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A ESTRELA DO DIABO Jo Nesbø Tradução de Maria João Freire de Andrade

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A ESTRELA DO DIABO

Jo Nesbø

Tradução deMaria João Freire de Andrade

PARTE UM

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Sexta-feira. Ovo.

A casa fora construída em 1898, sobre fundamentos de barroque, desde essa altura, tinham afundado um pouco no lado virado aoeste, fazendo com que a água da chuva atravessasse a soleira demadeira onde a porta estava pendurada. Atravessava o chão do quartoe deixava um rasto molhado sobre o soalho de carvalho, movendo-separa oeste. O fluxo detinha-se por segundos numa cova, antes de aágua o empurrar por trás e ele continuar a correr como um rato ner-voso em direção ao rodapé. Aí a água separava-se em ambas as dire-ções; procurava e de algum modo esgueirava-se sob o rodapé, até des-cobrir um intervalo entre a extremidade do soalho de madeira e aparede. Nesse intervalo, encontrava-se uma moeda de cinco kronercom o perfil do rei Olavo e a data: 1987, o ano anterior à sua quedado bolso do carpinteiro. Mas aqueles eram anos de crescimento; tive-ram de se construir à pressa muitos apartamentos em sótãos, e o car-pinteiro nem se dera ao trabalho de a procurar.

A água não demorou muito tempo a encontrar um caminho atra-vés do chão, sob o soalho. Para além da infiltração em 1968 – nomesmo ano em que fora colocado um novo telhado sobre a casa –, ossoalhos de madeira tinham permanecido imperturbáveis, a secarem ea contraírem-se, de modo que a fenda entre as duas tábuas de susten-tação interiores do chão tinha agora quase meio centímetro. A águapingava na viga por baixo da fenda, e continuava para oeste até à

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parede exterior. Aí infiltrava-se no estuque e na argamassa que foramisturada há cem anos, também a meio do verão, por Jacob Ander-sen, um mestre pedreiro e pai de cinco. Andersen, como muitospedreiros da época em Oslo, misturava a sua própria argamassa e estu-que para as paredes. Para além de ter a sua própria mistura de cal,areia e água, também tinha os seus ingredientes especiais: pelo decavalo e sangue de porco. Jacob Andersen era da opinião que o peloe o sangue mantinham o estuque compactado, e davam-lhe umaforça extra. A ideia não era sua, dissera ele na altura aos seus colegasdescrentes, o seu avô e pai escoceses tinham usado os mesmos ingre-dientes, mas de ovelha. Apesar de ter renunciado ao seu apelido esco-cês, e adotado um nome comercial, não via qualquer motivo paravirar costas a uma herança de seiscentos anos. Alguns dos pedreirosconsideravam aquilo imoral, outros pensavam que ele estava con-luiado com o Diabo, mas a maior parte apenas se ria dele. Talveztivesse sido um dos últimos que contou a história, que haveria de seespalhar pela vila florescente de Kristania.

Um cocheiro de Grünerløkka casara com a sua prima de Värm-land, e mudaram-se para um apartamento de uma única divisão comcozinha, num dos edifícios de Seilduksgata que Andersen ajudara aconstruir. O primeiro filho do casal teve a infelicidade de nascer comcabelo escuro e encaracolado, e olhos castanhos; como o casal eralouro de olhos azuis – e o homem era por natureza ciumento –, umanoite, atou as mãos da mulher atrás das costas, levou-a até à cave eemparedou-a. Os gritos dela foram eficazmente abafados pelas pare-des grossas, atrás das quais se encontrava atada e comprimida entreduas superfícies de tijolo. O marido pensara que talvez ela sufocassedevido à falta de oxigénio, mas os pedreiros permitem sempre umpouco de ventilação. No fim, a pobre mulher acabou por atacar aparede com os dentes. E isso até poderia ter resultado porque opedreiro escocês usara sangue e pelo, pensando poder poupar a dis-pendiosa cal na mistura de cimento, o que resultara numa paredeporosa que se desfazia sob o ataque dos dentes fortes de Värmland.Contudo a sua fome pela vida fez com que, por azar, ela tirasse boca-

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dos excessivamente grandes de argamassa e tijolo. No fim, já não eracapaz de mastigar, engolir ou cuspir, e a areia, as pedras e os bocadosde barro bloquearam-lhe a traqueia. O seu rosto tornou-se azul, o seuritmo cardíaco abrandou, e depois parou de respirar.

