A Exposição Depois de Deleuze
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A Exposição Depois de Deleuze Contributos Filosóficos e Cinematográficos Para a Teoria e Experiência na Curadoria
Manuel João Montenegro
Dissertação de Mestrado em Estudos de Arte apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Orientadora: Profª. Doutora Eduarda Neves
Porto, 2020
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A Exposição Depois de Deleuze Contributos Filosóficos e Cinematográficos Para a Teoria e Experiência na Curadoria
Manuel João Sampaio de Mendonça
Montenegro e Almeida
Dissertação de Mestrado em Estudos de Arte apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto Orientadora: Profª. Doutora Eduarda Neves
Porto, 2020
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Agradecimentos
Especial agradecimento às Professoras Lúcia Matos e Eduarda Neves pela
generosidade, paciência e disponibilidade que demonstraram.
Às pessoas que fazem parte da minha vida privada, que sabem o que estes
últimos anos significaram para mim.
iv
A meus Pais, por todo o apoio e paciência.
v
Resumo
A presente dissertação procura compreender a relação entre as teorias e
práticas da curadoria e os modos de experiência estética da imagem em
movimento no contexto dos espaços expositivo, a partir de Gilles Deleuze. A
obra do filósofo constitui um intensivo trabalho de procura por uma filosofia da
diferença e da imanência que incorre na exploração de princípios ontológicos,
estéticos e empíricos próprios aos processos de construção do pensamento.
Na intersecção entre filosofia e curadoria, o objectivo é perceber como podem
os processos do pensamento deleuziano contribuir para o trabalho curatorial,
para a criação de experiências e experimentações estéticas singulares e para
uma relação institucional livre entre arte, curador e espectador, a partir das
noções deleuzianas de Imagem, Dispositivo, Maquinismo e Corpo sem
Órgãos.
Palavras chave: Curadoria, Filosofia, Estética, Cinema, Deleuze, Dispositivo
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Abstract
This dissertation seeks to find the possible connections between curatorial
theories and practices and the modes of aesthetic experience of the
cinematographic image in the context of exhibition spaces, following the
philosophy of Gilles Deleuze. His work constitutes the intensive labour of
creating a philosophy of difference and immanence that explores the empirical,
aesthetical and ontological principles necessary to the construction of thinking.
In the intersection between philosophy and curatorship, we aim to understand
how can the processes of deleuzian thinking contribute to curatorial labour, to
the construction of singular experiences and experimentations, and to a free
institutional relationship between art, curator and spectator, using the concepts
of Image, Dispositif, Machine and Body Without Organs.
Keywords: Curatorship, Philosophy, Aesthetics, Cinema, Deleuze, Dispositif.
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Índice INTRODUÇÃO 1 1. CINEMA E IMAGEM 4
IMAGEM MOVIMENTO-TEMPO 4 PLANO: ENQUADRAMENTO E MONTAGEM 6 A IMAGEM-CRISTAL 7 IMAGEM-PERCEPÇÃO E CÂMARA-CONSCIÊNCIA 9 IMAGEM NO CONCEITO 11 CINEMA E PENSAMENTO 13 PENSAMENTO-CINEMA E EMPIRISMO TRANSCENDENTAL 18
2. DISPOSITIVO E MAQUINISMO 21 DISPOSITIVOS 21 IMAGEM EM MOVIMENTO 25 EXPOSIÇÃO 30 MÁQUINAS DE IMAGENS 33 O SENTIDO DE UMA EXPOSIÇÃO 36 IMAGEM-PENSAMENTO E EXPOSIÇÃO 40
3. CURADORIA E CORPO SEM ÓRGÃOS 49 CORPOS SEM ÓRGÃOS 49 PÓS-MUSEU E CAPITALISMO 54 COMPROMISSO CURATORIAL 60 DEVIR-ARTE, DEVIR-ESPECTADOR 64
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 69 BIBLIOGRAFIA 71 WEBGRAFIA 74
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Introdução
Esta dissertação tem como objectivo a exploração da praticabilidade da
curadoria de imagem em movimento, ao nível da concepção de exposições,
mas também da sua mediação discursiva e sensível, recorrendo, para tal a
algumas abordagens da filosofia de Gilles Deleuze. A obra do filósofo constitui
um intensivo trabalho de procura por uma filosofia da diferença e da imanência
que incorre na exploração de princípios ontológicos, estéticos e empíricos
possíveis na construção e nos processos do pensamento. Estes processos
reflectem-se, aqui, numa colisão entre os conceitos e a criação. Neste contexto
a criatividade, o Novo, é ontologicamente transversal a todas as práticas e
movimentos do universo, e remete, a cada momento, para a possibilidade de
encontrar outros modos de pensamento como potencial modo de fuga à
racionalidade ideativa.
A filosofia de Deleuze contém certos processos que podem ser ajustados à
curadoria, não apenas nas práticas discursivas que constrói, mas sobretudo
na forma como pode potenciar modos de ver a arte e o mundo que partem de
princípios de heterogeneidade e enriquecem essas mesmas práticas.
O primeiro capítulo recolhe do conceito de imagem movimento-tempo as
especificidades próprias da imagem, os modos como ela adquire o estatuto de
uma consciência cinematográfica própria e o seu lugar no domínio da estética.
A sua teoria do cinema não só constitui uma importante conceptologia das
imagens cinematográficas como efectua um contributo singular para as
perspectivas estéticas de todo o conceito de Imagem. As confluências de
práticas filosóficas com os processos do cinema proporcionam uma visão da
sétima arte como forma de pensamento autónomo. Aborda também os modos
pelos quais o pensamento cinematográfico se relaciona com a noção de
pensamento que Deleuze inaugura com o nome de Empirismo Transcendental,
analisando a sua importância para a construção de novas experiências no
encontro com a arte.
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Transportada para a exposição, a imagem em movimento envolve-se de todo
um conjunto de questões materiais e perceptivas que se adicionam ao seu
valor estético. Neste sentido, o segundo capítulo aborda, através do conceito
Foucaultiano de Dispositivo, os mecanismos que garantem o seu
funcionamento e determinam os vários médiuns que pertencem ao seu mundo
e as possibilidades que determinam a sua presença no espaço expositivo, e
as características que condicionam e determinam os estatutos do espectador
entre sala de cinema e exposição. Tendo em conta que Deleuze propõe uma
noção estética deste conceito, a análise centrar-se-á numa pesquisa dos
princípios ontológicos que salvaguardam a criatividade e os modos estéticos
na relação entre o sentido, ou a orientação de um projecto curatorial e as
experiências singulares dos espectadores.
O terceiro capítulo, por sua vez, incide numa discussão sobre as relações
políticas que circundam a relação entre curadoria e público na sociedade
contemporânea. Missões e compromissos sociais vêem-se travados por um
contexto político e económico dominante sendo que as teorias museológicas
enfrentam, por um lado, os elitismos e os fantasmas do modernismo, e por
outro, as forças do capitalismo que aglutinam o imaginário individual e
colectivo. Estas relações são aqui pensadas através do Corpo sem Órgãos,
criado por Artaud e conceptualizado Deleuze e Guattari. Este conceito constitui
o plano de imanência das vontades e dos desejos, e reverte, nesta dissertação,
para uma exploração dos princípios que salvaguardam a importância de
movimentos de desejo e criatividade reais, bem como das condições de
liberdade que possam permitir a sua circulação para além das relações de
poder.
O que se propõe é que a consciência dos processos específicos ao
pensamento de Deleuze, reiterados nas diferentes formas de praticar
curadoria, podem ser muito úteis para as sempre necessárias redefinições dos
valores que movimentam a criação de novas formas de pensamento e
sentimento, individuais e coletivas. Ao mesmo tempo, reenquadra a raiz
política de cada movimento. Este pensamento parte de operações tanto éticas
como estéticas, não por introduzir qualquer tema político ou ideológico, mas
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porque as posições do sujeito e do objecto dependem dessas mesmas formas
de partilha.
O papel da curadoria é o de mediar obras com o espectador no sentido de
estabelecer uma posição de encaminhamento e potenciamento das ideias e
das sensibilidades que gravitam cada acontecimento/conceito. Neste contexto,
não se trata de dar a conhecer a filosofia de Deleuze através das obras, mas
de a tornar uma prática consciente e inscrita numa partilha que age sobre os
sujeitos, assim como eles agem sobre ela.
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1. Cinema e Imagem Imagem Movimento-tempo
Em Imagem-Movimento Cinema 1 (2009) e Imagem-Tempo, Cinema 2 (2015),
Gilles Deleuze apresenta uma conjugação entre duas práticas: por um lado, a
do cinema, como prática das imagens; por outro, a filosofia como prática de
conceitos.
Nas palavras do filósofo, o seu trabalho não envolve uma teoria, mas sobretudo
uma taxonomia dos tipos de imagens e dos signos que as constituem (Deleuze
G. , 2009, p. 11). As imagem-movimento e imagem-tempo são vistas como
conjuntos de outras imagens, (imagem-afecção, imagem-acção, imagem-
percepção; imagem-relação, imagem-mudança), sendo que os signos e os
representados são deduzidos das características do movimento e da
temporalidade que as animam.
Trata-se, simultaneamente, de uma prática da filosofia, no sentido em que
todas estas imagens são usadas para a construção de um universo conceptual
que ultrapassa a actualidade da imagem audiovisual. No conceito toda a
imagem é definida pelos seus movimentos e pelo tempo que a engloba e não
por uma descrição representativa.
Estamos diante de um pensamento como experiência real e presente na sua
temporalidade, um “cinema-pensamento no meio desta filosofia articulada
como pensamento-cinema” (Sousa Dias, 2016, p. 164). Tanto o cinema tem
uma relação filosófica com o pensamento, como a filosofia pode fazer-se a
partir de um pensamento especificamente cinematográfico. É um pensamento
especificamente “cinematográfico” numa relação de impregnação com a
filosofia.
Neste capítulo interessa-nos perceber certas particularidades desta relação
entre imagem e filosofia: como é que as imagens cinematográficas dão origem
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a conceitos, como se forma um “pensamento cinematográfico”, assim como
qual a possibilidade desta prática de pensamento do ponto de vista da
curadoria e como se pode transportar para a realidade da exposição.
Ao tomar a imagem cinematográfica como conceito, Deleuze despoja-a do
aparelho que a possibilita. Inicialmente, o cinema funciona de acordo com a
projecção numa sucessão de imagens (fotogramas ou imagens digitais), e com
a velocidade necessária para que os movimentos surjam naturais à percepção.
Mas a artificialidade do aparelho não corresponde ao resultado da imagem.
Dada a estabilidade da imagem audiovisual para com a percepção natural, o
filósofo afirma que o movimento e o tempo não se deduzem do aparelho, mas
da própria imagem, “o cinema não nos dá uma imagem à qual ele acrescentaria
movimento, dá-nos imediatamente uma imagem-movimento” (Deleuze, 2009,
p. 15).
Assim, a imagem-movimento ocorre sempre numa perspectiva temporal. Um
fotograma é um instante, um corte temporal imóvel. O tempo, aqui, deduz-se
no intervalo entre imagens imóveis, como sucessão de instantes quaisquer. A
imagem-movimento, no entanto, corresponde a um corte móvel e, portanto, a
uma duração própria, sendo que o tempo se deduz nos intervalos entre
movimentos que pertencem à própria imagem.
Movimento e tempo determinam a concepção semiológica que Deleuze faz da
imagem relativamente ao cinema. Nas suas palavras, a imagem-movimento é
“um conjunto de acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns
sobre os outros” (Deleuze G. , 2009, p. 317). É um conjunto no sentido em que
cada movimento corresponde a uma imagem dentro da imagem. Uma imagem-
movimento é um conjunto de outras imagens e de signos dos quais se
deduzem, e cuja interacção é uma transformação. Não existe uma função
sígnica dissociada do movimento.
O conjunto dos movimentos dá origem a várias perspectivas de tempo e perfaz
uma duração. Só tendo em conta o tempo é que uma imagem pode ser um
todo. São estas as duas faces da imagem-movimento, o conjunto dos objectos
e o todo do tempo, “as posições estão no espaço, mas o todo que muda está
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no tempo” (Deleuze G. , 2015, p. 59). Segundo Deleuze, cada mudança do
movimento corresponde a uma mudança absoluta do todo, enquanto que uma
imagem cinematográfica como conjunto é um sistema fechado que põe em
relação todos os elementos presentes na imagem, o todo é aberto,
correspondendo ao conceito na sua perspectiva temporal.
O tempo é a duração, mas, simultaneamente, um tempo efectivo, objectivado
nos intervalos das imagens-movimento, que o torna heterogéneo, ritmado. São
dois aspectos, “por um lado, o tempo como todo, como grande círculo ou
espiral que recolhe o conjunto do movimento no universo; por outro lado, o
tempo como intervalo, que marca a mais pequena unidade de movimento ou
de acção” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 57).
Plano: Enquadramento e Montagem
No cinema, dècoupage é a prática que determina a imagem através dos seus
cortes: refere-se a cortes na duração de um plano, no intervalo entre planos,
mas também no intervalo entre imagens-movimento que constituem o mesmo
plano. Determina o plano, que Deleuze refere ser a unidade mínima do cinema.
O plano é a determinação do movimento que se estabelece. É uma imagem-
movimento, um corte móvel, uma duração. É constituído por dois processos: o
enquadramento e a montagem. O enquadramento ocupa-se das relações entre
os objectos da imagem, enquanto a montagem se reflecte no todo temporal.
O enquadramento determina o conjunto dos elementos que estão presentes
na imagem, regista informações sonoras e visuais. É um sistema óptico, visual,
que se refere sempre a um ângulo de enquadramento, e é dinamicamente
geométrico ou físico consoante as distâncias entre os elementos e os graus de
mistura entre eles. Na imagem-movimento, é um processo constante de
divisão e reunião dos elementos, reportando-os ao todo do plano de acordo
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com as suas transformações O enquadramento determina um conjunto
variável, mas fechado, que nos movimentos provoca uma transformação do
todo.
Assim entendida, a imagem incorpora uma outra ordem, que não se refere aos
objectos, mas ao tempo que compõe o movimento. É a ordem da montagem,
a operação que extrai uma imagem do tempo das imagens-movimento. A
montagem é “a composição, o agenciamento das imagens-movimento de
forma a constituir uma imagem indirecta do tempo” (Deleuze G. , 2009, p. 54).
No cinema não se pode dissociar nada de representativo do tempo
heterogéneo que perfaz a imagem, logo a ideia é o todo, na condição de ser
uma imagem-tempo. Como tal, Deleuze vê na montagem “o acto principal do
cinema” (Deleuze G. , 2015, p. 59).
Como o tempo é inferido das relações entre as imagens-movimentos, extrai-
se delas uma imagem indirecta, ou seja, o tempo depende do movimento. Diz
Deleuze que esta imagem dá a ideia como uma representação indirecta do
tempo. Há, no entanto, uma segunda forma de imagem-tempo, que se
desenrola quando o movimento perde função e se furta à centragem, quando
se torna “movimento aberrante”. O tempo não se subordina ao movimento,
antes o promove, e abre a imagem a uma apresentação directa do tempo.
A Imagem-cristal
Qualquer imagem, considerada do ponto de vista do todo, ou seja, da
perspectiva do tempo heterogéneo que compõe o cinema, constitui-se numa
variação temporal que pressupõe diferentes identidades mutáveis e
diferenciáveis. Há em cada momento da sua duração uma conservação da
ideia do movimento passado e de um futuro por vir ainda não actualizado, é o
“fundamento oculto do tempo, isto é , a sua diferenciação entre dois jorros, o
dos presentes que passam e o dos passados que se conservam” (Deleuze G.
, 2015, p. 155).
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O tempo da imagem audiovisual é heterogéneo, constitui-se na união entre as
imagens, os conceitos, as narrativas, e com o próprio mundo no qual as
imagens se envolvem. As próprias imagens se referem a movimentos da
consciência, a faculdades cognitivas, entre as quais Deleuze destaca a
recordação e o sonho. Um exemplo na prática do cinema é o flash-back, que
apresenta um passado, uma recordação cinematográfica, sob a forma de
presente, o do desenrolar dos movimentos e o do presente diegético que
“percorre uma zona de recordações e regressa a um estado cada vez mais
profundo, cada vez mais inexorável, da situação presente” (Deleuze G. , 2015,
p. 79).
É uma imagem dupla e mútua à qual Deleuze chama de imagem-cristal, a
“operação fundamental do tempo” , em que circula uma relação entre a
imagem-movimento cinematográfica, presente e actual, e uma imagem virtual
que compõe a relação da imagem com o todo conceptual, ou seja, com o
passado da própria imagem e com o mundo, nas suas relações entre o real e
o imaginário, entre o presente e o passado.
