançados de todos os conhecimentos humanos pare-me ser o do homem e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais
17
Fica claro acima que para Rousseau se sabe pouco ou quase nada sobre
aquilo que deveria ser o mais importante, que é o homem estudar a si mesmo.
Tal afirmação feita por Rousseau nos permite dizer que sua importância
antropológica é clara nesta obra, a saber, no “Discours sur l’ origine et les
fondements de l’ inégalité parmi les hommes”. Partindo do pressuposto que o
homem ao passar do estado de natureza para o estado social perdeu por
completo o que tinha antes, Rousseau diz não ser possível crer nas “verdades”
da religião que sustenta ser da vontade de Deus os homens serem desiguais
tampouco a máxima religiosa nos proíbe de fazermos conjecturas a cerca do
que seria o homem se tivesse sido abandonado a si mesmo:
La religion nous ordonne de croire que Dieu lui-même ayant tiré les hommes de l’état de nature, immédiatement aprés la création, ils sont inégaux parce qu’il a voulu qu’ ils le fussent; mais elle ne nous défend pas de forme des conjectures tirées de la seule nature de l’homme et des êtres qui l’environnent, sur ce qu’aurait pu devenir Le genre human, s’il fût resté abandonné à lui- même. (Rousseau, 1992, p, 169) 24.
Rousseau vai além quando convida o homem de qualquer país ou região
para uma reflexão dizendo que encontrou sua verdadeira história no grande
livro da natureza e não naqueles escritos pelo homem que só contém mentiras:
O homme, de quelque contrée que tu sois, quelles que soient tes opinions, écoute. Voici ton histoire telle que j’ ai cru la lire, non dans les livres de teus semblables qui sont menteurs, mais dans la nature qui ne ment jamais. Tout ce qui sera d’elle será vrai25.
importante e mais difícil que todos os grossos livros dos moralistas. E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo [...] Como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feros do que a um Deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros, pelas mudanças que se dão na constituição dos corpos e pelo choque contínuo das paixões, por assim dizer mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível ( Rousseau, 1990, p, 43). 24
A religião nos ordena a crer que, tendo o próprio Deus tirado os homens do estado de natureza logo depois da criação, são eles desiguais por que assim o desejou; ela não nos proíbe, no entanto, de formar conjecturas extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria formado o gênero humano se fora abandonado a si mesmo. (Rousseau, 1990, p, 53). 25
Ibid. p, 169.
18
A passagem do estado de natureza para o estado social, como já vimos,
provocou uma revolução no homem, isso tanto do ponto de vista físico, quanto
do ponto de vista moral. Mas o pior de tudo parece ser o fato desse homem
pensar que tudo é natural. O segundo momento da vida do homem, a saber, a
vida em sociedade, Rousseau vai chamar de segunda natureza. Tal afirmação
possibilita Rousseau responder a possíveis objeções que possam ser feitas
contra a tese do estado de natureza, como por exemplo, as afirmações de
Thomas Hobbes, a saber, que o homem é mau por natureza26:
[...] na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdias. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a gloria. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias [...] com isso se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los a todos em respeitos, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; que é de todos os homens contra todos os homens.27
Hobbes talvez soubesse das dificuldades que esta sua tese encontraria no
futuro, principalmente no meio cientifico e filosófico. Parece que prevendo
possíveis objeções diz em seguida que pode parecer contraditório que alguém
possa discordar que a natureza tenha feito os homens assim, capazes de
entrarem em um estado de guerra para defenderem interesses egoístas e
assim, mostrarem serem superiores e dominadores uns dos outros. Hobbes
convida aqueles que por ventura possuam alguma desconfiança nesta
afirmação, a saber, que quando se vivia sem leis para corrigirem as paixões
Oh homem, de qualquer região sejas, quaisquer que sejam tuas opiniões, ouve-me; eis tua história como acreditei tê-la lido não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza que jamais mente. Tudo o que estiver nela será verdadeiro. Idem, p, 53. 26
Rousseau esta se dirigindo a obra escrita por Thomas Hobbes “Leviatã”. Nesta obra do século XVI, Hobbes defende que no estado de natureza existe uma guerra de todos contra todos. Rousseau por sua vez, sustenta a tese que Hobbes confundiu o estado de natureza com o estado social. Mas, é importante ressaltarmos que, Hobbes não sustenta que o homem seja mau por natureza. A tese que em Hobbes o homem é por natureza mal é de Jean-Jacques Rousseau. 27
Hobbes. 1979, p, 75.
19
dos homens se vivia em um estado de guerra, a serem empiristas, ou seja,
testarem suas próprias experiências. Para tanto, diz Hobbes, basta observarem
que ao viajar os homens sempre preferem ir bem acompanhados e armados,
pois prevê que possam ser atacados:
Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruírem-se uns aos outros. E poderá, portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja, portanto ele considera-se a si mesmo, que quando empreender uma viajem se arma e procura ir bem acompanhado, que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo está em casa tranca seus cofres; e isso mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injuria que lhe possa ser feita.
Prosseguindo em sua argumentação cujo objetivo é defender a tese que o
homem sempre viveu em estado de guerra, Hobbes diz algo no mínimo
curioso. Parece causar espanto quando o filosofo do século XVII afirma que em
tal estado não havia injustiça uma vez que, estes homens não sabiam o que
seria justo e nem o que seria injusto. A impossibilidade da existência de justiça
e da injustiça no estado de natureza deve-se, diz Hobbes, à ausência de leis,
pois para ele, são as leis que possibilitam essas noções:
Dessa guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e de injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça28.
Neste momento do texto, Hobbes parece entrar em contradição. Ora, se o
homem no estado de natureza, aqui descrito por Hobbes, não possuísse a
noção de justo e injusto, como poderia ele viver em um estado de guerra? O
próprio Hobbes disse em um momento anterior que os três motivos que levam
os homens no estado de natureza são: “a competição, a desconfiança e a
gloria”. Como o homem em seu estado natural, ou seja, antes de ser habitante
de uma sociedade, conheceria essas três coisas que parece serem adquiridas
28
Ibid. p, 77.
20
no estado social e não no estado de natureza? Veremos mais a frente que são
destes pontos defendidos por Hobbes que Jean-Jacques Rousseau irá
discordar quando afirma haver grande confusão por parte de Hobbes quando
este descreve o estado social como se este fosse o estado natural.
3. Por que Hobbes “confunde” o estado de natureza?
O filósofo Enciclopedista Denis Diderot, contemporâneo de Rousseau,
concorda em parte com as ideias do homem natural defendidas por Thomas
Hobbes. Mas Diderot discorda de Hobbes no ponto de que a natureza autoriza
a discórdia entre os homens. No capitulo XIII do Leviatã, como vimos
anteriormente, Hobbes, descreve o estado de natureza como uma época em
que havia uma guerra de todos os homens contra todos os homens e diz ainda,
que não é possível a harmonia entre os homens enquanto estes não forem
governados por leis. Como nos mostra Maria das Graças na tradução e
apresentação dos verbetes políticos da Enciclopédia:
Contra Hobbes, Diderot também defende, ao escrever para a Enciclopédia, a tese segundo a qual a natureza associa os homens. Na perspectiva Hobbesiana, portanto, a natureza, ao invés de aproximar, dissocia os homens. Diderot, em relação á descrição do homem natural de Hobbes, impetuoso e apaixonado, mantém de inicio uma posição de certa simpatia. No verbete, Diderot escreve que “existimos de maneira pobre, contenciosa, inquieta. Temos paixões e necessidades [...]”. Contudo, Diderot não segue Hobbes até o fim de suas conclusões. É certo que o homem é atormentado por paixões violentas. Mas é certo também, diz o verbete, “Direito natural”, que ele não é apenas um animal, mas um animal que raciocina e que pode descobrir a verdade das coisas29.
Diderot diz que Hobbes teria confundido o estado de natureza com o
estado social, devido ele ter vivido em uma época em que seu país (a
Inglaterra) entra em guerra. Hobbes após ter presenciado um momento muito
difícil, onde não se respeitava ninguém nem nada, onde as leis até então
respeitadas perdeu sua função, devido isso, teria sustentado que no estado
natural onde não se tem a atuação de um estado dirigido por leis se tem um
29
Diderot e D’Alembert. 2006, pp, 8-9. Apresentação de Maria das Graças.
21
desequilíbrio total, uma guerra de todos contra todos. Maria das Graças
completa:
Diderot considera que o quadro traçado por Hobbes de uma natureza humana impetuosa e guerreira se deve à sua dolorosa experiência da guerra Inglesa. No verbete de sua autoria sobre a filosofia Hobbesiana, afirma que Hobbes, “vendo então as leis pisoteadas, o trono cambaleando, os homens arrastados como se fossem por uma vertigem geral para as ações mais atrozes, pensou que a natureza humana era má, e daí vem toda a sua fábula ou sua história sobre o estado de natureza”. As circunstâncias teriam influenciado sua filosofia, e ele considerou fatos momentâneos como se fossem regras invariáveis da natureza30.
4. Rousseau objeta a tese Robbesiana.
Segundo Rousseau e Diderot, alguns filósofos haviam confundido o estado
de natureza com o estado social. Tal confusão, diz Rousseau, acontece
quando esses filósofos dão características ao homem natural que na verdade
não lhe pertencem31. Rousseau afirma no Segundo Discurso que Hobbes
sabia das dificuldades que havia em sua descrição do estado de natureza, mas
as ignorou. Ora, se o homem natural, diz Rousseau não sabia o que seria a
bondade, não poderia ele ser avarento entrando em guerra em busca de uma
superioridade frente a seu semelhante, tampouco poderia o homem natural se
degenerar porque desconhecia o que seria um homem virtuoso:
N’allons pas surtout conclure avec Hobbes que pour n’avoir aucune idée de la bonté, l’homme soit naturellement méchant, qu’il soit vicieux parce qu’il ne connaît pas laVert, qu’ il refuse toujours á sés semblables des services qu’il ne croit pas leur devoir, ni qu’en vert du droit qu’il s’attribue avec raison aux choses dont il a beson, il s’imagine follement être le seul propriétaire de tout l’univers. Hobbes três bien vu le défaut de toutes les définitions modernes du droit naturel: mais les conséquences qu’ il tire de la sienne montrent qu’il la prend dans un sens qui n’est pas moins faux. En raisonnant sur les príncipes qu’il établit, cet auteur devait dire que l’ état de nature état celui ou le soin de notre conservation est le moins préjudiciable á celle
30
Maria das Graças. Introdução ao texto de Diderot e D’Alembert. 31
Outro Filosofo também contemporâneo de Jean-Jacques Rousseau que teria feito essa confusão, ou simplesmente ignorado o conceito de Homem natural defendido por Rousseau foi François-Marie Arouet Voltaire.
22
d’autrui, cet état était par conséquent le plus propre á la paix, et le plus convenable au genre humain32.
Segundo Rousseau, Hobbes afirma uma tese oposta a essa do estado de
natureza, porque insiste em mostrar o homem selvagem como se este vivesse
em sociedade. De tal modo que, as paixões atribuídas ao homem natural por
Hobbes, diz Rousseau, são na verdade adquiridas quando este passa a viver
em sociedade. O homem natural apresentado por Rousseau não pode ser um
ser vicioso, assim, este homem ignora tanto os vícios quanto as virtudes.
Hobbes n’a pas vu que la même cause qui empêche les sauvages d’user de leur raison, comme le prétendent nos jurisconsultes, les empêche en même temps d’abuser de leurs facultés, comme il le prétend lui-même; de sorte qu’pourrait dire que les sauvages ne sont pas méchants précisément, parce qu’ils ne savent pas ce que c’est qu’être bons; car ce n’est ni le développement dês lumières, ni le frein de la loi, mais le calme des passions, et l’ignorance du vice qui les empêche de mal faire [...]33.
Podemos observar que as teses defendidas por Rousseau no primeiro e
no segundo discurso, já se encontram em autores do século XVI, como por
exemplo, a questão da desnaturação do homem (dénaturé). Um desses
autores que antes de Rousseau havia tratado desse assunto é Étienne de La
Boétie.
Para La Boétie o homem é livre por natureza, está na natureza do homem
ser livre. Todo o problema segundo o filósofo se encontra na educação que lhe
32
Rousseau. 1992, pp, 210-211. Não iremos, sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma ideia da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude; que nem sempre recusa a seus semelhantes serviços que não crê dever-lhes; nem que, devido ao direito que se atribui com razão relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietário do mundo inteiro. Hobbes viu muito bem o defeito todas as definições modernas de direito natural, mas as conseqüências, que tira das suas, mostram que o toma no sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os princípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial a outrem, esse estado era, consequentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano (Rousseau, 1990, p, 76). 33
Rousseau, 1992, p, 211. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem nossos jurisconsultos, os impede também de abusar de suas faculdades, como ele próprio acha; de modo que se poderia dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o que é ser bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o frei da lei, mas a tranquilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal [...] Rousseau, 1990, p, 76.
23
é dada no estado social. Desse ponto de vista La Boétie sustenta que os
primeiros tiranos do homem são os costumes adquiridos por meio de uma
educação que lhe conduz a servidão:
La nature de l’homme est bien d’être libre et de vouloir l’être; mais aussi sa nature est telle que naturellement il prend le pli son éducation lui donne. Ainsi, la première raison de la servitude volontaire, c’ est la coutume [...]34.
Em outro momento do texto La Boétie fala da relação necessária e
obediente que deve existir entre o homem e a natureza, uma vez que, a seu
ver, ela, a natureza, é uma boa mãe que fez todos iguais com o objetivo que
todos vivam em harmonia como irmãos. Mas, se houver uma relação contrária,
ou seja, se o homem não observar as leis naturais, ele será um escravo do
homem, ou seja, um tirano dele mesmo e também terá dificuldades de
obedecer aos seus pais:
Premièrement, il est comme je crois hors de doute que si nous vivions avec les droits que la nature nous a donnés, et avec les enseignements qu’elle nous apprend, nous serions naturellement obéissants aux parents, sujets á la raison et esclaves de personne. La nature, ministre de Dieu et gouvernante des hommes, nous a tous faits de même forme, et comme il semble, selon un même moule, afin que nous nous reconnaissions tous comme compagnons ou plutôt comme frères35.
Mais uma vez pode-se observar a influência do século XVI sobre
Rousseau, sobretudo quando se trata de assuntos que dizem respeito ao
estado de natureza do homem, pois, conforme visto acima, o filósofo La Boétie
convida o homem a viver em harmonia com a natureza, caso contrário, este
34
La Boétie. 2008, p, 29. É da natureza do homem ser livre e querer sê-lo; mas muito facilmente toma uma outra feição, quando dada pela educação. Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito [...]. La Boétie, 2008, p, 88. 35
Ibid. p, 17. Em primeiro lugar creio não haver duvida de que, se vivêssemos com os direitos que recebemos da natureza e segundo os preceitos que ela nos ensina, seriamos naturalmente submissos aos nossos pais, súditos da razão, mas escravos de ninguém. A natureza, primeiro agente de Deus, benfeitora dos homens, criou-nos todos do mesmo modo e, de certa maneira, verteu-nos todos na mesma fôrma, para mostra-nos que somos todos iguais, ou melhor, todos irmãos. La Boétie, 2008, p, 80.
24
homem nada mais será do que um escravo dos costumes adquiridos no meio
social. Assim, aqueles que afirmam ser o homem mau por natureza cometem
um equívoco, uma vez que o homem no estado de natureza não possuía vícios
que são adquiridos no estado social36:
C’est faute d’avoir suffisamment distingué les idées, et remarqué combien ces peuples étaient déjà loin du premier état de nature, que plusieurs se sont hâtés de conclure que l’homme est naturellemont cruel et qu’il a besoin de police pour l’adoucir, tandis que rien n’est si doux que lui dans son état primitif, lorsque placé par la nature à des distances égales de la stupidité des brutes et des lumières funestes de l’homme civile, et borne également par l’instinct et par La raison à se garantir du mal qui le menace, il est retenu par la pitié naturelle de faire lui-même du mal à persone, sans y être porte par rien, même après en avoir reçu. Car, selon l’axiome du sage Locke, il ne saurait y avoir d’injure, oú il n’y a point de propriété37.
Rousseau cita o filósofo Inglês John Locke para quem não é possível
haver conflito entre os homens enquanto não existe a disputa pela propriedade
privada. Tal afirmação parece ser clara para aqueles que estão habituados às
obras de Rousseau principalmente ao Segundo Discurso, pois em sua segunda
parte Rousseau começa dizendo:
Le premier qui, ayant enclos un terrain, s’avisa de dire : Ceci est á moi, et trouva des gens assez simples pour le croire, fut le vrai fondateur de la société civile. Que de crimes, guerres, meurtres, que de misères et d’horreurs n’eût point épargnés au genre humain celui qui, arrachant les pieux ou comblant le fossé, eût crié à ses semblables : gardez-vous d’écouter cet imposteur ;
36
Rousseau não cita Niccolò Machiavelli IL Principe (1469-1527), mas poderia ter citado, pois nele o homem é mau por natureza. A referência aqui, talvez seja a Thomas Hobbes. É importante ressaltarmos que Hobbes não afirma ser o homem mau por natureza, quem o lê assim, é Rousseau. 37 Rousseau. 1992, p, 229.
[...] e, por não ter distinguido suficientemente as ideias e observado como os povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, inúmeras pessoas apresentam-se a concluir ser o homem naturalmente cruel e ter necessidade de polícia para abrandar-se. Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes funesta do home civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, “não haveria afronta se não houvesse propriedade”. Rousseau, 1990, p, 93.
25
vous êtes perdus, si vous oubliez que les fruits sont á tous, et que la terre n’est à personne38.
Na citação acima, Rousseau talvez deixe claro que, o primeiro passo para
a degeneração do homem é dado no momento em que é aceita pelo homem
simples, a criação da propriedade privada, pois, é para Rousseau, a partir
desse momento que começa a submissão do homem pelo próprio homem. Mas
por que o homem não se opõe a tal acontecimento? Não sabe ele que estará
permitindo a criação de um monstro que o devorará no futuro? Parece que o
grande problema se encontra na dificuldade que se tem em identificar onde
está o esconderijo do mal que penetrou na vida social. Tal dificuldade, talvez
possa ser explicada levando em conta a frase de Horácio: “somos enganados
pela aparência do bem” 39.
Já foi visto antes que Rousseau não compartilha do entusiasmo dos
demais iluministas, a saber, que o império da razão possa ser a força motriz
que impulsione a humanidade rumo ao progresso tanto apregoado por seus
pares. Tal descrença no mundo racional leva o leitor a pesquisar o fato dos
sentimentos do autor que parece acreditar nas emoções como ponto de partida
e não do racional como defendiam autores como, por exemplo, D’ Alembert,
Denis Diderot...
Se para Rousseau o império da razão, quando em confronto com o império
das paixões fracassa, não é possível que a tese da arte como um meio pelo
qual se possa corrigir eventual erros morais de um povo se sustente. Mas é
importante ressaltarmos que Rousseau não se refere a todo tipo de arte, mas
aquela cujo fim é agradar o público com finalidades lucrativas como eram os
espetáculos apresentados na França do século XVIII.
38
Ibid. p. 222. O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isso é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “defendei-vos de ouvir esse impostor; estares perdidos se esquecerdes de que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!” [...]. Rousseau, 1990, p, 87. 39
Decipimur specie [Horácio, arts poetica 25].
26
Parece que o nascimento de toda filosofia Rousseaniana se da no
momento em que ele escreve o primeiro Discurso. É nesta obra que o filósofo
denuncia os males que desfigura as sociedades degeneradas. Tais males se
agravam quando acontece o avanço das ciências e das artes que trazem a
moleza aos corações guerreiros, antes habituados a serem defensores de suas
culturas e, sobretudo de suas pátrias. E aqui parece que Rousseau grita com
toda sua força virtuosa para que o homem desperte de sua alienação adquirida
na vida social, mas, parece que já no século XVIII, todos estão surdos, e não
podem mais ouvir o apelo desse locutor40·, Jean-Jacques Rousseau.
Parece que Rousseau no primeiro Discurso tem por objetivo denunciar os
males que degeneram o homem social. Já no segundo discurso, Rousseau
além de reafirmar o conteúdo introduzido no primeiro, anunciar o remédio para
a cura desse mal que deve ser encontrado na própria sociedade que o gerou41.
5. A crítica de Rousseau ao teatro Francês.
O filósofo e matemático D’Alembert, ao escrever o verbete Genebra, fala
da necessidade de se instalar um teatro de comédia naquela cidade42.
Segundo D’ Alembert, o teatro poderia, por exemplo, aperfeiçoar os hábitos e
costumes do povo genebrino, o que do ponto de vista de Rousseau não seria
possível. Isso não significa que o teatro seja um bem, e nem um mal em si
mesmo, mas os maus hábitos dos atores, principalmente dos comediantes, ao
invés de melhorar os hábitos e costumes do seu povo, como defende D’
Alembert, poderiam fazer o contrário, colaborar com a degeneração da
40
Jean Starobinski, em sua obra intitulada “Acuser et Séduire”, chama Jean-Jacques Rousseau de locutor [locuteur], o que nos parece interessante, uma vez que, Rousseau se dirige aqueles que não aceitam a alienação posta a ferros pela sociedade que os escraviza. Assim, parece que, como diz Starobinski, Rousseau tem como objetivo, denunciar os males sociais e conquistar seus leitores através de sua retórica. 41
Voltaremos a este assunto mais tarde, pois o objetivo até aqui, foi expor as fontes talvez inspiradora de Jean-Jacques Rousseau de maneira geral. 42
É importante ressaltarmos que o verbete Genebra de D’Alembert é uma excelente monografia sobre a Genebra do século XVIII. No verbete, o leitor encontra uma descrição do ponto de vista político-geográfico daquela época. Nas Cartas escritas da Montanha, de J-J, Rousseau, traduzidas por Maria Constança Peres Pissarra e Maria das graças, embora não seja sobre o verbete Genebra, o leitor também encontra uma introdução a Genebra da época em que Rousseau escreve a Carta a D’Alembert.
27
sociedade. Em segundo lugar, defende D’ Alembert, os jovens poderiam lutar
contra as leis que proíbem a implantação do teatro em Genebra, pois a seu ver
as leis poderiam ser usadas para corrigir eventuais abusos que por acaso
fossem praticados por algum comediante. Assim, tal instalação segundo
D’Alembert, é benéfica a Genebra, pois além de contribuir para o
aperfeiçoamento dos hábitos e costumes dos cidadãos genebrinos ainda traria
um segundo beneficio, daria dignidade à profissão de comediante que não era
bem vista em Genebra.
Rousseau como cidadão genebrino é radicalmente contra a chegada desse
modelo de teatro que se pretende instalar em sua pátria, sobretudo, do teatro
Francês. Um dos motivos que leva Rousseau a reprovar os espetáculos à
francesa é que estes são filhos de uma cidade já degenerada, além do mais,
observou já no primeiro momento a influência que estes tinham de Voltaire
(1694-1778). Pois Voltaire escrevia tanto tragédias, quanto comédias e na
ocasião encontrava-se em Genebra. Como lembra Franklin de Matos na
introdução à tradução do texto rousseauniano:
Rousseau já tinha razões de sobra para opor-se aos enciclopedistas, dos quais vinha se afastando progressivamente nos últimos anos. Além disso, por trás deles enxergou a sombra ameaçadora de Voltaire, o maior poeta dramático do século, naquele momento instalado nos arredores de Genebra e, quem sabe, pronto a invadi-la á frente de uma tropa de comediantes. Julgando que a pátria estivesse em perigo, o cidadão de Genebra tomou a palavra e em 1758 lançou á face do século mais um de seus estarrecedores paradoxos, desta feita um terrível libelo contra o teatro: a Carta a D’ Alembert sobre os espetáculos43.
Segundo Rousseau havia más intenções por parte de Voltaire, no sentido
de introduzir os costumes depravados já existentes na França, os quais
Rousseau há muito evitava. Sabia da influência que Voltaire exercia sobre
aqueles que tinham interesse na chegada desse teatro francês em Genebra.
Rousseau ficou aflito quando soube por intermédio De Denis Diderot que D’
Alembert, publicaria no sétimo volume da enciclopédia o “Verbete Genebra”
que defenderia a implantação desse teatro em sua pátria. Tal foi o desespero e
43
Rousseau, 1993, pp. 7-8.
28
a pressa de Rousseau em defender sua pátria que, em três semanas compôs a
Carta a D’ Alembert, reprovando este modelo de teatro uma vez que para ele,
Rousseau, este seria inadequado para uma pequena cidade:
Dans La dernière visite que Diderot m’avait faite à l’Ermitage, il m’avait parlé de l’article Genève, que D’Alembert avait mis dans l’Encyclopédie ; il m’avait appris que cet article, concerté avec des Genevois du haut étage, avait pour but l’établissement de la comédie à Genève ; qu’en conséquence les mesures étaient prises, et que cet établissement ne tarderait pas d’avoir lieu. Comme Direrot paraissait trouver tout cela fort bien, qu’il ne doutait pas du succés, et que j’avais avec lui trop d’autres débats pour disputer encore sur cet article, je ne lui dis rien ; mais indigné de tout ce manège de séduction dans ma patrie, j’attendais avec impatience le volume de l’Encyclopédie où était cet article, pour voir s’il n’y aurait pas moyen d’y faire quelque réponse qui pût parer ce malheurex coup. Malgré l’abattement oú j’étais, malgré mes chagrins et mes maux, la rigueur da la saison et l’incommodité de ma nouvelle demeure [...] je composai, dans l’espace de trois semaines, ma Lettre á D’Alembert sur les spectacles44.
Rousseau morou durante certo tempo nesta casinha desmantelada
chamada Ermitage aonde Diderot ia com frequência lhe visitar. Esse lugar
ficava na floresta de Montmorency, o que possibilitava uma tranquilidade por
ficar distante de Paris de onde Rousseau, quando possível, se afastava. Por ter
resolvido morar na pequena casinha afastada da cidade grande Rousseau não
pretendia regressar a Genebra, mas, ao saber que Voltaire se encontrava
morando próximo de Genebra, Rousseau resolve voltar e defender sua pátria,
pois como estamos mostrando, para Rousseau, Voltaire significava um perigo.
Isso porque, Voltaire possuía influência entre os grandes homens de Genebra,
assim, tinha consciência que não seria fácil combatê-lo. Para tanto teria que
ser corajoso e usar de tudo para defender os hábitos e costumes de sua pátria,
44
Rousseau. 2012, pp. 252-253. Na última visita que Diderot me fizera a Ermitage, falara-me do artigo ”Genebra” que d’Alembert pusera na Enciclopédia; dissera-me que esse artigo, combinado com os Genebrinos de alta posição, tinha por fim o estabelecimento da comédia em Genebra; que, em subsequência, estavam tomadas as medidas e não tardada que tivesse lugar esse estabelecimento. Como Diderot parecia aprovar isso tudo, e não duvidada do seu êxito, e eu tinha muitos outros debates a disputar com ele, não lhe disse nada; mas indignado com todo esse manejo de sedução em minha pátria, esperava com impaciência o volume da Enciclopédia onde estava o artigo, para ver se não haveria meio de dar uma resposta que desviasse o desgraçado golpe. Apesar do abatimento em que estava, apesar da minha doença e meus desgostos, do rigor da estação e da pouca comodidade da minha nova moradia [...] compus no espaço de três semanas minha Carta a d’Alembert sobre os espetáculos. Rousseau, 2008, p, 448.
29
pois como já dito, Voltaire é o principal interessado no teatro de comédia que
se pretende instalar em Genebra:
Une chose qui aida beaucoup à me déterminer fut l’établissement de Voltaire auprès de Genève. Je compris que cet homme y ferait révolution ; que j’irais retrouver dans ma patrie le ton, les airs, les moeurs qui me chassaient de Paris, qu’il me faudrait batailler sans cesse, et que n’aurais d’autre choix dans ma conduite que celui d’être un pédant insupportable, ou un lâche et mauvais citoyen. Dès lors je tins Genève perdue, et je ne me trompai pas. J’aurais dû peut-être aller faire tête à l’orage, si je m’en étais senti le talent. Mais qu’eussé-je fait seul, timide et parlant très mal, contre un homme arrogant, opulent, étayé du crédit des grands, d’une brillante faconde, et déjà l’idole des femmes et des jeunes gens? Je craignis d’exposer inutilement au péril mon courage ; je n’écoutai que mon naturel paisible, que mon amour du repos, qui, s’il me trompa, me trompe encore aujourd’hui sur le même article. En me retirant à Genève, j’aurais pu m’épargner de grands malhers à moi- même ; mais je doute qu’ avec tout mon zèle ardent et patriotique, j’eusse fait rien de grand et d’utile pour mon pays45.
6. A defesa da cultura popular
Então, qual é tipo de espetáculo defendido por Rousseau, que deveria
existir em uma pequena República como a de Genebra46? Os espetáculos que
devem ser aceitos em uma pequena cidade, segundo Rousseau, são aqueles
que possuem características das festas populares. Nestas, há um número
grande de pessoas que se divertem ao ar livre, os autores são também atores.
Não sendo assim, meros personagens que agem cegamente decorando
45
Ibid. pp. 142-143. Um fato que muito contribuiu para que eu me resolvesse foi Voltaire ter-se instalado perto de Genebra. Compreendi que aquele homem faria revolução por lá; que, em minha pátria, eu iria encontra o tom, os ares, os costumes que me expulsaram de Paris; que me seria preciso lutar sem cessar, e que eu teria de escolher entre ser um pedante insuportável ou um covarde e mau cidadão. Desde então considerei Genebra perdida, e não me enganei. Talvez eu devesse ir afrontar a tempestade, se sentisse que dava para isso. Mas que faria eu, só, tímido, falando dificilmente, contra um homem arrogante, opulento, protegido pelo crédito dos grandes, de palavras brilhantes, e já o ídolo das mulheres e dos rapazes? Receei expor inutilmente minha coragem ao perigo; e só prestei ouvidos a minha natureza plácida, ao meu amor do sossego, que, se me enganaram, ainda hoje me enganam a esse respeito. Indo para Genebra, talvez eu me houvesse podido poupar a grandes desgraças; mas duvido que, com todo o meu zelo ardente e patriótico, pudesse fazer alguma coisa útil e grande por meu país. Rousseau, 2008, p, 362.