Estava naquele estado a que muitas pessoas chamariam morta.No entanto, segundo a lenda, o sabor do sangue de porco fez com

que a infeliz mulher acreditasse que ainda estava viva. E, ao sentir-seviva, soltou-se imediatamente das cordas que a prendiam, atravessoua parede e recomeçou a andar. Alguns velhos de Grünerløkka aindase lembram da história lhes ser contada na infância, a história damulher com cabeça de porco, que percorria as ruas com uma facapara cortar os pescoços das crianças que ficavam fora de portas atétarde. Ela tinha de sentir o sabor do sangue na boca, de modo a nãose desvanecer no ar. Na época, muito poucas pessoas conheciam onome do pedreiro, e Andersen trabalhara incansavelmente para fazeraquele tipo especial de argamassa. Três anos depois, ao trabalhar noedifício onde a água estava agora a pingar, caiu de um andaime – dei-xando apenas duzentos kroner e uma guitarra –, e assim passar-se-iammais de cem anos até os pedreiros começarem a usar fibras de cabeloartificiais nas suas misturas de cimento, e antes que os técnicos de umlaboratório de Milão descobrissem que os muros de Jericó tinhamsido fortalecidos com sangue e pelo de camelo.

Contudo, grande parte da água não escorria para o interior daparede mas por ela abaixo, porque a água, como a cobardia e a luxú-ria, procuram sempre o nível mais baixo. A princípio a água foi absor-vida pelo isolamento granuloso, irregular entre as vigas, mas como eramuita, passado pouco o isolamento estava saturado. A água atraves-sou-o por completo e ensopou um jornal datado de 11 de julho de1898, no qual se dizia que a época do florescimento da indústria daconstrução tinha provavelmente atingido o seu auge, e que os espe-culadores imobiliários sem escrúpulos teriam decerto tempos difíceispela frente. Na página três, dizia que a polícia ainda não tinha quais-quer pistas quanto ao homicídio de uma jovem enfermeira, que foraencontrada esfaqueada e morta numa casa de banho na semana ante-

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rior. Em maio, uma rapariga mutilada e assassinada da mesma ma-neira fora encontrada perto do rio Akerselva, mas a polícia não sabiase os dois casos estavam relacionados.

A água escorria do jornal, entre e sob as tábuas de madeira, e aolongo do interior do revestimento do teto pintado, da sala do piso infe-rior. Já que aquele ficara danificado devido às reparações da infil-tração de 1968, a água infiltrava-se pelos buracos, formando gotas que ficavam suspensas até se tornarem suficientemente pesadas paraque a gravidade desafiasse a tensão da superfície; as gotas soltavam-se,e caíam de uma altura de três metros e oito centímetros. A água ater-rava então, e terminava a sua trajetória. Na água.

Vibeke Knutsen sugou com força o seu cigarro, e soprou o fumopela janela aberta do quarto piso do edifício de apartamentos. Estavauma tarde quente, e no pátio traseiro o ar erguia-se do asfalto banhadopelo sol, fazendo subir o fumo pela fachada azul-clara da casa até sedispersar. Do outro lado do telhado podia-se ouvir o som de um carro,na habitualmente azafamada Ullevålsveien. Mas agora estavam todosde férias e a cidade quase deserta. Uma mosca estava caída de costasno peitoril da janela, com as seis patas no ar. Não tivera o bom sensode se afastar do calor. Estava mais fresco do outro lado do aparta-mento, virado para Ullevålsveien, mas Vibeke não gostava da vistadaquele lado. O Cemitério do Nosso Salvador. Cheio de pessoas famo-sas. Pessoas famosas e mortas. No piso térreo, havia uma loja que ven-dia «monumentos», conforme dizia o letreiro, ou por outras palavras,pedras tumulares. Era aquilo a que alguém podia chamar «manter-seperto do nicho de mercado».

Vibeke encostou a testa ao vidro frio da janela. Ficara feliz com a chegada do tempo quente, mas, passado pouco,

a sua felicidade desapareceu. Mesmo agora ansiava por noites maisfrescas e pessoas nas ruas. Naquele dia antes do almoço, só tinhampassado cinco clientes pela galeria e da parte da tarde apenas três.Fumara um maço e meio de cigarros, por puro tédio. O coração batia-

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-lhe acelerado e sentia a garganta áspera; de facto, quando o patrãolhe ligou a perguntar que tal estavam as coisas, mal conseguia falar.Apesar disso, assim que chegou a casa e pôs as batatas a cozer, voltoua sentir aquela vontade na boca do estômago.