Nestas relações, cada objecto atravessa uma multiplicidade de circuitos que,
levados ao limite, criam pontos de indiscernibilidade entre si. Torna-se
impossível discernir o presente do passado, a imaginação da realidade, porque
cada um dos termos remete para o outro, em circuitos cada vez mais pequenos
e subtis.
Mais uma vez, vemos que a imagem não é uma uma questão de
subjectividade, mas de uma circulação de todos os movimentos e tempos que
compõem o seu todo a cada momento. Deleuze distingue sempre a
capacidade subjectiva da imagem cinematográfica, realizada através da
câmara, da do espectador. Isto porque, no cinema, o espírito, o todo, ou o
conceito não fazem parte da imagem e das camadas de tempo que a
constituem:
A subjectividade nunca é nossa, é o tempo, ou seja, a alma ou o espírito,
o virtual. O actual é sempre objectivo, mas o virtual é o subjectivo: era
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primeiro o afecto, o que sentimos no tempo; e depois o próprio tempo,
pura virtualidade que se desdobra em afectante e afectado.
(Deleuze G. , 2015, pp. 132,133)
Imagem-percepção e Câmara-consciência
Na circulação entre o enquadramento e a montagem, entre o conjunto que
separa e reúne as partes que se movimentam e o todo que dura, Deleuze
encontra uma analogia entre o plano e a consciência. O plano, ou seja, a
consciência, traça um movimento que faz que as coisas entre as quais se
estabelece estejam continuamente a reunir-se num todo e o todo a dividir-se
entre as coisas” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 41).
O olho da consciência cinematográfica é a câmara e são as suas condições
que ditam o seu estatuto em relação à imagem, um olho cinematográfico que
oferece um ponto de vista e, como tal, uma exposição do mundo que vê. É
uma consciência específica, sensório-motora, que parte de uma percepção
propriamente cinematográfica e não natural.
Dadas as suas características, a consciência cinematográfica pode ser “ora
humana, ora inumana, ora sobre-humana” (Deleuze G. , A Imagem-
Movimento: Cinema 1, 2009, p. 40). Uma primeira razão para esta
inumanidade está na distinção entre a percepção natural e a percepção
cinematográfica dada por Deleuze, distinção que está sempre nos intervalos
dos movimentos:
a percepção natural introduz paragens, ancoragens, pontos fixos ou pontos
de vista separado, corpos móveis ou até veículos distintos, ao passo que
a percepção cinematográfica opera de maneira contínua, por um único
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movimento de que as próprias paragens fazem parte integrante não
passando de uma vibração.
(Deleuze G. , 2009, p. 43)
A segunda razão é que, fixa ou móvel, a câmara funciona como um
“equivalente geral” das coisas que mostra ou das quais se serve. Ela instala-
se em relação às coisas, enquadra-as e monta-as na imagem, mas também
se instala nelas, usa-as como veículos, extrai “dos corpos móveis a mobilidade
que é a sua essência” (Deleuze G. , 2009, p. 44).
A câmara pode adoptar o olhar de uma personagem, mas ainda assim não se
confunde com ela. O que exprime a posição da câmara em relação à imagem
que ela reflecte é um “ser-com” (Deleuze G. , 2009, p. 117). Ela exprime um
olhar que não é das personagens, nem o das coisas, ele está nas personagens
e nas coisas, está com elas, de acordo com um “ponto de vista anónimo de
alguém não identificado entre as personagens” (Deleuze G. , 2009, p. 117).
Neste sentido, a imagem cinematográfica é sempre uma imagem-percepção,
antes das imagens-percepção diegéticas, como que “uma reflexão da imagem
numa consciência de si-câmara” (Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema
1, 2009, p. 122).
Não se pode dizer que a câmara, na sua autonomia, seja subjectiva. Num filme
pode-se falar de uma imagem subjectiva ou objectiva de uma forma diegética:
correspondentemente, quando é expresso o olhar de uma personagem ou de
uma coisa, e quando a imagem enquadra um conjunto de personagens ou
coisas do qual a personagem está ausente. Em todos os casos, a câmara é
completamente autónoma. É-o, porque a imagem se reporta sempre ao todo,
que é, sempre mais do que a construção da personagem ou de uma história,
uma imagem de tempo heterogénea diegética e extradiegética. Na sua
autonomia, a visão consciente da câmara é indissociável do todo,
ultrapassando a objectividade e subjectividade das imagens:
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Podemos ver no cinema imagens que pretendem ser objectivas e
subjectivas; mas aqui trata-se de ultrapassar o subjectivo e o objectivo
numa forma que se erige em visão autónoma do conteúdo.
(Deleuze G. , 2009, p. 119)
Imagem no Conceito
No seu encontro com o mundo, a imagem enquadra-se numa duplicidade
visual e conceptual. É neste domínio que a obra de Deleuze se completa
filosoficamente numa prática dos conceitos que a Imagem engloba. Neles, é
sempre destacada a iminente influência que o cinema teve na filosofia da
imagem, sendo visto pelo autor como o “órgão a aperfeiçoar da nova realidade”
(Deleuze G. , A Imagem-Movimento: Cinema 1, 2009, p. 22).
A perspectiva cinematográfica fornece as condições para a essência temporal
do conceito filosófico de Imagem: toda a imagem é movimento quando
reportada a uma duração. Mesmo quando aparenta imobilidade,
temporalmente ela nunca é completamente imóvel, mas vibração.
A imagem em-si é um Todo conceptual, o todo da imagem e o todo do objecto,
assim como o todo das designações (imagens instantâneas) que lhe podem
ser atribuídas. A imagem é fundamentada pelo tempo, na sua duração, e nos
ritmos causados pelas mudanças que os movimentos envolvem. Não é, por
isso, um conjunto final, predeterminado, de possibilidades existentes, mas
aberto, no sentido em que o movimento provoca mudanças qualitativas que
geram mutações na própria identidade do conceito. Numa perspectiva
temporal as mudanças são qualitativas e correspondem movimentos, que não
são extensivos, mas intensivos, correspondem a intensidades. Por
intensidade, Deleuze entende o “elemento que é em si mesmo diferença e cria,
ao mesmo tempo, a qualidade no sensível e o exercício transcendente na
sensibilidade” (2000, p. 247).
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Da Imagem em-si, Deleuze extrai diferentes imagens, cortes da imagem em-
si, de diferente identidade, cujas mudanças restituem, simultaneamente, a
identidade do Todo. Uma imagem de pensamento, assim como obras de arte
estáticas seriam cortes imóveis, imagens instantâneas cujo movimento parte
do pensamento segundo um tempo abstracto. Existem também cortes móveis,
como as imagens cinematográficas, que são constituídas por movimento ao
longo de uma duração fixa, com tempo objectivo. É desta forma que explica
que “o conjunto infinito de todas as imagens constitui uma espécie plano de
imanência” (2009, p. 97) no qual a Imagem existe em si. O plano de imanência
é também, por si, um corte móvel, “é um bloco de espaço-tempo, porque lhe
pertence de cada vez o tempo do movimento que se opera nele” (2009, p. 97).
O plano de imanência ocorre de um “agenciamento maquínico das imagens-
movimento” (2009, p. 97).
A Imagem em si não é feita para nem por ninguém, não tem interpretação que
não nasça do movimento puro:
Com efeito, a nossa percepção e a nossa linguagem distinguem corpos
(substantivos), qualidades (adjectivos) e acções (verbos). Mas as acções,
neste sentido preciso, substituíram já o movimento pela ideia de um lugar
provisório para onde ele se dirige ou de um resultado que ele obtém; e a
qualidade substitui o movimento pela ideia de um estado que persiste
enquanto não lhe suceder outro; e o corpo substituiu o movimento pela
ideia de um sujeito que o executaria ou de um objeto que o sofreria, de um
veículo que o transportaria. Vamos ver que imagens como essas se
formam no universo (imagens-acção, imagens afecção e imagens-
percepção). Mas elas dependeriam de novas condições e é evidente que
não podem aparecer por enquanto. Por enquanto só temos movimentos,
chamados imagens, para os distinguir de tudo o que eles ainda não são.
(Deleuze G. , 2009, p. 98)
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No sentido do movimento, Deleuze refere também que “a imagem é
movimento, como a matéria é luz” (2009, p. 99). A identidade da imagem e da
matéria são a mesma, “esse em-si da imagem é a matéria: não qualquer coisa
que estaria escondida atrás da imagem, mas pelo contrário a identidade
absoluta da imagem-movimento e da matéria” (Deleuze G. , A Imagem-
Movimento: Cinema 1, 2009, p. 97). Deste modo, Deleuze define um modelo
das imagens e das coisas como um estado de infinita variação, “um estado de
coisas que não parassem de mudar, uma matéria-fluxo onde não fosse
possível assinalar nenhum ponto de referência” (Deleuze G. , 2009, p. 95).
Cinema e Pensamento
A essência artística da imagem encontra-se, para Deleuze, na sua relação com
o pensamento, é o que, no encontro com a imagem, nos força a pensar. É a
capacidade da imagem, como percepto, de “produzir um choque no
pensamento, comunicar vibrações ao cérebro, tocar directamente o sistema
nervoso central” (Deleuze G. , 2015, p. 245). No cinema, diante de uma
imagem cujo movimento existe em si, sendo por isso automático, o choque
adquire um poder específico. Imagens imóveis obrigam ao trabalho subjectivo
do espectador, do seu espírito, de fazer o movimento no seu pensamento. Mas,
como vimos anteriormente, o cinema pressupõe a subjectividade própria e
autónoma da câmara, está na imagem e no tempo heterogéneo que a
preenche. Quando o movimento se torna automático, quando ele existe “em-
si” na imagem, ele “converte em poder o que era só possibilidade” (Deleuze G.
, 2015, p. 245).
O pensador do cinema é um “autómato espiritual”, não o da filosofia clássica,
que atesta a possibilidade lógica de dedução de um pensamento através de
um outro, mas um circuito em que os pensamentos reagem às imagens –
movimento. Eleva-se do movimento automático e a ele reage. Deleuze chama-
lhe o noochoque, o “poder comum do que força a pensar” (Deleuze G. , 2015,
14
p. 246). É o sublime cinematográfico, “constitui-se quando a imaginação sofre
um choque que a leva ao seu limite e força o pensamento a pensar o todo
como totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação” (Deleuze G. , 2015,
p. 247), sendo que a imaginação se faz na imagem, nas imagens-recordação
e nas imagens-sonho, que ao mesmo tempo que cindem o tempo, constituem
uma lógica sua e voltam ao todo, no circuito entre as faces actuais e virtuais
da imagem.
A partir da montagem dialéctica de Eisenstein, Deleuze especifica três
momentos de choque que levam a imagem a uma operação do pensamento.
De salientar que grande objectivo de Eisenstein era uma definição ou
“individuação” da identidade de um grupo no sentido de preparar uma
emancipação, no entanto, vale a pena radicalizar a ideia de pensamento como
acção nas várias possibilidades de pensamento do cinema.
Num primeiro momento, o movimento parte da imagem para o conceito. A
imagem, formada pelos devidos componentes é, antes de mais, um percepto
que contém em si uma potencial subjetividade, que é conceptualizado a partir
dos processos individuais da montagem. O choque encontra-se na
comunicação entre as imagens, imposta como oposição dialéctica que forma
o conceito. Pensar através dos objetos, ou das imagens e dos seus
componentes não é apenas pensar os significados, mas também pensar o
próprio espaço da relação, pois é o que garante a unificação do todo. A
montagem, como processo intelectual, possibilita um caminho para o
pensamento.
Existe, no entanto, um movimento contrário, do conceito para a imagem, que
restitui ao processo intelectual a carga afectiva da imagem. O conceito já não
é resultante da imagem, mas uma estrutura de compreensão que adota a carga
afectiva das figuras. Se o primeiro choque parte de uma unificação das
imagens através da montagem e interioriza o toda nas relações, o segundo
choque, sensorial, inscreve-se no todo da agitação das imagens que o
exprimem.
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O terceiro momento surge no culminar do movimento entre os dois primeiros.
É a relação dos dois e define a identidade do conceito e da imagem ao longo
do movimento das suas relações, e que corresponde à posição do sujeito em
relação ao todo/mundo, e do todo/mundo em relação ao sujeito. Esta
identidade permite uma definição do sujeito e das possibilidades de acção, ou
seja de um pensamento-acção que resolve a oposição dialéctica.
Ao apoiar-se em Eisenstein, Deleuze favorece uma imagem dialéctica do
pensamento, um “autómato dialéctico”. O seu objectivo, “juntar o mais alto grau
da consciência e o nível mais profundo do inconsciente” (Deleuze G. , 2015, p.
253). De facto, o cinema de Eisenstein é exemplificativo do que seria a grande
promessa do cinema como arte industrial nos seus inícios, ao transportar esta
operação dialéctica das imagens para a narrativa: comunicar um choque que
força a pensar, criar “um autómato subjectivo e colectivo para um movimento
automático” (Deleuze G. , 2015, p. 246), capaz de unificar o pensamento em
torno das massas.
Promessa de uma efectividade ideológica que se torna dúbia quando o cinema
cai na propaganda e na manipulação política e comercial. Por um lado, a
mediocridade de um cinema que substitui a violência da imagem pela violência
do representado, por outro, os filmes políticos de Leni Riefenstahl,
evidenciavam “uma espécie de fascismo que ligava Hitler a Hollywood e
Hollywood a Hitler” (Deleuze G. , 2015, p. 258), e uma impossibilidade de
confiar no autómato cinematográfico.
Nesta base, Deleuze distingue o que considera o cinema clássico, baseado
numa lógica causa-efeito narrativa e imagética do laço sensorio-motor, do
cinema moderno. De acordo com o filósofo, é diante de um mundo intolerável
e no qual já não se pode confiar, que as novas vagas do cinema introduzem
no pensamento um mundo de contingências, que parte de uma constatação
de impotência face à permeabilidade do pensamento às mais ínfimas
incoerências. Esta impotência forma-se sob a forma de corte conceptual entre
as relações que unem as imagens. Rompe-se o laço de causa efeito e
continuidade conceptual que organiza as imagens, instaurando um vazio
intersticial que levanta a necessidade de uma nova forma de conceptualizar as
16
imagens, um novo pensamento inscrito nos processos de pensamento através
das coisas.
Quanto ao mundo diegético, ocorre uma transformação ontológica da
personagem, que deixa de ser sujeito de actualização da acção, para se tornar
num sujeito mediador, petrificado, que “divaga ele próprio através de imagens
cuja relação não consegue resolver” (Deleuze G. , 2015). Deleuze denota aqui
um novo autómato espíritual, que “passou a ser a múmia, essa instância
desmontada, paralisada, petrificada, congelada, que atesta a impossibilidade
de pensar que o pensamento é” (Deleuze G. , 2015, p. 262), ou “corpo
incógnito que só temos atrás da cabeça e cuja idade não é a nossa nem a da
nossa infância, mas um pouco de tempo em estado puro” (Deleuze G. , 2015,
p. 266).
Resta mostrar o literal, requerendo novas formas de pensamento de acordo
com as condições de um tempo puro. A apresentação do literal é a própria
consequência da ruptura do laço sensório-motor do cinema clássico. As
imagens perdem a ligação causal e os seus elementos tornam-se
independentes, adquirindo a temporalidade própria de cada movimento. O
cinema enquanto pensamento já não parte do conceito formado pela
montagem porque o papel desta é agora o da dispersão. Imagens
independentes cujo significado está disperso nos cortes que as separam. O
conceito deixa então de permitir a acção, mas abre espaço para diferentes
formas de pensamento. Se o laço sensório-motor sugeria um todo como
representação indireta do tempo, ou seja, através de um encadear de
movimentos, o cinema moderno cria o todo a partir de uma exterioridade
absoluta, um Fora da imagem correspondente às fissuras que as relações
deixam intactas.
O todo é substituído por uma exterioridade absoluta, um poder do Fora,
porque, apesar de se estabelecer entre as imagens, não cria uma figura com
um determinado significado, mas uma diferenciação cuja natureza é preciso
resolver. Operado pelo corte, o Fora é irracional, não faz parte dos
componentes das imagens. A imagem cinematográfica é submetida a provas,
a métodos construtivos que ultrapassam a contiguidade figurativa.
17
A imagem no cinema moderno é sempre desterritorializada. São os processos
de diferenciação que ocorrem através das imagens que questionam as
possíveis relações. Mesmo quando certas imagens apresentam características
semelhantes entre si, o objeto do cinema debruça-se na diferença e nas forças
exteriores que exponencializam o potencial da realidade cinematográfica.
