A Escuta Sensível Das Culturas Sonoras Na Infância
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A Escuta Sensível das Culturas Sonoras na Infância1
Dulcimarta Lemos Lino2 UFRGS
Resumo: O presente ensaio discutirá algumas das reflexões emergentes em minha pesquisa de doutorado em andamento. Ao situar-se no campo da Sociologia da Infância, essa investigação de tipo etnográfico, interessou-se em descrever e analisar o ponto de vista das crianças e os significados que a música tem em suas vidas, aí contemplados as trocas com pares, com adultos, com a mídia, com seus silêncios, com suas escutas. Ao compreender a complexa relação existente entre música, infância e educação esta pesquisa acompanhou a rotina de um grupo de Educação Infantil, escutando sensivelmente suas culturas sonoras através dos diferentes espaços acústicos da escola durante um ano. A emergência da canção disciplinar como etiqueta identitária de crenças e representações sociais da música na escola tem demonstrado que as crianças se apropriam desse discurso, experimentando com grande intensidade a improvisação como dinâmica do encontro com os mundos que se aventuram manipular, criar, compartilhar. As crianças “são música” (Campbell, 1998) e utilizam o som para movimentar o diálogo da comunicação humana.
Palavras-chave: Culturas sonoras; Infância; Música na escola.
Ao situar-se no campo da Sociologia da Infância, este trabalho de investigação
compreende que a infância é plural: infâncias. Por esta razão, considera a infância no âmbito
das estruturas sociais e do contexto particular nos quais se insere, importando-se com a
perspectiva da criança ao apreender suas culturas sonoras por intermédio da “escuta sensível”
(BARBIER, 1993) de suas ações. Nessa escuta, a sensibilidade à audição do não
determinado, este outro do nosso saber, de nosso poder, de nosso dominar ou produzir
emergem como potências do devir.
Caracterizada por uma transversalidade plural, Barbier (1990, 1993) afirma que a
escuta sensível pode ser entendia como uma
1 Trabalho apresentado no XVI Encontro Anual da ABEM e Congresso Regional da ISME na América Latina – 2007. 2 Dulcimarta Lemos Lino é doutoranda em Educação pela UFRGS, professora da UNISINOS, Universidade do Vale do Rio dos Sinos no curso de Pedagogia, tem uma escola de música: ‘Espaço de Criação Musical’ onde a tônica do trabalho é a composição no coletivo e lúdico processo pedagógico de comunicar-se com sons. Participa como pesquisadora do GEARTE (Grupo de Estudos em Educação e Arte da UFRGS) e do GEIN (Grupos de Estudos em Educação Infantil/UFRGS). [email protected]
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rede simbólica relativamente estruturada e estável, constituída como uma espécie de “banho de sentido” onde se misturam significações, referências, valores, mitos e símbolos internos e externos ao sujeito, no qual ele esta imerso e pelo qual sua vida assume um peso existencial. (BARBIER, 1993, p.188)
Sem pretender impor modelos de referência, nem procurar circunscrever um território,
a escuta sensível busca oferecer sentido (não impô-lo), sugerindo que nos deixemos
surpreender ludicamente por tudo aquilo que nos liga à vida. Por isso, a escuta sensível é
uma escuta multireferencial utilizada pelos pesquisadores como forma de mediação,
interferência e reflexão científica sempre que a infância é concebida como uma categoria
social.
Neste contexto, a infância deixa de ser uma experiência universal de qualquer duração
fixa, ditada pelo limite cronológico de idade, para incorporar uma construção que expresse as
diferenças individuais relativas à inserção de gênero, classe, etnia e história. Assim,
ser criança varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode variar no interior de uma mesma família e de acordo com a estratificação social. Do mesmo modo, varia a duração histórica e a definição institucional da infância dominante em cada época. (PINTO, 1997a, p.17)
Considerar as crianças ativas no meio social e cultural “implica o reconhecimento da
capacidade simbólica por parte delas e a constituição de suas representações e crenças em
sistemas organizados, isto é, em culturas” (PINTO,1997a,p.20). Negligenciar a voz das
crianças, seus testemunhos e suas valorações é subestimar sua capacidade de atribuir sentido.
