A Ética de Paul Ricoeur: reflexões sobre ética e moral

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A Ética de Paul Ricoeur: reflexões sobre ética e moral Felipe Saraiva Nunes de Pinho Psicólogo, Mestre em Linguística (UFC) DEA em Filosofia (UB) www.felipepinho.com Essa exposição é parte da tese de doutorado que venho desenvolvendo junto à Universidade de Barcelona. Minhas pesquisas se centram no aspecto dialógico da ética, ou seja, na relação entre o desejo , desejo de ser, ou melhor, de realizar o nosso projeto de ser, e o dever , a obrigação, o constrangimento da lei. O autor escolhido para debater esse aspecto dialógico da ética é Paul Ricoeur. Filósofo francês, viveu os principais acontecimentos do século XX, manteve uma rica relação com outros filósofos como Husserl, Heidegger, R. Rorty, Hannah Arendt, Emmanuel Lévinas, J. Derrida, entre outros. Ricoeur, em seus textos sobre Ética distingui o termo ética do termo moral. Embora ele mesmo afirme que não há nada na etimologia que justifique tal distinção - uma vez que a palavra ética vem do grego e a palavra moral vem do latim, sendo que ambas significam hábitos, costumes – é necessário distinguir duas importantes tradições filosóficas: a ética teleológica aristotélica e a moral deontológica kantiana. Na perspectiva aristotélica a ética tem uma finalidade, um fim que visa o bem. Já na perspectiva deontológica kantiana, a moral implica a obediência à norma, à lei, confundindo-se, dessa forma, com a obediência ao dever. Assim a ética também se apresenta como sendo aquilo que é bom e a moral como sendo aquilo que é obrigatório. Embora Ricoeur deixe claro que defende a primazia da ética sobre a moral, o que encontramos em suas obras é um constante diálogo entre essas duas tradições, uma vez que tanto a ética, quanto a moral, precisam recorrer uma à outra para superar seus conflitos e para encontrar uma fundamentação para seus argumentos. Dois aspectos se destacam no pensamento ético de Ricoeur: O primeiro é que tanto a ética quanto a moral se referem a uma reflexão sobre ação, sobre o agir; o agir de um sujeito que é primeiramente capaz de agir, ou seja, de mudar o curso das coisas no mundo, de escolher entre várias opções; e segundo, um sujeito capaz de

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A Ética de Paul Ricoeur: reflexões sobre ética e moral

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A Ética de Paul Ricoeur: reflexões sobre ética e moral

Felipe Saraiva Nunes de PinhoPsicólogo, Mestre em Linguística (UFC)

DEA em Filosofia (UB)www.felipepinho.com

Essa exposição é parte da tese de doutorado que venho desenvolvendo junto à Universidade de Barcelona. Minhas pesquisas se centram no aspecto dialógico da ética, ou seja, na relação entre o desejo, desejo de ser, ou melhor, de realizar o nosso projeto de ser, e o dever, a obrigação, o constrangimento da lei. O autor escolhido para debater esse aspecto dialógico da ética é Paul Ricoeur. Filósofo francês, viveu os principais acontecimentos do século XX, manteve uma rica relação com outros filósofos como Husserl, Heidegger, R. Rorty, Hannah Arendt, Emmanuel Lévinas, J. Derrida, entre outros.

Ricoeur, em seus textos sobre Ética distingui o termo ética do termo moral.

Embora ele mesmo afirme que não há nada na etimologia que justifique tal distinção - uma vez que a palavra ética vem do grego e a palavra moral vem do latim, sendo que ambas significam hábitos, costumes – é necessário distinguir duas importantes tradições filosóficas: a ética teleológica aristotélica e a moral deontológica kantiana.

Na perspectiva aristotélica a ética tem uma finalidade, um fim que visa o bem. Já na perspectiva deontológica kantiana, a moral implica a obediência à norma, à lei, confundindo-se, dessa forma, com a obediência ao dever. Assim a ética também se apresenta como sendo aquilo que é bom e a moral como sendo aquilo que é obrigatório.