Esta forma de pensar as imagens é condicionada pelos espaços livres que as
movimentam. Não há uma resolução, mas espaços a serem pensados. O
pensamento-acção é, acima de tudo, uma acção do pensamento através das
relações discerníveis mas também indiscerníveis entre os elementos da
imagem. Se o pensamento já não pode originar uma ação final, actualizada
nas forças do mundo, é porque, face a todas as possíveis incoerências, lhe é
necessário um movimento de constante reactualização, que se possa suster
face à realidade exterior. A despossessão das realidades sugere uma nova
exigência: “A questão já não é a da representação do mundo, mas a da
conduta do pensamento dada a indiscernibilidade da relação entre os objectos”
(Deleuze, 2015, p. 286).
Ao questionar a mediação entre as imagens, através do meta-pensamento, é
originada uma nova posição para o próprio espectador. Deixamos a ideologia
e as opiniões, para nos unirmos à natureza da consciência humana. O novo
sujeito não se descobre. Deve, no entanto, aprender a lidar com a profusão e
com a indiscernibilidade das imagens. Sendo que o choque faz nascer o
pensamento, a sua formalização não é um dado sem um movimento de
renascimento próprio segundo um horizonte infinito. É o pensamento por vir
que reflete o seu grande potencial.
18
Pensamento-cinema e Empirismo Transcendental
Em Diferença e Repetição (Deleuze G. , 2000), Deleuze aproxima o termo
“imagem de pensamento” como referência a ideias fixas, representativas. Esta
imagem constituir-se-ia a partir do senso-comum não-filosófico, ou seja, das
faculdades empíricas, como a percepção natural ou a recordação, e seria
elevada a ideia. Uma imagem de pensamento é por ele entendida como uma
representação que possui pensamento mais do que é pensada, e que, tomada
como uma verdade não passa de uma imagem dogmática. Partindo de algo
não filosófico não seria possível chegar aos conceitos de acordo com um
pensamento realmente filosófico. Seria antes necessário elevar as faculdades
a um empirismo superior: “determinar a natureza das exigências das
faculdades, e que as levam ao limite, como estados livres de diferença” (2000,
p. 246). Este modelo “foca-se na forma transcendental de uma faculdade, que
se confunde com o seu exercício disjunto, superior, ou transcendente, o que
significa que a faculdade apreende no mundo o que lhe concerne, o que a faz
nascer para o mundo” (2000, p. 245).
Já não são as ideias que são elevadas ou transcendentalizadas, elas
continuam na matéria e no tempo. Na circulação entre a imagem e conceito,
opera-se uma desterritorialização que retira às faculdades empíricas a sua
natureza, elevando-as de acordo com uma experimentação criativa. Constitui-
se um empirismo transcendental, como movimento auto-poiético da filosofia e
dos conceitos.
O empirismo transcendental dá origem ao um pensamento que, não apagando
a importância das ideias, desloca o jogo das acções do pensamento para a
circulação das faculdades que lhe dão origem, responsabilizando-o de uma
contemplatividade e de uma experimentalidade dirigida para a diferença,
inseparável do fluxo. É “o pensamento que nasce no pensamento, é o acto de
pensar originado na sua genitalidade, nem dado no inatismo, nem suposto na
reminescência, é o pensamento sem imagens” (Deleuze G. , Diferença e
Repetição, 2000, p. 281)
19
O pensamento deixa de se confundir com a imagem, tornam-se ambos
independentes, e começa a identificar-se com o movimento posto em prática
empiricamente. Se antes imagem e pensamento se confundiam com a ideia e,
por consequência, com a realidade, com a forma de uma verdade que nunca
o chega a ser, o pensamento Deleuziano é um pensamento sem imagens, feito
de movimento sem objecto nem sujeito, que navega as imagens e que no seu
fluxo constrói o Novo. Se Deleuze reclama a necessidade de, para tal, abolir
as imagens, tal não significa que elas não continuem lá, em relação com o
pensamento. O que é necessário é ver a sua identidade como matéria-fluxo,
mudança constante a ser operada pelo pensamento que reconstitui a sua
natureza, sempre sublimada: “nunca é no início que qualquer coisa de novo,
uma nova arte, pode revelar a sua essência; o que era desde o início só o pode
revelar num desvio da sua evolução” (Deleuze G. , 2015, p. 72).
Da mesma forma, o Cinema é feito de operações, de movimentos que
representam e apresentam acções análogas às das faculdades
transcendentais no espaço-tempo propriamente audiovisual, cuja relação é
feita de constante mudança. Torna-se compreensível o interesse filosófico que
Deleuze viu no cinema. Há no seu autómato espiritual um poder de construção
de um pensamento que rompe com a percepção natural e a transforma. Ainda
que o cinema suponha uma forma de pensamento maioritariamente visual e
sensório-motor, as imagens que o filósofo distingue, como a imagem-
percepção e a imagem-recordação correspondem a qualidades dos
movimentos e do tempo da mesma forma que as faculdades empíricas devem
ser movimentadas na filosofia.
O cinema supõe em todas as faces da imagem um tempo heterogéneo, uma
virtualidade e uma actualidade, ao qual corresponde a união de todos os
tempos em cada momento presente. Há uma experiência real do pensamento
ao longo da sua duração. A cada actualização do pensamento, uma nova
perspectiva empírica que transforma os significados: “é só quando o signo se
abre ao directamente ao tempo, só quando o tempo fornece a própria matéria
sinalética, que o tipo, que se tornou temporal, se confunde com o traço de
20
singularidade separado das suas associações motoras” (Deleuze G. , 2015, p.
72).
A relação entre as duas formas aproxima-se eminentemente com o surgimento
do cinema moderno, que, como vimos, põe o cinema em ordem com o
intolerável, com o impensável, substituindo a ideia de Todo pela
inacessibilidade do Exterior. Como Sousa Dias resume:
... o pensamento sempre numa relação íntima com um impensado, que
não é o que ele não pensa, mas o que não para de pensar, o seu Exterior
que é, ao mesmo tempo, o seu Dentro mais profundo.
(Sousa Dias, Anti-Doxa, 2019, p. 41)
Tal como o cinema, a filosofia é uma forma de ver e de fazer ver, faz-se de
“actos de vidência que fendem as realidades empíricas dadas para as abrir a
uma perceptibilidade inacessível” (Sousa Dias, Anti-Doxa, 2019, p. 37).
Quando Rancière (O Destino das Imagens, 2011, p. 13) escreve que a imagem
cinematográfica resulta de uma relação entre o dizer e o ver, é preciso discernir
as duas operações em termos das intensidades que a cada uma são próprias:
dizer consiste num investimento discursivo entre a imagem e a ideia, enquanto
que ver exige mais do que uma designação do que se vê, um pensamento
sobre o próprio processo de ver que se deixa impregnar por formas de
intensidades que não correspondem propriamente à linguagem. Daí que o
escritor veja um interesse específico na contemplação como uma forma de ver
que não se resume a uma absorção, sendo antes uma forma de pensamento
que põe o acto de percepcionar em constante acção sobre si própria. Dizer e
ver formam uma dialéctica que não é resolvida logicamente, mas
intensivamente.
21
2. Dispositivo e Maquinismo Dispositivos
Conceito central na obra de Michel Foucault, o Dispositivo é constituído em
três movimentos: discernimento dos elementos que o constituem e o formam
como um conjunto heterogéneo de práticas, materiais e discursos relativos ao
seu funcionamento; identificação da natureza das ligações que existem entre
os elementos heterogéneos; análise das estratégias/necessidades históricas
que dão origem a cada dispositivo.
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitectónicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo
(...). Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que
pode existir entre estes elementos heterogéneos. Sendo assim, tal
discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao
contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que
permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta
prática, dando−lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma,
entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja,
mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser
muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de
formação que, em um determinado momento histórico, teve como função
principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma
função estratégica dominante.
(Foucault, 1998, p. 244)
22
Quando se refere a um dispositivo, neste conceito, estão em jogo linhas de
poder e de subjectivação e relações de heterogeneidade. Explorar um
dispositivo será “desmascarar” a natureza das relações, percebendo o lugar e
função mutáveis de cada elemento em relação à finalidade/urgência que deu
origem à sua estratégia. Ao dispositivo, faz ainda corresponder um movimento
de génese, na medida em que da predominância de objectivo estratégico do
dispositivo ocorre um duplo processo que o reconstitui:
... por um lado, processo de sobredeterminação funcional, pois cada efeito,
positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de
ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação,
um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem
dispersamente; por outro lado, processo de perpétuo preenchimento
estratégico.
(Foucault, 1998, p. 245)
De acordo com esta perspectiva, o filósofo refere que os elementos
heterogéneos intervêm numa racionalidade (Foucault, 1998, p. 246), e está
relacionado com a qualificação dos saberes que o dispositivo constitui, “o
dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando
sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações do saber que dele
nascem mas que igualmente o condicionam” (Foucault, 1998, p. 246).
Os processos de subjectivação são definidos pelas relações que o ser humano
tem com o dispositivo, ao nível do gesto e dos resultados da produção, mas se
nos referimos à ordem conceptual do dispositivo, essa produção é
principalmente uma produção dos saberes enquanto qualificação do
pensamento.
Giorgio Agamben (What Is an Apparatus? and Other Essays, 2009) retoma a
abordagem de Foucault, focando-se na relação entre os dispositivos e o ser
23
humano, realçando que os dispositivos implicam sempre um processo de
subjectivação:
Expandindo a já larga classe dos dispositivos Foucauldianos, defino-
o literalmente como algo que tem a capacidade de capturar, orientar,
determinar, interceptar, modelar, controlar ou segurar os gestos,
comportamentos, opiniões ou discursos dos seres vivos.
(Agamben, 2009, p. 14)
O que importa sublinhar na abrangência que Foucault e Agamben conferem à
sua noção de dispositivo, é a forma como este mesmo sustenta a existência
do sujeito, do mesmo modo que as relações de forças entre os elementos dos
dispositivos possibilita a sua transformação/subjetivação. Para Agamben,
através do dispositivo, realiza-se uma “actividade de governação desprovida
de qualquer base do ser”, e o sujeito resulta da relação entre o ser humano e
o dispositivo. O dispositivo tem o seu lugar na actualização e reactualização
das estruturas de significação e de subjectivação dos objectos e dos sujeitos.
Seguindo Deleuze, podemos dizer que ao conceptualizar as linhas de força e
de subjectivação, Foucault cria o plano de imanência do poder. Ter em conta
a presença dos dispositivos no campo artístico implica, então, compreender a
ligação das suas estratégias com a sua história, que vincula a natureza das
tecnologias ao processo de criação estética e os processos envolvidos na
forma como os elementos heterogéneos se relacionam entre si e com o ser-
humano, condicionando-o, mas criando, simultaneamente, novas linhas de
subjectivação.
Deleuze (O Mistério de Ariana, 1996) pergunta-se se, ao conceptualizar o
dispositivo, Foucault propõe um programa como “estética intrínseca dos
modos de existência como última dimensão dos dispositivos” (1996, p. 91).
Com esta frase, Deleuze salienta a potência criadora do dispositivo e
possibilita uma relação entre o dispositivo e a criação artística, que é também
24
uma relação entre o dispositivo e a Imagem, entre estruturas racionais e os
movimentos de diferenciação que desenvolvem pontos de fuga em relação às
lógicas estabelecidas.
À luz das suas estratégias, tanto a imagem audiovisual como a exposição
podem ser analisadas como dispositivos, tendo em conta as relações entre os
elementos que os compõem, que envolvem a sua tecnologia e principalmente
os aspectos discursivos e imagéticos envolvidos. Não podemos esquecer a
importância que Deleuze deposita no conceito de Imagem, na compreensão
das intensidades que envolvem os processos e os objectos artísticos, o
cinema, e o próprio pensamento.
Unir os conceitos de dispositivo e imagem implica atender à relação entre as
linhas de poder e às intensidades do movimento imagético, através das
relações de visibilidade, mas também do pensamento. São dois planos de
imanência: um, o das intensidades, outro, o dos poderes, que se implicam um
ao outro nos processos do pensamento.
A produção de imagens, assim como os processos que as abrem à relação do
ser humano com o mundo, é feita através de dispositivos, cuja função mantém
uma certa ordem que pode, ou não, permitir a heterogeneidade dos seus
elementos.
Explorar a imagem audiovisual na sua relação com os vários dispositivos do
qual ela faz parte, nomeadamente o cinema, a vídeo arte e a exposição, bem
como a relação de ambos como mecanismos de produção e de recepção das
imagens é o que nos propomos desenvolver. Na intersecção entre os
dispositivos, interessa pensar quais as forças e poderes envolvidos nos seus
elementos sociais e tecnológicos, na interacção com o ser humano, e os
modos de acordo com os quais interagem com o mundo das práticas artísticas.
25
Imagem Em Movimento
Tomamos, neste texto, o dispositivo da imagem em movimento no seu sentido
mais lato: o dispositivo como produção de imagens em movimento, perceptos
e visibilidades, as relações sociais e estéticas que dela resultam. Se por um
lado o aparelho tem a função de produzir imagens, estas produzem perceptos,
visibilidades que entretêm em si relações entre signos, entre movimentos e
entre tempos correspondentes a diversos mundos diferentes. Distinguimos,
por isso este dispositivo de outros dos quais ele é um elemento constituinte,
dispositivos como o cinema, a televisão e o computador, que enquadram
diferentes lógicas, poderes e controlos na relação com os sujeitos. Não se trata
de os excluir, mas de se compreender que a imagem audiovisual funciona aqui
como um dispositivo de mediação que, através das suas condições, permite
relações entre dispositivos de diferentes funções.
A evidência é que a imagem audiovisual não é apenas produzida com
recorrência a instrumentos, são os instrumentos que, em grande parte, a
produzem, de acordo com processos e condições de reprodução tão
mecânicos e digitais quanto estéticos. Nas várias constituições dispositivas e
que interagem, os instrumentos da imagem-movimento estabelecem linhas de
poder e subjectividade que os relacionam com o nível visual e estético da
imagem, com a identidade do espectador, assim como com uma realidade
sociopolítica e histórica.
Mas a tecnologia não se refere apenas a um conjunto de instrumentos usados
para produzir algo. Isto porque a produção tecnológica não deixa de ser
produção humana. Para Phillipe Dubois, a tecnologia tem um carácter trans-
histórico, remontando à noção clássica de Techné que, sendo no seu âmago
instrumentalista, é, ao mesmo tempo, indissociável de regras e saberes,
válidos para a produção de objectos, belos ou úteis, e que podem ser materiais,
mas também intelectuais e estéticos. A tecnologia é, acima de tudo, “uma arte
do fazer humano” (Dubois, Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 32).
26
Como tal, Dubois sugere que todas as imagens visuais nascem de bases
tecnológicas. Requerem instrumentos, regras, condições de eficácia e, acima
de tudo, gestos e saberes. A tecnologia interpõe-se, assim, entre o homem e
o mundo, sendo que a construção dos significados é regulada pelas regras da
produção das imagens.
No caso das artes tradicionais como a pintura ou a escultura, um investimento
físico e mental do artista é transformado em imagem de acordo com
intensidades correspondentes às suas especificidades pessoais, através de
instrumentos, procedimentos e processos próprios ao médium trabalhado.
A imagem fotográfica e a imagem audiovisual partem, no entanto, de um
contexto substancialmente diferente do da arte tradicional. Dada a sua
tecnologia, a imagem é produzida a partir de uma génese automática (Dubois,
Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 38) que exclui as técnicas tradicionais em
função dos processos dos seus elementos técnicos. A produção passa da mão
para o olho, redefine os paradigmas em volta do gesto e do olhar, em relação
com as possibilidades automáticas da lente de selecção dos enquadramentos
e de organização temporal da montagem. Ao produzir imagens
correspondentes à realidade captada pela câmara, rompe com a ordem da
figuração tradicional e ganha uma nova relação entre o sujeito e o real.
Dubois desdobra o dispositivo audiovisual em cinco ordens ou estratos
diferentes, que respondem tanto não tanto aos instrumentos como a processos
que eles operam, nas suas relações estéticas e sociais: captação, inscrição
projecção/recepção, transmissão e, por fim, a imagem informática.
Em cada uma das ordens o autor apresenta questões que influenciam a
imagem no seu nível tecnológico e estético, a relação dos dispositivos que
compõe com o ser humano e o conceito de realidade que deles deriva.
As primeiras duas ordens, captação da imagem e a sua inscrição num suporte
fotossensível unem a fotografia e o cinema. Estes processos confirmam, desde
logo, dois dos sintomas da tecnologia moderna e industrial.
27
Em primeiro lugar, ao reproduzir imagens automáticas do mundo, a captação
transforma os modos de ver a realidade e a representação na imagem,
“passamos de um efeito de realismo (da ordem estética da mimese) a um efeito
de realidade (da ordem da fenomenologia do Real)” (Dubois, 2004, p. 51), a
imagem “provém por sua génese da ontologia do modelo: ela é o modelo.”