46
No momento em que Rousseau escreve como ele mesmo diz: “Genève ne contient pas vingt-quatre mille ames” [...]. Ver lettre á D’Alembert, 2003, p. 147.
30
apenas o conteúdo do texto a ser representado. Os espetáculos se fazem
necessários em uma república, ali:
Quoi! ne faut-il donc aucun spectacle dans une République ? Au contraire, il en faut beaucoup. C’est dans les Républiques qu’ils sont nés, c’est dans leur sein qu’ on les voit briller avec un vériteble air de fête. A quels peuples convient-il mieux de s’assembler souvent et de former entre eux les doux liens du plaisir et de la joie, qu’ à ceux qui ont tant de raisons de s’ aimer et de rester à jamais unis ? Nous avons déjà plusieurs de ces fêtes publiques ; ayons-en davantage encore, je n’ en serai que plus charmé47
Fica claro ao leitor da Carta, que não são os espetáculos em geral o alvo
da crítica de Rousseau, mas um tipo deles que encerra um pequeno número de
espectadores em salas escuras para ali assistirem a representação artificial de
uma peça:
Mais n’adoptons point ces spectacles exclusifs qui renferment tristement un petit nombre de gens dans un antre obscur ; qui les tiennent craintifs et immobiles dans le silence et l’inaction ; qui n’ offrent aux yeux que cloisons, que pointes de fer, que soldats, qu’ affligeantes images de la servitude et de l’inégalité 48.
Rousseau reafirma mais uma vez, sua preferência pelas festas populares,
a seu ver, as únicas que podem proporcionar alegria e amizade entre o povo.
Mas por que as festas ao ar livre possuem essa função? Como já vimos em
momentos anteriores, para Rousseau, a relação homem natureza é
fundamental na vida daqueles que amam a liberdade e este modelo de teatro
vindo da grande cidade acaba, parece, com qualquer sonho de liberdade, pois
47
Rousseau, 2003, pp. 181-182. [...] deve haver muitos deles. Nas repúblicas eles nasceram nelas os vemos brilhar com um real ar de festa. A que povo convém mais reunir muitas vezes seus cidadãos e travar entre eles os doces laços de prazer e de alegria, do que aos que têm tantas razões para se amarem e para permanecerem unidos para sempre? Já temos os prazeres dessas festas públicas; tenhamo-nos em ainda maior número, e ficarei ainda mais encantado. (Rousseau. 1993, P.128). 48
Ibid. p, 182. Neste tipo de espetáculo, havia obstáculos que separavam a plateia da cena. Além disso, havia soldados, cujo objetivo era proteger tanto o teatro quanto a classe dominante. Esse modelo como vimos, não agrada a Jean-Jacques Rousseau. Mas não adotemos esses espetáculos exclusivos que enceram tristemente um pequeno número de pessoas num antro escuro; que as mantém as e imóveis no silêncio da nação; que só oferecem aos olhos biombos, pontas de ferros, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade. Rousseau, 1993, p, 128.
31
como vimos acima, esses espetáculos são extremamente vigiados e, além
disso, eles separam de maneira radical o palco e da plateia, o que ao ver do
filósofo, reafirma a servidão e a desigualdade entre os homens. Logo, são
impróprios para um povo livre. Salinas nos ajuda a entender melhor esta
questão:
[...] trata-se aqui da apoteose da representação, da cena ilusionista que separa radicalmente o palco e a plateia; como se pode observar, é o grau máximo de afastamento em relação à unidade da natureza. No extremo oposto, dá-se aproximação máxima: com as festas cívicas, espartanas ou Genebrinas, estamos diante de uma espécie de grau zero da representação, pois aqui cada espectador é ao mesmo tempo ator e, portanto, o próprio espetáculo49.
Essa atitude passiva do espectador, diante desse modelo de espetáculos
importados para diferentes povos é alvo de varias interpretações de estudiosos
da obra de Rousseau. Dentre esses estudiosos, se encontra Jacira de Freitas.
Em um momento do livro intitulado “Política e festa popular em Rousseau: a
recusa da representação” a autora levanta a seguinte hipótese: seria possível a
comparação entre a ideia de passividade do espectador descrita por Rousseau
e aquela existente em Kant, na Crítica da Razão Pura, onde o filósofo Alemão
inverte a ordem do conhecer citando Copérnico. Após elaborar a questão,
Jacira sustenta que neste sentido a comparação talvez, seja possível. Como se
pode conferir a seguir:
Seria possível falar em termos de uma “revolução copernicana” também em Rousseau? Talvez. Mas para ele, é na teoria da sociedade, do homem vivendo em sociedade, que vamos encontrar o solo que explica o funcionamento das relações entre
49
Salinas. 1997, p, 14. Segundo Salinas, “a natureza para Rousseau é como Deus para Kant, é, sobretudo uma ideia reguladora, que orienta nossas observações, e á qual nossa finitude nunca poderá dar um conteúdo afetivo. Além disso, nem toda representação será capaz de tal apreensão, pois esta dependerá do grau de aproximação de cada um em relação à natureza”. Ibid. p, 11. Além da contribuição aqui de Luiz Roberto Salinas, vale relembrarmos o já mencionado livro de Jacira de Freitas, “Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação”. Por exemplo, na nota 41, o leitor encontra uma explicação precisa sobre a expressão ‘cena’ a italiana que reproduziremos parcialmente a seguir: “A expressão “cena à italiana” é aqui utilizada como sinônimo de “palco à italiana”. Trata-se de uma série de inovações introduzidas pelo Teatro San Cassiano- e, posteriormente, adotadas pelas demais salas venezianas-, que geraram uma transformação radical do ponto de vista cenográfico, mas cujas conseqüências se fariam sentir no campo mais amplo da concepção estética. As mudanças daí resultantes viriam a influenciar não somente a Ópera, mas os espetáculos teatrais em geral”. [...].
32
o nosso conhecimento e os objetos. Nos termos do pensamento de Rousseau, a revolução copernicana altamente desejável é aquela que supõe a transformação que faria do espectador imóvel e solitário um elemento constitutivo e construtor do espetáculo. Essa revolução só poderia efetivamente realizar-se como revolução política e moral50.
Para que nos seja possível compreender a reprovação de Rousseau ao
teatro importado de Paris que, já era na ocasião uma grande cidade, parece
ser necessário observarmos a diferença apontada por Rousseau entre: amor
de si e amor próprio. A partir de agora, vamos tentar entender o que isso
significa e em que consiste tal diferença. Segundo Rousseau, no estado de
natureza, o homem possui a piedade natural. Essa piedade possibilita o
indivíduo coloca-se no lugar do outro, ou seja, o homem sofre ao presenciar
qualquer forma de injustiça cometida a qualquer um de sua espécie. Esse amor
de si, (hipotético), talvez, possua em Rousseau um sentido “cristão”. Não diz o
cristianismo que “devemos fazer ao outro, aquilo que gostaríamos que este
fizesse a nós mesmos”? Mas, quem é o outro no sentido cristão senão o
próprio eu? A piedade natural usada por Rousseau pode ser interpretada neste
sentido. Tendo em vista que, esta piedade natural talvez, seja inata, existe em
qualquer animal e os leva a zelar por sua própria existência. O amor próprio,
por sua vez, segundo Rousseau, é uma paixão, um mascaramento, uma
aparência da “verdade”, isso porque o amor próprio é fruto do homem social já
degenerado pelos vícios existentes nesta sociedade, arrogante, e narcisista
que só olha para seus próprios interesses, o que era para Rousseau, é
impossível existir no estado de natureza, que faz todos os homens iguais:
50
FREITAS, 2003, P, 45. A autora diz estar se referindo a Salinas, quando este cita Kant e em particular o segundo prefácio da Crítica da Razão Pura onde Kant declara: ‘até agora se supôs que todo o nosso conhecimento deveria regula-se pelos objetos; porém todas as tentativas de estabelecer algo a priori sobre ele através de conceitos, por meios dos quais o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob essa pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da metafísica admitindo que os objetos devam regular-se pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori deles, o qual deve estabelecer algo sobre os objetos antes de eles nos serem dados. O mesmo acontece com os primeiros pensamentos de Copérnico, que, depois de não ter conseguido ir adiante com a explicação dos movimentos celestes ao admitir que todo o corpo de astros girava em torno do espectador , tentou ver se não seria melhor deixar que o espectador se movesse em torno dos astros imóveis.’ (Kant, E. Coleção Os pensadores, p. 12. A tradução de Valério Rohden).
33
Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo; são duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra. Uma vez isso entendido, afirmo que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe [...] 51.
Rousseau deixa claro acima que, o estado de natureza é oposto ao
estado social, pois, o homem quando vivia em seu meio natural, não possuía
avareza, ódio e nem amor, nele o homem se comovia com o sofrimento de seu
semelhante. O estado social, por sua vez, despertou no individuo o desejo de
ser sempre superior ao outro, outro que na verdade nada mais é do que ele
mesmo, mas por viver em uma sociedade corrompida. Este homem encontra-
se cego de tal modo, que não consegue enxergar esse fato. Assim, o amor de
si opõe-se ao amor-próprio que é por sua natureza, característico do homem
que vive em sociedade. Esse amor é egoísta não sendo capaz de provocar
qualquer tipo de sentimento. Mas é importante ressaltarmos que também há no
estado social essa “piedade”, porém, ela é apenas aparência, uma vez que o
homem ao viver em sociedade, conviver com o mundo das máscaras: agora, o
que importa não é ser justo, mas parecer sê-lo.
7. As leis de Genebra podem corrigir os maus hábitos?
Já vimos que para D’ Alembert, o modelo Francês de teatro era conveniente
para Genebra, ele argumenta que as leis de Genebra que proibiam a
implantação de teatros na cidade fossem revogadas. Para essa finalidade, D’
Alembert convida os jovens a lutarem contra essa proibição, uma vez que tais
leis poderiam ser usadas a favor do teatro. O motivo da proibição por parte das
autoridades de Genebra seria porque o gosto pela libertinagem e pelo luxo por
parte dos comediantes, ao invés de corrigir os maus costumes, poderiam levar
os jovens a se corromperem:
51
Rousseau. 1999, pp. 146-147.
34
Não se toleram comédias em Genebra; não que se desaprovem os espetáculos em si mesmo; mas teme-se, dizem, o gosto pelos enfeites, pela dissipação e pela libertinagem que as companhias espalham pela juventude. No entanto, não seria possível remediar esse inconveniente com leis severas e bem executadas sobre a conduta dos comediantes? Com isso, Genebra teria espetáculos e bons costumes, e gozaria das vantagens de ambos; as representações teatrais educariam o gosto dos cidadãos, e lhes dariam uma finura de tato, uma delicadeza de sentimento muito difícil de adquirir sem esse auxílio [...]. D’Alembert, 1993, p, 15352.
D’Alembert continua e ressalta que, uma República esclarecida como é
Genebra poderia aceitar os espetáculos em seu território, assim, daria
dignidade a profissão de comediante tão necessária ao progresso e a artes.
D’Alembert defende ainda, que o preconceito existente contra os comediantes
por parte de Genebra impede que ali se enxergue o lado bom dessa profissão:
Uma outra consideração, digna de uma República tão sábia e tão esclarecida, deveria talvez levá-la a permitir os espetáculos. O preconceito bárbaro contra a profissão de comediante, a espécie de aviltamento a que rebaixamos esses homens tão necessários ao progresso e ao mantimento das artes, é certamente uma das principais causas que contribuem para o desregramento que neles censuramos; eles procuram nos prazeres uma compensação para a estima que sua condição não pode não podem obter. D’Alembert, 1993, p, 153.
Rousseau, no entanto, discorda nestes pontos ressaltados por D’
Alembert, e defende que as leis de Genebra nada podem fazem no sentido de
corrigir os maus exemplos apresentado neste modelo de teatro. Tal objeção se
sustenta quando Rousseau argumenta que o teatro possui leis próprias, sendo
assim, as leis gerais não existem no interior do teatro:
Je ne sache que trois sortes d’instruments, à l’ aide desquels on puisse agir sur les moeurs d’un peuple ; savoir, la force des lois ; l’empire de l’opinion, et l’attrait du plaisir. Or les lois n’ ont nul accès au théâtre, dont la moindre contrainte serait une peine et non pas un amusement. L’opinion n’en dépend point, puisqu’ au lieu de faire la loi au public, le théâtre la reçoit de lui ; et quant au
52
Ver Carta a D’ Alembert. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Ed. Da UNICAMP Col. Repertório, 1993. Veremos ao longo desse texto que, essa delicadeza defendida por D’Alembert, é combatida com rigor por J-J, Rousseau.
35
plaiair qu’ on y peut prendre, tout son effet est de nous y ramener plus souvent53.
Além de Rousseau sustentar que as leis não podem corrigir as peças
teatrais que fossem em Genebra apresentadas, caso acontecesse à
implantação do teatro proposto por D’ Alembert, ainda há um ponto ressaltado
por Rousseau muito importante, a saber, a questão da tragédia e da comédia.
Qual é segundo Rousseau o problema da tragédia? A tragédia pinta um
mundo fictício, ela apresenta os objetos melhores do que eles realmente são54.
Assim, o homem apresentado neste tipo de peça, está muito distante do
homem “real”. Ele é muito superior, talvez, “um super-homem”. Então, se o que
se vê na tragédia é apenas uma ficção, um homem que não parece com o real,
não é possível para Rousseau que esta tenha função educativa e possa
despertar o interesse daquele que assiste a esse tipo de espetáculo:
Ainsi tout nous force d’abandonner cette vaine idée de perfection qu’on nous veut donner de la forme des spectacles, dirigés vers l’utilité publique. C’est une erreur, disait le grave Muralt55, d’espérer qu’on y montre fidèlement les véritables rapports des choses : car, en général, le poète ne peut qu’altérer ces rapports, pour les accomoder au goût du peuple. Dans le comique il les diminue et les met au-dessous de l’homme ; dans le tragique, il les étend pour les rendre héroiques, et met au-dessus de l’humanité. Ainsi jamais ils ne sont à sa mesure et toujours nous voyons au théâtre d’autres êtres que nos semblables56.
53
Rousseau. 2003, p. 70. Só conheço três tipos de meios com que podemos agir sobre os costumes de um povo; são eles: a força das leis, o império da opinião e a do prazer. Ora, as leis não têm nenhum acesso ao teatro, cujo menor constrangimento seria um sofrimento e não uma diversão. A opinião não depende do teatro, já que em vez de ditar a lei ao público, o teatro a recebe dele; e enquanto ao prazer que ali podemos obter, todo seu efeito consiste em nos fazer voltar ao espetáculo com maior frequência. Rousseau, 1993, p, 44. 54
A crítica aqui é a ideia defendida por Aristóteles na poetica. Na Carta a D’ Alembert, 1999, p, 48, Rousseau diz: “Acrescentarei que esta diferença é tão verdadeira e tão reconhecida que Aristóteles faz dela uma regra em sua poética”. “Comoedia enim deteriores. Tragoedia meliores quam nunc sunt imitari conantur”. 55
« Louis Béat Muralt (1665-1749). Officier au service de la France, originaire de Berne, auteur de Lettres sur les Anglais et sur les Français (1725) qui eurent une grande influence sur Rousseau. Le propo rapporté ici se trouve dans la » « V Lettre sur les Franças ». ( ver Rousseau, 2003. Nota 3). 56
Ibid. p. 75. Assim, tudo nos força a abandonar essa vã ideia de perfeição que nos querem impingir sobre a forma dos espetáculos, dirigidos para a utilidade pública. É um erro, dizia o grave muralt, esperar que se mostrem fielmente nos espetáculos as verdadeiras relações entre as coisas: pois, em geral, o poeta só pode degradar essas relações, para fazê-las concordar com o gosto do povo. No cômico, ela as diminui e as coloca abaixo do homem; no trágico, ele as estica para
36
Rousseau continua adiante explicitando os exageros apresentados na
tragédia. Já vimos em momentos anteriores que, uma das preocupações que
leva Rousseau a escrever a Carta a D’ Alembert é o filosofo e poeta Voltaire,
isso porque, Voltaire escrevia peças cômicas e trágicas. Assim, Rousseau
mostra alguns exemplos apresentados nas peças de autoria de Voltaire, como
se pode conferir a seguir:
Atrée et Mahomet n’ ont pas même la faible ressource du dénouement. Le monstre qui sert de héros à chacune de ces deux pièce achève paisiblement ses forfaits, en jouit, et l’un des deux le dit en propres termes au dernier vers de la tragédie57 :
« Et je jouis enfin du prix de mes forfaits ».
Após apresentar esse exemplo extraído da peça de Voltaire (Maomé),
citada acima, Rousseau pergunta que exemplo se pode tirar de uma cena
trágica como esta? Onde os crimes aparecem como uma vitória para aquele
que os comete? Ora, a proposta do teatro não é influenciar o povo Genebrino
no sentido de melhorar seus hábitos e costumes? Podem eles ser
aperfeiçoados por meios de crimes bárbaros apresentados na tragédia, onde
estes crimes são exaltados? Rousseau diz que gostaria que tais crimes não
fossem vistos com otimismo por parte daqueles que os presenciem:
Je veux bien supposer que les spectateurs, renvoyés avec cette belle maxime, n’ en concluront pas que le crime a donc un prix
torná-los heroicos, e os coloca acima da humanidade. Assim, eles nunca estão na medida, e sempre vemos no teatro seres diferentes de nossos semelhantes. (Rousseau, 1993, p, 48). 57
Ibid., p. 78. Atreu e Maomé não têm nem o fraco recurso do desfecho. O monstro que serve de herói a cada uma dessas duas peças, termina tranquilamente seus crimes, saboreia-os e um dos dois o diz com suas próprias palavras no último verso da tragédia: E gozo enfim do premio de meus crimes. Rousseau, 1993, p, 50.
37
de plaisir et de jouissance ; mais je demande enfin de quoi leur aura profité la pièce où cette maxima est mise en exemple58?
Então, o mais absurdo de tudo que se apresenta na tragédia, observa
Rousseau, não é o fato de serem apresentados criminosos como se estes
fossem heróis, mas a defesa que se faz quando a possibilidade destes crimes
despertarem o desejo da virtude naqueles que os assistem:
Une autre considération qui tend à justifier cette pièce, c’est qu’il n’est pas seulement question d’étaler des forfaits, mais les forfaits du fanatisme en particulier, pour apprendre au peuple à le connaître et s’en défendre. Par malheur, de pareils soins sont très inutiles, et ne sont pas toujours sans danger. Le fanatisme n’est pas une erreur, mais une fureur aveugle et stupide que la raison ne retient jamais. L’unique secret pour l’empêcher de naître est de contenir ceux qui l’excitent. De plus, je crains bien, par rapport à Mahomet, qu’aux yeux des spectateurs, sa grandeur d’âme ne diminue beaucoup l’atrocité de ses crimes[...]59.
Na citação acima, Rousseau continua mostrando os perigos existentes
neste modelo de peça onde os crimes são apresentados. A seu ver, se não se
tem certeza que tais peças possam purificar os costumes dos Genebrinos, o
melhor que se pode fazer é rejeitá-las antes mesmo que estes cheguem ao
conhecimento do público. Ora, para que correr o risco de ser enganado pelas
aparências existentes nestes espetáculos cujo objetivo é agradar o público?
Rousseau diz temer ainda que o criminoso não passe por inocente uma vez
que os crimes cometidos por Maomé podem ser escondidos, se o público for
persuadido por sua aparente grandeza de espírito.
58
Ibid., p. 78. Gostaria muito de supor que os espectadores, despedidos com essa bela máxima, não concluirão daí que o crime tenha um prêmio de prazer e de gozo; mas eu pergunto, enfim, de que lhes terá servido a peça onde essa máxima é apresentada como exemplo. Rousseau, 1993. P, 50. 59
Ibid. p. 78-80. Rousseau já diz neste momento que, a razão não é suficiente para conter os abusos cometidos neste modelo de espetáculo a Francesa. Outra consideração que tende a justificar essa peça é que não se trata somente de exibir crimes, e sim os crimes do fanatismo, em particular, para ensinar o povo a conhecê-lo e dele se defender. Infelizmente, tais cuidados são inutilíssimos e nem sempre isentos de perigos. O fanatismo não é um erro, mas um furor cego e estúpido que a razão não modera jamais. O único segredo para impedi-lo de nascer é conter quem o excita. Além disso, temo, com relação a Maomé, que aos olhos dos espectadores sua grandeza de alma não diminua muito a atrocidade de seus crimes [...]. Rousseau, 1993, p, 50.
38
Um dos pontos criticados por Rousseau na tragédia francesa é a questão
do amor. O filósofo observa a maneira com a qual este é apresentado em tais
peças e, mais uma vez a referência é a peça de Voltaire, Atrée. Tendo em vista
que estes espetáculos, diz Rousseau, copiam os hábitos dos antigos romanos,
eles deveriam também isentar as questões amorosas do julgamento do público,
pois as cenas de amor têm como objetivo persuadir o público que nada pode
fazer para contê-las. O exemplo dado por Rousseau é do filósofo estoico
Sêneca que, em suas peças bane o amor da cena60:
Sénèque n’a point mis d’amour dans la sienne, et puisque l’auteur moderne a pu se résoudre à l’imiter dans tout le reste, il aurait bien dû l’miter encore en cela. Assurément il faut avoir un coeur bien flexible pour souffrir des entretiens galants à côté des scènes d’Atrée61.
Continuando em sua análise da tragédia francesa, Rousseau fala dos
crimes, a seu ver, absurdos, presentes, por exemplo, em Édipo, Medeia e
Fedra. No Édipo, o filho sem saber mata seu pai e casa com a própria mãe,
tem filhos com ela e é pai e irmão ao mesmo tempo. Já em Medeia, tem-se a
figura da mãe má e desfigurada que assassina os próprios filhos. Em peças
dessa natureza, diz Rousseau, se assiste a massacres tão cruéis quanto
aqueles dos gladiadores nas arenas romanas. A questão da liberdade do
homem também está em jogo neste modelo de peça, pois, como são os
deuses que os conduzem, os homens não podem escolher. Então, pergunta
Rousseau, que lição de virtude se pode aprender em apresentações como
estas? Vejamos a citação a seguir:
Qu’ apprend-on dans Phèdre et dans Edipe, sinon que l’ homme n’ est libre, et que le ciel le punit des crimes qu’ il lui fait commettre? Qu’ apprend-on dans Médée, si ce n’ est jusqu’ oú la fureur de la jalousie peut rendre une mère cruelle et dénaturée?
60
Para D’ Alembert, a questão do amor e da violência são os pontos principais objetados por Rousseau em sua reprovação ao teatro Frances. Do ponto de vista de D’ Alembert, Rousseau exagera nestes dois pontos. 61
Rousseau, 2003, p. 80. Sêneca não pôs amor na sua peça, e já que o autor moderno resolveu imitá-lo em todo o resto, deveria tê-lo imitado também neste ponto. Com certeza é preciso ter um coração bastante flexível para suportar conversas galantes lado a lado com as cenas de Atreu. Idem, p, 50.
39
Suivez la plupart des pièces du théâtre Français : vous trouverez presque dans toutes des monstres abominables [...] L’un tue son père, épouse sa mère, et se trouve le frére de ses enfants. Un autre force un fils d’ égorger son père. Un troisième fait boire au père le sang de son fils. On frissonne à la seule idée des horreurs dont on pare la scène française, pour l’ amusement du peuple le plus doux et le plus humain qui soit sur la terre ! Non... je le soutiens, et, et j’ en atteste l’ effroi des lecteurs, les massacres des gladiateurs n’ étaient pas si barbares que ces affreux spectacles62
8. Rousseau objeta a tese Aristotélica.
Como estamos vendo neste texto, a Carta escrita por Rousseau a D’
Alembert é uma crítica contra o teatro, porém, as acusações referem-se ao
teatro cujo modelo é francês. É importante ressaltarmos que este teatro retoma
a ideia de catarse defendida por Aristóteles. Assim, ao reprovar a tragédia e a
comédia, Rousseau inevitavelmente trava um duelo contra a obra de
Aristóteles. Mas qual é essa obra? A oposição é contra a Poética, pois, nela
Aristóteles trata acerca desse assunto.
Em sua reprovação Rousseau argumenta da seguinte forma:
Para Aristóteles, por meio da representação trágica, os atores imitam as
desventuras dos heróis trágicos que por terem escolhido caminhos errados
passam da felicidade para infelicidade. A representação, segundo Aristóteles,
provoca na plateia sentimentos de terror e piedade, purgando (kárthasis63)
desta forma as emoções humanas:
62
Ibid. pp-82-83. Que aprendemos em Fedra e no Édipo, senão que o homem não é livre e que o céu o pune dos crimes que o faz cometer? Que aprendemos em Medéia, a não ser até que ponto o furor dos ciúmes pode tornar cruel e desnaturada uma mãe? Examine V.Sa. A maior parte das peças do teatro francesas: encontrará em quase todas monstros abomináveis [...] Um mata seu pai, casa-se com a mãe e se vê irmão de seus filhos. Outro força a filha a degolar o pai. Um terceiro faz o pai beber o sangue do filho. Arrepiamo-nos diante da mera ideia dos horrores com que se enfeitam a cena francesa, para diversão do povo mais doce e mais humano que existe na terra! Não... eu o afirmo e o confirmo com o pavor dos leitores, os massacres dos gladiadores não eram tão bárbaros quanto esses horríveis espetáculos. Rousseau, 1993, p, 53. 63 Catarse (do grego κάϑαρσις, kátharsis, “purificação”, derivado de καϑαίρω “purificar”) é uma
palavra utilizada em diversos contextos. Na tragédia é usada no sentido de: "purificação", "evacuação" ou "purgação". Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama. ).
40
A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada; distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, ter por resultado a catarse dessas emoções (Aristóteles. 1999. p. 43).
Rousseau coloca em questão a concepção aristotélica sobre a tragédia,
concepção que fundamenta o modelo Francês o qual combate. O homem
social segundo Rousseau, não é capaz de comover-se com o sofrimento do
outro; em sua sociedade reina a hipocrisia e o amor-próprio, logo, temos o
oposto daquilo que havia no estado de natureza. Então, como pode a tragédia
despertar a piedade no público? Rousseau diz ter dificuldade em aceitar essa
regra: » je sais que la poétique du théâtre prétend faire tout le contraire, et
purger les passions en les excitant : mais j’ai peine à bien concevoir cette
régle ».( Rousseau, 2003, p. 68).
Continuando em sua análise do trágico, Rousseau ilustra o caráter
contraditório desta proposta com o exemplo do cruel Sila que se mascarava no
teatro:
Ainsi pleurait le sanguinaire Sylla au récit des maux qu’ il n’ avait pas lui-même. Ainsi se cachait le tyran de Phèdre au spectacle, de peur qu’ on ne le vît gémir avec Andromaque et Priam, tandis qu’ écoutait sans émotion les cris de tant d’ infortunés qu’ on égorgeait tous les jours par ses ordres64.
Em segundo lugar é necessário observarmos que, segundo Rousseau,
para que a tragédia pudesse purgar as paixões a razão teria que “mandar” no
teatro, mas para Rousseau isso não é possível. Como nos mostra a seguir
Franklin de Matos na introdução a Carta a D’Alembert:
A partir da autoridade de Aristóteles, a poetica do teatro sustenta efeitos benéficos da tragédia ao afirmar que, por intermédio do terror, ela leva o espectador a experimentar o sentimento da piedade. “seja”, rebate Rousseau, “mas que piedade é essa”? Uma emoção passageira e vã, que não dura mais que a ilusão
64
Rousseau. 2003, p. 72-73. Assim chorava o sanguinário Sila ao ouvir a narrativa dos males que ele próprio não cometera. Assim se escondia o tirano de Fedra diante do espetáculo, de modo de que o vissem gemer com Andrômaca e Príamo, enquanto ouvia sem emoção os gritos de tantos desgraçados que eram degolados todos os dias por ordem sua. Rousseau. 1993, P. 46.
41
que a produziu; um resto de sentimento natural logo sufocado pelas paixões; uma piedade estéril que se nutri de algumas lágrimas, e nunca produziu o menor ato de humanidade. Assim, a piedade que se experimenta no teatro, passageira e estéril, é apenas uma sombra da piedade natural [...] Não é sabido que todas as paixões são irmãs, que uma só basta para excitar outras mil, e que combatê-las uma pela outra não passa de um meio de tornar o coração mais sensível a todas? O único instrumento capaz de purgá-las é a razão e eu já disse que a razão não tem nenhum efeito no teatro. (Rousseau. 1993, p, 16).
Em terceiro lugar Rousseau reprova a ideia que o homem seja imitador por
natureza, ideia essa defendida por Aristóteles na poética.
Ao homem é natural imitar desde a infância e nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos e todos os homens sentem prazer em imitar. (Aristóteles. 1999, p. 40).
Relembremos que não se pode confundir o homem natural do qual fala
Rousseau com o homem social que temos a nossa frente. Essa resposta já foi
dada por Rousseau aos filósofos que fazem uma má interpretação do estado
de natureza como, por exemplo, Hobbes. Rousseau diz ainda que, os filósofos,
contam sobre o estado de natureza, as mesmas mentiras (sofismas) 65 que os
políticos falam sobre o amor à liberdade: “Les politiques font sur l’ amour de la
liberte les mêmes sophismes que les philosophes ont faits sur l’ état de nature”
[...]. (Rousseau. 1993, p, 213).
9. Considerações acerca da comédia
65
A palavra sofista (do grego sophistes) deriva das palavras Sophia e sophos, que significam "sabedoria" ou "sábio" desde os tempos de Homero e foi originalmente usada para descrever a experiência em um conhecimento ou ofício em particular. Aos poucos, porém, a palavra também veio a denotar sabedoria geral e especialmente sabedoria sobre os assuntos humanos (por exemplo, política, ética ou gestão doméstica). Este foi o significado atribuído ao grego Sete Sábios do 7º e 6º séculos a.C. (como Sólon e Tales), e foi este o significado que apareceu nas histórias de Heródoto . Diz Platão que os sofistas não se preocupam em absoluto com obter a solução certa, mas desejam unicamente conseguir que todos os ouvintes estejam de acordo com eles.