Embora Ricoeur deixe claro que defende a primazia da ética sobre a moral, o que encontramos em suas obras é um constante diálogo entre essas duas tradições, uma vez que tanto a ética, quanto a moral, precisam recorrer uma à outra para superar seus conflitos e para encontrar uma fundamentação para seus argumentos.

Dois aspectos se destacam no pensamento ético de Ricoeur:

O primeiro é que tanto a ética quanto a moral se referem a uma reflexão sobre ação, sobre o agir; o agir de um sujeito que é primeiramente capaz de agir, ou seja, de mudar o curso das coisas no mundo, de escolher entre várias opções; e segundo, um sujeito capaz de se reconhecer como o autor de suas ações, ou seja, capaz de ser imputado e de se responsabilizar pelos seus atos.

Mas por que é importante estudar a ética?

O ser humano não vive isoladamente, assim o nosso agir sempre implica outro ser humano; o nosso agir trás conseqüências para os outros e para a sociedade; por isso a ética e a moral procuram defender que existe uma melhor maneira de agir, uma vez que necessitamos levar em consideração o outro quando agimos. Assim o sujeito que age e que é capaz de refletir sobre as suas ações é também capaz de manter uma relação, de dialogar com o outro.

Ora, a parte mais importante e interessante de toda a obra de Ricoeur, que ele dedicará vários livros, é justamente para definir ou compreender o que é, ou melhor, quem é o sujeito que age.

Em seu livro, O Si mesmo como um outro, Ricoeur defenderá a idéia de um sujeito reflexivo e hermenêutico que se constitui como sujeito principalmente a partir de uma relação

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reflexiva de retorno a si após uma relação dialógica com o outro. Ou seja, para Ricoeur o sujeito se constitui enquanto sujeito a partir da relação com o outro. Essa idéia o aproxima muito do pensamento de outro autor importante Martin Buber.

Assim, pensar o sujeito de maneira isolada é cometer um equívoco, pois não há sujeito que se constitua enquanto tal isoladamente, fora de uma relação com outro sujeito. O sujeito só existe em relação com o outro e com o mundo. Eu preciso que o outro também chame o meu nome, para que eu possa, ouvindo o meu nome sendo pronunciado por outro, compreender o significado do meu próprio nome.

É a partir da relação com o outro que eu me torno eu mesmo, ou seja, o outro é constitutivo do meu próprio ser.

Essa definição de sujeito terá importantes implicações para o pensamento ético de Ricoeur.

Primeiro porque se pensarmos a ética como uma reflexão sobre o agir que leva em consideração o outro, nos depararemos com dois tipos distintos de ação ética.

A primeira pode ser entendida como uma ação que tem como fundamento um desejo pelo outro, ou seja, eu desejo o bem do outro, eu desejo a felicidade do outro. Nessa perspectiva teleológica, eu desejo a felicidade e o bem do outro porque primeiro eu entendo a importância que o outro tem para mim, pois o outro é constitutivo do meu próprio ser, segundo porque eu compreendo que é só desejando o bem para o outro que eu conseguirei alcançar a minha própria felicidade. Só pela reciprocidade é que o outro também desejará o meu bem.

Agora é importante salientar que eu só posso desejar o bem para o outro se eu sou capaz, antes de tudo, de desejar o bem, e depois se eu sou capaz de desejar o bem para mim. O bem, dessa forma, alimento da ética, precisa ser um desejo pelo bem, ou pelo bom. Desejo o bem porque sou capaz de escolher entre o bem e mal, de compreender a diferença que existe entre o bem e o mal. Escolho o bem porque compreendo que só viverei em uma sociedade justa, se eu desejar o bem para mim e para o outro. Eu desejo o bem para mim porque sinto estima por mim, sinto amor por mim. E desejo o bem para o outro, porque estimo o outro como a mim mesmo, atendo à sua solicitude de ser amado, ou seja, porque sou capaz de sentir amor pelo outro.