(Bazin, 1991, p. 24). Como afirma Bazin,
A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua
objetividade essencial. (...) Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua
representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira
vez uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a
intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo.
(Bazin, 1991, p. 22)
Passamos da representação da realidade à questão da sua essência, da
estética à semiótica, com uma redução dos critérios de representação e uma
maior preponderância dos vestígios e dos índices.
Em segundo, cada reprodução, fotográfica ou audiovisual é também uma
tecnologia de armazenamento, é informação, memória, tempo cristalizado. A
imagem audiovisual inclui na reprodução o tempo, na forma de duração e
temporalidade dos objectos captados: “O filme não se contenta mais em
conservar para nós o objecto lacrado no instante, como no âmbar o corpo
intacto dos insetos de uma era extinta” (Bazin, 1991, p. 24). Para Friedrich A.
Kittler, o armazenamento e a reprodução do fluxo temporal da informação
audiovisual transformam mais o estado da realidade que a reprodutibilidade da
fotografia. Isto porque, ao reproduzir os movimentos no tempo a imagem
audiovisual se impõe ao espectador, guiando o seu olhar, “olhos e ouvidos
tornaram-se autónomos” (Kittler, 1999, p. 3).
28
A câmara e o tempo, no cinema, criam como que um novo sujeito que substitui
o espectador e o guia, um sujeito que através da montagem se torna
psicológico, nas palavras de Deleuze, um autómato espiritual cinematográfico.
Tal acontece também devido às condições específicas da recepção, terceira
ordem deste dispositivo. À produção da imagem pelo olhar da câmara com o
controlo do cineasta, junta-se um dispositivo de recepção que une o ecrã ao
espectador.
Numa sala de cinema a projecção da imagem numa tela grande, a posição pré-
definida do público numa escuridão que apaga a sensação do espaço,
privilegiam a imagem e escondem o aparelho, favorecendo um estado de
imersão sensorial e facilitando uma hipertrofia do olhar. Ocorre uma expansão
da percepção, mas só em relação ao movimento das imagens e possibilita um
“investimento do imaginário” (Dubois, 2004, p. 44). Este investimento agencia
linhas de poder, no aspecto perceptivo, entre a imagem audiovisual e o
espectador: a imagem audiovisual sobrepõe o seu fluxo e o focos do seu
movimento aos do pensamento do espectador; ao mesmo tempo, como Hito
Steyerl salienta, a sala de cinema organiza-se com um espaço de
confinamento, de controlo temporal (The Wretched of the Screen. E-flux
Journal, 2012, p. 67).
A televisão introduz novas camadas no dispositivo audiovisual. É tornada
possível pelo surgimento do vídeo (imagem eletrónica ou digital), e por
diferentes dispositivos de recepção, ecrãs e monitores. A imagem torna-se
independente da sala de cinema estende-se ao uso doméstico. A sua
especificidade tecnológica, a quarta ordem do dispositivo, é a transmissão, a
emissão instantânea da imagem e a possibilidade da sua visualização
simultânea, e em tempo real.
Com a inauguração do vídeo, ou seja, de imagens electrónicas e digitais, este
estrato do dispositivo cria novas condições de produção e visualização. Ele
adquire uma forma mais extensiva do que intensiva, visto que a sua lógica está
mais relacionada com a propagação e simultaneidade da recepção de
29
informação, “ela abre a porta à ilusão (simulação) da co-presença integral”
(Dubois, 2004, p. 46).
Em contraste com o filme, as imagens produzidas pela camara de vídeo são
instantaneamente reproduzidas no monitor, que segundo Krauss (Krauss,
1976) providencia uma estética narcisista que se exprime com processos de
reflexividade, como se de um espelho se tratasse. Entre câmara e monitor, os
objectos são “centrados como que entre o abrir e fechar de um parêntesis”
(Krauss, 1976, p. 52) que se manifesta como um “colapso do presente”
(Krauss, 1976, p. 53) que surge o rompimento do tempo presente com o seu
sentido de passado. Seguindo esta perspectiva, Christine Ross explora, em
The Temporalities of Video, o modo como as circunstâncias económico-sociais
e tecnológicas do vídeo e dos media digitais articulam uma espacialização do
tempo que corrói os delongamentos da temporalidade que anulam a sua
existência como intervalo e duração (Ross, 2006, p. 85)
No último estrato do dispositivo, que se refere à imagem informática, todos os
anteriores elementos tornam-se processos do próprio computador. A ideia de
representação perde sentido. Enquanto que os outros sistemas pressupunham
uma relação entre a imagem e o Real, o objecto e a sua representação, a
imagem informática contem em si, apenas, o seu próprio real, “não há nada
além da máquina, que cobre todo o processo e exclui tudo o mais” (Cinema,
Vídeo, Godard, 2004, p. 48) Dubois considera-a, por isso, uma máquina de
concepção (Cinema, Vídeo, Godard, 2004, p. 47). A relação entre o sujeito e o
dispositivo, segundo o autor, consiste na relação entre o programador e o
executante de um programa. Sugere-se que a imagem informática possa, no
entanto, representar um retorno ao trabalho do sujeito criador das artes
tradicionais, só que neste caso a mão do artista existe também de acordo com
uma vasta gama de processos informáticos que implicam muitas outras formas
e cruzamentos de informação.
30
Exposição
O espaço expositivo é um dispositivo que integra um vasto conjunto de
elementos históricos, artísticos, políticos e institucionais. Todos estes
elementos são unidos no espaço da galeria.
Boris Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) afirma que a exposição
implica a desterritorialização dos objectos e das imagens que incorpora. Assim
como as reproduções audiovisuais retiram uma obra do seu contexto material,
a exposição retira-a do contexto espácio-temporal original. Uma exposição cria
um novo “aqui e agora” da obra de arte, uma nova estrutura de forças espaciais
e temporais, de relações entre objectos e pessoas através do espaço, e
através do olhar que esta interligação propõe.
É o caso da entrada da imagem audiovisual e do cinema no território da arte
contemporânea e no espaço da galeria. Thomas Elsaesser (Ingmar Bergman
in the museum? Thresholds, limits, conditions of possibility, 2009) dá duas
razões para esta migração: a adopção do dos dispositivos do filme e do vídeo
pela arte. Obras de videoarte e instalações desterritorializam os próprios
dispositivos originais do cinema e da televisão ao criar perceptos e novas
sensações e formas de pensar, através de disrupções e transformações das
configurações das máquinas e das propriedades da imagem; o próprio cinema
atingiu uma idade em que já é possível fazer exposições numa vertente mais
analítica, sobre a sua história e os efeitos sociais sociais, ou mesmo sobre a
obra e vida de realizadores conceituados. Em suma, o museu pode tanto
funcionar como um espaço que permite abordagens artísticas que usam o
dispositivo audiovisual fora da sala de cinema, como um espaço de arquivo
que retira os filmes da sala de cinema para os estudar de acordo com novas
regras e novas formas de visionamento. Filmes tradicionais podem ser
fragmentados de modo a que certos pormenores cinematográficos se tornem
independentes e adquiram novas formas de significado.Várias exposições
juntam, também, o dispositivo audiovisual com obras de diferentes media.
31
Deste modo, sala de cinema e a sala de exposições servem como dispositivos
visuais de apresentação, capazes de fornecer experiências temporais
espaciais específicas. Seguem, no entanto, ordenações arquitectónicas que
apontam para ontologias diferentes, tanto a nível institucional como filosófico
(Elsaesser, 2009). O cinema é uma arte de proscénio, constitui, por isso, um
espaço uniforme, baseado no alinhamento entre a tela, e o projector. e na
distância do espectador em relação à imagem. Implica também a escuridão
em relação à iluminação da tela, que projecta um efeito de descorporização do
espectador e de anulação do espaço. A sala de exposições, por sua vez,
trabalha o espaço, organiza-o em torno das relações entre as obras, o que
exige uma relação diferente com a luz, e com os limites do espaço, mas
também com a própria presença dos dispositivos imagéticos.
No espaço da exposição, Elsaesser diz, a apresentação da imagem
audiovisual funde-se com a da instalação, no sentido em que o espaço se junta
à temporalidade da obra. Obras de vídeo instalação têm um carácter
tridimensional fortemente escultórico, e daí a importância do espaço que
ocupa. Visto como instalação, o lado tecnológico do dispositivo ganha uma
nova importância. Enquanto no cinema o dispositivo permanece escondido no
processo de projecção, na exposição deixa de ter uma função única de
produzir imagens audiovisuais, e torna-se ele próprio imagem actual da obra.
A exposição oferece inúmeras possibilidades espaciais a diferentes invenções
visuais, como telas múltiplas ou transformadas, projecções em locais
inesperados, na parede, no tecto ou no chão, diferentes configurações dos
aparelhos, sequencializações das imagens nas paredes, monitores embutidos,
etc.
Mas o mesmo acontece com as obras, videoarte e filmes apresentados em
black box, na medida em que a distância para com a tela ou o ecrã é apagada
pela liberdade posicional do espectador. Ele pode aproximar-se ou distanciar-
se, ver a imagem na sua representação ou os movimentos micro, pormenores
que fundem a imagem com a textura da tela, com o grão da imagem ou com o
varrimento de pixéis.
32
Ao apresentar dispositivos mecânicos e representativos, permitindo diferentes
pontos de vista das imagens, uma exposição que integre o cinema e a
videoarte tem sempre um carácter meta-cinematográfico. Como Elssesser diz:
Todos os actos e objectos são simultaneamente eles próprios e aquilo que
eles expressam e, como tal, o museu conhece o cinema melhor do que o
cinema se conhece a si próprio, ou antes: o museu força o cinema a ser
ele próprio, a tornar-se mais como ele mesmo é.
(Ingmar Bergman in the museum? Thresholds, limits, conditions of
possibility, 2009)
O encontro entre o cinema e o museu traz, portanto, novos tipos de situações,
que dissociam o dispositivo audiovisual dos seus espaços originais e
proporcionam um encontro com novas formas activas de ver e experimentar a
imagem. Entre as duas instituições entrelaçam-se mecanismos, discursos e
formas de ver que dão origem a novas formas de pensar a imagem. Neste
sentido, a presença da imagem audiovisual na exposição, transforma a própria
natureza do museu ao introduzir nela novas camadas de tempo, e ao mesmo
tempo reconfigura o espaço cinematográfico, consciencializando o espectador
da natureza da exposição e das máquinas audiovisuais.
Na exposição, sugere Elssaesser, cada obra obriga a uma redefinição do
espaço do espectador, assim como a forma como a imagem em movimento é
exposta, tendo em conta os seus suportes e superfícies, e a relação com o
espaço que faz a totalidade da exposição (Ingmar Bergman in the museum?
Thresholds, limits, conditions of possibility, 2009). Enquanto no cinema os
olhos se movem e o corpo fica imóvel, a galeria pode ser comparada a um
caminho, ou um labirinto, no qual o espectador pode deambular. Estas
diferenças requerem modos de atenção, modos de olhar e de sentir o tempo
próprios, que actuam na subjectivação do espectador. Se a sala de exposição
oferece já vastas possibilidades de experiência (olhar uma pintura requer um
exercício diferente do de olhar uma escultura), a imagem em movimento
33
adiciona uma nova exigência, relativa ao tempo: requer uma duração, e uma
temporalidade independente, que retira ao espectador o poder de controlar o
seu tempo, se quiser ver a totalidade da obra.
Estas diferenças recaem também na identidade do espectador enquanto
sujeito colectivo. Para Hito Steyerl (The Wretched of the Screen. E-flux Journal,
2012, p. 67) a diferença entre o espectador do cinema e o do museu está na
diferença entre massa e multiplicidade. O espaço de confinamento do cinema
é temporalmente controlado e uni-focal, uma única projecção da imagem na
tela. Os espectadores, sentados, são todos igualmente dirigidos pela mesma
imagem. Já a galeria é um espaço multi-focal, de dispersão, que compreende,
em vez de uma massa homogeneizada pelo olhar, uma multiplicidade que
escolhe o seu próprio caminho e se espalha pelo espaço, montado a sua
própria experiência espácio-temporal entre fragmentos de atenção e
distracção.
Máquinas de Imagens
É de relevar o jogo de dinâmicas que Dubois confere ao termo “máquina de
imagens”, expressão de notória influência Deleuziana. De acordo com o autor
todos os elementos do dispositivo correspondem a máquinas: máquinas de
pré-visão (captação), de registo e inscrição, máquinas de visualização
(recepção), são uma primeira linha da produção audiovisual. Dubois descreve
um mecanicismo da imagem, e estabelece-o num eixo entre maquinismo e
humanismo, sendo que cada ordem deste dispositivo acentua a hegemonia
crescente das máquinas técnicas sobre o ser-humano enquanto espectador.
Mas não é apenas na técnica que as imagens se produzem, assim como o que
elas produzem não é somente técnico, “ o cinema é tanto uma maquinação
(máquina de pensamento) como uma maquinaria, tanto uma experiência
psíquica quanto um fenómeno físico-perceptivo” (Cinema, Vídeo, Godard,
34
2004, p. 44). Surgem, então, outras classes de máquinas cinematográficas,
máquinas figurativas, de representação, máquinas de imaginário e máquinas
de pensamento, que provocam um investimento psicológico e afectivo no
espectador.
Todos estes mecanismos e automatismos produzem muito mais do que
imagens no sentido técnico da palavra. O dispositivo da imagem audiovisual é
produtor de imagens, mas também de significações, de afectos e de choques
que forçam o pensamento, assim como o espectador produz os seus próprios
afectos e pensamentos de acordo com a sua experiência. Surgem pontos de
referência e centramentos, mas também pontos de fuga aos mecanismos dos
dispositivos em todos os seus níveis técnicos, intelectuais e estéticos. O que
define a sua a relação são os investimentos contínuos que as máquinas fazem
umas sobre as outras, criação e circulação heterogénea em que a produção
só se contenta continuar os fluxos desencadeados. Entramos no reino das
máquinas desejantes de Deleuze e Guattari:
Nas máquinas desejantes funciona tudo ao mesmo tempo, mas em hiatos,
rupturas, avarias e falhas, intermitências e curto-circuitos, distâncias e
fragmentações, numa soma que reúne as partes num todo.
(O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 45)
O sentido da noção de Deleuze e Guattari isola a máquina técnica das suas
funções e condições de origem. Os elementos do dispositivo que formam a
imagem audiovisual nas suas várias variantes não se sobrepõe nem se
substituem. Ligam-se uns aos outros, produzem fluxos num contínuo processo.
O que delimita a sua produção são ímpetos, desejos. Os autores falam de um
modo muito específico do desejo, não o colocam na ordem da necessidade ou
da falta. Como processo filosófico, o desejo é sempre reconduzido à produção,
ou seja, é o ímpeto como modo de produção que garante toda a produção
restante. As máquinas desejantes produzem sempre mais produção:
35
... produção de produções, de acções e reacções; produções de registos,
de distribuições e pontos de referência; produções de consumos, de
volúpias, de angústias e dores.
(Deleuze & Guattari, 2004, p. 9)
Nesta perspectiva, a produção não é feita de acordo com as funções e
significados que o constituem, mas o inverso. Elas são distribuídas e
consumidas no próprio processo de produção.
O modelo da natureza humana na sua relação com esta noção de desejo
passa a ser a fábrica, um inconsciente-fábrica repleto de todo o tipo de fluxos
que nascem do desejo, e que não são representações, mas produções de
realidade, “efeitos de máquinas e não metáforas” (Deleuze & Guattari, 2004,
p. 7).
A indústria deixa assim de ser entendida numa relação extrínseca de
utilidade para o ser na sua identidade fundamental com a natureza como
produção do homem e pelo homem.
(Deleuze & Guattari, 2004, p. 10)
A arte e a exposição evidenciam a realidade maquínica dos dispositivos, o
processo de produção primária do real que define as máquinas desejantes, a
transparência dos seus intervalos, dos seus cortes, das suas disrupções. “As
máquinas desejantes só funcionam avariadas, avariando-se constantemente”
(Deleuze & Guattari, 2004, p. 13). Liberta as máquinas-orgãos das suas
finalidades e funções, em prol de uma infinita produção intensiva.
Este modelo pode ser visto como uma das razões pelas quais Hito Steyerl (The
Wretched of the Screen. E-flux Journal, 2012) explora, também, o museu como
36
fábrica, numa vertente política e estética. Ela refere a adaptação de antigas
fábricas a museus, que cria relações e devires na identificação do seu estatuto
político e social, assim como a permanência do carácter produtivo dos seus
processos.
