A Escrita Rizomática No Espaço Biográfico de Dina Sfat

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1 A ESCRITA RIZOMÁTICA NO ESPAÇO BIOGRÁFICO DE DINA SFAT: PALMAS PRA QUE TE QUERO Fabiana Patrícia Lima PINTO Universidade Federal de São João del-Rei [email protected] Resumo: Atualmente, há um crescente interesse acerca das biografias, autobiografias, diários, as chamadas escritas de si. Durante a modernidade, e como efeito do individualismo proposto pela revolução industrial e pela burguesia, as escritas de si começaram a ganhar espaço tanto na esfera particular quanto na pública. No entanto, a contemporaneidade e as ideias desconstrutivistas do final do século XX incentivaram a construção dessas escritas de uma forma diferente daquela a que se estava acostumado, fazendo-as fugir de regras fixas, e tornando-as mais abertas à heterogeneidade e à hibridez. A intenção deste trabalho é a de pesquisar sobre as questões que rodeiam as escritas de si como forma de arquivamento do eu na obra Dina Sfat: palmas pra que te quero, privilegiando o campo do espaço biográfico desenvolvido por Leonor Arfuch. Acrescenta-se ainda, a análise da escrita rizomática no objeto, tendo como fundamento o conceito de rizoma desenvolvido por Deleuze e Guattari. Dina Sfat: palmas pra que te quero é uma escrita de si construída por Dina Sfat em parceria com Mara Caballero, texto em que se encontram uma diversidade de gêneros textuais, além de ser uma escrita de si multi-autoral, heterogênea e fragmentada, podendo ser nomeada como um corpo sem órgãos. Palavras-chave: escritas de si, espaço biográfico, escrita rizomática. 1. Introdução É quase certo, que entre as últimas leituras mais dignas de nota, que confiamos o nosso tempo está no mínimo uma tipologia das escritas de si, cartas, biografias, autobiografias, diários, ou até mesmo uma autoficção. Este crescente interesse pela publicação de algo que até muito tempo ficou restrito ao espaço privado é também notável pelos constantes lançamentos de biografias de artistas, escritores, assim como estudos acadêmicos acerca de cartas, diários de nomes conhecidos da literatura, história, ou que possuem alguma forma de atuação na sociedade em que viveram. Dessa forma, observa-se uma avalanche crescente de arquivamentos do eu. Em Arquivar a própria vida, Philippe Artières constata que nos arquivamos para cumprir uma imposição social, uma obrigação, para assim sermos vistos como normais, pois o anormal é o sem-papéis. (ARTIÉRES, 1998, p.11). Portanto, diariamente e inconscientemente, nos arquivamos através de notas, cartas, bilhetes, diários, depoimentos, entrevistas. Com o passar do tempo, instituíram-se regras sobre o modo e o lugar onde essas formas de arquivamento se legitimariam. Por exemplo, conforme Philippe Lejeune (2008), um estudioso acerca da teorização da autobiografia e de outras escritas de si, uma autobiografia pressupõe que haja identidade de nome entre autor, narrador e a pessoa de Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.

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O texto aborda a questão da escrita de acordo com o conceito de rizoma em Deleuze e Guattari em uma obra de Sfat.