42
Nestas últimas paginas, observou-se que Rousseau rejeita a tragédia,o
motivo, segundo o filósofo, deve-se ao fato desta apresentar um homem muito
superior ao comum. Além disso, Rousseau também apresentou seu
descontentamento com a comédia. O problema da comédia, segundo
Rousseau, está no fato desta ridicularizar o homem uma vez que as
personagens são rebaixadas. Então, se na tragédia, o personagem é muito
superior, na comédia é muito inferior. Assim, tanto no primeiro caso, quanto no
segundo, tem-se uma situação que se distância muito da realidade. Porém,
ainda não foram apresentadas as análises que Rousseau faz acerca da
comédia, assim, pretende-se fazê-la a partir desse momento.
Mas, antes de começarmos a mostrar as considerações rousseaunianas
sobre a comédia, parece ser necessário dizermos que Rousseau é um
apaixonado pelo teatro, e que ele não é o único no século XVIII. O teatro na
época em que Rousseau vive é objeto de admiração por aqueles amantes da
cultura em geral. É importante ressaltarmos que, antes do século XVIII, o teatro
já havia sido o meio pelo qual os filósofos transmitiam suas ideias sobre o que
pensavam do mundo em que viviam e sobre si mesmos. Havia grandes
homens para os quais o mundo era como um palco teatral de onde talvez, cada
ator, e autor possuem seu papel a ser apresentado e desenvolvido no grande
espetáculo do teatro da vida. Um desses gênios parece ser sem dúvida
Skakespeare, pois via o mundo como se este fosse um teatro. Como bem
apresenta Salinas:
O mundo como “cena” e o teatro como figuração do objeto a ser desvendado pelo ato de conhecimento: eis-nos diante de lugares comuns frequentes na retórica filosófica ao longo do século XVIII. Sua incidência constante no texto de Rousseau não é nem original, nem motivo para espanto. Mas o leitor do Emílio ou da Carta a D’ Alembert- ou o admirador do O adivinho da aldeia-logo desconfia não se achar, nesse caso, simplesmente diante de um cacoete da moda. Se nos compenetramos, além disso, na verdadeira paixão e fascínio de Rousseau pelo teatro, que é certamente para ele, assim como para outros “grandes espíritos do século”, uma “experiência decisiva” ficamos persuadidos de que o emprego da analogia não pode ser acidental, arbitrário ou inconsequente. [...] a relação do autor com o tema não é nem episódica, nem superficial, achando-se, ao contrario, inscrita no interior de uma complexa estrutura paradoxal e mantendo uma
43
conexão profunda com o núcleo mais essencial desse pensamento66.
Parece ficar claro na citação acima que Rousseau também é um homem
de teatro. Mas não seria uma contradição sendo Rousseau apaixonado pelo
teatro criticá-lo e ainda compor um texto, a Carta a D’ Alembert, cujo objetivo é
criticar o teatro com extremo rigor? Repetimos que o objeto de critica de
Rousseau não é o teatro de maneira geral, mas, como já visto, as objeções
referem-se ao modelo francês proposto para Genebra sem que fosse levada
em consideração a questão das diferenças existentes em cada povo. Ora,
sendo Rousseau um admirador, frequentador e conhecedor das peças teatrais,
teria assim, propriedade para falar sobre elas. Como se pode observar em um
de seus comentários sobre uma peça que assistiu com D’ Alembert:
Rappelez-vous, Monsier, une piéce à laquelle je crois me souvenir d’avoir assisté avec vous, il y a quelques années, et qui nous fit un plaisir auquel nous nous attendions peu, soit qu’ en effet l’ auteur y eût mis plus de beautés théâtrales que nous n’ avions pensé, soit que l’ actrice prêtât son charme ordinaire au rôle qu’ elle faisait valoir. Je veux parler de Bérénice de Racine. Dans quelle disposition d’ espirit le spectateur voit-il commencer cette pièce ? Dans un sentiment de mépris pour la faiblesse d’ un empereur et d’ un Roman, qui balance comme le dernier des hommes entre sa maîtresse et son devoir67 [...].
Rousseau segue em seu diálogo, dirigindo-se a D’ Alembert, mostrando
como mesmo os papeis masculinos de boa qualidade são anulados em peças
dessa natureza. O motivo do fracasso masculino parece acontecer, devido o
poder de fascinação, de sedução, de persuasão e de dominação que possuía a
mulher sobre o homem. Assim, diz Rousseau, o tema do amor impera neste
Salinas. 1997, pp. 22-23. Na nota II da pagina 22, Salinas diz: “mas também já desde os séculos anteriores. Sem esquecer-se de Shakespere, para quem o “mundo todo é um teatro”, lembremo-nos do Discurso do Método: “E em todos os nove anos seguintes- diz Descartes-não fiz outra coisa além de rolar aqui e ali no mundo, esforçando-me por ser espectador de preferência ator em todas as comédias que nele se desempenham” [...]. 67
Rousseau, 2003, pp, 103-104. Lembra-se V. Sa. de uma peça à qual creio recordar-me ter assistido com V. Sa., há alguns anos, e que nos proporcionou um prazer que pouco esperávamos, ou porque de fato o autor tenha posto mais belezas teatrais do que pensávamos, ou porque a atriz emprestava seu encanto habitual ao papel que realçava. Refiro-me à Berenice de Racine. Em que disposição de espírito o espectador vê começar essa peça? Num sentimento de desprezo pela fraqueza de um imperador e de um romano, que hesita como o último dos homens entre a amante e o dever [...]. Rousseau, 1993, p, 69.
44
modelo de teatro cujo objetivo é agradar e comover o público levando-o até as
lágrimas, mesmo após ter passado as emoções da atriz na peça:
Le rôle de Titus, três bien rendu, eût fait de l’ effet s’ il eût été plus digne de lui ; mais tous sentirent que l’ intérêt principal était pour Bérénice, et que c’était le sort de son amour qui déterminait l’ espèce de la catastrophe. Non que ses plaintes continuelles donnassent une grande émotion durant le cours de la pièce ; mais au cinquième acte où, cessant de se plaindre, l’ air morne, l’ oel sec et la voix éteinte, elle faisait parler une douleur froide appochante du désespoir, l’ art de l’ actrice ajoutait au pathétique du rôle, et les spectateurs vivement touchés commençaient à pleurer quand Bénénice ne pleurait plus68.
Rousseau parece passar mais uma vez a seu leitor neste momento, o
carinho e admiração que tem por D’ Alembert, o que já havia feito no prefácio
de seu texto, A Carta a D’Alembert, quando diz ao responder o artigo Genebra,
que não tem como objetivo em nenhuma hipótese ofender o grande homem
que é D’ Alembert, mas o seu papel é o de cidadão que ama sua pátria; assim,
quando esta se encontra em perigo é preciso defendê-la:
J’ ai tort, si j’ ai pris en cette occasion la plume sans nécessité.II ne peut m’ être ni avantageux ni agréable de m’ attaquer à M. D’ Alembert. Je considère sa personne ; j’ admire ses talents ; j’ aime ses ouvrages ; je suis sensible au bien qu’ il a dit de mon pays ;honoré moi-même de ses éloges, un juste retour d’ honnêteté m’ oblige à toutes sortes d’ égards envers lui ; mais les égards ne l’ emportent sur les devoirs que pour ceux dont toute la morale consiste en apparences. Justice et vérité, voilá les premiers devoirs de l’ homme. Humanité, patrie, voilá ses première affections69.
68
Rousseau, 2003, pp. 103-104. O papel de Titus, muito bem feito, teria tido efeito se fosse mais digno dele ; mas todos sentiram que o interesse principal ia para Berenice, e que era a força de eu amor que determinava a espécie da catástrofe. Não que suas queixas contínuas provocassem grande emoção no decorrer da peça; mas no quinto ato, em que, deixando de se queixar, com um ar abatido, os olhos secos e um fio de voz, ela fazia falar uma dor fria próxima ao desespero, a arte da atriz aumentava o patético do papel, e os espectadores, muito comovidos, começavam a chorar quando Berenice já não chorava. Rousseau, 1993, p, 69. 69
Idem. P. 50. Rousseau refere-se ao Discurso preliminar da enciclopédia (1751). Estou errado, se agora escrevo sem necessidade. Para mim, não pode sem nem vantajoso nem agradável combater o sr. D’Alembert. Tenho consideração por sua pessoa; admiro seus talentos; amo sua obras; sou sensível ao bem que ele diz de meu país; honrado eu mesmo com seus elogios, uma justa retribuição de honestidade obriga-me a toda espécie de consideração para com ele; mas as considerações só sobrepujam os deveres para aqueles cuja moral inteira só consiste em aparências. Justiça e verdade, eis os primeiros deveres do homem. Humanidade, pátria, eis seus primeiros afetos. Rousseau, 1993, p, 27.
45
Tendo em vista que não se trata de ofensas particulares, Rousseau parte
em sua análise na Carta a D’Alembert cujo objetivo é defender sua tese quanto
à inutilidade que este modelo de teatro possui em relação a Genebra, inútil
para educar e eficaz para corromper. Quando se trata da comédia, Rousseau
diz que não há como não admitir o talento do autor Molière, muitos o apreciam
e o próprio Rousseau se apresenta como seu admirador:
On convient, et on sentira chaque jour davantage, que Molière est le plus parfait auteur comique dont les ouvrages nous soient connus ; mais qui disconvenir aussi que le théâtre de ce même Molière, des talents duquel je suis plus l’ admirateur que personne, ne soit une école de vices et de mauvaises moeurs, plus dangereuse que les livres même où l’ on fait profession de les enseigner ? Son plus grand soin est de tourner la bonté et la simplicité en ridicule, et de mettre la ruse et le mensonge du parti pour lequel on prend intérêt ; ses honnêtes gens ne sont que des gens qui parlent, ses vicieux sont des gens qui agissent et que les plus brillants succès favorisent le plus souvent ; enfin l’ honneur des applaudissement, rarement pour le plus estimable, est presque toujours pour le plus adroit70.
Assim, Rousseau diz que a obra cômica de Molière é perfeita. Porém o
grande problema está na função que é dada a cada personagem quando em
cena. As pessoas corretas, diz Rousseau, em tais peças são sempre
ridicularizadas, enquanto aquelas mais habilidosas são sempre elevadas
porque possuem as ferramentas necessárias para persuadir o público.
Rousseau continua comentando a obra de Molière e em particular aquele que é
a mais conhecida por todos, é sua obra-prima, a saber, o Misantropo. Em tal
obra, diz Rousseau, Molière leva em consideração o gosto geral do público.
Para Rousseau um autor que escreve uma peça tendo como ponto de partida o
70
Idem, pp. 83-84. Concorda-se, e a cada dia se perceberá melhor isso, que Molière é o mais perfeito autor cômico cujas obras nos sejam conhecidas; mas quem pode deixar de concordar também que o teatro desse mesmo Molière, de cujos talentos sou o maior admirador, não seja uma escola de vícios e maus costumes, mais perigosa do que os próprios livros onde se professa ensiná-los? Seu maior cuidado é ridicularizar a bondade e a simplicidade, e colocar a astúcia e a mentira a favor do partido pelo qual simpatizamos; em suas comédias, as pessoas de bem são apenas tagarelas, os maus são pessoas de ação que, na maioria dos casos, são coroadas com os mais brilhantes êxitos; enfim, a honra dos aplausos vai raramente para o mais estimável e quase sempre para o mais hábil. Rousseau, 1993, p, 54.
46
gosto geral, não pode estar escrevendo para um homem de bem, mas seu alvo
principal é o homem social:
Je ne trouve que cette comédie nous découvre mieux qu’ aucune autre la véritable vue dans laquelle Molière a composé son théâtre ; et nous peut mieux faire juger de ses vrais effets. Ayant à plaire au public, il a consulté le goût le plus général de ceux qui le composent : sur ce goût il s’ est formé un modèle, et sur ce modèle un tableau des défauts contraires, dans lequel il a pris ses caractères comiques, et dont il a distribué les divers traits dans ses pièces. II n’ a donc point prétendu former un honnête homme, mais un homme du monde71 [...].
Talvez fique claro neste momento a diferença apontada por Rousseau
tanto no primeiro Discurso, quanto no segundo Discurso. Já no primeiro
Discurso como diz Jean Starobinski, Rousseau denuncia os males que
atormentam o homem social, No segundo, além dele, Rousseau, retomar o
assunto anunciando as possíveis causas deste mal, ainda propõe um possível
remédio para a cura dessa doença social. Para fazer a critica a sociedade
degenerada, Rousseau parece necessitar do contato com a natureza, pois
talvez estando pelo menos por um espaço de tempo fora da grande cidade, ele
pode observar melhor o que esta é e idealizar o que talvez fosse uma “cidade
ideal”. O que parece ficar claro é que Rousseau vê o homem neste momento
completamente desfigurado e que é preciso correr em busca de socorro a este
individuo que se encontra perdido. Então, não é no teatro francês filho de uma
grande cidade repleta de vícios sociais que pode ser encontrada a cura, mas
por outro lado, a cura do mal deve ser encontrada no próprio mal. O que leva a
crer que Rousseau é um homem de paradoxos:
71
Rousseau, 2003, pp. 85-86. Pode ser observada na nota I da pagina 86, que o homem de bem aqui, distrito por Rousseau, deve ser entendido como um ser moral: “Honnête homme a ici un sens moral: homme de bien” [...]. Acho que essa comédia nos revela melhor do que qualquer outra a verdadeira intenção com que Molière escreve o seu teatro; e nos pode fazer melhor avaliar os seus verdadeiros efeitos. Tendo de agradar ao público, ele consultou o gosto mias geral daqueles que o compõem: sobre esse gosto ele formou um modelo, e sobre esse modelo pintou um quadro dos efeitos contrários, do qual tomou seus caracteres cômicos, e cujos diversos traços distribuiu em suas peças. Assim, Molière não pretendeu formar um homem de bem, mas um homem de sociedade [...]. Rousseau, 1993, p, 55.
47
La logique de la pensée accusatrice exige que tôt ou tard apparaisse le modèle (idéal, possible, ou réel) qui autorise l’ accusation du mal. Et comme la pensée accusatrice est une pesée antinomique, le modèle sera l’ opposé de la corruption qui prévaut dans la civilisation urbaine. Vivre hors de la ville (pour qui a dénoncé le faux éclat des capitales) [...]. Le positif est absent-comme Rousseau est absent de Paris, comme la nature est absent de la ville. Les textes accusaters précédents, qui dénoncent le mal ( premier Discours), et qui en démontrent le mécanisme causal ( Discours de l’Inégalité). Accuser et séduire ; désigner le mal et annoncer le remède. En termes d’aujourd’ hui: culpabiliser et indique une thérapie72 [...].
Esse remédio que segundo Starobinski é anunciado por Rousseau já no
segundo Discurso, parece não poder ser encontrado em artes imitativas e
representativas como as apresentadas no modelo francês como bem
denunciou Rousseau. Starobinski descreve a dicotomia principal na obra de
Rousseau que parece ser a do “ser no estado natural e a do parecer na vida
social”. Então, Rousseau convida o homem a uma reflexão sobre sua própria
existência para que este não pense que a segunda natureza, ou seja, o estado
social não seja confundido por este pelo estado natural onde o homem era por
natureza natural e não possuía vícios nem virtudes.
Parte II.
1. Reflexões sobre as peças dramáticas.
Esta parte tem como objetivo aprofundar o que já foi visto até aqui, acerca
dos espetáculos que D’Alembert propõe para Genebra ou a pátria de
Rousseau. Ao longo do caminho já percorrido pode-se observar que Rousseau
critica a tragédia e a comédia, por estas apresentarem seres fictícios que estão
muito longe dos seres humanos. Mas, o principal ponto também já mostrado
por Rousseau na Carta, é sem duvida, a questão do amor, (ou) de como o
amor aparece nas peças teatrais e sobretudo nas assim chamadas “peças
dramáticas”. Mas, por que, segundo Rousseau, nas peças dramáticas a
72
Starobinski, 2012, pp. 16-17. Para um aprofundamento sobre este assunto, ver: “Le Remède dans le Mal”. (1989).
48
representação do amor é o problema mais grave? É o que vamos mostrar a
partir de agora na análise rousseauniana sobre o teatro.
Se o amor é ponto principal a ser analisado neste modelo de teatro
proposto para Genebra, onde o que está em jogo é o aperfeiçoamento dos
hábitos e costumes de um povo, é necessário que se leve em consideração a
atuação da mulher nas peças que vão ser ali apresentadas. Tal observação
deve levar em conta o poder de sedução, de persuasão, de dominação que as
mulheres possuem sobre os homens. Ora, vale a pena relembrarmos que,
quando D’Alembert propõe a instalação do teatro em Genebra, defende que o
objetivo desse teatro é afinar os costumes do povo desse país. Mas segundo
Rousseau, se os espetáculos que fossem ali apresentados tivessem como fim
agradar o público, a função pedagógica seria sacrificada, porque para
Rousseau, se agrada não educa, e se educa não agrada, logo, é impossível
desse ponto de vista que ele possuía dupla função:
L’amour est le règne des femmes. Ce sont elles qui nécessairement y donnent la loi : parce que, selon l’ordre de la nature, la résistance leur appartient et que les hommes ne peuvent vaincre cette résistance qu’aux dépens de leur liberté. Un effet naturel de ces sortes de pièces est donc d’étendre l’empire du sexe, de rendre des femmes et des jeunes filles les précepteurs du public, et de leur donner sur les spectateurs le même pouvoir qu’elles ont sur leurs amants73.
Rousseau deixa claro que é a mulher que manda neste modelo de
espetáculo. Para ele a mulher possui por natureza, o domínio sobre o homem,
assim, se ela, a mulher, está representando um papel cujo objetivo é só, e
somente só, agradar, a função de instruir se perde completamente. Então,
Rousseau fala na derrota do bom teatro e do surgimento do novo modelo a
partir de Molière e de Corneille, onde os atores que interpretam esse tipo de
73
Rousseau, 2003, p. 97. O amor é o reino das mulheres são elas, necessariamente que ditam a lei: porque, de acordo com a ordem da natureza, a resistência lhes pertence e os homens só podem vencer essa resistência ás custas de sua liberdade. Um efeito natural desse tipo de peça é, pois, ampliar o
império feminino, fazer das mulheres e das moças os preceptores do público e lhes dar sobre os espectadores o mesmo poder que têm sobre os amantes. Rousseau. 1993, P. 65.
49
peça se veem obrigados a conduzirem o público para questões relacionadas ao
amor em troca do sucesso do teatro:
Dans cette décadence74 du théâtre, on se voit contraint d’y substituer aux véritables beautés éclipsée de petits agréments capables d’en imposer à la multitude. Ne sachant plus nourrir la force du comique et des caractères, on a renforcé l’intérêt de l’amour. On a fait la même chose dans la tragédie pour suppléer aux situations prises dans des intérêts d’État qu’on ne connaît plus, et aux sentiments naturels et simples qui ne touchent plus personne. Les auteurs concourent à l’envi pour l’utilité publique à donner une nouvelle énergie et un nouveau coloris à cette passion dangereuse ; et, depuis Molière et Corneille, on ne voit plus réussir au théâtre que des romans, sous le nom de pièces dramatique75.
Rousseau chama a atenção para o fato da exposição pública da mulher,
pois em sua análise a mulher de bem, como, por exemplo, uma bela dona de
casa, não deve ser levada ao julgamento do público. Neste ponto diz
Rousseau, o teatro francês deveria ter copiado o modelo dos antigos, ou seja,
banir o amor da cena. Como já vimos no exemplo dado por Rousseau e
repetimo-lo neste momento: “Sêneca não pôs amor na sua peça, e já que o
autor moderno resolveu imitá-lo em todo o resto, deveria tê-lo imitado também
neste ponto” (Rousseau, 1993, p. 51).
Continuando com o pensamento rousseauniano sobre as mulheres,
podemos observar ainda o exemplo dado pelo filósofo de um ouvinte de
Esparta que ao ouvir falar de uma mulher pergunta se o tagarela não vai parar
de falar de uma dama de bem. Assim, para Rousseau, um Estado que tem por
objetivo preservar os costumes, deve evitar expor suas mulheres em público.
74
É importante ressaltarmos que, a decadência do teatro já ocorre após Eurípides, cerca de 490-406.a. C. Sobre este assunto. Ver, J. B. Sousa, 2001. 75
Ibid. p. 97. Nessa decadência do teatro, vimo-nos obrigados a substituir as verdadeiras belezas eclipsadas por pequenos enfeites capazes de se impor à multidão. Não sabemos mais alimentar a força do cômico e dos caracteres, reforçamos o interesse pelo amor. Fizeram a mesma coisa na tragédia para substituir as situações onde eram representados interesses do Estado que já não conhecemos e os sentimentos naturais e simples que não comovem mias ninguém. Os autores rivalizam para contribuir para a utilidade pública, dando uma nova energia e um novo colorido a essa paixão perigosa; e desde Molière e Corneille, só vemos terem êxito no teatro os romances, com o nome de peças dramáticas. (Rousseau, 1993, p. 64).
50
Ora, as mulheres honestas não devem e nem podem ser postas a venda como
se estas fossem um objeto qualquer:
Em geral, os antigos tinham grande respeito pelas mulheres; mas mostravam esse respeito abstendo-se de expô-lo ao julgamento do público, e crendo honrar a modéstia delas calando-se sobre suas outras virtudes. Tinham como máxima que o país de costumes mais puros era aquele em que se falasse menos das mulheres; e que a mulher mais honesta era aquela de quem menos se falasse. Foi com base nesse princípio que um espartano, ouvindo um estrangeiro tecer magníficos elogios a uma dama de seu conhecimento, o interrompeu colérico: Não vais parar, disse-lhe, de falar mal de uma mulher de bem? Vinha daí também que, em suas comédias, os papéis de mulheres apaixonadas e de moças casadouras sempre representavam só escravas ou prostitutas. (Rousseau, 1993, pp. 65-66).
Rousseau lamenta que, infelizmente, na França do século XVIII, o que se
vê é o oposto daquilo que havia no mundo antigo. Agora, a mulher mais
valorizada é aquela que mais aparece em público, que faz mais barulho, que
tem possibilidade de convidar as pessoas à sua casa, que fala mais alto, que
decide, que dita as ordens, quando atuando em peças no teatro, diz Rousseau,
mesmo que este tipo de mulher não saiba nada quando na vida social,
aparenta saber tudo, uma vez que está apenas representando o texto que lhe
foi dado. Esse papel que lhe é atribuído, para Rousseau, serve para
desvalorizá-la o que do ponto de vista dos antigos costumes é absurdo:
Chez nous, au contraire, la femme la plus estimée est celle qui fait le plus de bruit ; de qui l’on parle le plus ; qu’on voit le plus dans le monde ; chez qui l’on dîne le plus souvent ; qui donne le plus impérieusement le ton ; qui juge, tranche, décide, prononce, assigne aux talents, au mérite, aux vertus, leurs degrés et leurs places ; et dont les humbles savants mendient le plus bassement la faveur. Sur la scène, c’est pis encore. Au fond, dans le monde elles ne savent rien, quiqu’elles jugent de tout ; mais au théâtre, savantes du savoir des hommes, philosophes, grâce aux auteurs, elles écrasent notre sexe de ses propres talents, et les imbéciles spectateurs vont bonnement apprendre des femmes ce qu’ils ont pris soin de leur dicter. Tout cela, dans le vrai, c’est se moquer d’elles, c’est les taxer d’une vanité puérile76 [...].
76
Rousseau, 2003, p. 99. Entre nós, pelo contrario, a mulher mais estimada é aquela que faz maior barulho; de quem mais falam; que mais é vista na sociedade; em cuja casa se janta com maior frequência; que dá o tom mais imperiosamente; que julga, resolve, decide, sentencia, atribui aos talentos, ao
51
Com os argumentos utilizados acima, na Carta a D’Alembert, Rousseau
parece deixar claro mais uma vez ao seu leitor que, todo o problema deste
“novo teatro”, está na representação. O ponto crucial que leva tanto atores,
quanto atrizes a se corromperem ocorrem quando estes personagens no palco
interpretam textos que lhes foram entregues sem que em nenhuma hipótese,
fossem levadas em consideração suas opiniões, em suas composições. E,
parece ser este um dos motivos que leva Rousseau a propor as festas
populares, pois nestas o ator é também autor e espectador, ou seja, o próprio
povo é o compositor de seus espetáculos. Rousseau diz:
Que vos plaisirs ne soient efféminés ni mercenaires, que rien de ce qui sent la contrainte et l’intérêt ne les empoisonne, qu’ils soient libres et généreux comme vous, que le soleil éclaire vos innocents spectacles ; vous en formerez un vous-même, le plus digne qu’il puisse éclairer. Mais quels seront enfin les objets de ces spectacles ? qu’y montrera-t-on ? Rien, si l’on veut. Plantez au milieu d’une place un piquet couronné de fleurs, rassemblez-y le peuple, et vous aurez une fête.Faites mieux encore : donnez les spectateurs en spectacle ; rendez-les acteurs eux-même ; faites que chacun se voie et s’aime dans les autres, afin que tous en soient mieux unis. (Rousseau, 2003, p.182).
Rousseau mostra novamente a inutilidade desse modelo de espetáculo
onde a moleza dos costumes corrompidos e os interesses de mercenários
parece dominarem o público. E, ainda, propõe quais seriam as festas que
trariam alegria e amizade entre o povo. Mas, se este modelo é inútil para
mérito, às virtudes seus graus e seus lugares; e cujos favores os humildes eruditos mendigam do modo mais baixo. No palco, é pior ainda. No fundo, na sociedade elas não sabem nada, embora julguem tudo; mas no teatro, doutas do saber dos homens, filósofas graças aos autores, elas esmagam nosso sexo com seus próprios talentos, e os imbecis espectadores vão direto aprender das mulheres, o que eles tiveram o cuidado de lhes ditar. Tudo isso, na verdade, é zombar delas, é atribuir-lhes uma vaidade pueril [...]. (Rousseau, 1993, p 66).
Não sejam efeminados nem mercenários os vossos prazeres, nada do que sabe a obrigação e interesse os envenene, sejam eles livres e generosos com vós, e ilumine o sol vossos inocentes espetáculos; vós mesmos formareis um espetáculo, o mais digno que ele possa iluminar. Quais serão, porém, os objetivos desses espetáculos? Que se mostrará neles? Nada, se quisermos. Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada de flores, reuni o povo e tereis uma festa. Ou melhor, ainda: oferecei os próprios espectadores como espetáculos; tornai-os eles mesmo atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, para que com isso todos fiquem mais unidos. . (Rousseau, 1993, p128).
52
corrigir os costumes é eficaz para degenerá-los. Eis aí um dos grandes
problemas destacados por Rousseau.
2. As possíveis causas da queda.
O momento parece oportuno para voltarmos ao primeiro Discurso, ou
“Discurso sobre as Ciências e das Artes”. Para Rousseau, uma das causas que
contribuiu para a decadência do homem ao longo da história foi a introdução
das artes “modernas”. Segundo ele, antes das artes corromperem os costumes
da Grécia, por exemplo, seus guerreiros venceram duas guerras, mas depois
que esta nação foi desfigurada pelo avanço das artes, seus costumes foram
esquecidos e os novos hábitos em nada contribuíram para que virtudes como
coragem, amor à pátria e honra aos antepassados fossem preservadas. A
introdução em Atenas da “sabedoria”, das artes e dos poetas, fez com que esta
se transformasse em uma cidade injusta e passasse a viver no mundo das
aparências. Atenas comete uma injustiça bárbara quando condena Sócrates à
morte sabendo que ele na verdade era inocente. Ora, os juízes que condenam
Sócrates, ao que se sabe, tinham consciência de sua inocência, não eram
ingênuos a ponto de não saberem que Sócrates não havia corrompido
juventude alguma, tampouco negava os deuses da cidade, mas, era importante
que as aparências prevalecessem entre eles, assim, optam por sua
condenação:
Vede a Grécia, povoada outrora por heróis que por duas vezes venceram a Ásia, uma diante de Tróia e outra nos seus próprios lares. As letras nascentes não tinham ainda levado à corrupção aos corações de seus habitantes, mas o progresso das artes, a dissolução e o julgo do macedoniano seguiam-se de perto e a Grécia sempre sábia, sempre voluptuosa e escrava, só ganhou com sua revolução uma mudança de senhores. Toda eloquência de Demóstenes jamais pode reanimar um corpo que o luxo e as artes tinham desfibrado [...] É verdade que, entre nós, Sócrates absolutamente não teria bebido a cicuta, mas teria bebido, num copo ainda mais amargo, a zombaria insultante e o desprezo cem vezes pior do que a morte. (Rousseau, 1999, p-p, 193-198).
Algo semelhante aconteceu com Roma. Para Rousseau Roma era
virtuosa quando os jovens preservavam os hábitos e costumes de seus
53
antepassados, mas quando os valores antigos foram substituídos por novos
valores, Roma que foi sempre virtuosa por preservar sua cultura começou a
degenerar. Com tal afirmação Rousseau diz ter sido o avanço das artes que fez
com que os novos romanos77 esquecessem as virtudes adquiridas dos antigos.
Os poetas e os filósofos por sua vez, ao invés de contribuírem para o avanço
do povo romano no sentido moral e ético, apenas os levaram à degeneração.
Se a introdução das ciências e das artes contribui para o esquecimento dos
antigos valores, Rousseau diz ser preferível a “ignorância” e neste momento
cita Sócrates que, ao investigar os políticos, os sofistas e “sábios” de sua
época descobriu que na verdade estes eram os mais ignorantes. Se assim for,
é preferível o não saber que tem como ponto de partida a máxima socrática
que afirma ser o homem sábio aquele tem consciência de sua ignorância:
Voilà donc le plus sage des hommes au jugement des dieux, et le plus savant des Athéniens au sentiment de la Gréce entière, Socrate, faisant l’éloge de l’ignorance ! Croit-on que s’il ressuscitait parmi nous, nos savants et nos artistes lui feraient changer d’avis ? Non, messieurs, cet homme juste continuerait de mépriser nos vaines sciences ; il n’aiderait point à grossir cette foule de livres dont on nous inonde de toutes parts, et ne laisserait, comme il a fait, pour tout précepte à ses disciples et à nos neveux, que l’exemple et la mémoire de sa vertu78.