Logo, qualquer interpretação da cultura infantil necessita “se sustentar nas análises das
condições sociais em que as crianças vivem, interagem e dão sentido ao que fazem” (PINTO,
loc.cit.).
Desta forma, o mais lógico seria compreender as crianças no contexto da multiplicidade
cultural (CAMPBELL, 2002, p.61), pois a “cultura das crianças é ampla, multivariada e
definitivamente plural” (CAMPBELL, 1998, p.184). Para além das demarcações dos estágios
do desenvolvimento cognitivo e dos métodos de aprendizagem propostos à educação na
infância, este momento deixa de ser o que precisa ser educado para ser o que educa (KOHAN,
2004, p.11). Como um tempo de potências, a infância abandona o lugar de não saber para,
devorando o mundo, ser, antes de tudo, condição da experiência humana (Ibid., p.54).
A investigação de Campbell (1998) sobre as culturas sonoras infantis tem pontuado essa
experiência humana, destacando os diferentes sistemas de crenças e representações sociais da
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música na escola. Segundo a autora, quando agrupadas, as crianças são consideradas
receptoras e promotoras de conhecimento cultural semelhante, através de experiências
semelhantes, sem homogeneizações (CAMPBELL, 2002, p.61). No entanto, ignorar a
monitoração reflexiva dos adultos sob a ação das crianças seria uma falácia. As ações infantis
são o resultado do produto dos processos de colonização dos respectivos mundos de vida dos
adultos, decorrente
do processo crescente de institucionalização da infância e de controle dos seus cotidianos pela escola, pelos “tempos livres” estruturados e pelas práticas familiares, e resulta da assimilação de informação e modos de apreensão do real veiculados pela mídia, ou por outros meios de disseminação da informação.(PINTO, 1997b, p.22)
Como adultos, responsáveis pela mediação escolar, torna-se prioritário que deixemos
de nos preocupar tanto em transformar as crianças em algo distinto do que são, para pensar se acaso não seria interessante uma escola que possibilitasse às crianças, mas também aos adultos, professores, gestores, orientadores, diretores, enfim, a quem seja, encontrar esses devires minoritários que não aspiram a imitar nada, a modelar nada, mas a interromper o que está dado e propiciar novos inícios. (...) Impregnados da intensidade criadora, (...) instaurar um espaço de encontro criador e transformador da inércia escolar repetidora do mesmo. (KOHAN, 2004, p.66)
Especialmente na música, a intensidade criadora proposta por KOHAN (2004) vêm
indicando que não podemos mais sustentar ou impor critérios universais para o ensino e a
aprendizagem musical. Isto porque, “as crianças pertencem a grandes e pequenos grupos
culturais sobrepondo um ao seu próximo e aprendendo a essência de cada um” (CAMPBELL,
2002, p.58). Ao reforçar a afirmação de Campbell (2004), Slobin (1993) lembra que as
microculturas e as micromúsicas contemplam várias realidades musicais das crianças. O autor
pontua que os mundos musicais infantis são muito ricos, um verdadeiro conglomerado de
estilos e influências plurais. Assim, não podemos entender as crianças como uma única
cultura; os deslocamentos da categoria infância emergem e, junto deles, a compreensão de
suas múltiplas narrativas no mundo, aí incluída as culturas sonoras como territórios plurais e
dinâmicos.