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1 A ESCRITA RIZOMTICA NO ESPAO BIOGRFICO DEDI NA SFAT: PALMAS PRA QUE TE QUERO Fabiana Patrcia Lima PINTO Universidade Federal de So Joo del-Rei [email protected] Resumo: Atualmente, h um crescente interesse acerca das biografias, autobiografias, dirios, as chamadas escritas de si. Durante a modernidade, e como efeito do individualismo proposto pela revoluo industrial e pela burguesia, as escritas de si comearam a ganhar espao tanto naesferaparticularquantonapblica.Noentanto,acontemporaneidadeeasideias desconstrutivistasdofinaldosculoXXincentivaramaconstruodessasescritasdeuma formadiferentedaquelaaqueseestavaacostumado,fazendo-asfugirderegrasfixas,e tornando-asmaisabertasheterogeneidadeehibridez.Aintenodestetrabalhoade pesquisar sobre as questes que rodeiam as escritas de si como forma de arquivamento do eu naobraDinaSfat:palmaspraquetequero,privilegiandoocampodoespaobiogrfico desenvolvidoporLeonorArfuch. Acrescenta-seainda,aanlisedaescritarizomticano objeto,tendocomofundamentooconceitoderizomadesenvolvidoporDeleuzeeGuattari. Dina Sfat: palmas pra que te quero uma escrita de si construda por Dina Sfat em parceria comMaraCaballero,textoemqueseencontramumadiversidadedegnerostextuais,alm de ser uma escrita de si multi-autoral, heterognea e fragmentada, podendo ser nomeada como um corpo sem rgos. Palavras-chave: escritas de si, espao biogrfico, escrita rizomtica. 1. Introduo quasecerto,queentreasltimasleiturasmaisdignasdenota,queconfiamoso nossotempoestnomnimoumatipologiadasescritasdesi,cartas,biografias, autobiografias,dirios,ouatmesmoumaautofico.Estecrescenteinteressepela publicaodealgoqueatmuitotempoficourestritoaoespaoprivadotambmnotvel pelosconstanteslanamentosdebiografiasdeartistas,escritores,assimcomoestudos acadmicosacercadecartas,diriosdenomesconhecidosdaliteratura,histria,ouque possuemalgumaformadeatuaonasociedadeemqueviveram.Dessaforma,observa-se uma avalanche crescente de arquivamentos do eu. EmArquivaraprpriavida,PhilippeArtiresconstataquenosarquivamospara cumprir uma imposio social, uma obrigao, para assim sermos vistos como normais, pois o anormalosem-papis.(ARTIRES,1998,p.11).Portanto,diariamentee inconscientemente,nosarquivamosatravsdenotas,cartas,bilhetes,dirios,depoimentos, entrevistas. Com o passar do tempo, instituram-se regras sobre o modo e o lugar onde essas formasdearquivamentoselegitimariam.Porexemplo,conformePhilippeLejeune(2008), umestudiosoacercadateorizaodaautobiografiaedeoutrasescritasdesi,uma autobiografiapressupequehajaidentidadedenomeentreautor,narradoreapessoade Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.2 quemsefala(p.24),eoquedefineaautobiografiaparaqueml,antesdetudo,um contratodeidentidadequeseladopelonomeprprio.(p.33).Sobreoefeitodessas determinaes, a autobiografia aquela escrita de si que exige que o biografado (pessoa que esttendoavidacontadanabiografia)sejaoprprioautor,equeestafazerum levantamento sobre a sua prpria existncia, sendo destemodo, nico responsvel pelo livro (p.28).Noentanto,nopresentecontexto,algumastransformaessignificativasso percebidas, o que gera uma evaso quanto essas regras de enquadramento conceitual. Primeiramente,observa-seumamudanadoespaodearquivamento,esse deslocamento do lugar natural da privacidade para o universo pblico tem vrias razes: a buscadeummarketingpessoal(casodebiografiasdecelebridades),deliberdade/libertao (casodedirioscomodeespaoparaoauto-exameeautocontrole),deaprendizado(atravs dastrocasdecartasentreescritores,amigos,parentes),deensinamento(casode