Segundo a autora, o museu continua a ser um local de produção. Produção e
construção de espaço ao trabalhar a sua arquitectura flexível; produção de
imagens, estilos e valores, que podem ser expositivos, comerciais ou de culto;
produção de entretenimento, visões e afectos. Apresenta-se, deste modo,
como uma indústria cultural, e social que transforma tudo o que inclui em
cultura.
A produção efectuada é maioritariamente intensiva. Ao convocar o olhar e os
sentidos do espectador, Steyerl diz-nos que a exposição impulsiona as
faculdades estéticas e as práticas imaginativas dos espectadores,
transformando-os em trabalhadores (The Wretched of the Screen. E-flux
Journal, 2012, p. 65).
O sentido de uma Exposição
Voltando um pouco no tempo, eu definiria épistémè como o dispositivo
estratégico que permite escolher, entre todos os enunciados possíveis,
aqueles que poderão ser aceitáveis no interior, não digo de uma teoria
científica, mas de um campo de cientificidade, e a respeito do que se
poderá dizer: é falso, é verdadeiro. É o dispositivo que permite separar não
o verdadeiro e o falso, mas o inqualificável cientificamente do qualificável.
(Foucault, 1998, p. 247)
Segundo Boris Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018), o carácter
tecnológico e artificial da exposição não só interage com, como reflecte a
37
natureza da relação entre o ser humano e a tecnologia. Dessa forma propõe
que uma exposição deve ser entendida como a apresentação de uma
apresentação, no sentido em que, como dispositivo de apresentação de arte,
possibilita a reflexão das próprias estratégias, hierarquias e escolhas
curadoriais que fundam as relações entre os objectos/imagens no espaço da
galeria e entre os objectos e o contexto geral da exposição. Groys estabelece
um papel de génese da verdade na exposição de acordo com estratégias, e os
modos de ver como acesso às mesmas. Assim, uma exposição exibe-se a si
mesma e, desta forma, a sua técnica e a sua ideologia.
O Dispositivo constitui uma rede de forças de poder, de acordo com estratégias
funcionais que, nos seus processos de consistência e de génese, se refere à
forma como uma racionalização pode ser qualificável cientificamente. Uma
exposição pode ser, desta forma, qualificável, porque coloca os seus
elementos numa relação entre campos de estudo sociais, políticos, filosóficos
e tecnológicos associados a epistemologias e ontologias da arte, obtendo um
sentido pela imanência dos seus elementos, num plano que deve ser
considerado científico.
É nesta perspectiva que Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) evoca
o conceito de Gestell, de Heidegger, como referência aos processos da
tecnologia/técnica moderna na construção de realidade, para explicar que o
ser o humano constrói a sua relação com o mundo através de enquadramentos
que permitem uma ordem dos objectos por parte dos sujeitos. Segundo o autor,
se o dispositivo permanece oculto na familiaridade das relações, a exposição
opera uma revelação ao construir ordens que rompem com os contextos
prévios: a exposição permite que os objectos possam ser “vistos como
imagens”, e entendidos segundo as estratégias que os relacionam.
Lembramos que no seu conceito, a Imagem desencadeia movimentos de
dissemelhança aboluta que escapam aos poderes e às subjectividades da
representação. Na interpenetração entre exposição e dispositivo, Groys
desenvolve uma noção tecnológica e ideológica à qual escapam os poderes
imagéticos próprios da arte, que nada têm a ver com o dispositivo da
38
exposição, apesar de sugerirem uma irredutibilidade do Dispositivo ao conceito
de Imagem.
Uma exposição implica um processo de pensamento maior do que o simples
acesso a estratégias e ideologias. Implica que essas mesmas formas de ver,
que são também processos de compreensão e de racionalização, estejam
simultaneamente incluídas na actividade produtiva do Dispositivo ao longo de
todo o seu desenvolvimento, mas também na produção maquínica de cada
espectador, que constrói a sua identidade à medida que se explora a
exposição.
Em jogo está um teste da realidade enquanto produção, um desafio à ideologia
à representação, e mesmo às sensações e aos afectos, através dos poderes
das imagens e do pensamento. O sentido de uma exposição é, primeiramente,
um problema.
Em Diferença e Repetição (2000), Deleuze explica uma noção de sentido que
não é ideológico, nem proposicional, mas sempre um problema, quando
analisado de acordo com a sua condição de verdade. Mesmo uma proposição
dada como solução a uma dialéctica constitui, ou uma interrogação que
procure uma proposição como resposta, no seu sentido, é um problema:
Toda a vez que uma proposição é recolocada no contexto do pensamento
vivo, evidencia-se que tem a verdade que merece de acordo com o seu
sentido, a falsidade que lhe cabe de acordo com os não-sentidos que ela
implica.
(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 262)
No sentido, enquanto problema, substitui-se o “ponto de vista do
condicionamento pelo ponto de vista da génese efectiva” (Deleuze G. ,
Diferença e Repetição, 2000, p. 273). Para tal, “é preciso parar de decalcar os
problemas e as questões sobre proposições correspondentes, que servem ou
39
podem vier a servir de resposta” (Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p.
265).
A condição deve ser a da experiência real e não da experiência possível.
Ela forma uma génese intrínseca e não um condicionamento extrínseco. A
verdade, sobre todos os aspectos, é caso de produção, não de adequação.
(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 261)
Transpondo esta noção de sentido para o Dispositivo e para a Imagem de uma
exposição, conclui-se que o seu movimento criativo não se cria quando se faz
do dispositivo uma imagem, mas quando há uma interpenetração entre os dois,
na dimensão espacio-temporal dos modos de ver como experiência real. A
experiência real não existe na criação da ideia, mas no ir e vir entre a
consciência empírica e o sentido/problema transcendental, entendido como um
processo-fluxo, uma “repetição transcendente”, em que “a impotência da
consciência empírica é aqui como que a enésima potencia da linguagem”
(Deleuze G. , Diferença e Repetição, 2000, p. 263).
Na exposição, a experiência real assume um ponto de vista prático e um
filosófico: por um lado, há a experiência real da exposição, na qual os modos
de ver empíricos se interpenetram na Imagem e no Dispositivo originando
movimentos sensitivos, íntimos e racionais na duração da experiência; por
outro, o sentido nasce no pensamento, e a sua força criadora está no devir da
consciência empírica levada ao limite.
A arte exige um processo de olhar irredutível à formação do todo da exposição.
É um acto de olhar que funda a imagem, um acto que gera um movimento e
uma duração, que não só afecta as imagens (o que aparece) mas também a
identidade do próprio projecto. Mais uma vez, o que está implicado na
fundação das imagens, é movimento e tempo, causadores de uma
transformação do processo e dos objectos. O que ultimamente interessa, em
última análise, é como exposição e espectador criam, cada um, linhas de
40
subjectivação próprias, ou seja, consigam construir no sentido da exposição
um problema no qual se poderão relocalizar enquanto sujeito no seu devir com
o dispositivo, trabalho indissociável de infinitos processos empíricos.
Imagem-pensamento e Exposição
Groys (Curating in the Post-Internet Age, 2018) refere duas formas de olhar na
exposição: um olhar frontal, que usamos quando olhamos uma imagem, seja
uma pintura ou uma imagem que nos permite dar conta de todos os aspectos
de um dado objecto, e um olhar de dentro, quando estamos integrados num
espaço ou quando o espaço é a própria imagem.
No primeiro caso, o espectador toma o tempo necessário para olhar cada obra
e deixa-se absorver nela. Entre cada obra acontece uma interrupção da
contemplação. A exposição constrói-se no olhar como uma sucessão de
momentos contemplativos. O segundo modo do olhar exige uma atenção da
posição específica do espectador no espaço da exposição.
Os dois modos de olhar propostos por Groys são irredutíveis um ao outro, já
que mesmo o olhar frontal é condicionado pela posição do espectador diante
de uma obra. O autor refere o aspecto fragmentário do olhar porque, por um
lado, na condição da sua posição e da sua perspectiva, é impossível visualizar
a exposição no seu todo, e por outro porque cada trajectória é irreproduzível.
No entanto, experienciar o todo de uma exposição não se completa na
percepção. As livres deambulações do visitante de um museu transformam-no
num espaço tanto físico como mental. A exposição constitui-se também no
pensamento, por imanência sensível, recognitiva, material e conceptual. Cabe
ao espectador fazer uma espécie de montagem entre espaços e obras, pelo
que é também temporal. Nesta perspectiva, o seu tempo corresponde, mais do
que à duração do percurso, à heterogeneidade de uma imagem-cristal em
articulação com os ritmos e experimentações do pensamento.
41
Há uma importância fundamental do corpo como parte integrante na
constituição de uma exposição. Giuliana Bruno (Surface: Matters of Aesthetics,
Materiality, and Media , 2014) propõe uma redefinição das leituras no cinema
e no museu em torno das afinidades hápticas das superfícies entre obras, e do
espaço. Sobre as exposições, ela refere:
São lugares topofílicos que nos integram no seu design psicogeográfico e
navegam as nossas histórias. Nesta interface, entre a parede e o ecrã,
espaços de memória são explorados e habitados no tempo e nas
interligações das geografias visuais, desenhando, através de acumulações
e análises, o nosso frágil lugar na história.
(Bruno, 2014, p. 159)
Em Caos e Ritmo, José Gil, descreve a relação da consciência (definida
fenomenologicamente como intencionalidade) e o corpo como uma de
imbricação, em constante combinação e mútua transformação. Esta
consciência do corpo não é a consciência do corpo como a de um objecto
percepcionado, mas uma “instância, que através do corpo, pode receber forças
do mundo, e devir as suas formas, intensidades e sentido” (Gil, 2018, p. 61).
Chegamos a um outro programa, que une a experiência do olhar em
interpenetração com o corpo e o seu mapeamento do espaço. Este modo de
experiência, que é uma “experiência experimentada”, ganha enquadramento
filosófico e no empirismo transcendental de Deleuze. Nesta perspectiva, não é
próprio do pensamento criar uma imagem, mas formar um plano de
consistência no qual o ver e a Imagem são levados ao limite das suas
capacidades. É na experiência real das faculdades e não só da imagem que
reside o potencial criativo de uma exposição.
Segundo José Gil na impregnação da consciência pelo corpo, há uma dupla
actualização: uma actualização dos movimentos corporais através do
42
pensamento, e uma actualização do movimento virtual em movimentos
corporais no espaço:
“Estar consciente de...” é, antes de mais, como aquilo de que se é
consciente se insere num contexto (numa paisagem visível); o que não se
reduz a uma constatação de existência, mas implica a compreensão de
relações que ligam uma coisa às outras e ao meu corpo. A consciência é
feita de uma textura que rapidamente se faz devir mapa.
(Gil, 2018, p. 65)
Numa exposição está em jogo a sua espacialidade, como jogo de relações de
distâncias, dimensões, texturas correspondentes aos dispositivos que a
compõem, mas também o elemento histórico e estético de cada objecto. Entre
o espaço e as formas de olhar, a intervenção do corpo exerce-se através da
recepção de percepções espaciais e do agenciamento que essas mesmas
percepções possibilitam. José Gil defende a necessidade de “abrir o corpo”, ou
seja, “fazer passar o corpo para o primeiro plano da consciência” (2018, p. 63).
José Gil fala em movimentos de forças e pequenas percepções, entre o corpo
e a consciência numa relação entre os dois que possibilita a transformação das
percepções em energias e movimentos do pensamento, assim como os
movimentos do pensamento relançam/agenciam actualizam as forças,
metamorfoseando a relação entre a o ser e o espaço.
Também não se pode negar o papel do corpo nas relações indivíduo/colectivo
na sala de cinema. A maneira como a nossa percepção de um filme é
subtilmente afectada pelas pessoas que nos acompanham de formas, por
vezes, desconcertantes, por vezes ternamente enriquecedoras, supõe uma
condição espacial da sala de cinema, mesmo que esta condição suponha uma
impotência do dispositivo.
Podemos então falar de um duplo processo da experiência de uma exposição:
um caminho no qual o olhar monta fragmentos numa linearidade temporal e
43
espacial, mas também uma experiência, que se pode dizer corporal, em que a
sensação de espaço se une à visão e constrói as relações entre as imagens,
recriando o todo da exposição, assim como o próprio espectador.
A experiência experimentada de um espectador deleuziano na sua relação
com uma exposição entra no domínio da construção do Corpos sem Órgãos
(Deleuze & Guattari, 2007). Constrói-o na medida em que “abre o corpo” à
exposição, ou seja, faz um mapeamento perceptivo e cognitivo do espaço e
das obras, e faz circular forças e intensidades, racionais, perceptivas e
afectivas entre elas.
Abrir o corpo, numa exposição, é entrar em devir com as obras, com a arte, e,
por conseguinte, fazer dele, tal como do ser, imagem. Sai de si e cria novas
identidades a partir do sentir e, por sua vez, consequentes linhas de fuga na
experiência real do pensamento construído. Não é uma questão de
subjectividade, nem de interpretação, mas do seu sacrifício através da
experimentação de movimentos e intensidades que só podem ser definidas
como algo completamente novo.
A construção de uma experiência experimentada envolve um paradoxo:
provoca-se uma ruptura, criando o caos para sair do caos. Sai-se do caos
fazendo nascer uma visão, e a formação da visão, que põe em perspectiva
o pensamento, não constitui mais do que o resultado da experiência
experimentada.
(Gil, 2018, p. 203)
Para exemplificar a potencial complexidade de se experienciar uma exposição,
evoco duas exposições apresentadas recentemente no Museu de Arte
Contemporânea de Serralves cujo médium principal é a imagem em
movimento. São elas Tacita Dean (2019), conceptualizada pela própria e por
44
Marta Moreira de Almeida, e Pedro Costa: Companhia (2018-2019),
coordenada por Filipa Loureiro e Marta Almeida e com a arquitectura de José
Neves. Esta escolha é motivada pelo facto de se desafiarem temas e sentidos
curadoriais e pela relevância das duas exposições para o desenvolvimento do
meu pensamento sobre a experiência estética.
A exposição de Tacita Dean, orienta-se em torno do filme Antígone (2018. Esta
obra díptica, constituída de duas projecções na mesma tela, aborda o caminho
que Antígona e Édipo percorrem entre Rei Édipo e Édipo em Colono, peças da
famosa trilogia tebana de Sófocles. A exposição inclui dois outros projectos
fílmicos, The Story of the Beard (1992) e Boots (2003), projectados em salas
com o formato de Black Box, e recorre, também, a outros médiuns que
formalizam o pensamento artístico de Dean, inseridos nos espaços do corredor
como caminhos que levam aos filmes e estruturam a base conceptual da
exposição. Salientam-se Femme à Barbe (2019), um conjunto de 12 postais
de mulheres barbudas que a artista encontrou e intervencionou recentemente
para apresentar The Story of Beard, e Oedipus, Byron, Bootsy (1991), um
pequeno desenho dos pés das respetivas personagens, que viriam a tornar-se
um ícone nos trabalhos futuros da artista, situado à entrada de Boots, s
fotogravuras de T&I (2006) e os seus trabalhos de giz em tinta de ardósia,
Sixteen Black Boards ( 1992), The Montafon Letter (2017) e Chalk Fall (2018).
Todas as obras reflectem temas que a artista tem explorado e incorporado ao
longo dos anos: Antigone, nome da irmã da artista, e Édipo, que significa “pé
coxo” são elementos que Dean metaforiza, por ter tido artrite reumatóide que
a deixou manca, e dão origem a uma complexidade temática que ela alia à
temporalidade do filme e a símbolos imagéticos que se tornaram parte de si
mesma. Tacita Dean parte da catástrofe do ser para criar as suas obras,
sugerindo que é nos constantes processos entre pensamento, sensibilidade e
prática, que a identidade toma real valor.
É na sua prática e na sua forma de relacionar os universos do real e da ficção
e de os pôr em diálogo, que Dean impõe o seu ser pessoal e artístico, de uma
forma completamente singular. E não é por acaso que são fraquezas como o
coxear e a “cegueira” que a artista liga ao universo ficcional do teatro grego.
45
Dean trabalha de uma forma alquímica, percebe que o ser, mesmo no mundo
actual, é uma ficção que só se atualiza no mundo a partir da adaptação ao
movimento das coisas e das ideias.
Antígone é apresentado numa sala em formato de Black Box, precedida por
uma outra sala onde estão opostas em paredes paralelas The Montafon Letter
(2017) e Chalk Fall (2018), duas obras de grande porte realizadas em giz sobre
tinta de ardósia que representam paisagens montanhosas, recortadas por
notas. A grandiosidade da paisagem negra, fantasmática quase transparente,
relacionada com os espaços filmados em Antigone, cria uma espacialização
que funciona como um percurso que culmina no filme. O resultado é o
contraste entre dois espaços de diferentes exigências: o caminho de livre
navegação e divagação espacial que forma o museu; o espaço
cinematográfico em que a experiência é regida não só pela duração das obras,
mas também pelas temporalidades e modos de ver que ela impõe. A relação
entre os dois espaços não é mais metafórica do que processual, é a relação
de uma suspensão entre dois modos de experienciar igualmente importantes,
e é na passagem de um para o outro que podemos reconhecer os processos
pelos quais Dean adquire uma presença realmente estética.