Vibeke deixara de fumar há dois anos, quando conhecera Anders.Ele não lhe pedira para o fazer. Antes pelo contrário. Quando seconheceram na Gran Canaria, até lhe cravara um cigarro. Apenaspela piada. Quando foram viver juntos, apenas um mês após o seuregresso a Oslo, uma das primeiras coisas que ele dissera fora que pro-vavelmente a relação seria capaz de aguentar um pouco de fumo pas-sivo, e que, sem dúvida, os investigadores do cancro estavam a exage-rar. Com o passar do tempo, era possível que se habituasse ao cheirodo tabaco na roupa. Na manhã seguinte, Vibeke tomara a sua deci-são. Quando, alguns dias depois, ele mencionara ao almoço que hámuito que não a via com um cigarro na mão, ela respondeu que naverdade nunca fora grande fumadora. Anders sorriu, inclinou-se sobrea mesa e acariciou-lhe a face.

– Sabes uma coisa, Vibeke? Foi o que eu sempre achei.Ela conseguia ouvir a panela a borbulhar atrás de si, e olhou para

o cigarro. Mais três passas. Deu a primeira. Não sabia a nada. Mal se conseguia lembrar de quando recomeçara a fumar. Talvez

tivesse sido no ano anterior, mais ou menos na altura em que elecomeçara a passar longos períodos de tempo em viagens de negócios.Ou teria sido durante o Ano Novo, quando começara a fazer horasextraordinárias quase todas as noites? Era porque se sentia infeliz? Elaera infeliz? Eles nunca discutiam. Também quase nunca faziamamor, mas isso era porque Anders trabalhava arduamente, dissera-lheele, colocando um fim a qualquer discussão. Não que ela sentisse par-ticularmente a falta disso. Quando, muito de vez em quando, tenta-vam meio entusiasmados fazer amor, era como se ele não estivesseverdadeiramente ali. Por isso, Vibeke percebeu que também não pre-cisava de estar mesmo ali.

Mas nunca chegaram mesmo a discutir. Anders não gostava deerguer a voz.

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Vibeke olhou para o relógio. Cinco e um quarto. O que é que lheacontecera? Regra geral, ele dizia-lhe que ia chegar tarde. Apagou ocigarro, deixou-o cair no pátio das traseiras e dirigiu-se ao fogão paraver como estavam as batatas. Espetou um garfo na maior. Quaseprontas. Alguns grãos pequenos e pretos oscilavam para cima e parabaixo, na superfície da água a ferver. Engraçado. Seriam das batatasou da panela?

Estava a tentar lembrar-se quando é que usara a panela pela últimavez, quando ouviu a porta da frente a ser aberta. Ouviu alguém aarquejar sem fôlego no corredor e a descalçar os sapatos ao pontapé.Anders entrou na cozinha e abriu o frigorífico.

– Então? – perguntou ele.– Rissóis.– Ok…? – A sua entoação ergueu-se no final da palavra, formando

um ponto de interrogação. Ela tinha uma ideia vaga do significado daquilo. Carne outra vez?

Não devíamos comer peixe com maior frequência?– Ótimo – disse ele, num tom de voz monocórdico, inclinando-se

sobre a panela.– O que é que andaste a fazer? Estás completamente ensopado em

suor.– Como esta noite não treinei, fui de bicicleta até Sognsvann e vol-

tei. O que é que são estas coisas na água?– Não sei – disse Vibeke. – Também só agora é que reparei nelas.– Não sabes? Não trabalhaste já como uma espécie de cozinheira? Num movimento rápido, ele apanhou um dos grãos, apertou-o

entre o polegar e o indicador, e enfiou-o na boca. Vibeke olhou paraa nuca dele. Para o seu cabelo castanho fino, que outrora pensara sertão sedutor. Bem penteado e com o comprimento certo. Com riscoao lado. Ele parecera-lhe elegante. Como um homem com umfuturo. Um futuro suficiente para dois.

– Sabe a quê? – perguntou ela.– A nada – disse Anders, ainda inclinado sobre a panela. – A ovo.– Ovo? Mas eu lavei a pan…

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Interrompeu-se subitamente.Ele virou-se.– O que é que se passa?– Há… uma infiltração. – Apontou para a cabeça dele. Anders franziu a testa e levou a mão à nuca. Depois, num movi-

mento simultâneo, inclinaram-se ambos para trás e olharam para oteto. Havia duas gotas suspensas do revestimento branco do teto.Vibeke, que era um pouco míope, não teria visto as gotas mesmo queelas brilhassem. Mas não brilhavam.