autobiografias histricas), ou at mesmo, de uma mera especulao sobre a vida alheia. Dessa forma,asescritasdesisofreramslidastransformaessobreasuafunoeformatao duranteotempo,fugindodasregrasformais,queatentoeramnecessriasquefossem seguidasafimdeseenquadraremumanomenclaturadefinida.Porexemplo,noperodo moderno, com o desenvolvimento do individualismo embasado nas idias renascentistas e na construodeumasubjetividade,ohomempassouasevercomoumsujeitoautnomo, racional,dandoassim,valorizaosescritasdesi.permitida,nestemomento,a introspeco-abuscapelainterioridade-oquelevouaumaprticaconstantede autorreflexo sobre a experincia particular de cada um na forma de escrita. No entanto, a contemporaneidade e as ideias desconstrutivistas do final do sculo XX incentivaramaconstruodessasescritasdeumaformadiferentedaquelaaqueseestava acostumado,noasobrigandoaseguirregrasfixas,dando-asaoportunidadedeabertura heterogeneidade e hibridez. Com isso, uma das caractersticas constatadas a dificuldade de conceituao, visto que as ideias desconstrutivistas rejeitam o enquadramento institudo pelas regras logocntricas e etnocntricas do crculo europeu. Portanto, verifica-se a crescente ateno no somente s caractersticas definidoras de umatipologiadeescrita,massimdolocalemqueasvriasformassearticulamese modificam,criandoumambientenovoecaracterstico:oespaobiogrfico.nesseespao que convivem tanto as formas cannicas quanto as mltiplas maneiras de se expor e arquivar o eu na contemporaneidade. 2. O espao biogrfico em Dina Sfat: palmas pra que te quero PhilippeLejeune(2008)umdosprimeiropesquisadoresqueutilizaanomenclatura espao biogrfico.O uso que o autor faz dessa expresso vem atravs da conscientizao da dificuldadeemcertificaracoincidnciaentreasidentidadesdoautor,donarradoredo personagem.Assim,Lejeunepropeaideiadepacto(contrato)autobiogrfico,queacolhe tambm o leitor como partcipe da conceituao. Destemodo,oquepassaavaleraposturaqueoleitorirdesempenharfrenteao pacto,nessenvelglobalquesedefineautobiografia:tantoummododeleituraquanto umtipodeescrita,umefeitocontratualhistoricamentevivel.(LEJEUNE,2008,p.46). Para entender esse efeito, o autor esclarece: Esse efeito de relevo obtido por esse processo a criaoparaoleitor,deumespaobiogrfico.(2008,p.43).Assim,oleitorpassaatera responsabilidade de selar (ou no) o contrato de crena da veracidade entre as trs pessoas. Seguindo as discusses acerca das questes trazidas pelas escritas de si, contudo sobre um diferentefoco est aestudiosa argentinaLeonor Arfuch. A autora deEspao biogrfico: dilemasdasubjetividadecontemporneapropeumdiferenteolharsobreasescritasdesi: no conceitual e nem essencialmente identitrio( totalizante), mas atravs de uma construo Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.3 dialgicadevriasediferentesvozes,almdeobservarasescritasdesicomoabertase incompletas, privilegiando o espao articulador. por entre a incerteza da verdade dos fatos, trazida pela trade formao identitria de Lejeune, que Arfuch (2010) se apropria do termo lejeuniano e extrapola-o para alm de suas fronteiras, transformando-o em um espao, onde h confluncia de mltiplas formas, gneros e horizontes de expectativas (p.58). Dessa forma, o espao biogrfico se tornar um ambiente combinador,ondeseprivilegiaaheterogeneidade,permiteaconsideraodas especificidadesrespectivassemperderdevistasuadimensorelacional(p.59),almde evitaranoounificadoradeunidade.Assimsendo,oespaobiogrficoadquiremaior valorizao,almdeservistocomoummovimento,oumelhor,umamaneiradeabordaro