Assim como o objetivo de Sócrates era instruir os homens em Atenas
combatendo os sofismas de sua época, o velho Catão em Roma tinha ideias
semelhantes. Continua Rousseau:
Socrate avait commencé dans Athènes ; le vieux Caton continua dans Rome de se déchaîner contre ces Grecs artificieux et subtils qui séduisaient la vertu et amollissaient le courage de ses concitoyens. Mais les sciences, les arts et la dialectique
77
Rousseau chama de “novos Romanos” aqueles da Roma imperial que, para ele já está corrompida pela introdução do luxo tomando assim, amor pelo supérfluo, esquecendo as virtudes da antiga Roma, ou seja, da Roma que havia antes da queda. 78
Rousseau, 2003, p. 38. Aí está, pois, o mais sábio dos homens no julgamento dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião de toda a Grécia. Sócrates, fazendo o elogio da ignorância! Seria de crer que, se ressuscitasse entre nós, nossos sábios e nossos artistas fariam com que mudasse de opinião? Não, meus senhores, esse homem justo continuaria a desprezar nossas ciências vãs, em absoluto ajudaria a aumentar essa multidão de livros com que nos inundam de todos os lados, e, como o fez, só deixaria, como único preceito a seus discípulos e a nossos descendentes, o exemplo e a memória de sua virtude.Rousseau, 1990, p, 197.
54
prévalurent encore : Rome se remplit de philosophes et d’orateurs ; on négligea la discipline militaire, on méprisa l’agriculture, on embrassa des sectes et l’on oublia la patrie79.
Parece que Rousseau se refere nestes momentos, a Apologia de Sócrates.
Platão conta que certo dia foi um amigo de Sócrates, (Querefonte) ao oráculo
de Delfos, onde ficava a Sacerdotisa Pítia, a porta-voz do deus Apolo.
Querefonte teria perguntado à Pítia quem era o homem mais sapiente de
Atenas, ela respondeu que não havia em toda a Grécia ninguém mais sábio do
que Sócrates. Sócrates por sua vez, diz não ter entendido o significado de tal
resposta. Ora, sendo Pítia a porta-vos de Apolo, o deus havia afirmado que
Sócrates é sábio:
Querefonte [...] certa vez, havendo ido a Delfos, ariscou esta consulta ao oráculo; ele perguntou se havia alguém mais sábio do que eu; respondeu Pítia que não existia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu. Quando soube daquele oráculo, pus-me refletir assim: que “Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto colocou na resposta? Eu não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando eu o mais sábio? Logicamente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível” 80.
Segundo Platão, Sócrates continua em sua defesa dizendo que ficou
curioso quanto ao significado do deus Apolo. A curiosidade e o desejo de
descobrir o significado levaram Sócrates a interrogar aqueles da cidade que
eram considerados os mais sábios, como por exemplo, os políticos e os
poetas. No entanto, Sócrates diz ter chegado à seguinte conclusão: os homens
que eram considerados inteligentes eram na verdade, os mais desprovidos de
conhecimentos. O pior de tudo era que estes homens estavam enganados
porque imaginavam conhecer algo que ignoravam. Assim, Sócrates diz ter
entendido a mensagem do deus Apolo, ou seja, neste ponto era mais sábio,
pois tinha consciência de sua própria ignorância:
79
Ibid. p, 38. Sócrates começou em Atenas, o velho Catão continuou em Roma a deblaterar contra esses gregos artificiosos e sutis que seduziam a virtude e afrouxavam a coragem de seus concidadãos. Mas continuaram a prevalecer as ciências, as artes e a dialética, Roma encheu-se de filósofos e de oradores, descuidou-se da disciplina militar, desprezou-se a agricultura, adotaram-se certas seitas e esqueceu-se a pátria. 80
Platão, 1990, pp. 45-46.
55
Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que agora vou expor: “Eis aqui um mais sábio do que eu, quando tu disseste que eu o era!” Submeti a exame essa pessoa [...] era um dos políticos. Achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Depois dos políticos, fui me encontrar com os poetas, tanto os autores de tragédias quanto os de ditirambos e outros, na esperança de aí me apanhar em flagrante inferioridade cultural. Pois bem, senhores, envergonho-me de vos dizer a verdade, mas é preciso. Na realidade, quase todos os presentes poderiam falar melhor que eles próprios a respeito das obras que eles compuseram. Assim, logo compreendi que tampouco os poetas compunham suas obras por sabedoria, mas por dom natural, em estado de inspiração, como os adivinhos e profetas81.
Os exemplos mostrados por Platão nesta passagem da “Apologia de
Sócrates”, talvez ajudem o leitor a compreender o sentido da ignorância
socrática citada por Rousseau no primeiro Discurso. Não é só nesta obra que
Rousseau cita o ilustre admirador de Sócrates, Platão, mas em outros
momentos o filósofo genebrino deixa clara a admiração pelo grande pedagogo
autor da República, como por exemplo, no Émile ou de l’ éducation onde
escreve:
Voulez-vous prendre une idée de l’éducation publique, lisez la République de Platon. Ce n’est point un ouvrage de politique, comme le pensent ceux qui ne jugent des livres que par leurs titres : c’est le plus beau traité d’éducation qu’on ait jamais fait82. (Rousseau, 1966, p, 40).
Rousseau afirma neste momento que para ele a República de Platão é um
tratado de educação, mas com que objetivo? Parece que alguém poderia
objetar ser tal afirmação anacrônica para um cidadão do século XVIII. Talvez a
ideia de cidadão seja o ponto principal destacado por Rousseau. Para
Rousseau o cidadão foi extinto quando se perdeu o amor à pátria e se
exterminou a instituição pública. Então, segundo Rousseau, já no século XVIII,
não se tem mais cidadãos nem apego a pátria: « L ’institution publique n’existe
81
Ibid. 82
Rousseau, 1966, p, 40. Se quiserdes ter uma ideia de educação pública, lede a República de Platão. Não é uma obra de política, como pensam os que só julgam os livros pelo título: é o mais belo tratado de educação jamais escrito. (Rousseau, 2004, p, 13).
56
plus, et ne peut plus exister, parce qu’ où il n’ y a plus de patrie, il ne peut plus y
avoir de citoyens. Ces deux mots patrie et citoyen doivent être effacés de
langues modernes ».(Rousseau, 1966, p. 40).
Assim, quando Rousseau cita a obra de Platão, parece ser com o objetivo,
não de afirmar que sua época é igual a da Grécia antiga, mas para mostrar que
Platão teria idealizado um modelo de educação pública que gostaria que
existisse e que talvez já houvesse sido perdido na Atenas de sua época.
Segundo Jean Starobinski, a atuação da personagem socrática já na
primeira parte do primeiro Discurso de Rousseau, é de importância
fundamental. Para Starobinski, o motivo que leva Rousseau a citar o filósofo
ateniense pode ser entendido com a introdução em seguida de uma nova
personagem que Rousseau assemelha a Sócrates, a saber, Fabrício. O papel
de Sócrates neste momento do texto rousseauniano, parece ser o daquele que
extermina as plantas daninhas que tomaram conta da plantação benéfica e
expulsaram aquelas produtivas. Então, Rousseau parece, diz Starobinski,
chamar a atenção para as coisas que ficaram perdidas, uma vez que foram
substituídas pelas aparências introduzidas em uma época degenerada. Assim,
Sócrates, fazendo o elogio da “ignorância”, como já se teve a oportunidade de
ver em momentos anteriores, abre espaço para que Rousseau apresente sua
personagem modelo:
[...] Socrate, tel qu’il se définit lui-même, au dire de Platon, dans l’Apologie : contrairement aux poètes, aux sophistes, aux orateurs, aux artistes, Socrate sait qu’il ne sait rien. La sagesse de Socrate consiste dans la négation de tout ce que les autres croient pouvoir affirmer. Puis Rousseau introduit un second locuteur, Fabricius, auquel il déleque aussi la fonction du spectateur lucide et tâche d’une nouvelle négation. Fabricius, hypothétiquement ressuscité, est à la fois le héros d’une âge vertueux et le témoin d’un âge corrompu83 [...].
83
Starobinski, 2012, p. 92. Starobinski diz na nota IV, que provavelmente Rousseau tenha sido influenciado pela “Apologia de Sócrates”. Rousseau teria talvez, conversado com Diderot sobre este assunto em uma das visitas que fizera ao amigo quando este estivera preso. “on a supposé, non sans arguments, que lors de la visite de Rousseau au do donjon de Vincennes. Diderot traduisait l’ Apologie de Socrate". Na ocasião, Diderot encontra-se preso devido a Carta sobre os cegos de sua autoria.
57
Starobinski interpreta acima a “Apologia de Sócrates” e segundo ele,
Platão apresenta Sócrates como aquele que rejeita tanto os poetas quanto os
sofistas de sua época. Tal reprovação deve-se do fato de serem para Sócrates,
estes homens enganadores do povo uma vez que não tinham como objetivo a
instrução pública, mas seus objetivos eram persuadir. O fato dos sofistas
possuírem como profissão enganar os outros, já era para Sócrates gravíssimo,
porém, além de seduzirem os outros, dizendo serem possuidores de
conhecimentos que ignoravam, ainda cobravam por isso.
Após apresentar essa nova personagem relacionando o século XVIII à
antiguidade romana, como já disse Starobinski, Rousseau formula a seguinte
hipótese: como será que um cidadão que teria vivido em uma época na qual os
hábitos e costumes eram preservados, se sentiria com as mudanças ocorridas
na Roma dos imperadores, onde a corrupção havia invadido tudo e os velhos
costumes tinham sido pisoteados e as artes degeneradas tomado conta da
juventude, que antes era guerreira agora tomou gosto pela moleza e pelos
costumes efeminados:
O Fabricius! qu’eût pense votre grande âme, si pour votre malheur rappelé à la vie, vous eussiez vu la face pompeuse de cette Rome sauvée par votre bras et que votre nom respectable avait plus illutrée que toutes ses conquêtes ? « Dieux! eussiez-vous dit, que sont devenus ces toits de chaume et ces foyers rustiques qu’habitaient jadis la modération et la vertu ? quelle splendeur funeste a succédé à la simplicité romaine ? Quel est ce langage étranger ? Quelles sont ces moeurs efféminées ? Que signifient ces statues, ces tableaux, ces édifices ? Insensés, qu’avez-vous fait84 ?(...).
84
Rousseau, 2003, p. 39. A nota V da pagina 197 da tradução dos pensadores 1990 diz que Fabrício é: “cônsul e censor romano do III século a.C Símbolo de integridade e de austeridade da Roma republicana”. Já para Starobinski, como vimos, a personagem é o segundo locutor hipotético de Rousseau cuja função é de espectador de uma época degenerada pelos vícios. Oh, Fabrício! que teria pensado vossa grande alma, se, voltando à vida, para vossa infelicidade, vísseis a face pomposa dessa Roma salva por vosso braço e que vosso nome respeitável ilustrou mais do que todas as suas conquistas? “Deuses”, teríeis dito, “em que se transformaram esses tetos de choupanas e esses lares rústicos nos quais outrora habitavam a moderação e a virtude? Que esplendor funesto é esse, que sucedeu à simplicidade romana? Que língua estranha é essa? Que costumes efeminados são esses? Que significa essas estátuas, esses quadros, esses edifícios? Insensatos, que fizestes? Rousseau, 1990, pp, 197-198.
58
Parece que esse “segundo locutor” como diz Starobinski, apresentado por
Jean-Jacques neste momento, tem como objetivo observar de maneira crítica a
decadência em que o avanço das ciências e das artes provocou em Roma, que
antes era virtuosa agora toma gosto pelos costumes efeminados. Esse gosto
pela moleza, pelo luxo que passa a possuir nova formula, destrói a beleza que
havia nos modos antigos. Então, Rousseau fala através de Fabrício aquilo que
ele mesmo pensa de sua época que não valoriza os costumes que estão
relacionados às coisas naturais.
Se as ciências e as artes serviram para degenerar os hábitos e costumes
dos povos, Rousseau afirma ser mais adequada a época em que se vivia de
maneira rústica onde a relação entre o homem e o meio natural era constante e
harmoniosa. Assim, como a invenção da propriedade privada criticada no
segundo Discurso é o começo da submissão do homem pelo próprio homem,
no primeiro Discurso, o primeiro motor da queda do homem acontece com a
invenção das artes. Se as artes provocaram a degeneração do homem, aquele
que foi seu inventor é o inimigo número um do gênero humano. Esse inventor
para Rousseau é Prometeu. Como se pode conferir a seguir:
C’était une ancienne tradition passée de l’Egypte en Grèce, qu’un dieu ennemi du repos des hommes était l’inventeur des sciences. Qualle opinion fallait-il donc qu’eussent d’elles les Egyptions même, chez qui elles étaient nées ? C’est qu’ils voyaient de près les sources qui les avaient produites. L’astronomie est née de la superstition ; l’éloquence, de l’ambition, de la haine, de la flatterie, du mensonge ; la géométrie, de l’avarice ; la physique, d’une vaine curiosité ; toutes, et la morale même, de l’orgueil humain85.
Parece ser necessário ressaltarmos que Rousseau é talvez, entre os
filósofos de seu tempo, o único a defender que o caminho trilhado pela
humanidade é o que a leva para a decadência. Então, para Rousseau é
85
Rousseau, 1992, p, 41. Era tradição antiga, levada do Egito para a Grécia, que o inventor das ciências fora um deus inimigo do repouso dos homens. Que opinião deveriam, pois, ter das ciências os próprios egípcios, entre os quais elas nasceram? Explica-se: conheciam de perto as fontes que as tinham produzido. A astronomia nasceu da supertição; a eloquência, da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza, a física, de uma curiosidade infantil; todas elas, e a própria moral, do orgulho humano. Rousseau, 1990, p, 203.
59
impossível a existência de um ser humano melhor em uma sociedade fundada
na desigualdade onde a avareza tomou conta dos homens desde que foi
fundada a propriedade privada, como já vimos. Ora, as ciências e as artes são
filhas dos vícios adquiridos na vida social, como Rousseau afirma na citação
acima. Se assim for, a ideia de progresso conduz o homem para um abismo do
qual não se tem escapatória uma vez que este homem não sabe mais quem é,
pois se encontra perdido agora no meio social que o degenerou para sempre.
Este “novo homem” avarento que é fruto do meio social parece já nascer
corrompido, assim, avanço técnico e avanço moral parece não serem
compatíveis.
É importante observarmos e relembrarmos neste momento as seguintes
afirmações de Rousseau: “o estado de reflexão é um estado contra a natureza
e que o homem em que medida é um animal depravado”. Ora, é a educação
que o homem recebe quando passa a viver em sociedade que faz com que ele
se esqueça dos ensinamentos naturais que aprendeu quando vivia em meio a
mãe natureza. Aprendendo a refletir agora em sua vida social, o homem crê ser
talvez superior a natureza, pois cria um “mundo particular”. O começo desse
estado de reflexões tem início, segundo alguns autores, quando Prometeu é
acorrentado. Desse ponto de vista, a prisão de Prometeu é voluntária cujo fim é
a pesquisa, pois em seu exílio Prometeu desenvolve a pesquisa que o leva a
criar algo novo. Como bem mostra Raymond Trousson:
Pour la première fois aussi depuis Eschyle, le mythe de Prométhée se trouve uni à l’histoire de la culture et du progrès : « par la force de son éducation, l’homme s’élève au-dessus de la nature et se bâtit un univers propre, qui s’édifie face à la nature : l’univers de la culture ». Prométhée, pour Boccace, n’est donc plus un coupable : son exil sur le Caucase devient un exil voluntaire, une recherche de cette solitude favorable à la réflexion et à la création. ( Trousson, 1976, p, 90).
Trousson mostra acima a interpretação do Mito de Prometeu após Ésquilo86.
Mas qual é a diferença entre o mito de Prometeu antes e pós Ésquilo?
Segundo Trousson, antes de Ésquilo não havia ainda quem defendesse uma
86
Ésquilo (em grego: Αἰσχύλος,) a.C. (525-524) foi um dramaturgo da Grécia antiga. É reconhecido frequentemente como o pai da tragédia.
60
posição oposta entre Prometeu e os deuses. Até então, havia uma convivência
harmoniosa entre a natureza, os deuses e Prometeu. Porém após este período
Prometeu é interpretado como aquele que declara um estado de guerra contra
os deuses.
[...] chez Eschyle, hommes et dieux ne sont pas encore opposés : ils ne sont que les pôles de l’univers. En somme,le drame d’Eschyle n’est pas la tragédie de la révolte humaine : chez lui, l’opposition entre les hommes et les dieux est faite de différences et non d’hostilité. La liberté et la volonté de l’homme doivent être tempérées par la crainte et le respect des immortels ; lá aussi, Eschyle, comme Sophocle et comme Euripides, met en garde contre la démesure et l’orgueil. Tous les prométhées futurs seront possibles à partir de celui du vieux
poète. Mais il faudra, pour faire aux humains escalader l’Olympe, renverse toutes les valeurs d’Eschyles et ses croyances sincères87.
Assim, diz Trousson, os autores posteriores a Ésquilo defendem a existência
de um combate duro entre a razão humana e as “verdades metafísicas” que
são absolutas:
Alors, nous le verrons, sés épigones porteront le problème sur un autre plan, détrônant Zeus pour déifier l’homme, et la disparition du Lyomenos deviendra en qualque sorte symbolique de la lutte irréductible de la raison humaine contre les absolus métaphisiques. Ce n’était pas l’intention du pieux Eschyle : chez lui seul peut-être, pour la première et la dernière fois, se trouve résolu le difficile problème de la coexistence pacifique des hommes et des dieux88.
Mas ao contrario do que acabamos de ver em Ésquilo, autores como
Luciano de Samósata (125 d. C-180 d. C.), defende que homens e deuses
caminham em direções contrárias. Para Luciano, Prometeu não só é contra
Zeus mais ainda, cria um novo homem e lhe dá a possibilidade de raciocinar
por intermédio da razão cujo objetivo é destruir as divindades:
Nous avons vu que, chez Eschyle, les hommes et les dieux constituaient deux ordres différents, mais non opposées. Lucien, au contraire, les dresse les uns contre les autres et son prométhée n’est plus le seul révolté : il a créé les hommes à son
87
Trousson, 1976, pp, 39-40. 88
Idem
61
image il leur a donné l’inteligence et la raison destructrice des
divinités. Trousson, 1976, p, 53.
Então, desse ponto de vista, Prometeu é aquele que tira os homens de
sua alienação posta pelos deuses, ele conduz os homens ao estado de
reflexão onde estes podem a partir desse momento questionar aquilo que lhes
é posto pelas divindades que até então não era questionado. Prometeu parece
convidar o homem agora para ser seu próprio senhor uma vez que rejeita os
deuses da tradição posta há muito tempo talvez pela força do hábito ao longo
da história humana. Prometeu é assim, o fundador da civilização.
Tendo mostrado ao povo como se produz o fogo, Prometeu é punido com
extremo rigor por Zeus o senhor do Olimpo. Prometeu sabia que seria cobrado
por tal ato proibido, mas se arrisca porque seu objetivo é ver a humanidade
livre do jugo de Zeus que a seu ver mantinha a humanidade na ignorância.
Como mostra Luiz Antonio Aguiar na apresentação do mito:
Em Prometeu, o personagem-título recebe o castigo de Zeus, o senhor dos deuses por ter revelado á humanidade como produzir o jogo [...] A rebeldia do personagem contra o poder que ninguém ousava desafiar é ainda mais espantosa pelo fato de o deus, ao qual é imposto o maior de todos os suplícios, e por toda a eternidade, ter entre seus poderes o da profecia. Já ao cometer o ato proibido, Prometeu sabia qual seria seu destino. E poderia tê-lo evitado. Não o faz para não deixar a humanidade na obscuridade e na ignorância89.
É importante insistirmos que, para Rousseau, uma das causas da
degeneração do homem, ao contrário do que se pode observar acima, está na
razão. Assim, o estado de “ignorância” do homem é preferível ao estado de
reflexão, pois quando o homem passa a fazer uso da razão ele se corrompe.
Como se pode observar em uma passagem do Émile:
Puisque avec l’âge de raison commece la servitude civile, pourquoi la prevenir par la servitude privée ? Souffrons qu’un moment de la vie soit exempt de ce joug que la nature ne nous a pas imposé, et laissons à l’enfance l’exercice de la liberté
89
Aguiar, 1955, p, 8.
62
naturelle, qui l’éloigne au moins pour un temps des vices que l’on contracte dans l’esclavage90.
Talvez este momento do Emilio nos ajude a compreender Rousseau; desse
ponto de vista, a idade da razão altera as coisas naturais que são obras da
natureza. Rousseau chega a afirmar que tudo vai bem, até que apareça a mão
do homem para tudo desfigurar.
3. Rousseau leitor de Sêneca.
Voltando às peças dramáticas, foi visto que Rousseau cita Sêneca quando
fala de como o amor é tratado nas peças teatrais que são apresentadas na
França do século XVIII. Rousseau diz que nas tragédias de Sêneca há o
cuidado para que não ocorram exageros amorosos uma vez que o objetivo do
filosofo estoico é pedagógico. Porém, Rousseau parece deixar seu leitor com
“fome”, isso porque não cita as peças de Sêneca nas quais essa questão
aparece. Tal problema talvez obrigue o leitor a pesquisar alguns comentadores
que se debruçam sobre a obra de Sêneca e assim, ajudá-lo a compreender o
que Rousseau quer dizer. Estando diante dessa questão, o objetivo neste
momento é tentar observar em Sêneca o lugar que o amor ocupa em suas
tragédias.
Parece que um dos pontos interessantes a ser observado quando se trata
das tragédias de Sêneca é o lugar que o filósofo reserva às paixões e à razão.
Diferentes das tragédias onde são os deuses que decidem o destino das
personagens, como, por exemplo, Édipo Rei, em Sêneca, são as próprias
personagens, pelo menos parcialmente, que escolhem seus destinos. Assim,
em Sêneca, o homem parece ser responsabilizado pelos seus próprios atos
90
Rousseau, 1966, p. 105. Já que com a idade da razão começa a servidão civil, por que antecipá-la com a servidão privada? Deixemos que um momento da vida não carregue esse jugo que a natureza não nos impôs, e entreguemos à infância o exercício da liberdade natural, que pelo menos por algum tempo a afasta dos vícios que se contraem na escravidão. Rousseau, 1999, p, 83.
63
uma vez que ele não fica isento de responsabilidades delegadas aos deuses91.
Como se pode conferir a seguir:
Um dos traços marcantes a caracterizar as figuras de Sêneca é a luta que enfrentam em seu íntimo e que se trava entre as paixões e a razão. As personagens são dotadas de livre-arbítrio e têm consciência de que, se não são totalmente donas de seu destino, têm possibilidades de fazer o bem e evitar o mal. O fatalismo, presente na maioria das tragédias gregas, é substituído, nas de Sêneca, pelo drama psicológico. (Cardoso, 2005, p, 35).
Zélia de Almeida Cardoso parece destacar acima um traço importante
quanto às diferenças existentes entre as tragédias gregas e aquelas compostas
por Sêneca. Pois agora, as personagens veem-se com o peso de seus atos
sobre seus próprios ombros, pois não mais são isentas de suas
responsabilidades. Vale observarmos que para Sêneca as tragédias parecem
ter sido mais um meio pelo qual ele divulgou a filosofia estoica que tanto
admirava. Assim, suas tragédias, talvez, também tenham dentre outras coisas
a finalidade moral e ética. “Sendo amante e divulgador da filosofia, Sêneca
impregnou suas tragédias de elementos doutrinários, principalmente estoicos,
expressando-os frequentemente sob a forma de sentenças morais”. (Cardoso,
2005, p. 36).
Se um dos objetivos de Sêneca ao compor suas tragédias é a divulgação da
filosofia estoica, elas só podem ter função pedagógica. Isso talvez nos ajude a
entender o cuidado que Sêneca tem com a ação de cada personagem na peça,
como por exemplo, o significado que tem o riso, pois este não pode ter objetivo
de meramente agradar a plateia, mas, deve ter função de denunciar a
mediocridade humana. “quanto ao lugar do riso nas tragédias senequianas [...]
ele existe, mas para significar a derrisão da humanidade ordinária e não para
causar a quebra do trágico”. (Cardoso, 2005, p, 80) 92.
91
É importante ressaltarmos neste momento que, Sêneca escreve numa época muito posterior a Sófocles, e dentro de uma tradição filosófica que valoriza o sujeito “individual”, a tradição estoica. 92
Neste momento, Zélia, cita a autora Florence Dupont. Dupont é autora da obra “Les monstres de Sêneca” 1995.
64
Ora, se ao compor suas peças teatrais, Sêneca reserva cuidados especiais
para as ações de cada personagem, uma vez que tais ações podem influenciar
aqueles que assistem a estas peças, na tragédia e na comédia francesa parece
ocorrer o contrário. Mas por que nas peças francesas ocorre o oposto?
Rousseau diz que Sêneca exclui o amor da cena, mas os autores franceses
embora o tenham imitado expõem a mulher no teatro. O grande problema
destacado por Rousseau (como já vimos) está no papel que é dado às atrizes:
Les anciens avaient en général un três grand respect pour les femmes; mais ils marquaient ce respect en s’abstenant de les exposer au jugement du public, et croyaient honorer leur modestie, en se taisant sur leurs autres vertus. IIs avaient pour maxime que le pays, où les moeurs étaient les plus pures, était celui où l’on parlait le moins des femmes ; et que la femme la plus honnête était celle dont on parlait le moins.[...] dans leur comédie, les rôles d’amoureuses et de filles à marier ne représentaient jamais que des esclaves ou des filles publiques93.
4. O papel do velho no teatro.
Segundo Rousseau, a função das atrizes neste modelo de espetáculos
propostos para Genebra é agradar o público. Sendo o principal objetivo a
distração do povo por meio da fascinação, segue-se que, tanto as atrizes
quanto os atores, necessariamente, precisam ser jovens e bonitos. Assim, os
personagens de idade avançada ficam com os papeis menores. Tendo em
vista que, os velhos são rebaixados, sua sobrevivência na cena, depende
talvez, de suas astucias em torna-se ridículos, assim, os velhos são obrigados
a se tornarem pessoas inconvenientes na cena. Essa mudança ocorrida no
teatro da França do século XVIII, ao ver de Rousseau, é muito complicada, pois
para aqueles conservadores dos bons costumes, ocorria o inverso, ou seja, os
velhos eram valorizados, porque por intermédio deles os jovens aprendiam a
valorizar os bons hábitos. Rousseau diz:
93
(Rousseau, 2003, pp. 98-99. Em geral, os antigos tinham grande respeito pelas mulheres; mas mostravam esse respeito abstendo-se de expô-lo ao julgamento do público, e crendo honrar a modéstia delas calando-se sobre suas outras virtudes. Tinham como máxima que o país de costumes mais puros era aquele em que se falasse menos das mulheres; e que a mulher mais honesta era aquela de quem menos se falasse [...], em suas comédias, os papéis de mulheres apaixonadas e de moças casadouras sempre representavam só escravas ou prostitutas. Rousseau, 1993, pp, 65-66.
65
La même cause qui donne, dans nos pièces tragiques et comiques, l’ascendant aux femmes sur les hommes, le donne encore aux jeunes gens sur les vieillards ; et c’est un autre renversement des rapports naturels, qui n’est pas mons répréhensible. Puisque l’intérêt y est toujours pour les amants, il s’ensuit que les personnages avancés en âge n’y peuvent jamais faire que des rôles en sous-ordre. Ou, pour forme le noeud de l’intrigue, ils servent d’obstacle aux voeux des jeunes amants et alors ils sont haïsables ; ou sont amoureux eux-mêmes et alors ils sont ridicules94.
Rousseau parece deixar claro acima que, tanto a tragédia quanto a
comédia, dão papeis superiores às mulheres sobre os homens, e ainda,
colocam a juventude a frente daqueles de idade avançada, o que a seu ver, é
mais um artifício da sociedade degenerada em vícios que muito se afasta das
leis naturais, o que nos leva a pensar a aproximação com os estoicos e em
particular Sêneca, citado por ele literalmente, não só na Carta a D’Alembert,
mas, em outras obras de sua autoria. Mas, onde está o problema? Por que o
teatro mostrando o jovem superior ao velho é prejudicial aos costumes?
Rousseau responde dizendo que os jovens vendo os velhos ridicularizados no
teatro, poderão crer que tais atitudes presenciadas são naturais do ponto de
vista social e assim, passar a tratá-los dessa maneira uma vez que, em tal
sociedade estes valem pouco ou quase nada. Vejamos o que diz Rousseau a
d’Alembert sobre a atuação dos jovens sobre os velhos:
Qui peut douter que l’habitude de voir toujours dans les vieillards des personnages odieux au théâtre n’aide à les faire rebuter dans la société, et qu’en s’accoutumant à confondre ceux qu’on voit dans le monde avec les radoteurs et les gérontes de la comédie, on ne les méprise tous également ? Observez à Paris dans une assemblée, l’air suffisant et vain, le ton ferme et tranchant d’une impudente jeunesse, tandis que les anciens,
94
Rousseau, 2003, p, 100. Rousseau não deixa claro o período histórico do qual está se referindo, pois, na p, 91, da Carta a D’Alembert, 1993, afirma que na tragédia antiga só havia homens atuando. [...] “a tragédia, em seus primórdios, só tinha homens como atores” [...]. A mesma causa que, em nossas peças trágicas e cômicas, concede a ascendência ás mulheres sobre os homens, concede-a também aos jovens sobre os velhos, e esta é outra inversão das relações naturais, não menos repreensíveis. Já que o interesse está sempre voltado para os amantes, segue-se que os personagens de idade avançada só podem ter papel de segunda ordem. Ou para formar o nó da intriga, elas servem de obstáculos aos desejos dos jovens amantes, tornando-se odiosas; ou então elas próprias estão apaixonadas, e neste caso se tornam ridículos. Rousseau. 1993, P. 67.