Neste sentido, a pluralidade do substantivo infância, também deve ser articulada
quando tentamos definir música. Blacking (1973) escreve “música é som organizado
humanamente. Wade sugere que levemos adiante essa afirmativa, lembrando-nos que
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música não é apenas uma coisa – uma categoria de som organizado ou composições- mas também um processo. Qualquer grupo conhecido de pessoas no mundo exercita a sua imaginação criativa de modo a organizar o som “de alguma maneira” que se diferencia daquela como organizam o som no discurso. (WADE, 2004, p.3)
Sendo um processo que exercita a imaginação criativa a música é compreendida como
uma construção social. Isto porque, “quando escutamos música não podemos separar
inteiramente nossas experiências dos seus significados inerentes de uma maior ou menor
consciência do contexto social que acompanha sua produção, distribuição ou recepção”
(GRENN, 1994, p.29). Ao se interessar pelos grupos sociais, suas relações com a organização
social da prática musical e os significados construídos neste espaço, Green (1994) assinala
que a construção social do significado musical acontece na experiência musical. Uma
experiência de sentidos no mundo, adquirida por cada indivíduo de forma fluída e individual,
acoplada aos significados históricos, aprendidos e artificiais, que acabam por definir gostos
preferências, repulsas, ambigüidades e símbolos de identidade singulares para cada um.
Portanto, a escola é apenas um dos espaços sonoros onde as crianças experimentam e
adquirem música. No entanto, ela “pode ser o órgão privilegiado” (DUBORGEL, [s/d], p.14)
que tem instituído uma sensibilidade aural que privilegia desde a primeira infância e para
todas as crianças formas gerais de audição, de estar na música, de fazer e consumi-la, ou seja,
“hábitos de subordinação e recalcamento, de exorcismo do ser imaginante pelo sujeito
positivo e de razão” (DUBORGEL, loc.cit.). A escola pode estar legitimizando um tipo de
música à medida que sistematicamente vem se fechando para as músicas que já estão com as
criança, porque vivem nelas.
A contribuição deste estudo se encontra no fato de que, ao relacionar Música, Infância e
Educação – substantivos plurais que, sem separar analiticamente dimensões constitutivas
destacam a inseparabilidade dos corpos na ação de conhecer- tenta escutar as interfaces
ocultas e unir os estudos até agora isolados em uma outra sinergia, tarefa só possível de ser
cumprida por educadores musicais que, dominando o discurso sonoro, não deixem seus
ouvidos simplesmente se encher pelos eventos acústicos social e culturalmente expostos no
ambiente escolar. Ao contrário, a partir de uma “escuta sensível” (BARBIER, 1993) têm a
audição como alicerce para o pensar investigativo. Como se expressam as culturas sonoras
infantis na escola? Até que ponto essas culturas escutam o silêncio, driblam o cardápio
escolar e destemporalizam a rotina musical para encontrar a singularidade?
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Ao conceber a complexidade do campo investigado e a multireferencialidade teórica aí
emergente, a abordagem de tipo etnográfica apareceu como a estratégia mais adaptada para
esta pesquisa, uma vez que permite reconstruir os processos e as relações que configuram as
culturas sonoras infantis. Acompanhei uma turma de crianças da Educação Infantil durante
um ano letivo, participando de sua rotina diária três vezes por semana, bem como das
atividades da escola durante o ano de 2006. Para a coleta de dados, utilizei as técnicas
etnográficas de descrição, realizando observação total dos sujeitos na escola, observação
participante, entrevistas-conversas, registro no diário de campo, gravações em áudio, vídeo,
fotos e transcrições discursivas e em notação musical das manifestações musicais. A análise
dos dados encontra-se em fase de interpretação, no entanto, me arrisco a tecer algumas
reflexões.
Boca Fechada, Orelha em Pé!
Boca fechada, orelha em pé pode resumir a condição de escuta que primeiramente
experimentei durante o ano de 2005 quando realizei o estudo piloto da presente investigação.