fenmeno biogrfico - em termos qualitativamente diferentes. (p.65). Um dos suportes utilizados por Arfuch (2010) para fundamentar toda a anlise sobre o espaobiogrficoodialogismodeBakthin.Esseconceitoconfereprefernciaao enunciador,poisseacreditaqueestejdeterminadoporoutrasvozesnaturalmente (destinatrioimaginrio/previsvel,tradies,etc.),nopodendofalarparasis.Esse pensamentodeBakhtinaprofundadoatoconceitodeexotopia:ano-coincidnciaentre criador e criatura, ou seja, entre autor/narrador e personagem, mesmo em uma autobiografia. Conforme as palavras do autor: (...) a coincidncia entre o heri e o autor umacontradictio in adjecto, na medidaemqueoautorparteintegrantedotodoartsticoecomotalno poderia,dentrodessetodo,coincidircomoheriquetambmparte integrante dele.A coincidnciadepessoasna vida, entreapessoadeque se fala e a pessoa que fala, no elimina a distino existente dentro do todo artstico; e, de fato, pode-se formular a pergunta: como me represento a mim mesmo?Perguntaestaquesedistinguirdestaoutra:quemsou,noque particulariza o autor em sua relao com o heri. (BAKHTIN, 1997, p.166) Atravs dessa reflexo, percebe-se a existncia de uma diferena entre quem escrevee sobre quem se escreve, o que leva o autor para alm, ou melhor, frente do personagem/narrador, j que aquele ( o outro) o nico capaz de dar o devido acabamento sobre o personagem. por entre esse acabamento que se instala a ideia de alteridade entre tais pessoas: Oautor,claro,comoumelementoconstitutivodaobradearte,jamais coincidecomoheri:elessodois,sementrartodavianumarelaode oposio, j que o contexto de seus respectivos valores da mesma natureza; o portador da unidade da vida - o heri -, e o portador da unidade da forma - oautor-pertencemambosaummesmomundodevalores.(...)Ambos,o herieoautor, soosoutros,epertencemaummesmomundodevalores dos outros que serve de norma. (BAKHTIN, 1997, p. 179). Ao se utilizar desses conceitos de Bakthin, que do ideia de articulao e hibridizao, Arfuch (2010) privilegia no o contedo substancial da escrita de si, no a verdade factual, aquepodeserverificada,massimasformasestratgicasutilizadasparaconstruiruma narrativa de si. porentreasestratgiasdearquivamentodoeuqueanalisamosoespaobiogrfico de Dina Sfat: palmas pra que te quero. Obra construda em parceria entre a atriz Dina Sfat e a jornalista Mara Caballero como um objeto reativo contra a descoberta de um cncer de mama.Como exemplo de uma obra ps-moderna, que evita o enquadramento em conceitos, a obracolecionaemseuespaoumavastadiversidadedegnerostextuais,partindodos momentos biografados por Mara sobre Dina (entrevistas), de Dina sobre si mesma (dirio), de curtosrelatosprpriosdeMara(escritabiogrfica),cartasremetidasedestinadasaDina,Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.4 depoimentosenotassobreela,almdefotosepsteresdepeas.porentreesseespao diversificadodevozes,deautores,depersonagens,quesearquivamvriasDinasem momentosdiferentes,porarquivistasdiferentes,equeposteriormentesofremum deslocamentodoseuprimeirolugar,paraformarumarquivopblicoemmultiplicidades.A estratgia utilizada pelas autoras parecida com a descrio utilizada por talo Calvino sobre a escrita do mundo no final do sculo XX: Quanto ao nosso mundo cotidiano, parece estar escrito mais num mosaico de lnguas, como uma parede coberta de grafites, cheia de rabiscos sobrepostos, comoumpalimpsestocujopergaminhofoiraspadoereescrito,como colagem de Schwitter, uma combinao de alfabetos, citaes heterogneas, grias e impresses de computadores. (CALVINO, 1998, p.145).