66
craintifs et modestes, ou n’osent ouvrir la bouche, ou sont à peine écoutes95.
Ao contrário daqueles que defendem a implantação do teatro em Genebra,
Rousseau diz que, o modelo de teatro implantado na França, obrigou os velhos
a se exporem ao ridículo, pois estes não encontraram um meio de ser, se não
aceitos com dignidade, mas ao menos tolerados, a não ser fingirem que
gostam e estão de acordo com a decadência de seus antigos costumes.
Rousseau diz ainda que, se d’Alembert observar nas pequenas cidades onde
ainda não há este modelo de teatro, poderá ele concluir que os velhos ainda
são respeitados como em muitos lugares da terra:
Voit-on rien de pareil dans les provinces, et dans les lieux où les spectacles ne sont point établis ; et par toute le terre, hors les grandes villes, une tête chenue et des cheveux blancs n’impriment-ils pas toujours du respect ? On me dira qu’à Paris les vieillards contribuent à se rendre méprisables, en renonçant au maintien qui leur convient, pour prendre indécemment la parure et les manières de la jeunesse, et que faisant les galants à son exemple, il est très simple qu’on la leur préfère dans son métie ; mais c’est tout au contraire pour n’avoir nul autre moyen de se faire suporter, qu’ils sont contraints de recourir à celui-là, et ils aiment encore mieux être soufferts à la faveur de leurs ridicules que de ne l’être point du tout96.
95
Rousseau, 2003, p, 101. Quem pode duvidar de que o hábito de sempre ver no teatro os velhos em personagens odiosas não ajude a fazê-los serem rejeitados na sociedade, e de que acostumando as pessoas a confundir os velhos que veem na sociedade com os caducos e os Gerontes da comédia, não passaram elas a desprezá-los a todos igualmente? Observe V. Sa. em Paris, numa assembleia, o ar pretensioso e vão o tom firme e resoluto de uma impudente juventude, ao mesmo tempo que os velhos, temerosos e modestos, ou não ousam abrir a boca ou mal são escutados. 96
Rousseau, 2003, p, 101. Vê-se algo de semelhante nas províncias e nos lugares onde não há espetáculos? E por toda a terra, fora das grandes cidades, uma cabeça calva e os cabelos brancos não impõem sempre certo respeito? Dir-me-ão que em Paris os velhos contribuem para se tornarem desprezíveis, renunciando à postura que lhes convém, para usarem indecentemente os enfeites e as maneiras da juventude e que, fazendo-se de galantes como os jovens, é muito natural que, nessa especialidade, estes últimos sejam preferidos; mas, muito pelo contrário, se são obrigados a recorrer a esse expediente, é por não terem nenhum outro meio de se fazerem tolerar, e os velhos ainda preferem ser tolerados graças a seus ridículos do que não o ser de forma alguma. Rousseau, 1993, p, 67.
67
Neste momento, Rousseau mostra mais uma das contradições presentes
neste modelo de teatro que se pretende levar a Genebra, diz que o teatro além
de não favorecer os bons costumes, ainda tem o poder de degenerar os já
existentes em sua pátria. É certo, como já vimos que, os maus exemplos
apresentados podem possuir dois lados, um que degenera e outro que poderá
purificar possíveis erros, mas isso seria a catarse aristotélica reprovada por
Rousseau de antemão.
Quando Rousseau diz que os personagens jovens são elevados em
detrimentos daqueles de idade avançada que, por sua vez, são reduzidos ao
ridículo, nos ajuda a entender o porquê da presença de Sêneca na Carta. Se
os personagens de idade avançada são obrigados a fazer papeis de amantes,
têm-se o oposto daquilo que é delegado às personagens de Sêneca. Tais
funções representadas no teatro Francês, talvez, conduzam os espectadores a
um estado que Sêneca provavelmente classificaria de desrazão. O motivo
dessa loucura seria o amor descontrolado que leva o homem a cometer crimes
horríveis em nome desse amor. Então, esse tipo de “amor” não pode ser
virtuoso, mas, vicioso, pois conduz o homem no caminho do vicio:
Os sentimentos e impulsos devem ser controlados para que se garanta o equilíbrio e a ordem universais; as paixões não dominadas acarretam catástrofes sobre catástrofes, alastram-se, contaminam; o amor-paixão, como uma loucura ou uma doença, levando o homem ao caminho do vício, é nocivo e deve rigorosamente combatido, sobretudo quando se reveste de um caráter proibido ou criminoso. (Cardoso, 2005, p.139)
Sêneca compõe algumas tragédias com o aparente objetivo de demonstrar
como o amor descontrolado conduz ao caos, uma vez que obriga aquele que
ama a cometer crimes contra os próprios filhos, como é o caso da personagem
Medéia, cujo ciúme a conduz a loucura e a transforma em uma assassina.
Como mostra Zélia Cardoso:
Medéia permite que se transforme em furor o ciúme que sente polo esposo infiel, ciúme que se agrava com o ultraje do banimento e do repúdio e a faz cometer um crime hediondo e
68
inconcebível ao matar não apenas a noiva e o sogro de Jasão, mas os próprios filhos que gerara97.
Acredita-se que Sêneca tenha composto algumas de suas tragédias com
objetivo de tentar corrigir erros do imperador Nero, pois ao que se sabe, o
filósofo estoico foi o educador do jovem imperador. Um dos defensores desta
hipótese é Pierre Grimal (1912-1996). Tal posição nos ajuda a perceber que ao
compor suas tragédias, Sêneca tinha como objetivo a instrução, não só das
pessoas comuns, mas também dos políticos de sua época, o que talvez,
explique a admiração que Jean-Jacques Rousseau tem por sua obra:
O estoicismo, para Grimal, sempre foi doutrina da ação política. O sábio, conforme os princípios doutrinários não podem realizar-se plenamente a não ser em sua natureza de ser social. E foi com base no estoicismo que Sêneca escreveu sobre a clemência, o tratado que mostra qual a posição do autor em relação ao poder e á política. Dedicando sobre a clemência a Nero, Sêneca apresenta, no proêmio, o propósito da obra, adotando uma postura simultaneamente de filósofo, educador e conselheiro. [...] Sêneca se dispôs a escrever a respeito da clemência para “desempenhar, de certa forma, a função de espelho” e mostra ao jovem imperador sua própria imagem. (Cardoso, 2005, p.147).
Parece ser importante observarmos mais uma vez, a mudança ocorrida nas
peças teatrais compostas por Sêneca. No caso citado acima, pode-se observar
que quando Sêneca convida o jovem imperador Nero a ver sua própria imagem
refletida no espelho, o objetivo de Sêneca, parece ser oposto ao narcisismo,
pois o que está em jogo são os vícios do imperador, são os defeitos que devem
aparecer e não o engano do narcisismo que favorece o amor próprio, o olhar
para o próprio ego e desprezar o outro. Assim, talvez se possa sustentar que a
tragédia de Sêneca é e não é a mesma, uma vez que, a função dada às
personagens de uma peça já apresentada, como por exemplo, Medeia, é
diferente, ao ponto de ser irreconhecível aos olhos daqueles que assistiram
outras versões, compostas por outros autores antes dele.
Essa característica senequiana que insiste na teoria e prática, que dá uma
função política a obra, aparece com muita persistência nas “Cartas a Lucilio”.
Em tais Cartas, o filósofo convida o amigo Lucilio a uma reflexão sobre tudo
97
Idem, p, 140.
69
que tem feito até então. Uma das questões destacadas por Sêneca é de como
deve ser enfrentado os vícios que atormentam o homem que não os deixa
mesmo quando faz longas viagens. Sêneca cita Sócrates que diz não ser
possível fugir de si mesmo enquanto não se apreende a purificar a própria
alma:
Sendo perguntado sobre isso, Sócrates disse: “por que te admiras de que em nada as viagens te beneficiem quando te levas contigo? Vai atrás de ti a mesma causa que te faz fugir”. A quem pode ajudar a novidade das terras? A quem o conhecimento das cidades ou dos lugares? Toda essa agitação é em vão. Perguntas por que essa fuga não te ajuda; tu foges de ti mesmo. É o peso da alma que deves deixar: antes disso, nenhum lugar te agradará. “Trinta tiranos”, fala, “rodearam Sócrates, mas não puderam quebrar seu espírito”. (Sêneca, 2007, p, 29).
5. O mundo das aparências.
Relembrando os hábitos e costumes populares, que talvez sejam o
principal objeto de estudo na Carta a d’Alembert, vale observarmos ainda, a
descrição feita pelo filósofo genebrino com relação aos modos de vida dos
camponeses. Em tal descrição, Rousseau não economiza elogios a estes
homens que talvez se aproxime daquilo que seria o homem natural
apresentado por ele no Segundo Discurso. Na Carta a d’Alembert, Rousseau
diz que teve a oportunidade de presenciar os acontecimentos diários desse
povo que vivia de maneira muito diferente daquele das grandes cidades, já
corrompidas como eram as cidades da França em sua época. Uma das
vantagens desse homem do campo em relação ao homem da cidade era a
isenção dos impostos, pois vivia segundo as leis da natureza:
Je me souviens d’avoir vu dans ma jeunesse aux environs de Neuchâtel un spectacle assez agréable et peut-être unique sur la terre. Une mantagne entière couverte d’habitations dont chacune fait le centre des terres qui en dépendent ; en sorte que ces maisons, à distances aussi égales que les fortunes des propriétaire, offrent à la fois aux nombreux habitants de cette montagne le recueillement de la retraite et les douceurs de la société. Ces heureux paysans, tous à leur aise, francs de tailles, d’impôts, de subdéléqués, de corvées, cultivent, avec tout le soin possible, des biens dont le produit est pour eux, et emploient le loisir que cette culture leur laisse à faire mille ouvrages de leurs
70
mains, et à mettre à profit le génie inventif que leur donna la Nature98.
Além dessa primeira vantagem, o homem do campo vivia para si mesmo,
isso porque, este homem não estava preocupado em atender um mercado,
tampouco quanto ganharia com a venda de tais mercadorias fruto de seu
trabalho, sua única preocupação era cuidar de sua família que por sinal era
numerosa, mas não a ponto de não caber em suas cabanas feitas pelos
próprios trabalhadores da comunidade, não necessitando assim, de mão de
obra de alguém de fora do povoado. Esse povo sabia ainda, aproveitar bem as
estações do ano, o inverno, por exemplo, era para ele uma das mais alegres
estações onde havia a possibilidade de toda a família estar reunida:
L’hiver surtout, temps où la hauteur des neiges leur ôte une communication facile, chacun renfermé bien chaudement, avec sa nombreuse famille, dans sa jolie et propre maison de bois, qu’il bâtie lui-même, s’occupe de mille travaux amusants, qui chassent l’ennui de son asile, et ajoutent à son bien-être. Jamais menuisie, serrurier, vitrier, tourneur de profession n’entra dans le pays ; tous le son pour eux-même, aucun ne l’est pour autrui ; dans la multitude de meubles commodes et même élegants qui composent leur ménage et parent leur logement, on n’en voit pas un qui n’ait été fait de la main du maître99.
Após apresentar a maneira de viver desse povo que não tem contato com
a cidade grande, Rousseau imagina em que se transformaria a vida desses
98 Rousseau, 2003, p, 111. Lembro-me de ter visto em minha juventude, nas cercanias de Neuchâtel, um espetáculo bastante agradável e talvez único na terra. Toda uma montanha coberta de casas, cada uma das quais formando o centro das terras que a ela pertencem; de maneira que essas casas, a distâncias tão iguais quanto as riquezas dos proprietários, oferecem ao mesmo tempo aos numerosos habitantes dessa montanha o recolhimento do retiro e as doçuras da sociedade. Esses felizes camponeses, todos abastados, isentos de taxas, de impostos, de subdelegados, de corveias, cultivam, com todo o empenho possível, bens cujo produto vai para eles mesmos, e empregam o lazer que essa cultura lhes deixa em fazer mil trabalhos manuais e me aproveitar o gênio inventivo que a natureza lhes deu. Rousseau, 1993, p, 76. 99
Idem, p, 112. No inverno, principalmente, tempo em que a altura das neves lhes impede uma comunicação fácil, cada um, fechado, bem aquecido, com a numerosa família em sua bonita e limpa casa de madeira construída por ele mesmo, trata de mil trabalhos divertidos que expulsam o tédio de seu abrigo e aumenta o bem-estar. Jamais um marceneiro, um serralheiro, um vidraceiro, um torneiro de profissão entrou na região; todos o são para si mesmo, ninguém o é para os outros; na infinidade de moveis cômodos e até elegantes que compõem seu lar e enfeitam seu abrigo, não se vê nenhum que não tenha sido feito pela mão do mestre
71
camponeses se fosse implantado um teatro de comedia idêntico ao proposto
pelos filósofos para Genebra. Partindo da hipótese que haveria a corrupção
desse povo, Rousseau crê acontecer o seguinte:
1. Haverá diminuição do trabalho, uma vez que, tanto os homens quanto as
mulheres se viciariam pelos espetáculos.
2. Esse povo adquirirá uma despesa que antes não possuía, pois por
barato que seja a entrada, esta deve ser paga.
3. Os camponeses terão que aumentar os preços de suas mercadorias,
uma vez que, precisam de mais dinheiro para arcar com essa despesa
adicional, enfraquecendo assim, a venda de seus suínos.
4. Como o inverno na região é rigoroso, será preciso abrir caminho sobre a
neve ou ainda, iluminar as estradas obrigando o governo local a criar
novos impostos.
5. O último prejuízo que segundo Rousseau ocorreria caso tal fato se
consumasse seria a introdução do luxo. Esse último ponto destacado
parece ser para Rousseau o mais grave de todos. Assim, vamos a ele.
Já se pode observar que, a principal contradição existente na proposta de
D’Alembert de se instalar um teatro de comédia em Genebra, de acordo com
Rousseau, parece ser a possibilidade deste teatro, cujo modelo é francês, ter o
poder de afinar os hábitos e costumes do povo Genebrino. A dificuldade
encontrada por Rousseau está na impossibilidade dos hábitos e costumes do
povo Genebrino ser idênticos aos franceses. Tal objeção se pode ver em mais
um exemplo dado por Rousseau de um povo que vive em harmonia com a
natureza, pois habitam lugares afastados das grandes cidades. Em tal
momento parece ficar claro a importância que deveria ser observada por
D’Alembert quanto à questão das diferenças. Aqui, Rousseau chama a atenção
neste ponto que, para ele parece ser de suma importância. Outro problema
gravíssimo está na inversão das “verdades” existentes na cidade grande, pois
se tem o reino do parecer em detrimento do ser, como é o caso de Paris,
segundo Rousseau. Ora, se em Paris prevalece o reino do parecer, o povo do
campo é mal visto, e esse mundo das aparências os vê como ociosos que não
produzem nada:
72
Vejo que em Paris, onde tudo se julga pelas aparências, porque não se tem lazer de examinar nada, acredita-se pela impressão de ociosidade e de apatia que á primeira vista produz a maior parte das cidades do interior, que os seus habitantes, mergulham numa estúpida inatividade, só vegetam, ou se atormentam e brigam entre si. (Rousseau, 1993, p, 74).
É interessante observar a contradição existente neste ponto de vista da
cidade grande, para Rousseau, ocorre justamente o oposto, são as grandes
cidades que geram a indolência, uma vez que produzem monstros ociosos, por
outro lado, os habitantes das pequenas cidades, só vivem para si mesmo, não
sendo assim, submissos a ninguém.
Então, se na cidade grande prevalece a mascara da “verdade”, talvez,
ninguém ouse aparecer como realmente é, mas como convém o momento.
Rousseau fala dos hábitos e costumes das mulheres tanto dos camponeses,
quanto dos demais habitantes desses lugares, aonde ainda não chegaram os
modos corrompidos das grandes cidades. Em um primeiro momento, diz
Rousseau, essas mulheres sairiam de suas casas, simplesmente para
assistirem os espetáculos que fossem ali apresentados, mas, não demorariam
a observarem nas outras, aquilo que elas próprias não eram nem possuíam
despertando assim, o amor próprio que é o oposto do amor de si, até então
existente em suas vidas. Tal acontecimento possibilita o desejo pelo luxo
inseparável da vida dos habitantes da grande cidade. Esse novo desejo que
passará a fazer parte da vida dessas mulheres, corromperá também os
maridos que não resistirão à força esmagadora que possui o luxo:
Les femmes des Montagnons allant, d’abord pour voir, et ensuite pour être vues, voudront être parées ; elles voudron l’être avec distinction. A femme de M. Le Châtelain ne voudra pas se montrer au spectacle mise comme celle du maître d’école ; la femme du maître d’école s’efforcera de se mettre comme celle du châtelain. De là naîtra bientôt une émulation de parure qui ruinera les maris, les gagnera peut-être, et qui trouvera sans cesse mille nouveaux moyens d’éluder les leis somptuaire. Introduction du luxe [...] Ainsi quand il serait vrai que les spectacles ne sont pas mauvais en eux-même, on aurait toujours à chercher s’ils ne le deviendraient point à l’égard du peuple auquel on les destine100.
100
Rousseau, 2003, pp, 114-115.
73
Recorremos a Luiz Roberto Salinas para mais essa questão. Segundo
Salinas, a natureza para Rousseau é como Deus para Kant, ou seja, é a
natureza que possibilita que o homem viva de maneira harmoniosa. Como
estamos vendo, a passagem para a vida nas grandes cidades, ao contrário da
vida natural, desfigura o homem e lhe desperta o desejo por coisas
fantasmagóricas que o conduz para uma existência egoísta, o que não havia
antes. Quem diz é Franklin de Matos, na apresentação do texto de Salinas:
Salinas insiste que a ideia de natureza, para Rousseau, como a de Deus para Kant é, sobretudo uma ideia reguladora, que orienta nossas observações, e à qual nossa finitude nunca poderá dar um conteúdo efetivo. Além disso, nem toda representação será capaz de tal apreensão, pois esta dependerá do grau de aproximação de cada um em relação à natureza. Segundo Salinas, neste momento Rousseau opera com a ideia de escala e procura medir, por seu intermédio, os graus de afastamentos e aproximação de cada forma expressiva em relação à ideia reguladora. O resultado é que a máxima aproximação estará no discurso “autentico”-“um circunlóquio, um rodeio em torno da obsura origem”, cujo modelo ideal é a música-e o afastamento máximo, discurso “perverso”, que consiste em fazer da própria representação o valor supremo, substituindo a ordem dos valores naturais por uma ordem postiça e artificial. Essa figura extrema é a mathesis. (Salinas, 1997, p, 11).
Segundo a apresentação de Franklin de Matos, Salinas desta que a principal
novidade existente na obra de Rousseau é a maneira como o filósofo enxerga
a música, para Rousseau, aquele que escreve um texto, não faz nada além de
copiar algo já existente no grande livro da natureza que, ao contrário daqueles
escritos pelos homens, jamais mente. Assim, é através da música que se pode
tocar aquilo existente no fundo dos corações:
Indo as mulheres dos montagnons, a principio para verem, depois para serem vistas, elas vão querer enfeitar-se, e vão querer enfeitar-se com distinção. A mulher do senhor Castelão não vai querer aparecer no teatro vestida como a do mestre-escola; a mulher do mestre-escola vai esforça-se para se vestir como a mulher do castelão. Logo nascerá daí uma competição de roupas que vai arruinar nos maridos, vai tomar conta deles também, e que sempre encontrará mil novos meios de escapar ás leis suntuárias. Introdução do luxo [...]. Assim, mesmo que fosse verdade que os espetáculos teatrais não são maus em si mesmos, teríamos ainda de procurar saber se não tornariam maus para o povo a que o destinam. Rousseau, 1993, pp, 78-79.
74
Eis aí, conforme Salinas uma das maiores novidades da obra de Rousseau: a escolha da música como paradigma essencial. Eis aí também a explicação da singularidade e do paradoxo deste homem de letras “que faz do silêncio supremo ideal”, ao escrever, Rousseau sabe muito bem que para além de toda escrita há o indizível e a música e, por isso, o escritor, para ele, não é senão, “o copista de uma partitura ‘natural’, de um ‘livro’ da natureza, bem distinto dos ‘livros mentirosos’ dos homens e ditado pelo próprio Deus, escrito ‘no fundo’ do ‘coração’ do homem” 101.
Salinas talvez nos permita dizer que para Rousseau não é por intermédio da
razão. Por exemplo, na matemática que se chega às profundezas dos seres
humanos, mas é por meio das coisas que tocam direto os corações. Assim, o
tribunal do cálculo dominante na época de Rousseau parece ficar em segundo
lugar. Uma vez que, a sensibilidade é posta em alta. Segundo Salinas, para
que o músico pinte alguma coisa, ele não necessita escutar, mas é impossível
que aquele que pinte, represente algo que não veja antes. Assim, o pintor
necessita de objetos empíricos enquanto que o músico pode pintar, por
exemplo, o movimento, o silêncio, o repouso...
A música como paradigma. Não há como negar a originalidade, se nos lembrarmos de que o paradigma, neste terreno, tem sido a matemática. Seria possível assim, falar a propósito de Rousseau também em um “espírito da música” que, dado o seu peso central no “sistema”, afasta-o do rigor dominante? “uma das grandes vantagens do músico consiste em poder pintar coisas que não se pode ouvir, enquanto é impossível ao pintor representar aquelas que não se pode ver, e o maior prestígio de uma arte, que age somente pelo movimento, é poder formar até mesmo a imagem do repouso”. Notável particularidade da música que dela faz a rainha das artes102.
Salinas continua escrevendo sobre a questão musical em Rousseau e
mostra porque a música, para Rousseau, é a rainha das artes. Esse poder que
segundo Rousseau só a música possui, de agir tanto no silêncio, quanto no
barulho, e andar, no movimento e no repouso, faz com que ela possa pintar
características dos objetos que outras artes não podem. Assim, a música
poderá, por exemplo, penetrar as paredes de uma prisão, movimentar as águas
de um rio, pintar as belezas ou horrores de um deserto e penetrar, sem que
passe pelo império da razão, as vontades, às vezes, encoberta de um
101
Idem, p, 11. 102
Idem, p, 85.
75
apaixonado coração. A música nesta descrição parece, que em harmonia com
as coisas naturais, podendo talvez até melhorá-las, uma vez que, pode alegrar
aquilo que às vezes se encontra parado na natureza. Salinas cita o ensaio de
Rousseau, p, 177, que se pode conferir a seguir:
Ainda que toda a natureza esteja adormecida, aquele que a contempla não dorme; a arte do músico consiste em substituir a imagem insensível do objeto pela dos movimentos que sua presença excita no coração do contemplador. Não somente agitará o mar. Mas animará as chamas de um incêndio, fará correrem os riachos, cair a chuva e aumentará as torrentes, como também pintará o horror de um deserto tremendo, enegrecerá as paredes de uma prisão subterrânea, acalmará a tempestade, tornará o ar tranquilo e sereno e, lançará da orquestra, um novo frescor sobre os bosques103.
Já foi visto acima no momento em que Rousseau cita Platão, que a
República, além de ser importante do ponto de vista político, ela deve ser vista
também, como um belo tratado sobre a educação que até então, não fora
superado. Mas, na República, Platão convida os poetas a se retirarem. Em um
aparente comentário deste ponto, Salinas diz que, se Rousseau houvesse
escrito uma República, ao contrário de Platão, os expulsos seriam os filósofos.
“Antiplatonismo, por conseguinte. Não poderíamos até dizer que, em vez dos
“músicos”, Rousseau baniria da sua República ideal, ao contrário de Platão,
justamente os “filósofos”, caso houvesse alguém a ser expulso”? (Salinas,
1997, p, 85).
Continuando ainda na companhia de Salinas, vale ressaltar uma
importante nota da obra “Paradoxo do Espetáculo”, onde o autor diz que esse
modelo de teatro criticado por Rousseau é uma espécie de “missa dos
filósofos”. É por meio desses espetáculos que eles apresentam suas ideias
dogmáticas tão prejudiciais ao gênero humano. Segundo Salinas neste
momento os filósofos são concorrentes da Igreja que por sua vez, também
possui uma pretensão “narcisista”:
O teatro, a comédia Francesa, é a “missa”, a cerimônia religiosa dos philosophes. É por meio dele que eles tentam ganhar os espíritos, fazendo concorrência a Igreja. Ora, é contra os dois
103
Idem, p, 85.
76
partidos que Rousseau combate simultaneamente. E contra, justamente, aquilo que neles é comum, a sua pretensão “narcisista” à hegemonia e à universalidade, sua visceral intolerância e seu insuportável dogmatismo, cujos disfarces-especialmente no caso do partido filosófico não são capazes de esconder104.
Eis aí, um dos pontos que talvez, fizesse com que Rousseau expulsasse os
filósofos de sua República, caso houvesse escrito uma. Por relembrarmos essa
questão narcisista tão comentada por Rousseau em suas obras, vale
lembrarmos que Rousseau compôs uma comédie intitulada “Narcisse ou
l’Amant de lui-même”. Em tal peça, Rousseau mostra como o homem na
sociedade é enganado pelas aparências, mas que aparentam ser
verdadeiras105.
No prefácio de Narciso, Rousseau reafirma o já dito no Primeiro Discurso.
Uma das afirmações é que se pode dizer que as ciências e as artes são más
por si mesmo. Se a ciência é mal por natureza, ela não pode contribuir na
educação de um povo, pois entre aqueles tidos como ignorantes talvez
encontremos virtudes que não há entre os letrados (tidos como pessoas
virtuosas).
La science n’est bonne à rien, et ne fit jamais que du mal, car elle est mauvaise par sa nature. Elle n’est pas moins inséparable du vice que l’ignorance de la vertu. Tous les peuples lettrés on toujours été corrompus ; en un mot, il n’y a de vices que parmi les savants, ni d’homme vertueux que celui qui ne sait rien106.
Outro ponto interessante que vale a pena destacar aqui é o ataque que
Rousseau faz aos falsos filósofos. Para Rousseau, muitos filósofos de sua
época e também entre aqueles da época de Platão e Sócrates, como é o caso
de Protágoras, fundaram doutrinas opostas aquelas de seus antecessores e
esqueceram os ensinamentos desses verdadeiros mestres que sempre
estavam preocupados com questões relacionadas a virtudes e o bem estar de
todos:
Les premiers philosophes se firent une grande réputation en enseignant aux hommes la pratique de leurs devoirs et les
104
Nota sete, da pagina 148. 1997. 105
Repetimos a frase usada por Rousseau de Horacio: “somos enganados pela aparência do justo”. Ver Jean Starobinski, 2012, p, 38. 106
Rousseau, 2013, p, 32 do prefácio de Narciso. Apresentação e notas de Henri Coulet.
77
principes de la virtu. Mais bientôt ces préceptes étant devenus communs, il fallut se distingue en frayant des routes contraires. Telle est l’origine des systèmes absurdes des Leucippe, des Diogènes, des Pyrrhon, des Protagore, des Lucrèce. Les Hobbes, les Mandeville et mille autres ont affecté de se distinguer de même parmi nous107[...].
Todas essas inversões, adquiridas pelos homens ao longo da história fez
com que eles se transformassem em “homens efeminados”. Essa moleza é
criticada por Rousseau desde o Primeiro Discurso. Tal delicadeza adquirida,
segundo Rousseau faz com que o homem perca suas qualidades naturais tão
valorizadas, por exemplo, pelos Espartanos que, sempre aparecem como
contraponto ao povo degenerado. Entre esses homens que já nascem
efeminados, se encontram os homens de letras. Para Rousseau este perfil
delicado, não só amolece o corpo, mais ainda, a alma. Esse “novo homem”,
delicado, amante das letras e das artes, que trabalha sem que esteja exposto
ao sol nem a chuva, são aqueles homens de gabinetes (escritórios):
Le goût des lettres, de la philosophie et des beaux-arts amollit les corps et les âmes. Le travail du cabinet rend les hommes délicats, affaiblit leur tempérament, et l’âme garde difficilement sa viguer quand le corps a perdu la sienne. L’étude use la machine, épuise les esprits, détruit la force, énerve le courage108[...]
Rousseau diz que os escritores de sua época têm algo em comum, todos
escrevem sobre política, artes, e, luxo. Todos falam sobre essas coisas de
interesse pessoal. Tal interesse coloca todos os homens em dependência
mútua, o que não havia no estado de natureza. Assim, parece que o objetivo
desses escritores é favorecer o amor-próprio tão presente na vida social:
Nos Écrivains regardent tous comme le chef-d’oevre de la politique de notre siècle les sciences, les arts, le luxe, le commerce, les lois, et les autres liens qui resserrant entre les hommes les noeds de la société par l’intérêt personnel, les mettent tous dans une dépendance mutuelle, leur donnent des besoins réciproques, et des intérêts communs, et obligent chacun d’eux de concourir au bonheur des autres pour pouvoir faire le sien109.
107
IBIDEM, p, 34. Mais uma vez, talvez, Rousseau expulsaria de sua República os filósofos. 108
IBIDEM, P, 35. 109
IBIDEM, P, 37.
78
A citação acima mostra a contradição que, segundo Rousseau, há entre
aqueles escritores de filosofia, parece que o objetivo dos filósofos seria
defender o bem comum a todos, mas ao que parece cada um só está
preocupado apenas com sua estima pública. Esse momento do prefácio de
“Narcisse ou l’Amant de lui-même”, talvez, nos ajude a entender o porquê da
preocupação de Rousseau quanto à chegada do teatro francês naquelas
comunidades que ainda não tinham contato com a cidade grande, pois o gosto
pelo luxo trazido das grandes cidades poderia corromper os costumes desse
povo.
Parte III. 1. O primeiro motor do teatro
Rousseau já apresentou a mulher como o objeto de desejo presente
neste teatro à francesa. Então a partir desse momento voltaremos a observar o
papel dado às atrizes neste teatro e também o papel dos comediantes que
assim, como as atrizes são fundamentais para o sucesso dos espetáculos.