– Parece que a Camilla teve uma inundação – disse Anders. – Sesubires e lhe tocares à campainha, eu vou chamar o porteiro.

Vibeke olhou para o teto. E depois baixou os olhos para os grãosna panela.

– Santo Deus – sussurrou, e voltou a sentir o coração a martelar--lhe no peito.

– O que é que se passa agora? – perguntou Anders.– Vai chamar o porteiro. Depois vai com ele bater à porta da

Camilla. Eu vou chamar a polícia.

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Sexta-feira. Licença de Pessoal.

OQuartel-General da Polícia em Grønland estava situado nocimo do espinhaço entre Grønland e Tøyen, e era sobranceiro à zonaoriental do centro da cidade. Fora construído com vidro e aço, e con-cluído em 1978. Não havia superfícies inclinadas; era de uma sime-tria perfeita e os arquitetos Telje, Torp & Aasen tinham recebido umprémio por ele. O eletricista, que instalara os cabos nas duas longasalas dos escritórios do sétimo e nono pisos, recebeu benefícios sociaise uma boa reprimenda do pai quando caíra de um andaime e partiraas costas.

– Há sete gerações que somos pedreiros, equilibrando-nos entre o céu e a terra, antes de a gravidade nos fazer descer. O meu avô ten-tou fugir a esse destino, mas ele seguiu-o através do mar do Norte.Assim, no dia em que nasceste, jurei a mim mesmo que não irias pas-sar por isso. E pensei ter sido bem-sucedido. Um eletricista… Queraio está um eletricista a fazer seis metros acima do solo?

O sinal da sala de controlo central corria através do cobre, exata-mente pelos mesmos cabos que o filho instalara, através de uma divi-sória moldada entre os pisos com uma mistura de cimento feita emfábrica, até ao gabinete de Bjarne Møller, o chefe da Brigada deHomicídios, no sexto piso. Nesse momento, Møller estava sentado àsua secretária a perguntar-se se estava ansioso por ou a temer as suasiminentes férias em família na cabana de montanha em Os, no exte-

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rior de Bergen. Como era habitual, Os em julho significava umtempo terrível. Bjarne Møller não se opunha a trocar a vaga de calorque fora prevista para Oslo por alguns chuviscos, mas manter em casadois rapazinhos altamente enérgicos sem outros recursos para além deum baralho de cartas sem o valete de copas, ia ser um desafio.

Bjarne Møller estendeu as pernas compridas e coçou-se atrás daorelha, antes de ouvir a mensagem.

– Como é que eles o descobriram? – perguntou.– Pensaram que era uma infiltração, que estava a cair no aparta-

mento inferior – respondeu a voz da sala de controlo. – O porteiro eo homem do piso inferior tocaram à campainha, mas ninguém res-pondeu. A porta não estava trancada, por isso entraram.

– Ok. Vou mandar já dois dos nossos agentes.Møller pousou o auscultador, suspirou e passou o dedo pela escala

de serviço plastificada, que se encontrava em cima da secretária. Meiabrigada estava de férias. As coisas eram sempre iguais, todos os anospor aquela altura. Não que aquilo significasse que a população deOslo se encontrasse nalgum perigo em particular, já que os vilões dacidade também pareciam apreciar umas pequenas férias em julho.Era definitivamente estação baixa no que se referia às infrações à lei,que recaíam sobre a Brigada de Homicídios.

O dedo de Møller deteve-se sobre o nome de Beate Lønn. Mar-cou o número do Krimteknisk, o Departamento Forense em Kjølberg-gata. Ninguém atendeu. Esperou que a sua chamada voltasse à cen-tral.