Em Dina Sfat: palmas pra que te quero h a materializao da impossibilidade que se disfaranasclssicastipologiasdeescritadesi,aincapacidadedecontaravidacomoela ocorreu, como uma forma constante de associao de fatos subsequentes e sujeitos coerentes. Dina Sfat: palmas pra que te quero a imagem da fragmentao do sujeito, da sua constante relao e articulao com seus e com outros fragmentos, a fim de construir subjetividades, j que no somos nicos,mas mltiplos e fragmentados. Dessa forma,Sfat define a motivao pela escrita do dirio: O desejo de escrever acabou vindo hoje de forma mais sria. Como um compromisso de ir guardando os meus pedaos para um dia junt-los e perceber o todo quesou.(CABALLERO;SFAT,1988,p.52)Naobra,asautoras(ambasassinamolivro, cabendo a Sfat a dedicao e a Mara os agradecimentos) no se preocupam nem se prendem ilusobiogrficadacronologiaedaunidade,pelocontrrio,doespaodesordem. ParecematseguiraregraqueRolandBarthes(2003)sugereemsuaescritadesiporquea incoerncia prefervel ordem que deforma (p.108).Para Barthes (2003) o que torna a vida inteligvel no o seu todo, nem a durao, mas sim os seus fragmentos, e estes valem por si s e no se ajustam a uma ordem, a uma genealogia. Outra caracterstica presente na obra de Sfat e Caballero o dilogo. Embora saibamos do carter constitutivo da linguagem - o dialogismo bakhtiniano-, o dilogo que se apresenta entrecadaautoraeoleitor,mesmoquesepercebamrastrosdeumaentrevista(sinaisde travesso), em nenhum momento fica sugerido que h um dilogo explcito entre elas.Inicialmente,otextoseconstricomoumaentrevista,masumaentrevistadiferente. Neste espao, no h perguntas e respostas, Caballero no pergunta nada para Sfat, nem muito menos Sfat responde para Caballero, no entanto, ambas falam, narram fatos e histrias de uma forma articulada para o leitor. Este , assim, um partcipe da obra, tem toda a sua importncia, ,naverdade,osuplemento1daobra,oexcesso,acarncia,oqueestdeforaeaomesmo tempo,dedentro.Assim,oleitor(eoseuprocessodeleitura)vivepelahesitaode interpretaes,buscandoeadicionandoobservaesespecficas,queforamcriadaspelo prprio processo de leitura, pelo leitor e pelo espao biogrfico utilizado.Nota-seaimportncianoespaobiogrficodeDinaSfat:palmaspraquetequero, pois atravs dessa coleo de gneros distintos, de heterogeneidades, de hibridizaes que ocorretambmasuplementaointerpretativa,levandooleitoraencontrarasvriasDinas porentreasmultiplicidadesdegnerostextuais.porentreaarticulaonoespao biogrficocriadopelasautorasquepodemosperceberafragmentao,amovimentaoea multiplicidadedosujeito,quesodesprezadas,muitasvezes,pelasregrasconceituais institudas na modernidade, j que se preocupavam com a busca de uma essncia.

1OconceitodesuplementoaquientendidoodesenvolvidoporJacquesDerrida.ConformeoGlossriode Derrida,suplementoumaadio,umsignificantedisponvelqueseacrescentaparasubstituiresupriruma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que preciso. (SANTIAGO, 1976, p.88). Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.5 3. Dina Sfat: palmas pra que te quero como um rizoma