Comecemos pelas atrizes. Rousseau não economiza elogios às
mulheres diz que há aquelas que merecem serem ouvidas pelos homens por
serem amantes da virtude. Não há para Rousseau, algo mais encantador feito
pela natureza do que a mulher, mas, parece que essa mulher é algo raro.
Assim, essa joia rara aparentemente não pode ser encontrada no teatro que se
pretende instalar em sua pátria:
Peut y avoir dans le monde quelques femmes dignes d’êtres écoutées d’un honnête homme ; mais est-ce d’elles, en général, qu’il doit prendre conseil, et n’y aurait-il aucun moyen d’honorer leur sexe, à moins d’avilir le nôtre ? Le plus charmant objet de la nature, le plus capable d’émouvoir un coeur sensible et de le porter au bien, est, je l’avoue, une femme aimable et vertueuse ; mais cet objet célest, oú se cache-t-il ? n’est-il pas bien cruel de le contempler avec tant de plaisir au théâtre, pour en trouver de si différents dans la société ? Cependant le tableau séducteur fait son effet. L’enchantement causé par ces prodiges de sagesse tourne au profit des femmes sans honneur110.
110
Rousseau, 2003, p, 98. Pode haver no mundo algumas mulheres dignas de serem ouvidas por um homem de bem; mas será delas, em geral, que ele deve tomar conselho, e não haverá nenhum meio de honrar o sexo delas sem aviltar o nosso? O mais encantador objeto da natureza, o mais capaz de
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O grande problema para Rousseau, é que esse poder de sedução que a
mulher por natureza possui, quando apresentado no teatro pode ser perigoso,
principalmente para a juventude que não possui conhecimento empírico sobre
esse reino da mulher. Assim, voltemos para a importância que Rousseau dá
aos papéis que são dados a cada personagem quando em cena no teatro.
Essa fascinação da mulher representada pela atriz poderá conduzir o jovem a
caminhos inadequados em relação às virtudes, pois este poderá pensar que é
por intermédio das amantes que poderá alcançá-las:
Qu’un jeune homme n’ait vu le monde que sur la scène, le premier moyen qui s’offre à lui pour aller à la vertu est de chercher une maîtresse qui l’y conduise, espéran bien trouver une Constance ou une Cénie tout au moins. C’est ainsi que, sur la foi d’un modéle imaginaire, sur un air modeste et touchant, sur une douceur contrefaite, nescius auroe fallacis, o jeune insensé court se perdre, en pensant devenir un sage111.
Voltando a questão dos comediantes, Rousseau diz que em quase todos os
lugares estes profissionais do teatro são vistos como pessoas que possuem
por profissão algo que as desonram. Se observados os hábitos e costumes
tanto dos comediantes quanto das atrizes, segundo Rousseau, se vê que estas
pessoas são incapazes de administrarem suas próprias vidas, pois sempre se
encontram mergulhados em dívidas. Por terem se tornado pessoas
desequilibradas e avarentas, não escolhem quais são os meios pelos quais,
conseguirão dinheiro, tampouco onde gastá-lo:
Je vois en général que l’état de comédient est un état de licence et de mauvaises moeurs ; que les hommes y sont livrés au désordre ; que les femmes y mènent une vie scandaleuse ; que les uns et les autres, avares et prodigres tout à la fois, toujours
comover um coração sensível e de levá-lo ao bem é, confesso, uma mulher amável e virtuosa; mas onde se esconde esse objeto celeste? Não é muito cruel contemplá-lo com tanto prazer no teatro, para encontrar outro muito diferente na sociedade? No entanto, o quadro sedutor tem seu efeito. O encantamento causado por esses prodígios de sabedoria beneficia as mulheres sem honra. Rousseau, 1993, p, 65. 111
IBIDEM, p, 98. Se um rapaz só tiver visto o mundo no palco, o primeiro meio que se lhe oferece para alcançar a virtude é procurar uma amante que o leve até ela, na esperança de encontrar uma Constança ou pelo menos uma Cénie. É assim que, confiando num modelo imaginário, num ar modesto e tocante, numa doçura imitada, nescius aura fallacis, o jovem insensato corre à sua perda, pensando torna-se um sábio. Idem, p, 65.
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accablés de dettes et toujours versant l’argent à pleines mains, sont aussi peu retenus sur leurs dissipations que scrupuleux sur les moyens d’y pourvoir. Je vois encore que, par tout pays, leur profession est déshonorante, que ceux qui l’exercent, excommuniés ou non, son partout méprisés112 [...].
Mas, há lugares em que os comediantes são menos desprezados, como é o
caso de Paris. No entanto, até mesmo em Paris um burguês não aceitaria
conviver com um comediante que se vê todos os dias. Vale ressaltarmos que
Rousseau diz ser tal reprovação maior onde se preserva os costumes, o que
nos leva a pensar na questão das diferenças tão apontadas por ele já no início
da Carta:
[...] et qu’à Paris même, oú ils ont plus de considération et une meilleure conduite que partout ailleurs, un bourgeois craindrat de fréquenter ces mêmes comédiens qu’on voit tous les jours à la table des grands.[...] ce dédain est plus fort partout oú les moeurs sont plus pures, et qu’il y a des pays d’innocence et de simpliceté où le métier de comédien est presque en horreur113.
Segundo Rousseau, tais problemas destacados com respeito à profissão de
comediante são vistos por D’Alembert como preconceitos. Mas como surgiram
esses preconceitos senão da própria atuação dos comediantes em suas
profissões? Em segundo lugar, tais preconceitos não podem ser considerados
ideias dogmáticas extraídas do cristianismo, pois se assim fosse, não os teriam
observado entre os romanos antes da existência do Cristianismo que, por
exemplo, publicavam que os atores eram pessoas de caráter duvidoso e
igualavam as atrizes às prostitutas:
112
Rousseau, 2003, pp, 127-128. Vejo em geral que a condição de comediante é uma condição de licenciosidade e de maus costumes; que os homens se entregam à libertinagem; que as mulheres levam uma vida escandalosa; que ambos, avaros e pródigos ao mesmo tempo, sempre cheios de dívidas e sempre gastando dinheiro a rodo são tão pouco contidos em suas dissipações como pouco escrupulosos sobre os meios de sustentá-las. Vejo também que, em todos os países, sua profissão é desonrosa, que aqueles que a exercem, excomungados ou não, são desprezados [...]. Rousseau, 1993, p, 89. 113
IBIDEM, P, 128. [...], e até em Paris, onde gozam de maior consideração e têm uma conduta melhor do que em qualquer outro lugar, um burguês teria medo de frequentar esses mesmos comediantes que vemos todos os dias à mesa dos grandes. Esse desdém é mais forte onde os costumes são mais puros, e que existem lugares de inocência e de simplicidade onde se tem quase que horror do ofício de comediante. Rousseau, 1993, p, 89.
81
Voilà des faits incontestables. Vous. Me direz qu’il n’en résulte que des préjugés. J’en conviens : mais ces préjugés étant universels, il faut leur chercher une cause universelle, et je ne vois pas qu’on la puisse trouver ailleurs que dans la profession même à laquelle ils se rapportent. A cela vous répondez que les comédiens ne se rendent méprisables que parce qu’on les méprise ; mais pourquoi les eût-on méprisés s’ils n’eussent été méprisables ? Pourquoi penserait-on plus de mal de leur état que des autres, s’il n’avait rien qui l’en distinguât ? Volá ce qu’il faudrait examiner, peut-être, avant de les justifier aux dépens du public. Je pourrais imputer ces préjugés aux déclamations des prêtres, si je ne les trouvais établis chez les Romains avant la naissance du christianisme, et, non seulement courant vaguement dans l’esprit du peuple, mais autorisés par des lois expresses qui déclaraient les acteurs infâmes, leur ôtaient le titre et les droits de citoyens romains, et mettaient les actrices au rang des prostituées114 [...]
Após defender que as objeções feitas à tragédia e a comédia não podem
ser entendidas como preconceitos cristãos, uma vez que, entre os romanos tais
críticas já existiam, Rousseau fala da origem da tragédia que tem ligação direta
com questões religiosas. Se em sua origem a tragédia possuía por natureza
um caráter religioso, não era de interesse dos sacerdotes pagãos a sua
degeneração. Mas, se por um lado, os sacerdotes zelam pela essência do
trágico, não significa que os comediantes que têm uma profissão sustentada
pelo Estado, não possam ser criticados, pois, se o Estado autoriza uma
profissão imoral não quer dizer que seus atores sejam também por ele
protegidos:
Ici toute autre raison manque, hors celle qui se tire la nature de la chose. Les prêtres païens et les dévots, plus favorables que contraires à des spectacles qui faisaient partie des jeux consacrés à la religion,n’avaient aucun intérêt à les décrier, et ne
114
Rousseau, 2003, p, 128. Rousseau reafirma neste momento, parte do já dito com relação ao papel da mulher no teatro nas paginas, 98-99. 2003. Eis aí alguns fatos incontestáveis. V.Sa me dirá que eles só decorrem de preconceitos. Concordo: mas como esses preconceitos são universais, é preciso procurar uma causa universal para eles, e não vejo onde encontrá-la além de na própria profissão a que eles se referem. A isso V.Sa responde que os comediantes só se tornaram desprezíveis porque são desprezados; mas por que seriam desprezados se não tivessem sido desprezíveis? Por que se consideraria sua condição pior do que as outras, se não houvesse nada que os distinguisse? Eis aí o que seria preciso examinar, talvez, antes de justificá-los ás custas do público. Eu poderia imputar esses preconceitos ás declarações dos sacerdotes, se não os achasse estabelecidos entre os romanos antes do nascimento do cristianismo, e não apenas correndo vagamente na mente do povo, mas autorizados por leis expressas que declaravam infame os atores, tiravam-lhe o título e os direitos cidadão romanos e colocavam as atrizes entre as prostitutas [...]. Rousseau, 1993, p, 89.
82
les décriaint pas en effet. Cependant, on pouvait dès lors se récrier, comme vous faites, sur l’inconséquence de déshonorer des gens qu’on protège, qu’on paie, qu’on pensionne ; ce qui, à vrai dire, ne me paraît pas si étrange qu’à vous : car il est à propos qualquefois que l’État encourage et protège des professions déshonorantes, mais utiles, sans que ceux qui les exercent en doivent être plus considérés pour cela115.
Parece que prevendo mais uma possível objeção que poderia ser feita
ao seu texto, em defesa dos comediantes, Rousseau diz que tanto os
comediantes, quanto os histriões e os farsantes são semelhantes em suas
profissões. Aparentemente o que permite Rousseau fazer tais afirmações é o
fato dessas palavras serem sinônimos. Assim, se estes profissionais do teatro
possuem funções idênticas, todos devem ser vistos com certo grau de
igualdade, ou seja, de homens que talvez não sejam mal por si mesmos, mas
que possuem por profissão um ofício degradante que poderá corromper os
bons costumes de um povo:
J’ai lu quelque part que ces flétrissures étaient moins imposées à de vrais comédiens qu’à des histrions et farceurs qui souillaient leurs jeux d’indécence et d’obscénités ; mais cette distinction est insoutenable : car les mots de comédien et d’histrion ètaient parfaitement synonymes, et n’avaient d’autre différence, sinon que l’un ètait grec et l’autre ètrusque116.
Como se pode conferir acima, Rousseau afirma que a única diferença
existente entre estas duas palavras é que, uma é grega e a outra etrusca.
Citando Cícero e, em particular, O Livro do Orador, Rousseau diz que, segundo
115
Rousseau, 2003, p, 129. Parece que Rousseau neste momento está se referindo ao nascimento da tragédia. Tal assunto se encontra também na Poética de Aristóteles. Aristóteles diz que a tragédia teria nascido do ditirambo, já a comédia se originou dos cantos fálicos. Aqui toda outra razão vem a faltar, afora essa que tira da natureza da coisa. Os sacerdotes pagãos e os devotos, mais favoráveis do que contrários a espetáculos que faziam parte dos jogos consagrados à religião, não tinham nenhum interesse em denegri-los, e de fato não denegriam. No entanto, podia-se então protestar, como faz V. As., , contra a inconsequência de desonrar pessoas que protegemos, pagamos e pensionamos; o que, na verdade, não me parece tão estranho quanto a V. Sa: pois às vezes é valido que o Estado encorajem e proteja profissões desonrosas, mas úteis, sem que os que as exercem devam por isso gozar de maior consideração. Rousseau, 1993, p, 89. 116
Rousseau, 2003, p, 129. Li em algum lugar que essas ignomínias eram menos impostas aos verdadeiros comediantes do que a histriões e a farsantes que emporcalhavam suas cenas com indecências e obscenidades; mas essa distinção é indefensável: pois as palavras comediante e histrião eram perfeitamente sinônimas e não apresentavam nenhuma diferença, a não ser que uma era grega e a outra, etrusca. Idem, p, 90
83
Cícero, comediantes, histriões e farsantes, são iguais por profissão, e, ainda,
que é lamentável ver homens corretos exercendo uma profissão tão desonesta:
Cicéron, dans le livre de l’orateur, appelle histrions les deux plus grands acteurs qu’ait jamais eus Rome, Ésope et Roscius ; dans son plaidoyer pour ce dernier, il plaint un si honnête homme d’exercer un mètier si peu honnête. Loin de distiquer entre les comédiens, histrions et farcers, ni entre les acteurs des tragédies et ceux des comédies, la loi couvre indistinctement du même opproble tous ceux qui montent sur le théâtre117.
Continuando em sua analise a profissão de comediante, Rousseau ressalta
que há lugares onde essa profissão é vista com bons olhos, como já se teve a
oportunidade de se observar no caso citado anteriormente quando Rousseau
menciona a França. Mas, Rousseau analisa cuidadosamente as razões, por
exemplo, dos Romanos aceitarem essa profissão em seu território. Antes de
enumerar seis pontos que fizeram com que Roma, em princípio aceitasse a
tragédia e a comédia, Rousseau diz que os jovens romanos se apresentavam
em lugares abertos após as grandes apresentações o que fazia com que
houvesse uma exceção única à profissão de comediante. Mas, é importante
frisarmos que, fora dessa exceção, os comediantes eram, diz Rousseau,
tratados como escravos, sobretudo quando não conseguiam agradar o público:
Puisque la jeunesse de Roma représentait publiquement, à la fin des grandes pièces, les Atellanes ou Exodes, san déshonneur. Á cela près, on voit dans mille endroits que tous les comédiens indefférement, étaient esclaves, et traités comme tels, quand le public n’était pas content d’eux118.
117
Rousseau, 2003, p, 129. Cícero no Livro do Orador chama histriões aos dois maiores atores que Roma jamais teve Esopo e Roscius; em sua defesa deste último, ele lamenta que um homem tão honesto exercesse uma profissão tão pouco honesta.longe de fazer distinções entre comediantes histriões e farsantes, nem entre os atores das tragédias e os das comédias, a lei atinge indistintamente com o mesmo opróbrio todos aqueles que sobem ao palco. Idem, p, 90 118
IBIDEM, p, 130. Os jovens se apresentavam de maneira improvisada após os grandes espetáculos. É importante relembrarmos que, uma das objeções ressaltadas por Rousseau na Carta a d’Alembert é o fato do teatro Frances ser fechado em salas que ele assemelha a prisões e estas apresentações dos jovens Romanos ao contrario eram feitas ao ar livre. Já que a juventude de Roma representava publicamente, no final das grandes peças, as Atelanas ou Êxodos, sem desonra. Com essa exceção, vemos em mil lugares que todos os comediantes, indiferentemente, eram escravos, e tratados como tais, quando o público não ficava contente com eles. Rousseau, 1993, p, 90.
84
Um dos seis pontos, destacados por Rousseau, que fizeram com que a
Grécia aceitasse a tragédia e a comédia, se deve ao fato dos gregos terem
criado os dois gêneros. Ora, sendo o povo grego os inventores desses
espetáculos apresentados em espaços livres, não poderiam eles possuir
prejulgamento deles. Além do mais, tais espetáculos não poderiam prejudicar
os hábitos e costumes desse povo, porque esses costumes já haviam fixado.
Eis aí, um ponto importante que talvez mereça nossa atenção:
La tragédie ayant été inventée chez les Grecs, aussi bien que la comédie, ils ne pouvaient jeter d’avance une impression de mépris sur un état dont on ne connaissait pas encore les effets ; et, quand on commença de les connaître, l’opinion publique avait déjà pris son pli119.
Em segundo lugar, a questão religiosa teve papel decisivo nas peças que
eram ali apresentadas. Não se pode esquecer que os cânticos corais (o
ditirambo) eram entoados em homenagem ao deus Dioniso. Assim, como os
atores dessas peças possuíam a primeiro momento a função de representar os
sacerdotes e cultivar aquilo que estava voltado às divindades, não poderiam
eles prejudicar os costumes: ”Comme a tragédie avait quelque chose de sacré
dans son origine, d’abord ses acteurs furent plutôt regardés comme des prêtres
que comme des baladins120”.
Outra questão que não é menos importante para o assunto tratado na
Carta, é a questão da nacionalidade. Relembremos que um dos principais
pontos que segundo Rousseau não foi levado em conta por D’Alembert no
momento em que propôs a instalação do teatro francês em Genebra é a
questão das diferenças, uma vez que, para Rousseau o homem é e não é o
mesmo, isso porque os costumes de cada país são muito diferentes. O motivo
da repetição aqui, é que o terceiro ponto ressaltado por Rousseau fala da
origem dos conteúdos das peças gregas que é justamente a nacionalidade. A
119
Rousseau, 2003, p, 130. A tragédia foi inventada pelos gregos, assim, como a comédia, eles não podiam ter antecipadamente uma impressão de desprezo por uma condição cujos efeitos ainda não se conheciam; e, quando começaram a ser conhecidos, a opinião pública já se havia fixado. Rousseau, 1993, p, 90 120
IBIDEM, p, 130.
85
nacionalidade é preservada porque os temas são extraídos das antiguidades
nacionais:
Tous les sujets des pièces n’étant tirés que des antiquités nationales dont les Grecs étaient idolâtres, ils voyaient dans ces mêmes acteurs moins des gens qui jouaient des fables que des citoyens instruits qui représentaient aux yeux de leurs compatriotes l’histoire de leur pays121.
O quarto ponto diz respeito à crença do povo grego na liberdade. Tal povo
acreditava que os gregos eram os únicos homens que poderiam afirmar ser
livres por natureza. Essa crença na liberdade levava esse povo a sentir
emoção na sua antiga condição, que para ele era inferior, quando representada
na tragédia122:
Ce peuple, enthousiaste de sa liberté jusqu’à croire que les Grecs ètaient les seuls hommes libres par nature, se rappelait avec un vif sentiment de plaisir ses anciens malheurs et les crimes de ses maîtres. Ces grands tableaux l’instruisaient sans cesse, et il ne pouvait se défendre d’un peu de respect pour les organes de cette instruction123.
O quinto ponto parece ser de suma importância para que se compreenda
qual é a questão principal de Rousseau na Carta a d’Alembert. Já vimos que as
questões relacionadas ao amor são analisadas talvez de maneira exaustiva na
Carta. Tais análises possuem referências diretas as funções dadas às
mulheres que se apresentam no teatro. Segundo Rousseau, se em sua origem
o teatro não possuía mulheres em cena, não poderia existir más influências
que fizessem do teatro escolas de maus costumes: “La tragédie n’étant d’abord
121
(Rousseau, 2003, p, 130). Sendo todos os temas das peças tirados apenas das antiguidades nacionais de que os gregos eram idólatras, eles viam nesses mesmos atores menos pessoas que representavam fábulas do que cidadãos instruídos que representavam diante de seus compatriotas a história de seu país. Rousseau, (1993, p, 90). 122
Neste momento talvez seja impossível que não se admita a função de purificação defendida por Aristóteles na Poética. 123
IBIDEM, P, 131. Entusiastas de sua liberdade a ponto de acreditar que os gregos eram os únicos homens livres por natureza, esse povo lembrava-se com forte sentimento de prazer de suas antigas desgraças e dos crimes de seus senhores. Esses grandes quadros o instruíam sem parar, e ele não podia impedir-se de ter um pouco de respeito pelos porta-vozes dessa instrução. Idem, p, 90.
86
jouée que par des hommes, on ne voyait point, sur leur théâtre, ce mélange
scandaleux d’hommes et de femmes qui fait des nôtres autant d’écoles de
mauvaises moeurs”. (Rousseau, 2003, p, 130).
E por último, diz Rousseau, em sua origem o teatro não tinha por objetivo
interesses avaros, tampouco seus espetáculos eram apresentados em salas
escuras onde só assistiam aqueles que podiam pagar, e os atores por sua vez,
eram também corrompidos observando quem entrava pela porta para ver se de
um deles conseguiria o jantar:
Enfin leurs spectacles n’avaient rien de la mesquinerie de ceux d’aujord’hui. Leurs théâtrès n’étaient point élevés par l’intérêt et par l’avarice ; ils n’étaient point renfermés dans d’obscures prisons ; leurs acteurs n’avaient pas besoin de mettre à contribution les spectateurs, ni de compter du coin de l’oeil les gens qu’ils voyaient passer la porte, pour être sûrs de leur souper124.
Foi assim, que segundo Rousseau, o povo grego assistia seus espetáculos a
céu aberto e sempre elogiava os vencedores dos jogos e aqueles tidos como
os primeiros homens da nação. No entanto, toda a Grécia com exceção de
Esparta, nunca foi citada como uma nação possuidora de bons costumes.
Assim, apesar de seu êxito, parece que para Rousseau a melhor saída é não
tolerar espetáculos, por mais que estes pareçam possuir boas intenções para
com o povo ao qual é destinado:
Ces grands et superbes spectacles donnés sous le ciel, à la face de toute une nation, n’ offraient de toutes parts que des combats, des victoires, des prix, des objets capables d’inspirer aux Grecs une ardente émotion, et d’échauffer leurs coeurs de sentiments d’honneur et de gloire. C’est au milieu de cet imposant appareil, si propre à élever et remuer l’âme, que les acteurs, animés du même zèle, partageaient, selon leurs talents, les honneurs rendus aux vainqueurs des jeux, souvent aux premiers hommes de la nation. Avec tout cela, jamais la Grèce, exceptés Sparte, ne
124
IBIDEM, p, 131.
Enfim, seus espetáculos nada tinham da mesquinharia dos de hoje em dia. Seus teatros não eram erguidos pelo interesse e pela avareza; os atores não precisavam fazer os espectadores pagarem, nem contar com o rabo do olho as pessoas que viam passar pela porta, para terem certeza do jantar. Idem, p, 91.
87
fut ciée en exemple de bonnes moeurs ;et Sparte, qui ne souffrait point de théâtre, n’avait garde d’honorer ceux qui s’y montrent125.
Parece ficar claro acima o elogio que Rousseau faz a Esparta que, por não
aceitar a apresentação de teatros em seu território. As referências a esse povo
guerreiro que se diferenciavam dos demais habitantes da Grécia aparecem na
obra de Rousseau, desde o Primeiro Discurso, quando o filósofo genebrino
critica o restabelecimento das ciências e das artes, como já tivemos a
oportunidade de ver em momentos anteriores.
2. O reino dado à mulher é verdadeiro?
Como visto ao longo deste texto, Rousseau parece dar atenção especial ao
papel dado à mulher neste teatro que se pretende instalar em Genebra. A
preocupação de Rousseau se sustenta, no fato da mulher possuir para ele, por
natureza, o domínio sobre os homens. Mas, vale ressaltar que, para Rousseau
a mulher neste meio também é prejudicada, porque está sendo enganada por
aqueles homens que comandam este tipo de teatro. Para ilustrar seus
argumentos Rousseau cita a seguinte máxima: “aquele que quer conhecer os
homens precisa estudar as mulheres”. Ele diz não ter encontrado opositores
neste ponto, mas quando defende que, as mulheres de bons costumes não
devem se exibir em público, uma vez que suas funções devem limitar-se aos
afazeres domésticos, sabe que logo haverá muitos que falarão contra ele:
Voulez-vous donc connaître les hommes? Étudiez les femmes. Cette maxime est générale, et jusque-là tout le monde sera d’accord avec moi. Mais si j’ajoute qu’il n’y a point de bonnes moeurs pour les femmes hors d’une vie retirée et domestique ; si je dis que les paisibles soins de la famille et du ménage sont leur partage, que la dignité de leur sexe est dans sa modestie, que la honte et la pudeur sont en elles inséparables de l’honnêteté, que rechercher les regards des hommes c’est déjà s’en laisser
125
Rousseau, 2003, p, 131. Esses grandes e soberbos espetáculos que aconteciam a céu aberto, diante de toda uma nação, só ofereciam por toda parte combates, vitórias, prêmios, objetos capazes de inspirar aos gregos uma ardente rivalidade, e de aquecer seus corações com sentimentos de honra e de glória. Foi em meio a esse importante aparato, tão propício a elevar e comover a alma, que os atores, animados pelo mesmo zelo, compartilham, segundo seus talentos, as honras prestadas aos vencedores dos jogos e não raros aos primeiros homens da nação. Com tudo isso, nunca a Grécia, com a exceção de Esparta, foi citada como exemplo de bons costumes; e Esparta, que não tolerava o teatro, não se preocupava em honrar os que nele se mostravam.
88
corrompre, et que toute femme qui se montre se déshonore : à l’instant va s’élever contre moi cette philosophie d’un jour qui naît et meurt dans le coin d’une grande ville, et veut étouffer de là le cri de la Nature et la voix unanime du genre humain126.
Ainda em relação a essa exposição da mulher em público, destacamos a
importante passagem da Carta a d’Alembert onde Rousseau comenta a
repercussão do beijo dado por um dos membros do senado Romano em sua
mulher. A censura aconteceu devido a tal beijo ter ocorrido na presença da filha
do casal, o que poderia segundo esse julgamento, levar a jovem à imoralidade.
Assim, mais uma vez, Rousseau parece chamar à atenção a questão do amor
que é posto em cena no teatro:
Quando o patrício Manilius foi expulso do senado de Roma por ter dado um beijo em sua mulher na presença da filha, a se considerar apenas a ação em si mesma, que tinha ela de repreensível? Nada, sem dúvida: anunciava até um sentimento louvável. Mas os castos ardores da mãe podiam inspirar outros ardores impuros à filha. Portanto, isso era fazer de uma ação muito honesta um exemplo de corrupção. Eis aí o efeito dos amores permitidos do teatro (Rousseau, 1993, p, 68).
Em oposição aos espetáculos apresentados em salas escuras cujo modelo é
francês e inglês, Rousseau diz não se cansar de citar as festas populares
genebrinas e espartanas. Rousseau observa que enquanto as artes reinavam,
por exemplo, em Atenas, levando a moleza e a corrupção provocada pelo luxo,
os espartanos continuavam praticando seus exaustivos exercícios e
trabalhando em seus grosseiros afazeres, como se estes fossem para eles,
uma diversão que só tinha trégua em tempo de guerra:
Ainsi rappelait ses citoyens, par des fêtes modestes et des jeux sans éclat, cette Sparte que je n’aurai jamais assez ciée pour l’exemple que nous devrions en tirer ; ainsi dans Athènes parmi les beaux-arts, ainsi dans Suse au sein du luxe et de la mollesse, le Spartiate ennuyé soupirait après ses grossiers festins et ses
126
Rousseau, 2003, p, 135. Quer V.Sa. conhecer os homens? Estude as mulheres. Essa máxima é geral, e sobre isso todos estarão de acordo comigo. Mas se acrescento que não existem bons costumes para as mulheres fora de uma vida retirada e doméstica; se digo que os tranquilos cuidados da família e do lar são a parte que lhes cabe, que a dignidade de seu sexo está na modéstia, que para elas a vergonha e o pudor são inseparáveis da honestidade, que procurar os olhares dos homens é já deixar-se corromper por eles, e que toda mulher que se exibe se desonra: imediatamente vai levantar-se contra mim essa filosofia efêmera que nasce e morre numa esquina de grande cidade, e quer Dalí sufocar o grito da natureza e a voz unânime do gênero humano. Rousseau, 1993, p, 94.
89
fatigants exercices. C’est à Sparte que, dans une laborieuse oisiveté, tout était plaisir et spectacle ; c’est lá que les plus rudes travaux passaient pour des récréations, et que les moindres délassements formaient une instruction publique ; c’est lá que les citoyens, continuellement assemblés, consacraient la vie entière à des amusements que faisaient la grande affaire de l’État, et à des jeux dont on ne se délassait qu’à la guerre127.
Mais uma vez, parece que prevendo uma possível objeção do fato de ter ido
buscar exemplo tão longínquo, Rousseau se antecipa e responde que haverá
quem questione o porquê dele não ter sugerido também para a Genebra do
século XVIII, as danças das jovens espartanas. A resposta dada por Rousseau
é que ele gostaria de ver os costumes de tais jovens sendo praticados pelas
moças de sua pátria. Mas, Rousseau não é nenhum ingênuo, sabe que certos
costumes dos espartanos são impossíveis de serem praticados pelos cidadãos
genebrinos, e diz que só convidará tais homens, a praticar aqueles que crê
ainda ser possível:
J’entends déjà les plaisants me demander si, parmi tant de merveilleuses instructions, je ne veux point aussi, dans nos fêtes genevoises, introduire les danses des jeunes Lacédémonienes ? Je réponds que je voudrais bien nous croire les yeux et les coeurs assez chastes pour supporter un tel spectacle, et que de jeunes personnes dans cet état fussent à Genève comme à Sparte couvertes de l’honnêteté publique ; mais, qualque estime que je fasse de mes compatriotes, je sais trop combien il a loin d’eux Lacédémoniens, et je ne leur propose des institutions de ceuxci que celles dont ils ne sont pas encore incapables128.