– Beate Lønn está no laboratório – disse uma voz animada.– Fala Møller, da Brigada de Homicídios. Pode passar-lhe a cha-

mada?Esperou. Fora Karl Weber, o recentemente reformado chefe do

Krimteknisk, quem recrutara Beate Lønn para a Brigada de Homicí-dios. Møller viu aquilo como mais uma prova da teoria neo-Darwi-nista, que diz que o único objetivo do homem é perpetuar os seus pró-prios genes. Weber pensava claramente que Beate Lønn partilhavaalguns genes com ele. À primeira vista, Karl Weber e Beate Lønn

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pareciam provavelmente muito diferentes. Weber era rabugento eirascível; Lønn um ratinho pequeno, silencioso e cinzento, que,depois de se licenciar no Instituto da Polícia, corava de cada vez quese falava com ela. Mas os seus genes de polícia eram idênticos. Eramdo tipo apaixonado que, ao farejarem a sua presa, tinham a capaci-dade para excluir tudo o resto e conseguiam concentrar-se apenasnuma pista forense, numa prova circunstancial, numa gravação devídeo, numa descrição vaga, até que, por fim, tudo aquilo começavaa fazer uma espécie de sentido. Línguas maliciosas afirmavam queWeber e Lønn pertenciam ao laboratório e não à comunidade, ondeo conhecimento do comportamento humano por parte de um inves-tigador ainda era mais importante do que uma pegada ou a linha soltade um casaco.

Weber e Lønn até poderiam concordar com o que os outrosdiziam a respeito do laboratório, mas não quanto às pegadas e àslinhas soltas.

– Fala Lønn.– Olá, Beate. Daqui Bjarne Møller. Estou a interromper alguma

coisa?– Claro que não. O que é que se passa?Møller explicou-lhe rapidamente o que se passava, e deu-lhe a

morada.– Vou mandar dois dos meus rapazes terem contigo – disse ele.– Quais?– Tenho de ver quem consigo encontrar. As férias de verão, sabes.Møller pousou o auscultador, e passou o dedo ao longo da lista. O dedo parou em Tom Waaler. O espaço para a data das férias estava em branco. Isso não sur-

preendeu Bjarne Møller. De vez em quando, perguntava-se se o dete-tive-inspetor Tom Waaler tinha alguma vez momentos de folga, ou seaté teria tempo para dormir. Como detetive-inspetor, era uma dasduas estrelas do departamento. Sempre presente, sempre em cimados acontecimentos e quase sempre bem-sucedido. Em comparaçãocom o outro detetive-inspetor de topo, Tom Waaler era de confiança,

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tinha um registo imaculado e era respeitado por todos. Em resumo,um subordinado de sonho. Com as indiscutíveis capacidades de lide-rança que Tom possuía, estava escrito que ficaria com a posição deMøller como chefe da Brigada de Homicídios quando chegasse aaltura.

A chamada de Møller crepitou através das divisórias finas.– Fala Waaler – respondeu uma voz sonora.– Møller. Nós…– Só um momento, Bjarne. Estou a atender outra chamada.Bjarne Møller tamborilou no tampo da secretária, enquanto espe-

rava. Tom Waaler podia tornar-se o chefe dos Homicídios mais novoda história da brigada. Seria devido à sua idade que, por vezes, BjarneMøller se sentia pouco à vontade ao pensar que iria entregar as suasresponsabilidades a Tom? Ou talvez fosse devido aos dois incidentes,que tinham envolvido tiros? O detetive-inspetor puxara duas vezespela arma ao efetuar prisões e, sendo um dos melhores atiradores daforça policial, atingira o alvo de ambas as vezes com resultados fatais.De um modo bastante paradoxal, Møller também sabia que umdaqueles dois episódios podia, derradeiramente, fazer balançar anomeação do novo chefe a favor de Waaler. A SEFO1, a autoridadeindependente de investigação interna, não encontrara nada que suge-risse que Tom não disparara em legítima defesa. De facto, concluíra--se que, em ambos os casos, ele demonstrara uma boa capacidade deavaliação e reações rápidas numa situação de aperto. Que melhorescredenciais poderia possuir um candidato à posição de chefe?

– Desculpe, Bjarne. Uma chamada no telemóvel. Em que é quelhe posso ser útil?

– Temos trabalho.– Finalmente.

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1 Abreviatura de Særskilte etterforskningsorganene, nome da entidade norue-guesa que investiga casos relacionados com agentes da polícia ou procuradorespúblicos, quando em serviço ou no ativo. Foi substituída em janeiro de 2005pela Spesialenheten for politisaker. (N. da T.)

A conversa estava terminada em dez segundos. Agora, só precisavade mais uma pessoa.

Møller pensara em Halvorsen, mas segundo a lista ele estava delicença, na sua casa em Steinkjer. O seu dedo continuou a descer aescala de serviço. Licença, licença, baixa. O chefe suspirou quando o dedo se deteve no nome, que estivera à espera de evitar.