Não é apenas um percurso físico, mas também virtual, no qual o deambular do
espectador se une à viagem de Édipo e Antigona, assim como à viagem da
artista no seu pensamento artístico. Dean devém Édipo e Antígona, não só
cada uma das personagens, mas a dialéctica entre as duas. Este é um devir
que penetra no espectador e na temporalidade das várias formas de
contemplação que as obras e o percurso sugerem. A experiência é reforçada
no caminho de volta, após a visualização do filme. A imagem é indissociável
do espaço e do tempo da deambulação e do pensamento. Não é apenas um
caso de subjectivação, é um caso de devir entre sujeitos e objectos, entre as
temporalidades da experiência, as temporalidades do pensamento e as
temporalidades do filme. É um caso de imanência a partir da qual se cria o
germe para que novos devires se efectuem pelo e no espectador.
46
Pedro Costa: Companhia constitui uma de reunião íntima que une imagens e
figuras trabalhadas desde sempre pelo realizador com obras de expressões
artísticas, de pinturas a esculturas, desenhos, fotografias, livros e outros
documentos. Entre os nomes destacados como importantes na vida e trabalho
de Pedro Costa estão Robert Bresson, Danièle Huillet, Jean-Marie Straub,
Chantal Akerman, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff
Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max
Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis e Rui Chafes.
Mais do que uma colecção de influências, esta exposição cria um universo que
liga arte com política da mesma forma que liga o privado com o social. As
personagens dos seus filmes, não-actores cuja realidade se funde com a
ficção, são as criadoras desta exposição, assim como o são dos filmes de
Pedro Costa, afectando de forma assombrante todas as obras com as quais
interagem. Em vez de mostrarem os conflitos assentes nas relações entre
pobreza e burguesia que por norma circulam no mundo da arte, estas figuras
contagiam todo o espaço através do movimento e da temporalidade das
imagens. Desta forma a exposição enfatiza uma das principais características
do Cinema de Pedro Costa, a de unir as situações sociais aos meios formais
da imagem cinematográfica, “trata-se de assinalar a proximidade da arte com
as formas em que se afirma uma capacidade para a partilha ou uma
capacidade partilhável”. (Rancière, 2012, p. 174). Como António Guerreiro
afirma, estas personagens “não são função de outra coisa, não representam
papéis, não são símbolos; são presenças expostas, corpos dotados de
imanência política” (Guerreiro, 2009, p. 205), presença que estabelece a
misteriosa presença das obras que acompanham estas personagens.
Um aspecto singular desta exposição na sua relação com o cinema, é que a
remodelação do espaço e a tinta negra das paredes que imitam a sala de
cinema anulam as condições perceptivas do espaço, criando um labirinto
informe, privado e íntimo que favorece relações de proximidade entre as obras
e das obras com o espectador. Neste espaço, a presença das personagens e
dos espaços filmados por Pedro Costa afecta todo o resto da exposição com
o som e com a temporalidade das imagens. Tal é bem evidenciado numa das
47
salas, As Filhas do Fogo (2013), um conjunto de telas penduradas que
apresentam as personagens femininas de A Casa de Lava coordena-se
espacialmente com As Tuas Mãos (1998-2015), de Rui Chafes. O movimento
ondulante dos cabelos das personagens, como a temporalidade inscrita no seu
olhar interpenetram-se nas esculturas criando, entre as duas obras, um espaço
singular de mistério que liga as personagens e os temas dos filmes de Pedro
Costa com as texturas e linhas do ferro negro trabalhado de Rui Chafes.
No entanto, as condições espaciais de uma exposição permitem uma relação
muito mais profunda com o espectador. Alto Cutelo (2012), de Pedro Costa,
obra apresentada nesta exposição, é constituída por dois ecrãs em oposição
que contrapõem imagens do filme Sweet Exorcism (2012), e apresentam uma
das personagens principais dos seus filmes, Ventura, com imagens de um
vulcão provenientes de A Casa e Lava (1994). Ventura apresenta-se numa
imagem que se pode dizer pura imagem-afecção na qual se sente uma
presença tensa destruída, e ao mesmo tempo majestosa dado o tamanho da
tela e a proximidade que ela implica no espaço, oposto a uma paisagem que é
ao mesmo tempo uma imagem-percepção, e forma com a outra uma imagem-
recordação relativa ao país de origem da personagem. As dicotomias que
compõe a virtualidade da imagem são inúmeras: um encontro entre filmes
diferentes do mesmo realizador, entre uma personagem e o seu passado,
entre contextos territoriais distantes, entre precariedades, entre as presenças
do ser humano enquanto objecto a ser subjectivado na intersecção entre dois
espaços audiovisuais, etc. Aqui, pensar uma imagem é pensar a outra. É
necessário olhar cada imagem enquanto se desenvolve uma consciência
espacial da outra, de acordo com a temporalidade necessária. O espectador
devém o ecrã escondido por detrás das suas costas. A sua posição, enquanto
olho e corpo que se abre é intersecção imediadora entre ambos os ecrãs, de
acordo com o tempo objectivo das imagens e com o tempo necessário ao
espírito para que a sua actividade se efectue numa metamorfose das imagens
e do espectador.
48
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3. Curadoria e Corpo sem Órgãos Corpos sem Órgãos
É notável a influência da prática literária de Artaud, nos diversos aspectos da
filosofia de Deleuze. Em Diferença e Repetição, o filósofo aborda através das
cartas trocadas entre um jovem Artaud e o editor Jacques Rivière, nas quais o
poeta expõe uma terrível angústia relativa aos seus poemas relativa a um
sentimento de recusa do próprio pensamento nos momentos de escrita. Nelas
Deleuze denota duas perspectivas sobre as dificuldades do pensar, cujo
antagonismo percorre todo o seu trabalho. A ideia que Rivière apresenta é a
de uma dificuldade feliz, baseada nos métodos e nas técnicas e cuja
ultrapassagem permite a orientação do pensamento em direcção à construção
da identidade própria, ao “ideal do eu no pensamento puro” (Deleuze G. , 2000,
p. 251). O esforço de tranquilização de Rivière surge, no entanto como um mal-
entendido. As dificuldades a que Artaud se refere são de uma ordem essencial
da estrutura do pensamento, não são pessoais, nem circunstanciais, mas
gerais e ontológicas, e remetem, desde logo, para uma destruição da imagem
dogmática e metódica entendida por Rivière, para um pensamento sem
imagens que não se deixa representar. Como Blanchot refere,
O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão
e o rasgão, a intermitência e a privação corrosiva: o ser não é o ser, é essa
falta do ser, falta viva que torna a vida desfalecente, inapreensível e
inexprimível, excepto através do grito de uma feroz abstinência.
(Blanchot, 2018, p. 52)
O problema de Artaud é o de “chegar, sem mais, a pensar alguma coisa”
(Deleuze G. , 2000, p. 251). Esta impossibilidade traduz-se, simultaneamente,
numa dor e num ímpeto, num pensamento fundado por uma exterioridade
50
absoluta que, por sua vez, obriga a pensar. Artaud “sabe que há um acéfalo
no pensamento, assim como um amnésico na memória, um afásico na
linguagem, um agnóstico na sensibilidade” (Deleuze G. , 2000, p. 252), e que
o pensamento não é, por isso, inato, mas um acto de criação que se efectua
no pensamento do próprio pensamento.
Esta dor de pensar, presente tanto nas cartas como na poesia de Artaud,
desenvencilha uma lógica “delirante”, que atravessa todo o seu trabalho, e
culmina num programa de liberação, que consiste na construção do Corpo sem
Órgãos (CsO), corpo de uma realidade que Deleuze e Guattari tornaram
eminentemente filosófica, e que transportam para o mundo produtivo das
máquinas desejantes. Neste caso, como os autores explicam, ele já existe,
mesmo antes de ser construído, é o plano de imanência do desejo, onde as
máquinas distribuem e agenciam as suas forças e intensidades produtivas. O
CsO é produzido com e pelas máquinas, mas é um elemento improdutivo, ou
de anti-produção. As máquinas agem sobre o CsO, mas ele reage-lhes
repulsivamente. Nesta reacção de repulsa, rebate-se sobre elas, apropria-se
da produção, e ao mesmo tempo fomenta a génese das máquinas.
Como exemplificação, os autores fazem coincidir a produção desejante com a
produção social, dada a evidência de estados improdutivos e não originados
no seu seio, de “um elemento de anti-produção, um corpo pleno determinado
como socius”. Neste caso, o socius é o capital, partindo da ideia Marxiana de
que o capital “não é o produto do trabalho, mas aparece como seu pressuposto
natural ou divino” (O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 15).
Ou seja, ele torna-se causa aparente da produção, rebate-se sobre ela,
constitui uma superfície onde ela distribui as forças e os agentes de produção,
apropria-se do sobreproduto e toma conta do conjunto e das partes do
processo.
Ao rebater-se sobre a totalidade da produção, o capital torna-se a própria
realidade, uma ilusão tornada realidade através de um “movimento objectivo
aparente”. A sociedade “constrói-se a si mesma segundo o seu delírio” (Gil,
2018, p. 173). E assim, enquanto o ser capitalista produz mais-valia, o CsO
reproduz-se a si próprio, no tempo e na continuação do encantamento.
51
O CsO descreve, assim, a realidade do capitalismo como delirada, ou
“miraculada”. Não é, deve dizer-se, nem verdadeira nem falsa, já que este
movimento tem efeitos reais (o direccionamento de intensidades do sentir para
a criação de mais-valia, por exemplo), ainda que os alcance através de
processos de produção que não são seus, mas das máquinas.
Se ao Capital corresponde uma realidade miraculada, esta não é a única
possível: “um corpo pleno, corpo da Terra ou do déspota, uma superfície de
registo, um movimento objectivo aparente, um mundo perverso enfeitiçado
fetichista pertencem a todos os tipos de sociedade como constante reprodução
social” (Deleuze & Guattari, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004,
p. 16). São realidades que se totalizam em torno das máquinas, mas que não
são incompossíveis. A sua especificidade é a capacidade de submeter a
produção das máquinas, ou dos órgãos, a funções, estratos e organismos que
o reterritorializam de acordo com o movimento do CsO.
O que se pode ver ao longo de todo o trabalho de Artaud é o desmascarar
deste movimento de apropriação. José Gil explora, em Caos e Ritmo, a forma
como o pensamento engendrado de Artaud o transforma num “corpo de dor”,
povoado por intensidades de dor que provocam uma renuncia ao socius, dada
a influência de micróbios, larvas, fantasmas, outros homens, falsas ideias do
espírito que se apossam dos seus órgãos, se inscrevem sobre eles e deles se
alimentam, desapossando-o da sua vida, das suas energias vitais. Esta
influência corresponde a toda a humanidade e a Deus: a “personificação (...)
que resulta do agrupamento de todas as renúncias de todos os homens (...) ao
esforço de viver de um só corpo” (Gil, 2018, p. 129). Ao povoar o corpo de
Artaud, ele vê-se como Deus e a própria humanidade evidenciando um
estatuto ontológico da realidade que o prende: o socius como realidade
miraculada e, neste caso, envenenada ao qual é preciso escapar.
Há, na produção de consumo, quantidades de energia e intensidade que não
se deixam apropriar pelo movimento aparente do CsO miraculado. Energias
que permanecem reais, que se actualizam conforme sentimentos, volúpias,
sofrimentos (como no caso de Artaud), afectos que “resto não codificado que
impelia a máquina paranóica a avariar-se e a rejeitar os órgãos desejantes”
52
(Gil, 2018, p. 174). No consumo das intensidades forma-se um sujeito, “algo
da ordem do sujeito (...), sem identidade fixa, errando sobre o corpo sem
órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes” (Deleuze & Guattari, 2004,
p. 21), que se identifica no devir com as máquinas avariadas. É o que permite
a Artaud identificar-se como Deus, ou a Schreber como mulher: um “afinal
sou...”, um sentir que revela a tirania do CsO despótico e liberta o desejo. A
experiência do sujeito destrói o movimento aparente, desmascara-o, e
transforma-o de acordo com as suas intensidades reais.
A realidade é sempre construída através de processos de devir, “devires do
sujeito e transformações da realidade” (Gil, 2018, p. 175). Primeiro é preciso
que Artaud se torne o centro de todos os enfeitiçamentos, que o seu corpo
concentre em si a dor de todos os corpos, que o seu corpo se torne “o corpo
da humanidade padecente inteira” (Gil, 2018, p. 137). Só depois poderá
construir uma última linha de fuga, que direcciona as suas intensidades para o
retorno de uma humanidade livre. O seu projecto torna-se o da liberação da
vida real dos corpos, da realidade ontológica em que o homem volta a ser o
“homem-árvore”:
O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem
função,
mas de vontade,
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão,
assimilação,
incubação,
excreção,
o que era criar toda uma ordem de funções latentes
e escapam ao domínio da vontade
decisora;
a vontade que decide a cada instante de si;
(Artaud, 2018, p. 163)
53
O que podemos ver na sua poesia, assim como nas suas cartas e nos seus
escritos sobre teatro é um projecto de experimentação, uma prática que
culminará na construção de um corpo puro, ou de um corpo sem órgãos, seu.
No encadeamento das palavras e das interjeições, não se formam significados,
mas intensidades e metamorfoses: “no fôlego humano há saltos e quebras de
tom, e de um grito a um grito transferências bruscas que tornam possível a
evocação súbita de aberturas de todo um corpo das coisas” (Eu, Antonin
Artaud, 2018, p. 156). Diz José Gil que “devemos ler Artaud como se as suas
palavras fossem acções: não tentando decifrar nelas um sentido, mas
desempenhando realmente, na vida, o movimento do sentido das palavras que
emprega” (Caos e Ritmo, 2018, p. 130), fazer das formas forças, fazer confluir
as imagens com a energia que transmitem.
O CsO que Artaud almeja é, diferentemente do Socius, real e não miraculado.
Corresponde ao real, porque a sua vontade não é apropriada por nenhuma
outra instância, sendo antes uma vontade própria que “decide a cada instante
de si”. Desenha, deste modo, uma linha de subjectivação que ultrapassa a
subjectividade em função de uma experimentação, ou de uma experiência
experimentada. É a experimentação marca a passagem do CsO de O Anti-
Édipo para o de Mil Planaltos, um CsO como plano de imanência, ou de
consistência que se constrói como um conjunto de práticas: “Corpus, Socius,
política e experimentação” (Deleuze & Guattari, 2007, p. 199). Efectua-se
através de programas, processos de desarticulação desestratificação dos
órgãos ou das máquinas, “é o que resta quando tudo foi retirado, e o que se
retira é o fantasma, o conjunto de significâncias e de subjectivações” (Deleuze
& Guattari, 2007, p. 201).
Neste CsO só circulam intensidades, produção desejante sem referência
nenhuma a carências ou prazeres. O prazer é, segundo os autores uma
medida extrínseca de reterritorialização, falsamente ligada ao desejo. O que é
preciso é encontrar uma alegria imanente a um processo positivo do desejo, e
que garante a distribuição das intensidades sem a invasão de angústias.
O trabalho do sujeito é, mais que tudo, destruir-se e superar-se, tornar-se puro
devir, pendurar a matéria como órgãos do seu corpo,
54
... trata-se de construir um corpo sem órgãos, lá onde as intensidades
passam e fazem com que não haja ego nem o outro, não em nome de uma
mais alta generalidade, de uma maior extensão, mas em virtude de
singularidades que já não se pode dizer pessoais, de intensidades que já
não se podem dizer extensivas.
(Deleuze & Guattari, 2007, p. 207).
A realidade deste CsO é a da matéria, “é matéria que pode ocupar o espaço a
tal e tal grau, no grau que corresponde às intensidades produzidas” (Mil
Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, 2007, p. 204).
Pós-Museu e Capitalismo
Esta multiplicidade aponta e ao mesmo tempo submete-se a questões políticas
da prática curadorial. Por um lado, as relações de mediação e educação que
uma exposição necessariamente envolve entram em choque com os valores
estéticos e perceptuais da arte. Por outro, a curadoria, assim como os museus
e as galerias, responde a aspectos históricos, políticos e institucionais de
realidades sociais, culturais, locais e globais, realidades que podem criticar e
desmiracular, mas que ao mesmo tempo garantem a sua sobrevivência. Deste
modo, a curadoria vê-se obrigada a gerir uma contenção das
desestratificações de maneiras que podem gerar algumas confusões quanto
às relações entre as identidades culturais e as ontologias dos processos
filosóficos e artísticos que podemos retirar de Deleuze.