127
(Rousseau, 2003, p, 190). Assim chamava de volta seus cidadãos, com festas modestas e jogos sem brilhos, essa Esparta que nunca citaria demais para exemplo do que deveríamos dela tirar; assim, em Atenas, em meio às belas-artes, assim em Susa em meio ao luxo e à moleza, o espartano entediado suspirava por seus grosseiros festins e seus cansativos exercícios. Era em Esparta que, numa laboriosa ociosidade, tudo era prazer e espetáculo; era lá que os mais rudes trabalhos eram considerados recreações, e que os menores lazeres criavam uma instrução pública; era lá que os cidadãos, continuamente reunidos, consagravam a vida inteira a diversões que eram o principal negócio do Estado, e a jogos de que só descansavam na guerra. Rousseau, 1993, p, 134. 128
IBIDEM, p, 191. Ouço já os engraçadinhos que me perguntam se, dentre tantas maravilhosas instruções, não quero também, em nossas festas genebrinas, introduzir as danças das moças lacedemônias? Respondo que gostaria de acreditar que nossos olhos e nossos corações fossem castos o bastante para suportarem um tal espetáculo, e que as moças nessa condição fossem em Genebra como em Esparta cobertas pela honestidade pública; mas, por maior que seja a estima que tenho de meus compatriotas, sei muito bem quão longe estão dos lacedemônios, e das instruções destes últimos só lhes proponho aquelas de que ainda não são incapazes. Idem, p, 134.
90
É assim, que Rousseau insiste nas festas populares que gostaria de ver em
Genebra. O modelo espartano é bem visto por ele, devido à simplicidade e
também pela preservação dos antigos costumes pelos jovens que não tem por
objetivo a veneração do luxo. Outro ponto admirado por Rousseau em tais
festas é o amor à pátria por parte desses jovens que receberam, desde cedo,
instruções neste sentido. Dessa forma, diz Rousseau, todos voltam para casa
alegres e satisfeitos com sua pátria e consigo mesmo.
Para alguém que não viveu no século XVIII e que desconheça os costumes
dos antigos tão valorizados por Rousseau, e, que conhecendo discorde que
eles sejam melhores do que aquele praticado no século das luzes poderá
talvez, afirmar ser absurdo que um filósofo diga que quando as mulheres
viviam limitadas ao ceio doméstico, se encontravam em seu devido lugar. Além
de algumas mulheres viverem limitadas a vida caseira, havia também, aquelas
que eram obrigadas, por exemplo, a casar-se contra sua vontade. Não é raro
ainda, encontrarmos ao longo da história, mulheres que não encontrado
casamento mesmo contra sua vontade, viam-se obrigadas a encerra-se em
conventos. Mas, havia aquelas que se destacavam e tornavam-se “senhoras
de si”, estas, reinavam nos grandes salões onde o luxo é posto acima de tudo.
Mas será que esse seu reinado é verdadeiro? Vejamos o que diz Starobinski:
La femme règne ( on lui fait croire gu’elle règne). C’est autour d’elle que flotte la promesse du plaisir. Mais sa situation est ambiquë. Pour quelques-unes qui sont maitresses d’elles-mêmes, qui règnent sur les salons par leur esprit et leur science, combien d’autres en revanche que l’on traite en objets : enfermées dans des couvents, mariée contre leur gré, conquises par ruse. L’histoire nous apprend que la majorité restent strictement confinées dans le ménage où elles exerceront leurs vertus domestiques. Mais il en va autrement en ces terres d’élection de la richesse, où brille le luxe et où l’art se dépense. La femme gu’un destin dépend de ses faveur : le soupirant n’a cependant point d’autre ambition que d’avoir une femme de plus.
Continuando em sua análise acerca da mulher, Starobinski, diz que não se
pode ficar surpreso se em seguida a mulher, assim como já o faz neste meio o
homem, também aprenda a arte do disfarce. Ora, parece que neste meio o que
interessa é parecer que é alguma coisa, ficando assim, o ser em segundo
plano, se é que, o “verdadeiro” possua algum lugar neste momento:
91
Nulle surprise si bientôt la femme se masque à sont tour et rivalise d’hypocrisie avec l’homme : le sentiment n’est plus guère que le point d’honneur du désir. Les protestations tendres sont le langage chiffré de l’impatience charnelle, le prélude intelligent aux défaites de la raison129.
Assim, neste meio onde prevalece o reino das máscaras, a razão parece
fracassar, pois dá lugar ao reino dos prazeres que mesmo passageiros, têm o
poder de dominar a maioria. Se a razão possuísse lugar nos espetáculos que
têm por finalidade agradar despertando os desejos desenfreados pelos
prazeres, as representações teatrais não poderiam causar nenhum mal aquele
que as assistem, mas com essa atuação da mulher descrita por Starobinski
onde ela se mascara e se torna tão hipócrita quanto o homem, tudo se
degenera.
Em sua exposição de como é tratado o mundo dos prazeres no século XVIII,
Starobinski talvez ajude o leitor a compreender o lugar que ocupa a atriz neste
momento descrito por Rousseau. Tais comentários parecem deixar claro que a
mulher neste meio encontra-se a venda. É importante ressaltar que não são
todas as mulheres, mas aquelas que possuem o papel de amantes daqueles
que podem comprá-las:
Par les effets conjugués de l’esptrit et du décor, la vie acquiert sa mobilité de fiction, son allure de divertissement. Une rhétorique agile s’ingénie à désigner son objet ( ou son défaut d’objet) à travers les images d’autre chose. Ainsi l’on met le masque sans intention de rester masqué ; l’on s’avance à découvert sans projet d’être sincère. A rhétorique des doubles registres correspond symboliquement la pratique de la doublevie. Le riche a femme et maîtresses, maisons de ville et « petites maison ». A peine clandestin, le plaisir requiert cependant un domaine consacré, des lieux séparés, un territoire propice : l’actrice, virtuose du dédoublement, en sera l’habitante prédestinée130.
Continuando a tratar sobre o reino dos prazeres existentes na França do
século XVIII, o autor mostra como aqueles amantes, que parecem caminhar em
direção à degeneração dos costumes, criam meios para que suas fantasias
possam se libertar sem que sejam freadas. Assim, a existência dessas
pequenas casas paralelas aquelas primeiras da classe burguesa, são refúgios
129
Starobinski, 1700-1789, p, 55. 130
IBIDEM, p, 56.
92
apropriados para viver essas emoções passageiras, onde as mulheres são
meros objetos de prazeres passageiros. Starobinski expõe o relato de um
frequentador que diz ter alugado uma dessas casas onde se “alugava” também
moças que se tinham como meros objetos de desejo:
«On avait alors la fureur des petites maisons, déclare un personnage des Bijoux indiscrets, j’en louai une dans le faubourg oriental et j’y plaçai sucessivement quelques-unes de ces filles qu’on voit, qu’on ne voit plus ; à qui l’on parle, à qui l’on ne dit mot, et qu’on renvoie quand on en est las : j’y rassemblais des amis et des actrices de l’Opéra ; on y faisait des petits soupers, que le prince Erguebzed a quelques fois honorés de sa présence. Ah! madame, j’avais des vins délicieux, des liqueurs exquises et le meilleur cuisinier du Congo. » C’est la France (sous le nom de Congo), mais c’est aussi l’Opéra, sans déguisement, parce que l’Opera appartient déjá à l’universdu déquisement. Le plaisir a son royaume dans un monde parallèle, à la fois homogène et dispersé131.
Assim, Starobinski mostra a complexidade existente neste jogo de quem
reina e de quem é submisso. Em tal jogo existente entre o ser e o parecer, faz-
se com que a mulher pense que é dona da situação, mas o que ocorre é o
oposto, uma vez que, ela ao mesmo tempo em que comanda é também
subordinada. Essa submissão ocorre porque a mulher encontra-se na posição
de prostituta convidada, pronta para saciar os desejos dos poderosos e quando
não serve mais é desprezada como se fora um objeto qualquer.
Voltando as criticas apresentadas por Rousseau ao teatro que se pretende
instalar em Genebra, relembremos que uma das objeções postas pelo filósofo
genebrino diz respeito à questão das diferenças. Segundo Rousseau,
d’Alembert talvez tenha esquecido este ponto antes de tal proposta. Rousseau
diz, é verdade que o homem é uno, mas ao mesmo tempo ele também é
múltiplo, pois os costumes e os climas possuem suas particularidades em cada
região o que influencia também o homem. Tais observações aparecem também
na obra intitulada “A Nova Heloísa” (La Nouvelle Héloïse). Nas Cartas XVI e
XVII da 2ª parte destinada a Júlia, Rousseau fala das diferenças existentes
entre os povos. Se levada em conta tais diferenças, quem tem como objetivo
estudar um povo não deve ter como ponto de partida as grandes cidades como
131
IBIDEM
93
Paris, mas deve ir aos lugares distantes onde a seu ver, os costumes são
preservados e não há uma rotulação geral como ocorre em Paris:
Não seria tão inábil a ponto de escolher a Capital como local de minhas observações. Não ignoro que as Capitais diferem menos entre si do que os povos e que os caractes nacionais nelas se apagam e se confundem em grande parte, tanto por causa da influência comum das Cortes, que se parecem todas, quanto pelo efeito comum de uma sociedade numerosa e restrita, que é mais ou menos o mesmo sobre todos os homens e prevalece, finalmente, sobre o caráter original. Se quisesse estudar um povo, é nas províncias longínquas, onde os habitantes têm ainda suas inclinações naturais, que iria observá-los. Meu objetivo é conhecer o homem e meu método o de estudá-lo em suas diferentes relações. (Rousseau, 1994, p, 219).
Rousseau parece deixar claro que o homem do campo é mais próximo
talvez, do que se pode entender por “homem natural”, mais admite não ser fácil
chegar a uma conclusão daquilo que seria a sociedade. A dificuldade segundo
Rousseau, está no fato do filósofo encontrar-se muito distante da sociedade,
enquanto que o homem comum por estar inserido nela, não possui tempo para
refletir sobre aquilo que está a sua vista. Assim, tanto o homem comum quanto
o filósofo parece encontrarem-se em uma aporia da qual talvez não exista
saída:
Assim, começo a ver as dificuldades de estudar a sociedade e nem mesmo sei em que lugar é preciso colocar-se para conhecê-la bem. O filósofo dela está longe demais, o homem da sociedade está perto demais. Um vê demais para poder refletir, o outro demasiadamente pouco para julgar o quadro total. Cada coida que impressiona o filósofo, ele considera separadamente e, não podendo discernir nem suas ligações nem suas relações com outras coisas que estão fora de seu alcance, nunca a vê em seu lugar e não sente nem sua razão nem seus verdadeiros efeitos. O homem da sociedade vê tudo e não tem tempo para pensar em nada. A mobilidade das coisas permite-lhe apenas percebê-las e não observá-las; apagam-se mutuamente com rapidez e do conjunto apenas lhe restam impressões confusas que se assemelham ao caos. (Rousseau, 1994, p, 222).
Mesmo admitindo não ser fácil afirmar o que é o homem, uma coisa
Rousseau parece deixar claro, o homem da cidade é desfigurado, alienado,
atrapalhado. Esse “novo ser” não sabe quem é, nem porque faz, e tampouco
porque participa de determinadas coisas que lhes são impostas. Rousseau fala
dos jantares que acontecem em Paris onde as pessoas convidadas se
94
encontram para conversarem sobre assuntos que não são tratados durante o
dia. Em tais jantares, as mulheres possuem “maior liberdade” para se
expressarem e talvez se possa conhecê-las melhor. Rousseau observa a
vulgaridade existente em Paris, questiona o porquê de assuntos relacionados
ao bem e o mal serem tratados como se estas palavras fossem sinônimas.
Então, diz Rousseau, o que resta fazer em uma cidade que entende tudo
somente do ponto de vista do divertimento? Que lugar possui a virtude nesta
sociedade?
É lá que as mulheres se controlam menos e que se pode começar a estudá-las; é lá que reinam com maior tranquilidade conversas mais finas e mais satíricas, é lá que em lugar de das gazetas, dos espetáculos, das promoções, dos mortos, dos casamentos, de que se falou pela manhã, passa-se discretamente em revistas as anedotas de Paris, que se revelam todos os acontecimentos secretos da crônica escandalosa, que se tornam o bem e o mal igualmente divertido e ridículo e que, pintando com arte segundo o interesse particular os caractes dos personagens, cada interlocutor, sem pensar, pinta ainda muito melhor o seu próprio. Que resta censurar onde a virtude não é mais estimada e de que serve a maledicências onde nada mais é considerado mau? Em Paris, sobretudo, onde somente se tomam as coisas pelo seu lado divertido, tudo o que deve excitar a coleta e a indignação é sempre mal recebido132.
Em Paris, continua Rousseau, as pessoas não possuem opinião própria,
porque sempre copiam umas das outras o modelo do momento. Tais pessoas
são como marionetes conduzidas sem que se leve em consideração suas
decisões ou vontades. Se todas as pessoas se comportam da mesma maneira,
diz ele, os acontecimentos têm o mesmo significado para todas. Assim, em
Paris o homem foi rotulado e não possui consciência de si, uma vez que vive
segundo o modelo pré-estabelecido reinante nas grandes cidades:
Todo mundo faz ao mesmo tempo a mesma coisa nas mesmas circunstâncias: tudo é regulado pelo tempo como os movimentos de um regimento numa batalha. Diríeis que são marionetes pregadas na mesma prancha ou puxadas pelo mesmo fio. Ora, como não é possível que todas as pessoas que fazem exatamente a mesma coisa sejam afetadas exatamente da mesma maneira, é claro que é preciso penetrá-las por outros meios para conhecê-las, é claro que todo esse jargão não é
132
Talvez neste momento da Nova Heloísa (p, 224), se possa observa porque Rousseau reprova o modelo de teatro Frances. Já vimos que o objetivo do teatro segundo d’Alembert é educar e agradar, mas segundo Rousseau é impossível que ele possua esta dupla função.
95
senão uma vã coletânea de fórmulas e serve menos para menos para julgar os costumes do que o tom que reina em Paris. (Rousseau, 1994, p, 227).
Rousseau reafirma neste momento na Nova Heloísa o que já havia
defendido desde o primeiro Discurso, a saber, que quando o homem passa do
estado natural para o estado social é desfigurado a ponto de ficar
irreconhecível. O ataque à literatura da época também é frequente nos escritos
do genebrino, sobretudo quando se trata dos novos escritores. Como bem
escreveu Michel Launay na introdução do Émile, onde diz que « La littérature
et le savoir de notre siècle tendent beaucoup plus à détruire qu’à édifier ».(
Rousseau, 1966, p, 15).
Quando se trata do autor Molière, Rousseau é categórico. Já vimos que na
Carta a d’Alembert o ataque a Molière é rigoroso. Segundo Rousseau as peças
escritas por este autor se preocupam em mostrar conversas atraentes
deixando-se de lado os costumes do povo. Este é um dos pontos, como vimos
em momentos anteriores que faz com que Rousseau sustente que o século
XVIII, copia as tragédias gregas, porém as modificam a tal ponto que estas
ficam irreconhecíveis:
Digo o mesmo quanto à maioria dos novos escritores; digo o mesmo da própria Cena que, desde Molière, é mais um lugar em que se declaram bonitas conversas do que a representação da vida civil. Há aqui três teatros, em dois dos quais representam-se Seres quiméricos, a saber, num Arlequins, Pantalons, Scaramouches; no outro,Deuses, Diabos, feiticeiros. No terceiro representam-se essas peças imortais cuja leitura nos fazia tanto prazer e outras mais novas que são levadas de tempos em tempos no palco. Várias dessas peças são trágicas, mas pouco emocionantes e, se nelas encontramos alguns sentimentos naturais e alguma verdadeira ligação com o coração humano, não oferecem elas nenhuma espécie de instrução sobre os costumes particulares do povo que divertem133.
Em seguida Rousseau fala sobre a origem da Tragédia que, como se
“sabe”, em sua origem os autores se limitaram a tratar de assuntos
relacionados à religião. Entre os gregos, diz Rousseau, a tragédia servia para
133
Rousseau, 1994, p, 227. Já vimos que Rousseau reconhece o talento de Molière, quando diz na Carta a d’Alembert que este autor é um dos maiores do século XVIII.
96
instruir e agradar, mas entre os franceses, ela não pode possuir essa dupla
função:
A instituição da tragédia tinha, em seus inventores, um fundamento de religião que bastava para dar-lhe autoridade. Aliás, ela oferecia aos gregos um espetáculo instrutivo e agradável na infelicidade dos Persas, sem inimigos; nos crimes e na loucura dos Reis de que esse povo se libertava. Se representar em Berna, Zurique ou Haia a antiga tirania da casa da Áustria, o amor da pátria e da liberdade nos tornará essas peças interessantes; mas que me digam para que servem aqui as tragédias de Corneille[...] As tragédias gregas versavam sobre acontecimentos reais ou considerados tais pelos
espectadores e baseados em tradições históricas134.
Voltando a comédia Rousseau fala dos autores que desde Aristófanes
tentaram purgar os defeitos do homem expondo- os em público135. Do ponto de
vista de Rousseau todos os autores de comédia que tentaram corrigir tais
defeitos fracassaram. Ora, para Rousseau a comédia não pode representar os
costumes de um povo. Na França tal empreitada coube a Molière que
Rousseau diz ter também fracassado por ter pintado o povo francês somente
do seu ponto de vista:
Quanto à comédia, é certo que deve apresentar ao natural os costumes do povo para o qual foi escrita para que se corrija de seus vícios e de seus defeitos como se retiram diante de um espelho as manchas do próprio rosto. Terêncio e Plauto enganaram-se em seu objetivo, mas antes deles Aristófanes e Menandro haviam exposto aos atenienses os costumes atenienses e posteriormente só Molière pintou ainda com maior ingenuidade os franceses do século passado a seus próprios olhos136.
Rousseau continua criticando os autores de comédia contemporâneos a si.
Para Rousseau não é possível que se represente os costumes de um povo
através de fragmentos como o fazem estes autores. Segundo esta observação
o homem do povo nunca é representado no palco, só se vê pessoas
escolhidas. Parece que ocorre certa bajulação por parte dos autores de
comédia dessa época a classe burguesa. Pois o que se vê no teatro são
134
IBIDEM, p, 227. 135
Este assunto é tratado por Rousseau na Carta a d’Alembert, quando o filosofo critica a catarse defendida por Aristóteles na Poética. Como já vimos anteriormente 136
IBIDEM, p, 228.
97
conversas supérfluas. Tais conversas inúteis ao ver de Rousseau não
contribuem em nada para que se preservem os costumes:
Agora copiam- se no teatro as conversas de uma centena de casas em Paris. Fora disso, nada se aprende sobre os costumes dos franceses. Há nesta grande cidade quinhentas ou seiscentas mil almas de que nunca se viu falar no palco. Molière ousou pintar burgueses e artesãos tanto quanto Marqueses; Sócrates fazia falar cocheiros, marceneiros, sapateiros, operários. Mas ou autores de hoje, que são pessoas de outro meio, considera-se iam desonrados se soubessem o que acontece no balcão de um negociante ou na oficina de um operário; só desejam interlocutores ilustres e procuram na categoria social de seus personagens a elevação que não podem extrair de seu gênio137.
Neste momento da Nova Heloísa, assim, como já o fez na Prosopopéia de
Fabrício, Rousseau traz para o século XVIII uma importante personagem do
passado, não com objetivo nostálgico, mas com finalidade de despertar o que
estava adormecido, e talvez não possa ser mais resgatado, uma vez que se
vive em uma época degenerada. Não que a antiguidade não tenha também
seus pontos negativos, mas ao que é sabido, Sócrates foi um homem que
viveu de maneira natural e não compartilhava da corrupção de Atenas do seu
tempo.
Os modos efeminados dos homens de seu tempo é assunto presente na
obra do filósofo genebrino desde o primeiro Discurso. Este ser, agora coberto
de amor-próprio jamais enxerga o outro como se este fosse igual a ele. A partir
desse momento haverá ocasiões onde àquele que não possuir condição social
elevada do ponto de vista social tornar-se-á invisível. Assim, os espectadores
habituados a bajularem aqueles considerados de condição superiores as suas,
não irão ver espetáculos onde, por exemplo, se tenham carpinteiros, ferreiros,
lavradores, marceneiros, sendo representados (como o fazia Sócrates). Assim,
quem possua empregados, meios de transportes adequados para a época, ou
roupas que escondam suas deformidades morais e físicas, de modo que fique
mascarado, é visto com bons olhos uma vez que se encontra na moda:
Os próprios espectadores tornaram-se tão delicados que temeriam comprometer-se na Comédia como numa visita e não se dignariam ir ver, numa representação, pessoas de condição
137
IBIDEM, p, 228.
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abaixo deles. São como os únicos habitantes da terra, todo o resto nada é a seus olhos. Ter uma Carruagem, um porteiro, um mordomo é ser como todo o mundo. Para ser como todo o mundo deve-se ser como pouquíssimas pessoas. Os que andam a pé não pertencem à sociedade, são Burgueses, homens do povo, pessoas do outro mundo [...] uma carruagem não é tão necessária para ser conduzido quanto para existir138.
Então, continua Rousseau, o teatro foi feito para este tipo de gente que crê
ser superior a todos. Tal aberração chega ao ponto de existir no teatro, aqueles
que compram lugares no palco onde os atores representam e são assim, ao
mesmo tempo, dignos de serem personagens da representação e também
representantes, pois são eles os donos do teatro:
[...] Há desse tipo um punhado de petulantes que somente se contam a si mesmo em todo o universo e quase não merece ser contados, a não ser pelo mal que fazem. É unicamente para eles que são feitos os espetáculos. Neles se mostram ao mesmo tempo como representados no meio do teatro e como representantes dos dois lados; são personagens no palco e comediantes nos bancos. É assim que Esfera do mundo e dos autores se contrai. É assim que a cena moderna não abandona mais sua entediante dignidade. Nela não se sabe mais mostrar os homens senão em trajes dourados. Parece até que a França somente é povoada de Condes e de Cavaleiros e que quanto mais o povo é miserável e mendigo mais a representação do povo é brilhante e magnífica139.
Assim, Rousseau mostra como o teatro que deveria ser o reino do ser
mergulhou no mundo fictício onde valoriza o encantamento do parecer, onde
aqueles donos do poder fazem dele o que bem entendem, uma vez que ditam
as regras da sociedade degenerada em vícios onde existem escravos alegres
fazendo questão de criarem senhores para serem seus tutores.
Rousseau parece bater o martelo na questão que, ao representar o ridículo
no teatro, os atores não podem corrigir os defeitos existentes no homem
habitante das sociedades degeneradas, ao contrário, tais espetáculos
influenciam o povo a serem bajuladores dos ricos. Foi esse resultado, segundo
Rousseau, que produziu as obras do autor Molière na sociedade140:
138
IBIDEM, P, 228. 139
IBIDEM, P, 228. 140
IBIDEM, PP, 228-229. Mais uma vez Rousseau mostra que a ideia de catarse defendida por Aristóteles na Poética não é possível.
99
O resultado é que, ao pintar o ridículo das condições que servem de exemplo aos outros, ele é antes difundido do que eliminado, e que o povo, sempre macaco e imitador dos ricos, vai menos ao teatro para rir de suas loucuras do que para estudá-las e tornar-se ainda mais louco do que eles ao imitá-los. Eis do que o próprio Molière foi causa, corrigiu a corte infectando a cidade e seus ridículos Marqueses foram o primeiro modelo dos Janotas burgueses que os sucederam141.
Para Rousseau há sempre uma grande diferença entre o que o homem de
sociedade diz e o que ele faz. Na Carta a d’Alembert, como já vimos, Rousseau
diz que o objetivo de Molière é apresentar o homem de sociedade e não o
homem de bem. Na Nova Heloísa, Rousseau faz observações semelhantes,
diz que na maioria das vezes o teatro francês apresenta cenas onde se fala
demais, porém, não há ação prática por parte dos personagens. Essa
característica parece ser não só do francês, mas do homem social em geral,
uma vez que para Rousseau aquele que observa o homem de sociedade pode
ver a existência de uma dicotomia entre o ser e o parecer, e também, uma
diferença entre teoria e prática:
Em geral há muita conversa e pouca ação na cena francesa, talvez porque realmente o francês fale ainda mais do que age ou pelo menos porque confira um preço bem maior ao que se diz do que ao que se faz. Alguém dizia, ao sair de uma peça de Denis, o Tirano: nada vi, mas ouvi muitas palavras. Eis o que se pode dizer ao sair das peças francesas. Racine e Corneille, com todo o seu gênio, não são eles mesmos senão conservadores e seu Sucessor142.
Rousseau mostra a gravidade desse tipo de espetáculos onde o objetivo é
agradar o público a qualquer custo. Em cenas como essas, o eu não tem vez
nem as paixões humanas aparecem como deveriam. O autor de tais peças, por
sua vez, não pode mudar as ações dos personagens, e se vê obrigado a
manter tais personagens presas ao teatro:
O eu é quase tão escrupulosamente banido da cena francesa quanto dos escrito de Port Royal e as paixões humanas, tão modestas quanto a humanidade Cristã, somente falam através do on. Há ainda uma certa dignidade amaneira no gesto e nas palavras que nunca permite que a paixão fale exatamente a sua
141
IBIDEM, P, 229. 142
IBIDEM, P, 229. A nota 1 dessa pagina da Nova Heloísa, diz que a crítica aqui é a Voltaire, como se pode conferir a seguir. “Voltaire cujas tragédias, já sob a influência de Shakespeare, trouxeram inovações à cena francesa”.
100
linguagem, nem que o autor revista seu personagem e se transporte para o lugar do acontecimento mas o mantém sempre acorrentado no teatro sob os olhos dos Espectadores143.
Rousseau parece deixar claro mais uma vez que a função do teatro é
agradar, e que quem dita às leis no palco é o público. Se o teatro é feito para
divertir um público que, como diz Rousseau, é macaco da classe dominante,
neste sentido este público é soberano e não cabe aos autores de tais peças
fazerem mudanças, pois se houver modificações da cena o objetivo do teatro,
ou seja, o de agradar o público não é alcançado. Assim, quem leva vantagem
nesta espécie de espetáculo não é aquele que faz boas ações, mas aquele que
sabe enganar bem. De maneira que tal aparência passe por “verdades”:
Assim, por qualquer lado que se olhe as coisas, tudo aqui é apenas tagarelice, jargão, palavras sem consequência. No palco como na sociedade ouve-se em vão o que se diz, não se fica sabendo nada do que se faz e por que se precisa ficar sabendo? O homem de bem aqui não é aquele que faz boas ações, mas o que diz belas coisas [...] 144.
As grandes cidades “criam” outro homem, insiste Rousseau. Esse “novo”
homem ficou tão diferente do que era a ponto de ser agora irreconhecível aos
olhos de quem aprendeu a ouvi-lo e observá-lo. Essa mudança ocorrida na
passagem do estado natural para o social fez com que o homem se apresente
de acordo com o momento que convém e segundo a moda do momento. Para
Rousseau essa mudança é clara quando se fala em Paris e ainda mais
explícita quando o assunto é a moda feminina. Segundo Rousseau não se vê
em Paris mulheres autênticas cuja preocupação seja serem elas mesmas, mas
o que se vê nas ruas da cidade e nas festas, são mulheres que andam e vivem
segundo o que dita à moda do momento o que do ponto de vista de Rousseau
é inverso e, portanto, prejudicial àquilo que elas são por natureza:
O primeiro inconveniente das grandes cidades é que nelas os homens se tornam diferentes do que são e que a sociedade lhes dá, por assim dizer, um ser diferente do deles. Isso é verdadeiro, sobretudo em Paris e sobretudo no que se refere às mulheres que extraem dos olhares alheios a única existência com que se preocupam. Ao abordar uma senhora numa reunião, em lugar de
143
IBIDEM, P, 230. 144
IBIDEM, P, 230. Podemos observar neste momento, a importância do saber ouvir em Rousseau, pois quando se viver em um meio como diz Rousseau de “escravos alegres”, se pode pensar que tal condição é “natural”.
101
uma parisiense, que pensais estar vendo, vedes apenas um simulacro da moda. Sua altivez, a roda de seu vestido, seu modo de andar, sua silhueta, seu colo, suas cores, sua aparência, seu olhar, suas palavras, suas maneiras, nada de tudo isso lhe pertence e se a virdes em seu estado natural não podereis reconhecê-la. Ora, essa troca é raramente favorável às que fazem e em geral não há nada a ganhar em tudo o que se substitui à natureza. (Rousseau, 1994, p, 245).
Após observar os habitos e costumes adquiridos pelas mulheres de Paris,
Rousseau diz que foi convidado por algumas mulheres a um passeio pelo
campo, em tal passeio teve a oportunidade de ver como as mulheres quando
agem de maneira natural são mais belas. Tal observação leva Rousseau a
concluir que Paris que pretende ser o lugar onde se preserva o gosto, acaba
degenerando a verdadeira beleza:
Achei-as mais bonitas depois que não procuravam mais tanto sê-lo e senti que, para agradar, precisavam apenas não se disfarçarem. Ousei suspeitar, baseado nisso, que Paris, essa pretensa sede do gosto, é talvez o lugar do mundo em que haja menos, visto que todos os cuidados que aqui se tomam para agradar desfigura a verdadeira beleza.
Rousseau deixa claro acima que entende por verdadeira beleza aquela
natural onde às mulheres não estão mascaradas como no teatro a serviço de
um público que deve ser atendido a qualquer custo. Assim, as mulheres
quando em meio à natureza possuem liberdade de serem elas mesmas uma
vez que não necessitam agradar aos outros. Rousseau sustenta ainda que as
mulheres são boas por natureza e que esta bondade quando longe das
grandes cidades é benéfica. “Seja como for, é em vão que elas se orgulham de
serem más, são boas a despeito delas mesmas e eis a que sua bondade
natural é, sobretudo útil”. (Rousseau, 1994, p, 248).
Parece mesmo que a França pretende ser possuidora do que há de melhor
no campo da arte, seja com respeito à música, seja quando se trata do teatro
que possui representações belíssimas. Mas, como estamos vendo, para
Rousseau, tal pretensão é absurda. Porém, diz Rousseau, o estrangeiro deve
aceitar tais “verdades” como se estas fossem dogmas, assim, uns preferem
talvez rir em silêncio, pois não se pode discordar de uma ópera apreciada por
102
um Rei. O mesmo se dá quando se trata da música, pois estes dois assuntos,
não devem ser questionados:
A Ópera de Paris é tida em Paris como o espetáculo mais pomposo, mais voluptuoso, mais admirável que já foi inventado pela arte humana. É, dizem, o mais soberbo monumento da magnificência de Luís XIV. Não é tão fácil alguém, como o pensais, dizer sua opinião sobre esse grave assunto. Aqui, pode-se discutir tudo exceto a música e a Ópera, é perigoso não dissimular neste único ponto; a música francesa mantém-se por uma inquisição muito severa e a primeira coisa que se insinua, à maneira de lição, a todos os estrangeiros que vêm a esse país, é que todos os estrangeiros concordam em que não há nada mais belo no resto do mundo do que a Ópera de Paris. Na realidade, a verdade é que os mais discretos se calam sobre o fato e somente ousam rir entre si145.