Harry Hole.O lobo solitário, o bêbedo, o enfant terrible do departamento e,

para além de Tom Waaler, o melhor detetive do sexto piso. Se nãofosse por isso, e pelo facto de Bjarne Møller ter durante os anos desen-volvido uma espécie de inclinação perversa para pôr a cabeça no cepopor aquele agente com um problema sério de bebida, Harry Holeestaria fora da polícia há anos. Em circunstâncias vulgares, Harry teriasido a primeira pessoa a quem teria ligado e também a quem entrega-ria a missão, mas aquelas não eram circunstâncias vulgares.

Ou para o colocar de outro modo: eram mais extraordinárias doque vulgares.

Chegara tudo a um impasse no mês anterior, depois de Hole terpassado o inverno a trabalhar de novo num antigo caso – o homicídioda sua antiga parceira, Ellen Gjelten, que fora assassinada perto do rioAkerselva. Durante esse período de tempo, perdera todo o interessenoutros casos. O caso Ellen Gjelten há muito que fora arquivado, masHarry tornara-se cada vez mais obcecado e, muito sinceramente, Møller estava a começar a preocupar-se com o seu estado mental. O momento crítico ocorrera quando Harry aparecera no seu gabinetequatro semanas antes, e lhe apresentara as suas arrepiantes teorias daconspiração. Basicamente, e sem qualquer prova, estava a fazer acusa-ções extravagantes contra Tom Waaler.

De seguida, limitara-se a desaparecer. Alguns dias depois, Møllerligara para o restaurante Schrøder e ficara a saber aquilo que maistemia: que Harry voltara a cair no álcool. Para encobrir a sua ausên-cia, Møller colocara Harry de licença. Outra vez. Regra geral, Harryaparecia passada uma semana, mas daquela vez tinham-se passadoquatro. A sua licença estava terminada.

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Møller olhou para o auscultador, levantou-se e dirigiu-se à janela.Eram cinco e meia e, no entanto, o parque em frente do quartel-gene-ral estava quase deserto. Havia apenas um ou outro adorador do Sol, a enfrentar o calor. Na Grønlandsleiret, dois donos de lojas estavamsentados debaixo dos seus toldos, junto aos legumes. Até os carros – apesar de não existir um trânsito de hora de ponta – se estavam amover mais devagar. Møller penteou o cabelo para trás com as mãos,um hábito de toda uma vida que a sua mulher dizia que ele devia per-der, agora que as pessoas poderiam desconfiar que estava a tapar a suacalvície incipiente. Não havia mesmo mais ninguém, para além deHarry? Møller observou um bêbedo a cambalear ao longo da Grøn-landsleiret. Calculou que se estivesse a dirigir para o Raven, mas nãoia conseguir ali uma bebida. Provavelmente iria acabar no Boxer. O lugar onde o caso Ellen Gjelten fora enfaticamente fechado. E tal-vez também a carreira de Harry Hole na força policial. Møller estavaa ser colocado sob pressão; em breve, teria de se decidir quanto ao quefazer com o problema de Harry. Mas isso era algo a longo prazo; agorao importante era aquele caso.

Møller levantou o auscultador e considerou por um momentoaquilo que estava prestes a fazer: colocar Harry Hole e Tom Waalerno mesmo caso. Aqueles períodos de férias eram um aborrecimento.O impulso elétrico iniciou a sua viagem a partir do monumento auma sociedade organizada, concebido por Telje, Torp & Aasen, e começou a tocar num lugar onde o caos reinava, num apartamentona avenida Sofies.

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Sexta-feira. O Despertar.

Ela voltou a gritar e Harry Hole abriu os olhos. O Sol brilhava por entre os cortinados que se moviam indolentes,

enquanto o som estridente de um elétrico a abrandar na Pilestredet sedesvanecia. Harry tentou recompor-se. Estava deitado no chão da suasala de estar. Vestido, embora não muito bem vestido. Na terra dosvivos, embora não completamente vivo.

O suor cobria-lhe o rosto como uma película pegajosa de maqui-lhagem, e ele sentiu o coração leve mas tenso, como uma bola deping-pong a bater num chão de cimento. Doía-lhe muito a cabeça.

Harry hesitou por um instante, antes de se decidir a continuar arespirar. O teto e as paredes giravam, e não havia um quadro nas pare-des ou uma luz no teto do apartamento ao qual o seu olhar não setivesse agarrado. A rodar na periferia da sua visão, encontrava-se umaestante IKEA, as costas de uma cadeira e uma mesa de centro verdeda Elevator. Pelo menos, escapara a mais sonhos.