A questão principal que se coloca aqui, e que Ricoeur como bom Cristão que foi não deixou de mencionar é que, no mundo dos homens, não existe apenas o bem, existe também o mal. O homem é falível, defende Ricoeur em suas primeiras obras chamadas de Philosophie de la volonté (filosofia da vontade). E é por causa da fraqueza humana que existe o mal no mundo. É a fraqueza humana que permite a entrada do mal no mundo.

Ora, se existe o mal, ou a possibilidade de o homem agir visando a maldade, nada pode nos garantir que todos os homens continuem desejando o bem para todos; nada mais garante que os homens defenderão a igualdade, a liberdade e o bem para todos. Por causa da natureza humana falível, é que o desejo por mim e pelo outro se torna um desejo apenas por mim, um desejo egoísta, em que o outro se apresenta apenas como um recurso para que eu possa alcançar a satisfação de meus próprios desejos.

Por isso a humanidade precisa recorrer à norma, à lei, ou seja, à moral, para garantir, ao menos, a obediência a certos princípios civilizados. Ou seja, é por causa do mal e da violência que necessitamos da moral, do recurso à lei. Ricoeur dirá que se Kant elaborou o seu segundo imperativo categórico “trate sempre a humanidade como um fim e nunca como um meio” é que ele pressupôs que a relação espontânea entre os homens é uma relação de exploração.

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Assim para garantir a própria sobrevivência da civilização é necessário o auxílio da moral, o auxílio da lei, para subjugar os desejos individuais - que nessa perspectiva são sempre egoístas -, a princípios comuns que garantam um convívio civilizado.

Não podemos esquecer que Freud também defendeu, em diversos trabalhos “antropológicos”, como o “Mal estar na civilização” e o “Fim de uma ilusão”, que o homem é inimigo da civilização, que o desejo do ser humano é sempre um desejo egoísta.

Por isso talvez, um outro importante filósofo contemporâneo e amigo pessoal de Ricoeur, Emmanuel Lévinas (ambos viveram os horrores da segunda guerra mundial) defendeu que só podemos pensar em ética se pensarmos em outra forma de ser, se substituirmos o desejo de ser, de nos realizar, pelo desejo pelo outro, ou ainda, se negarmos o nosso próprio desejo e nos submetermos ao desejo do outro.

Porém Ricoeur irá responder a essa perspectiva de Lévinas dizendo que mesmo se eu abdicar de meus desejos a favor do outro, precisarei ao menos manter parte de mim mesmo, para poder responder à chamada do outro dizendo- lhe: “aqui estou”.

Vejamos o nosso percurso. Saímos inicialmente de uma perspectiva ética, em que o desejo se apresenta como o fundamento da ética, o desejo de ser, de se realizar e o desejo pelo outro, o desejo pela realização plena do ser do outro. Esse desejo parte do intimo do ser, que compreende que ele necessita sim se realizar enquanto ser, pois um ser que não se realiza vive inautenticamente. E que compreende também que ele só se realizará enquanto ser se garantir o direito do outro, por sua vez de também realizar plenamente o seu ser. Se eu necessito do outro para me tornar o que eu sou, necessito que o outro também se torne o que ele é.

Agora chegamos, na moral, à própria condenação do desejo, e desmistificamos a capacidade do homem de fazer o bem de maneira espontânea. A espontaneidade do homem é para o mal, e por isso necessitamos de um recurso externo, algo que não pertence mais ao íntimo do ser humano, uma lei externa, uma norma externa, para ao menos, se não podemos mais garantir o bem, ao menos garantirmos um convívio civilizado, ou seja, que os homens não saiam por ai, matando uns aos outros.