Prossegue expondo os inconvenientes presentes na Ópera francesa,
Rousseau chama a atenção ao exagero presente em tais espetáculos.
Rousseau se refere ao número imenso de pessoas que compõem o palco. O
grande problema destacado por Rousseau é o fato dos atores serem
substituídos por aqueles que ganham para nada fazer. Assim, os profissionais
principais que deveriam permanecer no espetáculo até o final, vão embora
deixando seus papéis a terceiros. Parece possível sustentar que, como os
atores principais são substituídos, o espetáculo vai se modificando a ponto de
não restar mais nada daquele “original”. Talvez se possa falar que ao longo do
tempo em que dure esse modelo de apresentação, os espectadores assistam à
cópia, da cópia, da cópia. E, no final, nada mais resta do que seria o primeiro
espetáculo:
O número de pessoas empregadas ao serviço da Ópera é inconcebível. A Orquestra e os coros perfazem juntos quase cem pessoas; há multidões de dançarinos, todos os papéis são duplos ou triplos, isso é, há sempre um ou dois atores subalternos prontos para substituir o ator principal e pagos para não fazer nada, até que lhe agrade nada fazer por sua vez, o que nunca demora muito para acontecer. Após algumas representações, os principais atores, que são importantes personagens, não honram mais o público com sua presença; abandonam o lugar a seus substitutos e aos substitutos de seus substitutos. Recebe-se sempre o mesmo dinheiro na porta, mas não se dá mais o mesmo espetáculo. (Rousseau, 1994, p, 255).
145
IBIDEM, p, 252. O leitor talvez perceba neste momento a ironia Rousseauniana. Como se “sabe” Rousseau diz não ser possível ficar em silêncio diante de tal assunto.
103
Rousseau já disse que a França não permite que se fale mal a respeito
tanto da música quanto da Ópera, mas, parece não lhe ser permitido o silêncio
diante de tal cultura. Como se sabe, Rousseau sustenta que a música francesa
é uma das piores do mundo. Tanto que as atrizes sofrem muito em suas
apresentações, pois essa música não possibilita que elas sejam boas. No
entanto, Rousseau diz que o que mais lhe impressiona é que são justamente
os horrores saídos da boca da atriz objeto de aplausos por parte da plateia:
[...] os gritos horríveis, os longos ruídos, que ressoam no teatro durante a representação. Veem-se as Atrizes quase em convulsão arrancar com violência os ganidos de seus pulmões, os punhos fechados contra o peito, a cabeça para trás, o rosto excitado, as veias inchadas, o coração ofegante; não se sabe qual dos dois, os olhos ou os ouvidos, são mais desagradavelmente afetados; seus esforços fazem sofrer tanto os que olham quanto seus cantos os que ouvem e o que há de mais inconcebível é que esses urros são quase a única coisa que os espectadores aplaudem146.
Rousseau,no entanto,diz que quem presencia essa espécie de espetáculo
que gera sofrimento, se sente aliviado após o término de horríveis
apresentações. Parece que a sensação de alivio acontece porque o espectador
percebe que apesar da dificuldade que a atriz teve durante seu papel, não
sofreu nenhum acidente durante sua participação na peça.
Quanto a mim, estou persuadido de que se aplaudem os gritos de uma Atriz na Ópera como as proezas de um saltimbanco na feira: a sensação é desagradável e penosa; sofre-se enquanto duram, mas sente-se tanta satisfação ao vê-los acabar sem acidente que de boa vontade se mostra alegre147.
Parece que Rousseau aceita a ideia de Platão que ‘a arte mente’. Então, as
apresentações onde se tenta imitar coisas naturais fracassam. Talvez tais
coisas possam ser representadas, por exemplo, em um poema épico. Assim,
aqueles que julgam apresentar a beleza no teatro, o que fazem é degradá-la. É
essa degradação que segundo Rousseau acontece no teatro. Vale
relembrarmos que para Rousseau Paris pretende ser a capital da arte, mas o
que faz é desfigurá-la. Vejamos o que Rousseau diz ser gravíssimo na Ópera:
146
Rousseau fala neste momento da Ópera na Carta XXIII, p, 255 da Nova Heloísa. 147
IBIDEM, P, 255.
104
[...] o maior defeito que nela julgo observar é um falso gosto pela magnificência através da qual desejou-se representar o maravilhoso que, sendo feito apenas para ser imaginado, está tão bem colocado num poema épico quanto é ridículo num teatro. Teria tido dificuldade em acreditar, se não tivesse visto, que houve artistas suficientemente imbecis para querer imitar o carro do sol e espectadores suficientemente infantis para ir ver a imitação. [...] a música francesa, a dança e o maravilhoso misturado farão sempre da Ópera de Paris o mais entediante espetáculo que possa existir148.
A ideia de imitação aparece aqui com muita precisão, talvez seja como se
ela fosse à palavra chave escolhida por Rousseau neste momento. Ora, só a
ideia de imitação já bastaria para que o teatro fosse por Rousseau reprovado,
pois toda imitação não pode ser verdadeira.
Segundo Rousseau a natureza não dá todas as aptidões aos mesmos
homens. Desse ponto de vista, os franceses talvez sejam aqueles que menos
possuam habilidades no campo musical. Mas, o grande problema parece estar
no fato destes não admitirem tal deficiência. Os ingleses também parecem
sofrer do mesmo mal com uma diferença que aceitam com menos rejeição:
Todos os talentos não são dados aos mesmos homens e em geral o francês parece ser de todos os povos da Europa, o que tem menos aptidão para a música; Milorde Eduardo afirma que os ingleses também têm pouca, mas a diferença é que estes últimos o sabem, e não se preocupam, enquanto os franceses renunciariam antes mil justos direitos e dariam a mão a palmatória em qualquer outra coisa a concordarem em que não são os primeiros músicos do mundo149.
Ainda com relação à música francesa, não podemos esquecer o que diz
Rousseau nas “Confissões”, sobre a chegada em Paris dos bufões italianos.
Esse acontecimento inesperado provocou no teatro algo que seria impossível
prever. Após assistirem e ouvirem a música da França e a da Itália ao mesmo
tempo, diz Rousseau, a superioridade da música Italiana ficou clara, a tal ponto
que, se fez necessário mudar a ordem e colocar as apresentações italianas
sempre no final da peça, pois só assim, se segurava o público que percebeu o
quanto à música francesa é inferior:
148
IBIDEM, P, 258. Sobre este assunto, ver a polêmica entre Jean Jacques Rousseau e Jean- Philippe Rameau. 149
IBIDEM, P, 257.
105
Algum tempo antes de se representar o Adivinho da Aldeia150 chegaram a Paris bufões italianos, que foram postos a trabalhar no teatro da ópera, sem que ninguém imaginasse o efeito que eles iriam fazer. Embora fossem detestáveis, e a orquestra, então muito ignorante estropiasse por gosto a peça, não deixaram de fazer à ópera francesa um mal que ela nunca mais reparou. A comparação das duas músicas, ouvidas no mesmo dia e no mesmo teatro, desobstruiu os ouvidos franceses; e não ouve mais quem pudesse suportar o arrastar da sua música, depois do acento vivo e marcado da italiana; assim que os bufões terminavam, todo o mundo ia embora. Foram obrigados a mudar a ordem e pôr os bufões no fim. (Rousseau, 2008, p, 350).
Rousseau continua falando da “revolução” que os bufões italianos
provocaram em suas apresentações no teatro francês. Tal acontecimento foi
decisivo para que o público de Paris se dividisse em dois grupos. Uma parte do
público, a mais poderosa defendeu a música francesa, porém, parece que a
menos esclarecida sobre o assunto, De outro lado, o público, esclarecido sobre
o que é uma boa música admitiu à superioridade da música italiana sobre a
francesa:
Os bufões conquistaram ardentíssimos admiradores para a música italiana. Paris toda se dividiu em dois partidos, mais encarniçados do que se tratasse de um negócio de Estado ou religião. O mais poderoso, mais numeroso, composto dos grandes, dos ricos e das mulheres, lutava pela música francesa; o outro, mais vivo, mais altivo, mais entusiasta, era composto por conhecedores de verdade, por gente de talento, homens de gênio. Seu pequeno pelotão se reunia na Ópera, sob o camarote da rainha. A outra parte enchia todo o resto da plateia e da sala, mas o seu ponto principal era sob o camarote do rei. Foi daí que vieram esses nomes célebres de partidos “lado do rei” e “lado da rainha”151.
Então, parece possível afirmar que a música francesa do ponto de vista de
Rousseau é tão defeituosa quanto às peças que se apresentam no teatro.
Assim, essa não é capaz de tocar o coração daquele que a ouve a ponto que
exista uma identificação do ouvinte com sua cultura. E, ainda que o francês
talvez não possua música e se vier a tê-la, esta será de má qualidade.
150
Obra composta por Jean-Jacques Rousseau em 1752, quando o filósofo e também músico contava com 40 anos. 151
IBIDEM.
106
Conclusão Fechemos este texto expondo três acontecimentos que talvez tenham
fortalecido os pilares do edifício rousseauniano. Tais acontecimentos foram
extraídos da experiência vivida pelo próprio filósofo. O primeiro deles ocorreu
quando Rousseau era ainda criança e é o seguinte: em 1722 o pai de
Rousseau, Isaac Rousseau, se desentendeu com um nobre genebrino que
sustentou ter sido por ele ameaçado. Segundo o nobre, Isaac Rousseau teria
tirado à espada da bainha na cidade o que segundo a lei de Genebra era
proibido. Devido a tal acontecimento, Isaac Rousseau viu-se obrigado a deixar
Genebra ficando Rousseau com o pastor Lamberceir em Bossey152. Rousseau
conta nas “Confissões”, que seu pai não cometeu o crime do qual foi acusado,
porém, pagou um alto preço pela “verdade” aparente que Reina na sociedade:
Mon père eut un démêlé avec un M. Gautier, capitaine en France et apparenté dans le Conseil. Ce Gautier, homme insolent et lâche, saigna du nez, et, pour se venger, accusa mon père, d’avoir mis l’épée à la main dans la ville. Mon père, qu’on voulut envoyer en prison, s’obstinait à vouloir que, selon la loi, l’accusateur y entrât aussi bien que lui : n’ayant pu l’obtenir, il aima mieux sortir de Genève, et s’expatrier pour le reste de sa vie, que de céder sur un point où l’honneur et la liberté lui paraissaient compromis153.
As consequências desse fato ocorrido mudaram a vida de Rousseau para
sempre. De início, Rousseau ficou aos cuidados de seu tio Bernard cuja filha
havia morrido e que tinha um filho da mesma idade de Rousseau. Este tio foi
quem resolveu internar os dois meninos na casa do pastor. Vale ressaltar que
Rousseau até então, era educado pelo pai e diz que a partir desse momento se
vê obrigado a adquirir “conhecimentos inúteis” que chamam de “educação”:
152
Rousseau contava no momento seis anos de idade e só retornou a Genebra com treze anos. 153
Rousseau, 2008, p, 35 Meu pai teve um conflito com um Sr. Gautier capitão na França e aparentado no conselho. Esse Gautier, insolente e covarde, deixou sangue pelo nariz, e, para se vingar, acusou meu pai de ter pegado na espada dentro da cidade. Meu pai, que queriam prender, obstinou-se em reclamar que, de acordo com a lei, o acusador merecia tanto a prisão quanto ele: e não o conseguindo, preferiu sair de Genebra, expatria-se para o resto da vida, a ceder em um assunto em que a honra e a liberdade lhe pareciam comprometidas. (Rousseau, 2008, p, 35). .
107
Je restai sous la tutelle de mon oncle Bernard, alors employé aux fortifications de Genève. Sa fille aînée était morte, mais il avait un fils de même âge que moi. Nous fûmes mis ensemble à Bossey, en pension chez le ministre Lambercier, pour y apprendre avec le latin tout le menu fatras dont on l’accompagne sous le nom d’éducation154.
O segundo acontecimento que teve origem no primeiro foi ainda mais
perverso para Rousseau que as entediantes lições inúteis recebidas na casa
do pastor Lambercier, mas que eram entendidas por parte do pastor como
instruções necessárias. Rousseau conta nas “Confissões”, que um dia estava
estudando no quarto próximo a cozinha e neste momento a criada colocara os
pentes da Srta Lambercier para secar. Quando a criada retornou para buscar
os pentes, observou-se que havia um deles com os dentes quebrados. O
grande mistério neste momento foi: quem havia danificado tal objeto? Em quem
colocar a culpa sendo que só, e, somente só, se encontrava naquela ocasião
no local o menino Rousseau? Não se teve dúvida foi Rousseau
responsabilizado pelo ocorrido:
J’étudiais un jour seul ma leçon dans la chambre contigue à la cuisine. La servante avait mis sécher à la plaque les peignes de Mlle Lambercier. Quand elle revint les prendre, il s’en trouva un dont tout un côté de dents était brisé.Á qui s’en prendre de ce dégât ? personne autre que moi n’était entré dans la chambre. On m’interroge : je nie d’avoir touché le peigne. M. et Mlle Lambercier se réunissent, m’exhortent, me pressent ; je persiste avec opiniâtreté ; mais la conviction était trop forte, elle l’emporta sur toutes mes protestations, quoique ce fût la première fois qu’on m’eût trouvé tant d’audace à mentir. La chose fut prise au sérieux ; elle méritait de l’être. La méchanceté, le mensonge, l’obstination parurent également dignes de punition155[...].
154
IBIDEM, P, 37). Fica clara a crítica de Rousseau ao modelo de educação da época. Fiquei sobre a tutela do meu tio Bernard, empregado então nas fortificações de Genebra. Sua filha mais velha morrera, mas restava-lhe um filho da mesma idade que eu. E nos internaram ambos na casa do ministro Lambercier, para, com o latim, adquirirmos todo o montão de inutilidades que o acompanham com o nome de educação. Rousseau, 2008, p, 35.
155
IBIDEM, P, 44. O castigo, diz Rousseau, não foi aplicado pela senhora Lambercir, esta escrever para o tio de Rousseau Bernard, que se encarregou de aplicá-lo. Um dia eu, estudava a lição só, no quanto contínuo à cozinha. A criada pusera os pentes da Srta. Lambercier a secar na chapa. Quando os veio buscar, notou que um estava com os dentes quebrados. Quem responsabilizar pelo estrago? Ninguém, afora eu, entrara no quarto. Interrogaram-me, e neguei ter pegado no pente. O senhor e a senhorita Lambercier reuniram-se, exortaram-me, apertaram-me, ameaçaram-me. Continuei teimando, porém a convicção deles era muito forte, e passou por cima dos meus protestos, ainda que fosse a primeira vez que me vissem mentir com tanta audácia. Tomaram a coisa a sério, como o merecia. A
108
É importante relembrar que injustiças como à ocorrida e relatadas por
Rousseau nas Confissões, estão presente desde o Primeiro Discurso. Mas, nas
confissões Rousseau se encontra em outra posição, que não é idêntica aquela
do Primeiro Discurso. Enquanto no Primeiro Discurso Rousseau possui o papel
de acusador, nas Confissões, Rousseau se encontra na situação de vitima.
Porém, o objetivo parece ser o de sempre, ou seja, de denunciar os sofismas,
mas que passam por “verdades”, o injusto que parece ser justo, a contradição
entre o ser e o parecer. Como interpreta Jean Starobinski:
Rousseau est ici en situation de d’accusé. (Dans le premier Discours il joue le rôle de l’accusateur, mais dès qu’il rencontrera la contradiction il se retrouvera en situation d’accusé.) L’expérience dont nous venons de lire la discription ne confronte pas abstraitement la notion de réalité et la notion d’apparence : c’est l’opposition bouleversante de l’être-innocent et du pareître-coupable. (Starobinski, 1971, p, 19).
Esse acontecimento ocorrido em Bossey, onde Rousseau ocupa o papel de
vitima, nos mostra como os seres se tornaram falsos na vida social. Tal
injustiça deixa claro como os homens afastaram-se do estado de natureza ao
qual se pode dizer adeus uma vez que vivem agora na obscuridade:
L’épisode de Bossey se termine par la destruction de la transparence du coeur et, simultanément, par un adieu à l’éclat de la nature. La possibilité quasi divine de « lire dans les coeurs » n’existe plus, la campagne se voile et la lumière du munde s’obscurcit. (Starobinski, 1971, p, 21).
Então, a oposição entre o ser e o parecer coloca o homem de sociedade em
um campo de batalha uma vez que esta impulsiona diversos conflitos dos quais
o homem não consegui sair: “Rupture entre le bien et le mal ( entre les bons et
méchants), rupture entre la nature et la société, entre l’homme et ses dieux,
entre l’homme et lui-même”156.
Voltando a questão do pente, Rousseau diz ter passado cinquenta anos do
trágico acontecimento onde fora punido e, no entanto, era inocente. Mas, quem
quebrara os dentes do objeto afinal? Rousseau conta nas Confissões que o
maldade, a mentira, a teimosia, pareciam igualmente dignas de punição. Rousseau, 2008, p, 40. 156
IBIDEM, 1971, P, 15.
109
autor da ação é desconhecido, nunca conseguiu descobri-lo, mas o que é
verdadeiro é que ele, Rousseau, mesmo tendo certeza de que não era culpado
pagará um alto preço por uma aparência, mas que passou por “verdade”:
II y maintenant après de cinquante ans de cette aventure, et je n’ai pas peur d’être aujourd’hui puni derechef pour le même fait ; eh bien, je déclare à la face du Ciel que j’en étais innocent, que je n’avais ni cassé, ni touché le peigne, que je n’avais pas approché de la plaque, et que je n’y avais pas même songé. Qu’on ne me demande pas comment ce dégât se fit : je l’ignore et ne puis le comprendre ; ce que je sais très certainement, c’est que j’en étais innocent157.
Parece ficar claro neste momento descrito por Rousseau, o mascaramento
existente entre os homens. Ora, é muito mais fácil acusar alguém que não
possuía mãe e mesmo tendo pai este se encontrava ausente. Assim,
prevaleceu a força esmagadora daquilo que se passa por justo, pois, como já
disse Rousseau na sociedade, “somos enganados pela aparência do justo”.
Mas, o que parece mais obsurdo em tudo isso é que, repito não se estava
punindo um adulto, mas uma criança sem proteção, um órfão que sente pela
primeira vez a dor da injustiça e ainda, seu primo se encontrava na mesma
situação pagando um crime que não cometera:
Je n’avais pas encore assez de raison pour sentir combien les apparences me condamnaient, et pour me mettre à la place des autres. Je me tenais à la mienne, et tout ce que je sentais, c’était la rigueur d’un châtiment effroyable pour un crime que je n’avais pas commis. Mon cousin, dans un cas à peu près semblable, et qu’on avait puni d’une faute involontaire comme d’un acte prémédité, se mettait en fureur à mon exemple, et se montait, pour ainsi dire, à mon unisson158.
157
Rousseau, 2002, pp, 44-45. Passaram já cinquenta anos sobre essa aventura, e não posso mais ter medo de outra vez ser punido por esse fato; pois bem, declaro à face do céu que estava inocente, que não quebrei nem toquei no pente, que não me aproximei da chapa, que nem sequer pensei nisso. Ninguém me perguntou como aconteceu esse estrago; ignoro-o e não o posso compreender. O que sei com toda certeza é que eu estava inocente. Rousseau, 2008, p, 41. 158
Rousseau, 2002, p, 45. Eu ainda não tinha razão bastante para sentir quanto as aparências me condenavam, e para pôr no lugar dos outros. Ficava no meu lugar. E o que eu sentia era o rigor de um castigo assustador por um crime que eu não cometera. Meu primo, em um caso semelhante, sendo punido por uma falta involuntária como por um crime premeditado, enfureceu-se ao meu exemplo e nós ficamos, por assim dizer, em uníssono
158. Rousseau, 2008, p. 41.
110
Assim, Rousseau mostra com bastante clareza o reinado da injustiça na
época em que vive e como as pessoas são más. Mas, é importante
ressaltarmos que, como já vimos em momentos anteriores, os indivíduos não
são maus por natureza, essa maldade é para Rousseau adquirida na vida em
sociedade, pois quando ele critica, por exemplo, a obra de Molière, diz que
esse homem de grande talento não tem por objetivo mostrar no teatro o
homem de bem, mas o homem de sociedade.
E por último, não podemos nos esquecer da pensão do rei rejeitada por
Rousseau que causou muita polêmica na ocasião. Como se “sabe” Rousseau é
autor de algumas peças teatrais como, por exemplo, “O Adivinho da Aldeia”.
Rousseau compôs essa peça em 1752. Essa obra possui conteúdo que se
encontra na trajetória filosófica de Rousseau uma vez que apresenta os habitos
e costumes populares valorizando assim o homem comum. Se o objetivo de
Rousseau nesta obra é valorizar o homem comum e o meio natural no qual ele
vive, a crítica ao luxo tão valorizado pela elite da época se faz presente. É
importante observarmos ainda que neste caso Rousseau tenha escolhido um
gênero erudito a Ópera para expressar os valores do povo, o que não era
comum.
A Ópera “O Adivinho da Aldeia” foi ensaiada algumas vezes, na presença
de alguns entendidos do assunto, assim, um dos espectadores, o “Sr. de Cury”
propôs que tal obra fosse apresentada na corte o que a primeiro momento foi
negado por seu responsável Duclos. No entanto, Duclos acabou cedendo e a
peça finalmente foi apresentada na corte. A resistência de Duclos aconteceu
devido a este saber que o interesse de Rousseau não era este, Rousseau não
compôs a peça com objetivo de aprestá-la na corte, mas tal fato aconteceu e
foi um grande sucesso e o próprio Rousseau foi convidado para assistir a
apresentação. Rousseau diz não ter se preparado para tal evento e se vestiu
como sempre o que de inicio lhe causou constrangimento, mas este foi
superado, afinal de contas assistia ao espetáculo do qual é autor e não deveria
ser o que se pinta a opinião dos outros, assim, continuou sendo ele mesmo:
J’étais ce jour-là dans le même équipage négligé qui m’était ordinaire ; grande barbe et perruque assez mal peignée. Prenant
111
ce défaut de décence pour un acte de courage, j’entrai de cette façon dans le même salle où devaient arriver, peu de temps après, le Roi, la Reine, la famille royale et toute la cour. Quand on eur allumé, me voyant dans cet équipage, au milieu de gens tous excessivement parés, je commençai d’être mal à mon aise : je me demandai si j’étais à ma place, si j’y étais mis convenablement, et après quelques minutes d’inquiétude, je me répondis, oui, avec une intrépidité qui venait peut-être plus de l’impossibilité de m’en dédire que de la force de mes raisons. Je me dis : je suis à ma place, puisque je vois jouer ma pièce, que j’y suis invité, que je ne l’ai faite que pour ceta, et qu’après tout personne n’a plus de droit que moi-même à jouir du fruit de mon travail et de mes talents. Je suis mis à mon ordinaire, ni mieux ni pis. Si je recommence à m’asservir à l’opinion dans quelque chose m’y voilà bientôt asservi derechef en tout. Pour être toujours moi-même, je ne dois rougir en quelque lieu que ce soit d’d’être mis selon l’état que j’ai choisi159 [...].
A peça obteve um sucesso extraordinário, e Rousseau estando como
espectador diz ter se comovido até as lagrimas, conta ter saboreado o gosto de
sua própria gloria. Rousseau pode observar que não era o único a se
emocionar concluindo assim, que “O Adivinho da Aldeia” é o tipo de espetáculo
capaz de tocar o fundo dos corações assim como uma boa música. É a música
para Rousseau o meio pelo qual o homem sente sem que necessite recorrer ao
tribunal da razão tão valorizado pelos defensores do Iluminismo. E ela, a
música é muito bem executada na peça embora os atores para Rousseau
deixassem a desejar:
A peça foi muito mal representada quanto aos atores, mas muito bem executada quanto à música. Desde a primeira cena [...] ouvia em redor de mim um cochichar de mulheres que me parecia belo como o dos anjos, e que se entrediziam a meia voz:
159
Rousseau, 2002, pp, 121-122. (Confissões livre XVIII). Eu estava, nesse dia, com os trajos descuidados que me eram habituais, barba grande e peruca muito mal penteada. Tomando essa falta de decência por um ato de coragem, entrei desse jeito na sala em que pouco depois deveriam chegar o rei, a rainha, a família real e toda a corte. Quando acenderam as luzes, vendo-me naqueles trajos no meio de pessoas todas excessivamente enfeitadas, comecei a me sentir mal; perguntava aos meus botões se estava no meu lugar, se nele estava convenientemente, e depois de alguns minutos de inquietação respondi a mim mesmo: sim, com uma intrepidez que talvez se originasse mais da impossibilidade de me desdizer do que da força das minhas razões. Estou em meu lugar, porque vim ver representar minha peça, para a qual fui convidado, e que só fiz para esse fim. E afinal de contas ninguém tem mais direitos do que eu de gozar de um fruto do meu trabalho e dos meus talentos. Estou vestido como costumo, nem melhor nem pior. E se eu recomeçar a me sujeitar à opinião pública em qualquer coisa, depressa ficarei completamente escravizado. Para continuar a ser sempre eu mesmo, não devo corar em qualquer parte que esteja, de estar vestido segundo o modo que escolhi. Rousseau, 2008, p, 345.
112
“Isso é encantador, aquilo é deslumbrante; não há um som que não fale ao coração!”. E o prazer de comover a tantas pessoas amáveis comoveu-me a mim mesmo até as lagrimas; e não me pude conter no primeiro duo, notando que eu não era o primeiro a chorar. (Rousseau, 2008, pp, 346-347).
Mas Rousseau sempre surpreende no final, não podemos esquecer que o rei
estava presente neste belo espetáculo que comovera tanta gente e no dia
seguinte manda chamar Rousseau para uma conversa no castelo. O motivo do
encontro seria uma pensão que o rei daria a Rousseau o que o deixou aflito. O
principal motivo da angustia de Rousseau era a timidez que o afastava sempre
dos encontros:
Minha maldita timidez, que me perturba diante de qualquer desconhecido, me abandonaria diante do rei da França, ou me permitiria escolher na ocasião o que deveria dizer? Eu queria, sem abandonar o ar e o tom severo que usava, mostra-me sensível à honra que me fazia um tão grande monarca. Que seria de mim, neste momento, diante de toda a corte, se me escapasse dos lábios algum dos meus disparates ordinários? Esse perigo me alarmou, me assombrou, a ponto de me determinar, qualquer que fosse o risco, a não me expor a ele160.
Porém, o motivo principal que fez com que Rousseau não se apresentasse
ao rei não é a timidez embora ele mesmo o diga neste momento. Qual seria
então o motivo? Relembramos que na Carta a D’Alembert Rousseau afirma
que o único instrumento capaz de purgar as paixões seria a razão, isso se ela
possuísse lugar no teatro francês que se pretendia instalar em Genebra. Ora,
se Rousseau aceitasse a pensão proposta pelo rei ele, Rousseau, ficaria a
partir desse momento a serviço do rei, logo, aconteceria à privatização da
razão, como havia no teatro, pois os autores e atores estavam a serviço do
público que era quem ditava as leis do teatro. Então, se é o rei quem custeia a
produção, o trabalho do pensamento, é também ele quem diz o que deve ser
produzido, o que não foi aceito por Rousseau. Assim Rousseau não quis dar
adeus à liberdade, a verdade, tampouco a coragem que são conceitos
presentes em suas obras cuja função é denunciar as atrocidades praticadas
pela classe dominante que sempre valoriza as aparências em detrimento da
verdade:
160
IBIDEM, P, 347.
113
Je perdais, il est vrai, la pension qui m’était offerte en quelque sorte ; mais je m’exemptais aussi du joug qu’elle m’eût imposé. Adieu la vérité, la liberté, le courage. Comment oser désormais parler d’independance et de désintéressement ? II ne fallait plus que flatter ou me taire, en recevant cette pension : encore qui m’assurair qu’elle me serait payée ? Que de pas à faire, que de gens à solliciter ! II m’en coûterait plus de soins, et bien plus désagréables, pour la conserver, que pour m’en passer. Je crus donc, en y renoçant, prendre un parti trés conséquent à mes principes, et sacrifier l’apparence à la réalité161. (Rousseau, 2002, pp, 124-125).
Assim, arrisquemos responder a seguinte pergunta, titulo desse trabalho: por
que a razão fracassa no teatro denunciado por Rousseau? Deixemos claro que
parece não haver uma única resposta para essa complexa questão, mas como
bem nos mostrou Jean-Jacques Rousseau na Carta a D’Alembert e em outras
obras de sua autoria que se teve a oportunidade de consultar ao longo desse
trabalho, um dos motivos que anula a razão no teatro é a fascinação feminina,
pois para ele a mulher possui por natureza o poder de dominar a razão, assim,
o império da razão quando entra em conflito com o reino das emoções é por
este derrubado. Logo, o único objeto capaz de ganhar essa luta é a razão, mas
esta não possui lugar no teatro.
161 Rousseau, 2002, pp, 124-125. É verdade que eu perdia a pensão que de algum modo me haviam oferecido; mas também me isentava do jugo que ela me imporia. Adeus liberdade, verdade, coragem. Como ousar depois falar em independência e desinteresse? Teria de me lamentar ao falar, ou cala-me, se recebesse essa pensão. E quem me garantia que ela seria paga? Quantos passos a dar, quantas pessoas a solicitar! Ser-me-ia mais custoso e mais desagradável conservá-la do que dispensá-la. E achei, pois, que, renunciando a ela, tomava uma resolução muito de acordo com os meus princípios, e sacrificava a aparência à realidade. Rousseau, 2008, p, 347.
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