Inseridas nestes contextos, as teorias museológicas têm estudado formas de
abordagem e discurso apoiadas em ideias de identidade cultural e institucional
55
assentes em práticas direccionadas para uma relação democrática entre
curador, arte e o espectador visto como comunidade.
Estas práticas convergem numa realidade que Hooper-Greenhill (Changing
Values in the Art Museum: Rethinking Communication and Learning, 2000b)
chama de pós-museu. A autora define-o como uma forma de resistência a um
passado de influência modernista e iluminista, favorecedor de um impulso
colecionador, de didácticas unilaterais e individualistas do conhecimento em si
e das grandes narrativas históricas eurocêntricas. A autora afirma que o
modernismo propaga uma superioridade do conhecimento baseado na razão
e no método científico face aos conhecimentos subjetivos. Tais influencias
partem dos desejos elitistas de construção de um conhecimento superior, no
qual tudo se torna alvo de estudo passível a classificações e definições, com
o objectivo a dar forma a uma grande narrativa, um arquivo universal
(Changing Values in the Art Museum: Rethinking Communication and
Learning, 2000b, p. 559) constituído por imagens-mundo com orientações
enciclopédicas, e estudos académicos dedicados à produção de significados
que contribuem para narrativas que demonstram o ponto de vista de potências
mundiais dominantes. As práticas museológicas dedicavam-se mais ao estudo
e conservação dos objetos do que à sua transmissão, que se baseava
predominantemente na disposição dos objetos em exposição. A sua postura
em relação ao público é unilateralmente educativa. Os seus aspectos sociais
e culturais não são considerados, mas sim inferiorizados, face às importâncias
dos ideais a ser transmitidos e a estruturas hierárquicas definidas por elites
políticas e académicas. Como resultado, o conhecimento é objectivo,
homogéneo e altamente moral.
A pós-modernidade também se manifesta- construindo diferentes relações
com a história. Parte de uma multiplicidade de resistências às grandes
narrativas políticas e coloniais e às epistemologias a elas associadas. Ganham
lugar as lutas pela emancipação social e racial, até aí ostracizadas. O museu
na sua condição institucional, tal como muitas organizações sociais, é
questionado e atualizado à luz destas revoluções, sendo que as novas teorias
museológicas, criadas não só por agentes da área, mas por teóricos de
56
variadas áreas e ideologias, apontam para uma nova consciência social
visando envolvimentos mais ativos com as comunidades e com os públicos.
Segundo Hooper-Greenhill (Education, postmodernity and the museum, 2007)
os desafios do pós-museu focam-se principalmente em duas áreas, a primeira
das quais, relacionada com a autoridade das narrativas construídas, questiona
o que é dito e quem o diz, e a segunda, dirigida às possíveis interpretações,
debruçando-se sobre a posição do público. Os novos processos passam por
uma rememorialização que tenha em conta novos pontos de vista sobre o
passado focados na justiça e na justeza das histórias do mundo. Os objetos
de exposição deixam de ter um objetivo unicamente expositivo e objetivo, para
assumir um papel ativo e em constante relação de justaposição entre si e com
o espetador. Não descrevem apenas o passado, são úteis para as construções
do presente e para o vislumbre do futuro em relação às necessidades da
comunidade. O conhecimento passa por uma constante negociação entre o
museu e as comunidades, e consegue-o sendo consciente de si próprio e das
suas possibilidades e através da capacidade de se reatualizar de acordo com
as necessidades coletivas e individuais das comunidades. Para a autora, o
grande potencial do pós-museu é o seu poder de lidar com as subjetividades
da história, de as envolver num pensamento democrático e dessa forma
fortalecer as identidades sociais.
Os agenciamentos propostos pelas teorias museológicas e que se destinam a
uma busca de identidade efectuada através de jogos de poder, “o poder para
nomear, para representar o senso comum, para criar versões oficiais, para
representar o mundo social e para representar o passado” (Hooper-Greenhill,
Museums and Cultural Politics, 2001b) são problemáticos do ponto de vista
Deleuziano.
Estamos, aqui, diante de relações políticas, mas Deleuze e Guattari lembram-
nos que toda a política é ao mesmo tempo macro e micropolítica, que a
organização molar dos organismos e das ideias inclui uma micropolítica da
percepção, da afecção, da conversação “não impede todo um tipo de micro-
perceptos inconscientes, segmentações delicadas, que não apreendem ou não
experimentam as mesmas coisas” (Deleuze & Guattari, Mil Planaltos,
57
Capitalismo e Esquizofrenia 2, 2007, p. 274), suscitando por isso, lógicas que
não se enquadram propriamente nas lógicas do poder, sendo, pelo contrário,
as linhas de poder que se enquadram no plano de imanência do universo.
O pós-museu é instrumentalizado de acordo com funções sociais que
agenciam os elementos em torno de narrativas e contra-narrativas e fazem
com que todo o tipo de intensidades, diferenças e desestratificações convirjam
numa realidade política dos idealismos. O perigo é o de desmascarar a
miraculação de um CsO para lá voltar a cair, e assim sucessivamente.
Nick Prior (Having One's Tate and Eating It: Transformations of the Museum in
a Hypermodern Era, 2003) integra o pós-museu numa realidade bastante
diferente. Na sua perspectiva, as grandes pretensões do museu em relação à
construção de conhecimentos encontra-se num beco sem saída no contexto
do grande desenvolvimento das instituições hipermodernas, ligadas ao império
capitalista do comércio e do consumo. O museu deixa aqui de se focar no
progresso estético, para se estabelecer na cultura do espectáculo. Quando o
mercado governa, o museu passa a funcionar como lugar, ou não-lugar, de
consumo. Os valores do museu pós-moderno entram em conflito à medida que
surge uma barreira entre os potenciais práticas sociais e estéticos do pós-
museu e as expectativas convencionais dos públicos massificados. A
experiência estética é posta em causa pelo consumo de arte como forma de
lazer e de espetáculo. No museu, os objetos perdem a memória e a sua
natureza, assim como a sua importância na produção de significados, ao
serem devorados pelo público segundo uma lógica do lazer.
Na análise de Prior, o público é cada vez maior, mais turístico e agitado na sua
ansia de ver e aglutinar cada objecto, pondo em causa as convenções da
percepção, “o olho não é autorizado a descansar, está numa distracção
constante, atraído por uma cultura de presenças simultâneas” (Prior, 2003, p.
56). Num mundo de entretenimento principalmente visual, a experiência
estética adquire novas formas, e estende-se para todo lado, numa “trans-
estética permissiva e hedonista” (Prior, 2003, p. 56). Ainda assim, o autor
destaca a possibilidade de cada museu de se enquadrar numa multiplicidade
de práticas com o objetivo de agradar aos diferentes tipos de público, dando
58
liberdade ao público individual de visitar o museu como bem entender, mas
permitindo também uma compreensão mais extensiva e interventiva a
espectadores diferenciados, através de visitas guiadas, e iniciativas sociais e
educativas. Prior refere-se sobretudo aos grandes museus. Os pequenos
poderão trabalhar melhor grupos nicho, mais interessados e ativos.
A estrutura da democracia neoliberal e capitalista cria um ambiente propício a
pluralismos pós-idealísticos subordinados às suas regras, volatilizando a
atualização de realidades alternativas. Utopia torna-se um estatuto pejorativo
numa democracia que exige reações adaptativas cada vez mais práticas e
desenfreadas, resultantes numa normatização global das práticas e dos
sentimentos em função das regras do mercado. Este contexto é definido por
Lipovetsky (Os Tempos Hipermodernos, 2013) como Hipermodernidade, e
declara a impossibilidade dos ideais de resistência pós-moderna. Segundo o
autor, esta nova modernidade “não é destruidora, mas integradora. Já não se
trata da destruição do passado, mas da sua reintegração, na sua reformulação
no quadro das lógicas modernas do mercado, do consumo e da
individualidade” (Lipovetsky, 2013, p. 60). Para Mark Fisher (Capitalist
Realism: Is There No Alternative?, 2009, p. 9), esta questão é mais densa e
alarga-se à relação de todos os elementos com potencial subversivo com o
sistema capitalista: não lidamos apenas com a sua incorporação, mas com
uma pré-incorporação, de acordo a contenção e formatação dos desejos, dos
sonhos e das esperanças produzidas por esses elementos.
Se anteriormente o problema do capitalismo era conter e absorver as energias
exteriores, actualmente, tendo incorporado todo o exterior, e sem um Exterior
que possa colonizar, ocupa os horizontes do pensamento e controla todo o
imaginário social (Fisher, 2009, p. 8). O sistema mais institucional da arte
contemporânea, do qual faz parte a curadoria, mas também a crítica e a
academia, não foge a este esquema. Cada vez mais envolvido em temas
relacionados com discursos e narrativas de identidades, culturas e nichos
periféricos, faz a sua parte numa colonização que não se define por etnias,
culturas e ideologias mas pelo poder e pelo capital, como Eduarda Neves
59
denota, sugerindo a propagação de uma falsa-consciência esclarecida e
conformista (Um crítico na Época do Cinsimo Avançado, 2016, pp. 88,89).
A grande maioria dos discursos museológicos e artísticos assume um certo
anti-capitalismo na sua postura. No entanto, tudo indica, como Fisher refere,
que não só as formas de anti-capitalismo são amplamente disseminadas no
capitalismo, como até são uma parte importante da sua manutenção (Fisher,
2009, p. 12). O resultado é que, apesar de todos os credos em volta da
interacção e da emancipação dos espectadores, o que acaba por acontecer é,
pelo contrário, o que Robert Pfaller chama de “interpassividade” (On the
Pleasure Principle: Illusions Without Owners, 2014). A performance dos
discursos, da parte tanto dos produtores como dos espectadores, permite um
consumo passivo e cumplice que desresponsabiliza e despersonaliza tanto os
sujeitos como as imagens.
Parece inevitável que, como Fisher (Capitalist Realism: Is There No
Alternative?, 2009), vejamos a realidade pós-moderna de acordo com um
“realismo capitalista”: o mundo dominado pelo sentimento céptico de que se
tornou impossível sequer imaginar uma alternativa ao sistema capitalista.
Como tal, é necessário vigiar a integração capitalista dos desejos e a noção
de que ela é percorrida por uma cumplicidade geral que a alimenta.
Retomando a perspectiva Deleuziana, dizer que os agenciamentos discursivos
da curadoria, assim como da crítica e da arte em geral, são apropriados e
miraculados pelo CsO do capital é um dado. O problema está na acepção do
valor da relação entre as noções de sujeito e identidade, de poder e de desejo,
e a sua circulação no movimento das realidades. Neste sentido as forças que
constituem este problema centram-se numa aporia que se recentra sempre
numa conceptualização maior – a da vida, e a do que constitui o que é ser-se
humano.
Esta aporia que a filosofia deleuziana tenta solucionar e que José Gil leva
adiante suscita uma antinomia que separa o ser humano das máquinas e do
CsO: por um lado, a perspectiva humanista sugere a vida identificada com uma
macropolítica das ideias e dos ideais; pelo outro, a vida como produção
60
tecnocrática, na qual as lógicas moleculares são transformadas pela técnica e
pelo movimento esquizo do capitalismo. A celebração dos valores humanistas
leva à redução da vida a ideias estáticas e ilusórias, incapazes de desposar o
movimento real, podendo ainda fazer do movimento aparente uma forma moral
totalitária. Os meios e os fins da técnica apropriam-se do movimento real e
esvaziam a vida, levando à dispersão caótica. Esta antítese perfaz-se,
actualmente, numa circulação entre tese e antítese, visto que a apropriação,
por parte do capital, das intensidades e sentimentos do imaginário social,
provoca uma subvalorização dos movimentos empíricos reais, em função dos
movimentos aparentes das ideologias: “A afirmação do ideal impediria, pois, o
surgimento do novo, do futuro, do próprio movimento da vida” (Gil, 2018, p.
187).
Compromisso Curatorial
Mesmo a construção de um CsO esquizo como programa de superação e
libertação não está desprovida de riscos. Por um lado, uma desestratificação
desenfreada acabaria por cair num vazio absoluto. Por outro lado, pertencente
a um estrato, o CsO pode gerar como um “tecido canceroso”, proliferante
acabando por se apropriar do organismo. Reestratificações são sempre
necessárias, não só para que os estratos sobrevivam, mas também para que
o movimento de génese do CsO se mantenha possível.
O CsO opõe-se ao organismo, às significações e às subjectividades, mas para
se libertar o desejo real e fazê-lo circular, é, ainda assim, preciso mantê-los,
mimar os estratos, guardá-los o suficiente para responder à realidade
dominante. O CsO é plano de imanência que distribui as linhas de fuga nos
estratos e entre eles. Assim, é sempre um limite, “não pára de oscilar entre as
superfícies que o estratificam e o plano que o liberta” (Deleuze & Guattari,
2007, p. 212).
61
Deleuze e Guattari desenham, então, um programa prudente para a
construção do CsO:
Eis pois o que será preciso fazer: instalar-se num estrato, experimentar as
oportunidades que nos oferece, procurar um sítio favorável, movimentos
de desterritorialização eventuais, linhas de fuga possíveis, experimentá-
las, garantir aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por
segmento continuuns de intensidades, ter sempre um bocadinho de uma
nova terra.
(Deleuze & Guattari, 2007, p. 212)
Em cada estrato, é preciso vigiar os desejos falsos, que estagnam o continuum
do CsO ou que dele se apoderam para acelerações despóticas, fontes de
fascismo e de falsa consciência, e distinguir as linhas de fuga que se
constroem no plano de consistência e mantêm o fluxo dos devires (Deleuze &
Guattari, 2007, p. 217).
Segundo José Gil não se podem separar as dicotomias filosóficas que a
antinomia humanismo/tecnocracia sugere, “a escala macro e a escala micro, a
filosofia e a doxa, o virtual e o actual, o CsO do corpo físico, o plano de
imanência dos estratos, os afectos e as afecções, o transcendental e o
empírico” (Gil, 2018, p. 188). Os fenómenos macro implicam sempre
movimentos micro, sugere. Movimenta-se tudo numa fusão ontológica que
funda uma zona de transição, “zona de passagem, e de transformação, zona
de ‘projecção’ e de libertação dos devires, zona, enfim, de todas as espécies
de mudanças do corpo” (Gil, 2018, p. 191), que determina o campo de
experimentação próprio à construção do CsO. Abre-se uma zona de transição
quando reduzimos a escala macro para o nível micro, ao mesmo tempo que,
inversamente, ampliamos a escala micro para analisar os graus de
verossimilhança das formas e das ideias. É definida por um devir incessante e
genésico, no sentido em que “o movimento determina, no tempo, uma matéria
informe dentro da imanência” (Gil, 2018, p. 193).
62
Construir compromissos museológicos de acordo com as condições filosóficas
do CsO é construir uma zona de transição que, na ligação entre o mundo da
arte e o espectador, tenha a capacidade de fomentar a participação em
processos de navegação no mundo virtual dos devires. Nestes processos, a
curadoria faz-se num trabalho transversalmente ético e estético, assim como
individual e colectivo, no sentido em que a interacção das práticas do fazer
artístico e curadorial, dos discursos, e da experiência, se efectua por todas as
partes e reverte para uma identidade em constante metamorfose, constituída
não só por definições e opiniões descritivas, mas principalmente, pelos
movimentos que a desestratificam, e a impulsionam o seu potencial de criação.
Um compromisso, nesta base, precede todas manifestações discursivas
assentes em princípios ideológicos, no sentido em que deve haver uma
regulação simbiótica entre as práticas e os compromissos. Como Reza
Negarestani (The Labour of the Inhuman, 2014) afirma, é preciso analisar as
estruturas e as leis dos próprios compromissos, encará-los de acordo com
trajectórias ramificantes que ditam a concordância entre os movimentos do
fazer e do dizer, o que só é possível em contextos práticos. É preciso explorar
as implicações existentes na circulação entre fazer o que se diz e dizer o que
se fez: se, por um lado, as práticas são definidas pelos compromissos
estabelecidos, por outro é necessário assumir as consequências das práticas
efectuadas, mapear os erros, as inconsistências, as falsas escolhas, assim
como as possibilidades de diferença e do novo que podem surgir. As trajetórias
dos compromissos definem, a cada passo, novos compromissos, que pedem
novos modos de agir e pensar. A tarefa, segundo o autor, é construir pontos
de ligação práticas, cognitivas, tolerantes aos erros e revisionárias entre o que
achamos que somos e aquilo em que nos estamos a tornar.
As práticas discursivas constituem um espaço de agenciamentos racionais.