O problema da moral, nessa perspectiva, é que ela, a moral, só se sustenta com a ameaça da punição. Se não é algo espontâneo do meu ser agir adequadamente ou eticamente, só agirei adequadamente se for obrigado a isso, se houver algo que me puna, caso eu não haja adequadamente. Necessitamos então sermos constantemente vigiados, coagidos, para garantirmos a ordem.

O que garante a obediência, a moral, é o medo da punição não a vontade de praticar o bem.

E em nossas sociedades ocidentais, secularizadas e laicas, a justiça foi gradativamente substituindo o amor ou respeito pelo próximo por uma justiça constitucional e racional, sendo o grande hobby dos nossos atuais representantes morais, interpretar as vírgulas, os acentos e os pontos, procurando as brechas do livro da Constituição.

Assim, nossa idéia de moral é na verdade confundida com esperteza. O esperto é aquele que consegue burlar a lei, em proveito próprio. O moralista é aquele chato, que no final das contas, não ganha nada com isso.

Nas ciências, toda a reflexão sobre o agir do profissional se centra nas discussões jurídicas e deontológicas dos códigos de conduta profissional. Só que os códigos de conduta apenas ensinam o que é certo e errado do ponto de vista da lei, não ensinam o que é certo e

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errado do ponto de vista do cuidado com o outro. Em conseqüência disso, em várias ocasiões encontramos médicos e outros profissionais da saúde, que mesmo agindo de acordo com o código deontológico da profissão, ainda assim não agiram eticamente. Por isso encontramos, nas ciências da saúde, um retorno dos discursos e debates sobre a humanização. A humanização nas ciências da saúde, nada mais é do que um movimento que procurar retomar as discussões e os debates éticos e não mais, simplesmente morais.

E é isso que Ricoeur defende em seu conceito de sabedoria prática: no momento singular da prática, o profissional precisa não só recorrer ao código moral, como também precisa atuar de acordo com o bom senso, aplicando a norma a esse momento singular. O que garante que o bom senso seja justo ou bom é o recurso à reflexão ética. Ou seja, a moral precisa, para não se tornar uma universalização abstrata, recorrer ao pensamento ético do profissional que está atuando naquele momento.

Nesse momento encontramos bem definido o diálogo entre a ética e a moral. O sujeito capaz é, antes de tudo, um sujeito capaz de desejar eticamente, de agir eticamente, sendo que esse agir, também precisa estar em acordo com as normais morais de sua comunidade. A moral sozinha, não garante o bem.

O que perdemos com essa transposição da ética para a moral, da tradição teleológica para a deontológica, nas sociedades ocidentais liberais, na educação e principalmente nas ciências foi uma parte de nossa humanidade. Uma parte essencial que nos ajuda não só a compreender, mas principalmente a sentir, que compartilhamos o mundo com outros seres humanos. E ninguém pode ser obrigado a compartilhar. Você pode ser obrigado a dividir, a dar ao outro a sua parte. Mas o compartilhar envolve necessariamente um estar com o outro, estar em comunhão com o outro; e estar em comunhão é compreender que eu faço parte do outro e o outro faz parte de mim. Isso não é poesia. Isso é ética.

Esse é o verdadeiro fundamento da ética, a capacidade de dialogar com o outro.

Somente se compreendermos que compartilhamos o mundo com os outros é que seremos capazes de construir um mundo verdadeiramente democrático e justo.

Referências:

RICOEUR, Paul. Éthique et morale. Lectures 1. Editions Seuil, 1991.

_________. Postface au temps de la responsabilité. In : Lectures 1, Seuil, 1991

_________.Amor y justicia. Madrid: Caparrós, 1993.

_________.Sí mismo como otro. Siglo veintiuno de España Editores, 1996.

_________.Lecture d’ Autrement qu’être ou au-delà de l’essence d’Emmanuel Lévinas. Paris, Presses Universitaires de France, 1997

_________.Historia y narratividad. Ediciones Paidós, 1999.

_________.Parcours de la Reconnaissance. Trois études. Éditions Stock, 2004.