Fora o pesadelo do costume. Colado no lugar, incapaz de se mover,tentara em vão fechar os olhos para evitar ver a boca dela, distorcidae aberta num grito silencioso. Os olhos enormes, a fixarem-no comuma acusação muda. Quando era jovem, fora a sua irmã mais nova,Sis. Agora era Ellen Gjelten. A princípio, os gritos tinham sido silen-ciosos, mas agora soavam a travões de aço a chiar. Harry não sabia oque era pior.

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Deixou-se ficar deitado, muito quieto, a ver por entre os cortinadoso Sol fervilhante, acima das ruas e pátios traseiros da Bislett. Apenas oelétrico quebrava a imobilidade de verão. Nem sequer pestanejou.Olhou para o Sol até este se transformar num coração dourado e pul-sante, a bater contra uma membrana fina, de um azul-leitoso, e abombear calor. Quando era pequeno, a mãe dissera-lhe que se ascrianças olhassem diretamente para o Sol este queimar-lhes-ia a visão,e elas ficariam com a luz do Sol dentro das suas cabeças durante oresto do dia e ao longo das suas vidas. A luz do Sol nas suas cabeças,que iria consumir tudo o resto. Como a imagem do crânio esmagadode Ellen na neve junto do Akerselva, com a sombra suspensa porcima. Durante três anos, ele tentara apanhar aquela sombra. Mas nãoo conseguira fazer.

Rakel…Harry levantou cautelosamente a cabeça e olhou para o olho negro,

sem vida, do atendedor de chamadas. Não havia vida nele desde asmuitas semanas que se tinham passado após a sua reunião com o chefeda Kripos, o CID2 norueguês, no Boxer. Presumivelmente tambémqueimado pelo Sol.

Merda, estava calor ali dentro! Rakel…Lembrava-se agora. A certa altura no sonho, o rosto alterara-se e

transformara-se no de Rakel. Sis, Ellen, a mãe, Rakel. Rostos de mulhe-res. Como se num único movimento constantemente pulsante, late-jante, eles se pudessem alterar e voltar a fundir.

Harry resmungou e deixou a cabeça voltar a cair no chão. Vislum-brou a garrafa, que se equilibrava na extremidade da mesa acima dele.Jim Beam de Clermont, Kentucky. O conteúdo desaparecera. Evapo-rara-se, vaporizara-se. Rakel. Fechou os olhos. Não restava nada.

Não fazia a mínima ideia das horas que eram, apenas sabia que eratarde. Ou cedo. O que quer que fosse, era o momento errado para

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2 Acrónimo de Criminal Investigation Departament, ramo pertencente à políciainglesa, ao qual pertencem os detetives à paisana. (N. da T.)

acordar tarde. Ou para ser mais exato, para estar a dormir. Devias estara fazer qualquer outra coisa, a esta hora do dia. Talvez beber.

Harry ajoelhou-se. Havia qualquer coisa a vibrar nas suas calças. Percebeu, naquele

momento, que fora aquilo que o acordara. Uma traça apanhada, a bater desesperadamente as asas. Enfiou a mão no bolso e tirou otelemóvel.

Harry dirigiu-se lentamente a St. Hanshaugen. A dor de cabeçalatejava-lhe atrás dos globos oculares. A morada que Møller lhe deraficava a curta distância. Salpicou o rosto com um pouco de água,bebeu a gota de uísque que restava numa garrafa que encontrou noarmário debaixo do lavatório e saiu, à espera que a caminhada lhedesanuviasse a cabeça. Passou pelo Underwater: Das 16h às 03h – segundas-feiras, das 16h à 01h – encerrado aos domingos. Aquelenão era um local que habitualmente frequentasse já que o seu rival,o Schrøder, se encontrava numa rua paralela à sua casa, mas comoacontecia com a maior parte dos bêbedos convictos, Harry tinha sem-pre um espaço vago no cérebro onde eram automaticamente armaze-nados os horários dos bares.

Sorriu ao seu reflexo nas montras sujas. Noutra altura.Ao chegar à esquina virou à direita, descendo a Ullevålsveien.

Harry não gostava de andar pela Ullevålsveien. Era uma rua para car-ros, não para peões. A melhor coisa que podia dizer a respeito da Ulle-vålsveien era que o passeio da direita proporcionava alguma sombra,em dias como aquele.

Harry parou em frente do prédio, cuja morada lhe tinham dado.Lançou-lhe um olhar rápido.