Mas estes não são pessoais, nem individuais. Antes, integram e contribuem
para uma razão autónoma que compreende movimentos entre a esfera macro
e consciente das intenções e das opiniões, e a esfera micro e inconsciente dos
devires. A autonomia da razão é, como diz Negarestani, a expressão da sua
propensão para a auto-actualização (Negarestani, 2014, p. 448), numa
63
circulação sobre a qual o ser humano não tem controlo. Navegá-la requer,
portanto, um trabalho inumanista, um pensamento vindo do Exterior segundo
compromissos para com as construções e revisões das realidades orientadas
e reguladas pela autonomia da razão. Deleuze diz, também, acreditar “num
mundo em que as individuações são impessoais e em que as singularidades
são pré-individuais” (Deleuze G. , 2000, p. 38), sugerindo a perspectiva
filosófica de que todas as individuações devem partir primeiramente de
processos ontológicos.
Tal como Reza Negarestani defende que os compromissos devem ramificar
outros compromissos, Deleuze diz-nos que o papel fundamental do
pensamento é o de criar mais pensamento, circulação que desenlaça as
implicações da vontade “a cada instante de si” (Artaud, 2018, p. 163) em volta
da repetição, e na qual é visível a interpretação deleuziana do conceito de
eterno retorno de Nietzche, cuja afirmação toma a forma de uma espécie de
imperativo categórico da vontade em-si; “o que quiseres, quer de tal maneira
que também queiras o seu eterno retorno” (Deleuze G. , 2000, p. 50). Como
Ray Brassier (Brassier, 2007) denota, a afirmação do eterno retorno coincide
uma transvalorização de todos os valores, apontando para uma diferença
qualitativa fundamental na relação entre vontade e poder. Ao mesmo tempo
que aniquila todos os valores conhecidos, cria sempre valores novos, “afirma
a coincidência imediata e irreconciliável entre valor absoluto e a ausência de
qualquer valor, a afirmação e a negação, a imanência e a transcendência”
(Brassier, 2007, p. 208). É uma realidade em que a repetição ontológica do
pensamento, dos compromissos, e da vontade se desapegam do das regras
do conhecimento, e a questão deixa de ser a afirmação do que se conhece,
sendo, em vez, criar-se o que é afirmado (Brassier, 2007, p. 215).
A imagem em movimento constrói, na exposição, um paradigma de
pensamento autónomo que se estende no espaço, e afecta o ambiente que
envolve todas os objetos com os quais interage. O seu grande contributo,
como nos pode mostrar a filosofia de Deleuze, é o de evidenciar os modos a
partir dos quais o autómato espiritual cinematográfico pode ser testemunhado
e navegado. O pensamento cinematográfico, o tempo objetivo e a imanência
64
conjuntiva e disjuntiva das imagens fornecem as condições para um meta-
pensamento que, reiterado pelos discursos curadoriais remete, mais do que
para definições do próprio e do mundo, para os micro-processos estéticos que
nelas interferem, inaugurando o espectador como sujeito filósofo. Como José
Gil descreve, “a experiência experimentada transforma a subjectividade
ordinária, fazendo-a desposar o próprio movimento das coisas, criando o plano
da subjectividade filosófica” (Gil, 2018, p. 193).
O trabalho da curadoria deve aliar a autonomia da razão aos movimentos da
percepção estética de acordo com movimentos racionais que pensam as obras
e brechas perceptuais que transformam o pensamento. Comprometer-se é,
tanto para a curadoria como para o espectador, o trabalho de criar e recriar a
realidade através dos processos estéticos de experimentação, e de pensar de
que modo novas descrições da experimentação reivindicam para
transformações operadas nos contextos da arte, mas também nos das próprias
definições do que é pensar-se e ser-se humano.
Devir-Arte, Devir-Espectador
Na tarefa de ligar arte e público, um compromisso curadorial baseado nos
processos da filosofia Deleuziana lida com a questão necessária da liberdade:
de que forma potenciar as singularidades e diferenças puras da arte ao longo
do sentido da exposição e nas condições de liberdade democrática das
experiências individuais e colectivas dos espectadores?
Os compromissos da curadoria, consoante discursos do poder, colocam-na
diante de uma noção de democracia constituída por liberdades soberanas.
Seguindo esta perspectiva, Boris Groys (Politics of Installation, 2009) afirma
que o universo curadorial é marcado pela liberdade soberana do artista e pela
liberdade institucional do curador. Por um lado, cada obra (o autor fala aqui da
instalação, mas acreditamos que este processo se estende a todos os
65
médiuns) efectua uma privatização simbólica do espaço público da exposição
de acordo com uma liberdade livre de responsabilidades mediativas. Por outro,
o curador orienta a exposição de acordo com sentidos que devem garantir uma
responsabilidade na mediação entre arte e espectador, salvaguardando o
carácter público da instituição pela qual responde. O autor salienta o modo
como o sentido discursivo das exposições promove uma desterritorialização
das obras que quebra as linhas de poder do artista e dissipa a própria diferença
entre fazer e dispor arte. Em ambos os casos, o espectador deixa o território
da legitimidade democrática para entrar num espaço de controlo autoritário.
Entendendo que agenciamentos da arte e da curadoria convergem para ideias
sobre a própria arte, ver as condições de liberdade que circulam na curadoria
de acordo com linhas de poder apontam para a visão, ora dos valores próprios
da are, ora dos seus valores de exposição, de acordo com uma plenitude que,
apesar de fragmentária, aponta sempre para a funcionalidade de um sentido,
ou de um organismo, como é o exemplo da ideia megalómana, mas corrente,
da adaptação da noção de Gesantkunstwerk à curadoria. Boris Groys afirma
que um projecto curadorial partilha afinidades com a Gesantkunstwerk, ao
instrumentalizar os objectos expostos de acordo com um propósito comum,
desvalorizando a autonomia dos objectos em torno de uma criação que inclui
também os espectadores (Groys, Entering the Flow: Museum between Archive
and Gesamtkunstwerk, 2013).
Em ambos os casos entramos facilmente numa celebração da arte e da
diferença. O perigo é o de separar a diferença das suas especificidades
ontológicas, de a banalizar e barrar o seu papel estrutural nos processos de
definição da curadoria, da arte, e da própria identidade humanidade, “apenas
diferenças conciliáveis, federáveis, longe de lutas sangrentas” (Deleuze G. ,
Diferença e Repetição, 2000, p. 37). A diferença Deleuziana é afirmativa, não
negativa, mas liberta uma potência de agressão, e que força o pensamento
para além da identidade e da vontade.
Voltando ao exemplo de Artaud, podemos perceber como podem surgir
barreiras entre a sua prática poética e artística, a sua construção do CsO, e as
práticas da curadoria. Há no autor uma vontade de liberdade e independência
66
total, de uma pureza que, para além de roçar os limites do delírio, entra no
limite da desestratificação total. Na sua poesia, Artaud debruça-se no vazio e
na morte.
Uma exposição evidencia esta potência ontológica da diferenças e dos vazios
queestá na materialidade das obras, na experiência e na experimentação. Não
o faz de acordo com as regras do poder, mas com os princípios da
multiplicidade, e das fracturas que ela suscita. A presença da imagem em
movimento numa exposição é uma marca disso: Hito Steyerl explica que, ao
multiplicar-se nas superfícies e nas temporalidades e durações, e ao
fragmentar os pontos de vista, o cinema mostra os vazios implicados nas
exposições, e que tornam opacos os olhares soberanos. Da mesma forma, os
discursos transparentes, inclusivos e informativos tornam-se práticamente
impossiveis (The Wretched of the Screen. E-flux Journal, 2012, pp. 71,72).
Mas a curadoria faz, também, a sua experimentação através da programação
de filmes, de encontros, conversas e debates, palestras, ensaios, etc., que
implicam uma noção de espectador que se aproxima mais da massa pública
do proscénio do eu da multitude da exposição definida por Steyerl. Sujeita a
funções comunicativas, educativas e mediativas, a curadoria aborda este vazio
de forma incompleta. A comunicação não faz sentir vazio. Antes, indica as suas
possibilidades, envolvendo sempre um pensamento racional que não
corresponde às intensidades perceptuais da arte, e pode apenas dar a
conhecer possibilidades, submetendo as intensidades virtuais da arte às
funções do seu discurso.
No sentido do apagamento das linhas de poder surge uma outra noção de
liberdade, que se efectua nas possibilidades de partilhar e navegar as
experiências e os vazios, e daí soltar uma “potência inaugural”, que une o
artista a espectador, e que antes de tudo nos define enquanto humanos.
Lembrando Hannah Arendt, Silvina Rodrigues lopes escreve: “modo de ser, e
não livre-arbítrio, esta é (...) a faculdade do começo” (Literatura, Defesa do
Atrito, 2012, p. 13).
67
A questão relativa à definição da liberdade das massas deve conter, no
entanto, princípios ontológicos diferentes dos das condições dos espaços, e
que se poderão aproximar mais da distinção virtual que Deleuze e Guattari
encontram entre massa molecular e classe molar (Mil Planaltos, Capitalismo e
Esquizofrenia 2, 2007, p. 274), sugerindo que a primeira apontam para as
múltiplas combinações moleculares marcadas por devires. Neste caso,
falamos de combinações que põem em jogo o espectador no artista e o artista
na posição do espectador. A curadoria faz-se simultaneamente devir-arte e
devir-espectador, o que significa que incorpora os movimentos reais próprios
da prática artística e dos perceptos e vazios próprios da estética, potenciando
modos de experiência e da experimentação a partir dos quais se extraem
visões e subjectivações. Enquanto Boris Groys apaga a diferença “ontológica”
entre fazer arte e expor arte, o que propomos é que a fronteira ontológica que
se dissipa é a do gesto que se manifesta entre o fazer e o ver. Como Marie-
José Mondzain afirma:
O gesto da arte é aquele que funda a autoridade do próprio espectador
enquanto sujeito da sua acção, enquanto sujeito mais insigne que possa
haver, e que é, precisamente, o artista.
(Homo Spectator: Ver, Fazer Ver, 2015, p. 328)
Deste modo, a curadoria envolve-se numa multiplicidade em que fazer e ver
arte são processos em fusão que determinam, através de transformações
contínuas, as individuações e as identidades colectivas.
O plano que se traça é o de uma multiplicidade, transversal às práticas da arte,
da curadoria, do espectador, é o da identidade colectiva do ser humano.
Deleuze e Guattari mencionam que o plano de consistência não é povoado
apenas por um CsO, ou então, que o CsO é um “conjunto eventual de todos
os CsO.” (Deleuze & Guattari, 2007, p. 209). Um CsO pode ser percorrido pelas
intensidades de todos os outros, no sentido em que no seu plano circulam
68
movimentos de desterritorialização de diferentes estratos. Ver a curadoria de
acordo com a construção de um CsO é ver um espaço preenchido por uma
multiplicidade de outros corpos, cada um dos quais agenciando razões e
afectos que são ao mesmo tempo únicos e em partilha. Deste modo, os CsOs
agenciam os movimentos desejantes num plano de imanência de acordo com
as totalidades que ao mesmo tempo integram e criam, mas que são
independente das partes: “só acreditamos em totalidades ao lado” (Deleuze &
Guattari, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1, 2004, p. 45). O CsO não
unifica nem totaliza o conjunto das máquinas, criando antes linhas de fuga e
de desestratificação que abstraem o desejo do ego e da política.
Dizer que a liberdade se processa a nível molecular sugere que nos
debrucemos sobre a questão da relação entre o poder e a autoridade, questão
que Marie-José Mondzain coloca em Homo Spectator: “de que modo pode a
subjectivação que se opera entre os espectadores conservar a sua potência
inaugural quando o sujeito se submete a um poder?” (Homo Spectator: Ver,
Fazer Ver, 2015, p. 324). A resposta da autora é que a autoridade existe no
momento do reconhecimento do outro, sendo decomposta em dois
pressupostos: uma confiança que legitimiza o poder, e uma condição que
pressupõe a dignidade e a igualdade de quem o reconhece. A autoridade deve
existir sem reino, para que possa ser reconhecida em termos da sua potência
inaugural. Na opinião da escritora, “o reconhecimento da autoridade não
assenta na fraqueza de um sítio mas na partilha de uma liberdade que por um
lado age e por outro aceita obedecer” (Mondzain, 2015, p. 326). A autoridade
pode ser legitimada enquanto processo de partilha que pressupõe a igualdade
autoritária dos sujeitos, sendo que o espaço político é, mais do uma circulação
de poderes e controlos, o “regime de uma partilha do espaço e do tempo, o
regime de circulação das coisas e dos signos, no seio do qual cada sujeito (...)
encontra uma igual condição do seu reconhecimento na comunidade,
enquanto sujeito desejante e falante” (Mondzain, 2015, p. 325). Nesta partilha
que cada sujeito encontra a sua autoridade, ou seja, afirma a sua presença.
69
4. Considerações Finais
Ao longo da dissertação, pudemos aperceber-nos que, nos conceitos
abordados, existem princípios e especificidades transversais à filosofia de
Deleuze. Imanência, movimento e diferença permeiam todo um mundo
maquínico e ditam as condições sob as quais é possível pensar cinema e
curadoria.
Tais princípios estão presentes nos conceitos de Imagem, Dispositivo e de
Corpo sem Órgãos. Constituídos de movimentos intensivos, regulam as partes
independentes a um todo aberto que se transforma a cada combinação. Estas
relações formam uma consciência e um pensamento visual propriamente
cinematográficos, e expandem não só a noção deleuziana empírica do
pensamento. É uma perspectiva criativa e estética do pensamento que
enfrenta o seu impoder, isto é, o que há de não pensável e até de impensável,
para dele forçar novos actos de pensamento. O cinema evidencia-o no entre-
imagens, através da montagem, dos cortes e raccords, e do tempo objetivo
que decorre do movimento e da vibração.
Estes movimentos visualmente evidentes nas imagens cinematográficas,
adquirem diferentes sentidos na curadoria. Uma exposição é desde logo feita
de relações entre obras e imagens e uma orientação que define os limites
conceptuais do todo. No entanto, só na experiência do espectador é possível
conceber uma forma de pensamento estético e visual correspondente ao
pensamento deleuziano. Na combinação destas duas perspectivas, a
curadoria constrói-se como espaço de interacção capaz de potenciar a
importância das experimentações empíricas e perceptuais para as redefinições
da estética.
Da mesma forma, o espaço sócio-político, no qual a curadoria se integra sob
forma institucional, compõe-se de movimentos intensivos, de sentimentos,
desejos, perceptos que circulam e coincidem tanto com a produção como com
o seu consumo. A noção de desejo como movimento virtual de toda a produção
70
suscita a criação do Corpo sem Órgãos de acordo o desenvolvimento de
vontade em si filosófica, que não se dirige para ideias ou ideologias, antes
construindo um espaço de navegação e experimentação no espaço virtual do
imaginário e dos sentimentos. Torna-se possível, neste contexto, discutir
processos e estatutos ontológicos necessários para que curador e espectador
possam ser entendidos como sujeitos que reconhecem e se reconhecem de
acordo com os devires e se actualizam numa relação em que a liberdade é um
trabalho mais do que um princípio.
A grande especificidade da imanência está no carácter dos devires. Daí, que
Deleuze caracterize os seus conceitos como “multiplicidade de fusão”. É nesta
forma de multiplicidade que podem coincidir imagem e matéria, produção e
consumo, curadoria e arte, artista e espectador. A questão não é a de definir
estes termos, mas a de interiorizar e exteriorizar as produções e sentimentos
reais, e fazê-los entrar em partilha sem que sejam completamente
estratificados, manter o seu movimento independente.
Neste mundo, o papel da curadoria e a sua capacidade para potenciar a
relação entre as especificidades imagéticas e estéticas da arte e do mundo e
a experiência do espectador, está longe de ser pacífico. Mais do que mostrar
o que se tem criado e pensado até agora, é preciso levar o pensamento aos
seus limites racionais e empíricos, “forçar o pensamento a pensar-se a si
mesmo e a pensar. É a própria definição do sublime” (Deleuze G. , 2015, p.
249). A curadoria deve ser um espaço onde o pensamento é tido como
potência máxima de criação por parte do espectador. O autor lembra-nos que
o pensamento, como a vida, serve acima de tudo para ser continuado.
Por fim, um compromisso para com valores que sustêm as relações entre
curador e espectador deve ter a capacidade de se transversalizar, pelo que,
ao assumir uma postura interventiva na construção de conceitos e na sua
actualização prática, reverte inevitavelmente para o poder da própria vida, ou,
melhor dizendo, das noções do que é ser-se humano, no sentido em que todas
práticas, experiências e debates determinam de certo modo, o lugar dos
sujeitos individuais e colectivos numa história cujo movimento é necessário
construir
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