Literalmente fechei a boca para ouvir as crianças na sua paisagem sonora em diferentes
instituições de Educação Infantil. Um silêncio sempre “grávido de sons”, uma escuta como
experiência de pensamento em pleno movimento, buscando definir os critérios para a seleção
da escola investigada. Num primeiro momento, o som fundamental que ressoava pelos
espaços acústicos visitados concentrou-se nas canções disciplinares, esses cantos ritmados
com letra para constituir um só movimento. Geralmente executados por toda a classe, sob a
vocalização mais intensa das professoras, essas canções funcionavam como “ordens-signo,
sinais codificados sob os quais se deveria seguir uma resposta determinada, e somente uma”
(FANFINI, 2001, p.56).
Na rotina das escolas de Educação Infantil observadas, as canções disciplinares3
pareciam fazer parte de uma série de dispositivos que acabavam por inscrever possíveis ações
das crianças através dos diferentes espaços e tempos experimentados na escola, definindo o
proibido e o permitido, o correto e o incorreto. Assim, ao incorporar um lugar prioritário no
3 O termo canções disciplinares, também utilizado por Fucks (1991) como “musiquinhas de comando” quer significar as músicas com letra entoadas na escola para de forma camuflada exercer o controle da situação pedagógica, disfarçando o poder da instituição. Tais melodias podem vir reforçadas por gestos e/ou palavras no diminutivo. Ex: Guarda, guarda, guarda, bem guardadinho, quem guarda tudinho encontra tudo arrumadinho.
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tempo escolar, essas canções pareciam exercer “o papel de disfarçar o poder da instituição, já
que cantando ela não se sentia mandando” (FUCKS, 1991, p.68). Desta forma, a escola
parecia contribuir para retirar o controle de pensar ou de aprender a pensar através dos ritmos
singulares que habitam cada corpo.
Na escola selecionada como campo dessa investigação, as canções disciplinares também
apareciam para maximizar e otimizar o alcance de certos resultados que constituiam a
finalidade da “fábrica escolar” (FOUCAULT, 1999). Porém, a regularidade desta sistemática
parecia menos freqüente. De modo geral, as canções disciplinares normatizavam dois
momentos específicos da rotina escolar: a hora de guardar os brinquedos e a hora do segundo
lanche. Nas palavras de Foucault, a ação disciplinar exerce uma pressão modeladora para
formar indivíduos semelhantes, “se compra, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em
uma palavra, normaliza; (...) se estabelece a regularização dos procedimentos e dos produtos
industriais” (FOUCAULT, 1999, p.188-189). Ou melhor, engessa-se o eterno exercício de
criar e fabular próprios da infância (BACHELARD, 2001).
No desenrolar da coleta e análise dos dados (ainda em andamento) venho observando
que, a socialização e a comunicação entre as crianças toma as músicas e as sonoridades como
elementos de um primeiro contato, como um linguajar por todos entendido que
espontaneamente expressa lúdica e/ou metaforicamente uma narrativa. Ao pesquisar o ponto
de vista das crianças e o significado da música em suas vidas, constatei que as crianças “são
música (CAMPBELL, 2002, p.61); que “as crianças têm músicas em sua cabeça”
(CAMPBELL, 1998); que “natural e prontamente elas gravitam na música com uma
participação total, além de serem cativadas por ela” (CAMPBELL, 1998, p.169). As crianças
mostraram-se verdadeiros “musickers” (SMALL, 1994, p.54) e exigiram que eu fosse
construindo as palavras para escutar e descrever o exercício criativo compartilhado nessa
investigação.
Portanto, sempre improvisado e movido pelo diálogo da comunicação humana a ação
das crianças transformava o som num modo de narrar diferentes territórios que elas decidiam
explorar/criar, individual ou coletivamente. Talvez, ao compreender a heterogeneidade dessas
narrativas encarnadas nas culturas infantis, possamos compreender que no humano está o
ponto de encontro para a música, a infância e a educação, ou seja, “a procura de uma fronteira
constantemente deslocada” (BERIO, 1981, p.8), e aí, a capacidade de criar uma docência que
se arrisque a escutar sensivelmente as crianças, “aprendendo a apreender dos alunos o que
ensinar” (BRITO, 2001).
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Referências Bibliográficas
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