No piso térreo, havia uma lavandaria com máquinas de lavar ver-melhas. O letreiro na montra indicava que o horário era, diariamente,das 08h às 21h, e oferecia uma secagem de vinte minutos pelo preçoreduzido de 30 kroner. Uma mulher de pele escura, com um xaile,estava sentada ao lado de um tambor a rodar, a olhar para o ar. Ao

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lado da lavandaria encontrava-se uma montra com lápides, e maisabaixo, um néon verde exibia as palavras KEBAB HOUSE por cima de um snack-bar-mercearia. Os olhos de Harry vaguearam sobre afachada escura do edifício. A tinta das velhas armações das janelastinha estalado, mas as janelas de guilhotina do telhado sugeriam quetinham sido feitas obras no sótão, por cima dos quatro pisos originais.Uma câmara estava colocada sobre o recentemente instalado inter-comunicador, junto do portão de ferro enferrujado. O dinheiro da zonaelegante de Oslo estava a fluir lentamente, mas para a zona residen-cial. Tocou na campainha de cima, junto do nome de Camilla Loen.

– Sim – respondeu o intercomunicador.Møller avisara-o, mas, apesar disso, ficou surpreendido ao ouvir a

voz de Tom Waaler. Harry tentou responder, mas não conseguiu obri-gar as cordas vocais a emitir um único som. Tossiu e fez nova tenta-tiva.

– Hole. Abre.Ouviu-se um zumbido, e ele agarrou a maçaneta fria e rugosa de

ferro preto.– Olá.Harry virou-se.– Olá, Beate.Beate Lønn era um pouco mais baixa do que a média, com cabelo

louro-escuro e olhos azuis, sem ser atraente e sem deixar de o ser. Poroutras palavras, não havia nada de particularmente espantoso a res-peito de Beate Lønn, para além da sua roupa. Vestia um fato-macacobranco, que se parecia um pouco com um fato de astronauta.

Harry manteve o portão aberto, enquanto ela levava para o interiorduas enormes caixas metálicas.

– Acabaste de chegar?Tentou não respirar para cima dela, quando ela passou.– Não. Tive de voltar ao carro para ir buscar o resto das minhas coi-

sas. Já estamos aqui há meia hora. Magoaste-te?Harry passou um dedo pela crosta no nariz.– Parece que sim.

A Estrela do Diabo

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Seguiu-a através da porta seguinte, que conduzia à escadaria.– Que tal estão as coisas lá em cima?Beate pousou as caixas em frente da porta verde de um elevador,

ainda a olhar para ele.– Pensei que um dos teus princípios fosse ver primeiro e fazer per-

guntas depois – disse ela, premindo o botão do elevador.Harry assentiu. Beate Lønn pertencia àquela parte da raça

humana que se lembrava de tudo. Conseguia recitar pormenores decasos criminais que ele há muito esquecera, e muitos deles anterioresà sua entrada no Instituto da Polícia. A acrescentar a isso, tinha umfusiform gyrus invulgarmente bem desenvolvido – a parte do cérebroque se lembra de rostos. Fora testada, e os psicólogos ficaram espan-tados. Era mesmo sorte sua que ela se lembrasse do pouco que lheconseguira ensinar, quando trabalharam juntos na avalanche de assal-tos a bancos que varrera Oslo no ano anterior.

– Sim, gosto de estar tão aberto quanto possível às minhas primei-ras impressões da cena do crime – disse Harry, e deu um salto quandoo elevador iniciou a subida. Começou a vasculhar os bolsos à procurade cigarros. – Mas duvido que vá trabalhar neste caso em particular.

– Porque não?Harry não respondeu. Tirou do bolso esquerdo das calças um

maço amassado de Camel e do interior um cigarro amarfanhado. – Oh, sim, já me estou a lembrar. – Beate sorriu. – Esta primavera

disseste que ias de férias. Para a Normandia, não foi? Seu felizardo…Harry enfiou o cigarro entre os lábios. Sabia terrivelmente mal.

E também seria difícil que lhe melhorasse a dor de cabeça. Só haviauma coisa que o ajudaria. Lançou um olhar ao relógio. Segundas-fei-ras, das 16h à 01h.

– Não vai haver nenhuma Normandia – disse ele.– Oh?– Não, o motivo não é esse. É por ser ele a dirigir este caso.Harry puxou uma baforada profunda do cigarro e assentiu, a olhar

para cima. Ela lançou-lhe um olhar duro, prolongado.

Jo Nesbø

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