Dentrodaperspectivadasmultiplicidades,deextremarelevnciamencionaro conceitoderizomadesenvolvidoporGillesDeleuzeeFlixGuattari.EmMilPlats- Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari constroem o conceito de multiplicidades, que vaialmdobinarismounoxmltiplo,noseapoiandonemnaideiadonaturalenemdo transcendente.Noprefcioparaaedioitaliana,osautoresesclarecemqueas multiplicidadessoaprpriarealidade,enosupemnenhumaunidade,noentramem nenhumatotalidadeetampoucoremetemaumsujeito.(DELEUZE;GUATTARI,2009a,p. 8).ApropostadeDeleuzeeGuattari(2009a)sobreolivroficaexplcitanaintroduodo volumeumdaediobrasileira.Ambosacolhemolivrocomoumorganismoaberto, articulador,ouseja,umagenciamentodeexterioridades,eassimelesdeclaram:Numlivro, comoemqualqueroutracoisa,hlinhasdearticulaoousegmentaridade,estratos, territorialidades,mastambmlinhasdefuga,movimentosdedesterritorializaoe desestratificao.(p.11).EmaisadianteconcluemUmlivroexisteapenaspeloenofora (p.12).Ao reverenciar o fora, Deleuze e Guattari (2009a) elaboram a ideia do livro como um sistemaabertodeagenciamentos,deinfinitaspossibilidadesdeinterpretao-atravsde penetraes,fugasetc.-,ouseja,naimagemdorizoma.Comoefeitodessavalorizao,o leitor ganha novamente destaque como partcipe da obra. As multiplicidades permanecem sempre constantes no ato literrio (escrita e leitura), desde a produo at a interpretao. No livro, Deleuze e Guattari (2009a) fazem um trabalho emparceria,emmultiplicidades:Comocadaumdenseravrios,jeramuitagente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais prximo e o mais distante. (p.11). No entanto, mesmosenofosseumaproduoemcolaborao,jseriamltiplo,poisdeacordocoma ideia desenvolvida por eles, ningum uno, completo, fechado, mas sim vrios.Alm disso, aproduofinal,nuncaacabada,elafeitaparaofora,esomenteestedevedaro acabamento que lhe convm, ou seja, o leitor, que tambm carrega a ideia das multiplicidades.Interessante notar que o mesmo acontece em Dina Sfat: palmas pra que te quero, construda emcolaborao,totalmenteabertaeconstitudadelinhasdefuga,oquepossibilitaqueo prprio leitor construa o seu livro no seu processo de leitura. Aescritarizomticadetermina-seseguindoalgunsprincpios,etodosestesso encontradosnaobradeSfateCaballero.Osdoisprimeirossoaconectividade-qualquer pontodeumrizomapodeserconectadoaqualqueroutroedeves-lo(DELEUZE; GUATTARI,2009a,p.15)-eaheterogeneidade.Assimseapresentaolivroanalisado,uma escritacompostadegnerostextuaisheterogneos(cartas,fotografias,partesdedirios, comentriosemrevistasejornais,dentreoutras),queseconectamemmomentosdistintos, no seguindo uma regularidade, ou uma separao por gneros textuais, chegando a ser uma desordemaosolharesorganizadosdamodernidade.Porexemplo:dirioscortadospor fotografiasepsterdepea(CABALLERO;SFAT,1988,p.80-89),fragmentosde entrevistas de Dina Sfat e Paulo Jos entre a escrita de Caballero e os discursos de Dina Sfat, (CABALLERO;SFAT,1988,p.153-159),bilhetescoladosempartesdodirio (CABALLERO; SFAT, 1988, p. 90-91), dentre outras conexes diversas. Amultiplicidade,oterceiroprincpiopostuladoporDeleuzeeGuattari(2009a) definidocomoUmamultiplicidadenotemnemsujeitonemobjeto,massomente determinaes,grandezas,dimenses(p.16).OmesmoseencontranaobradeSfate Caballero,jqueavastadiversidadedegnerostextuaisfazcomqueseexcluaqualquer tentativa de unificao do sujeito Dina Sfate doobjetoDina Sfat: palmas pra que te quero. Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.6 Almdisso,nohnenhumatentativadehierarquizaodeumatipologiatextualsobrea outra, pois a multiplicidade se constri a partir do fora, e no na construo da obra em si. O quarto princpio denominado pelos autores como ruptura a-significante, ou seja, Umrizomapodeserrompido,quebradoemumlugarqualquer,etambm retomasegundoumaououtradesuaslinhasesegundooutraslinhas.(...) Todorizomacompreendelinhasdesegmentaridadesegundoasquaisele estratificado,territorializado,organizado,significado,atribudo,etc.;mas compreendetambmlinhasdedesterritorializaopelasquaiselefogesem parar. (DELEUZE; GUATTARI, 2009a, p.18). O prprio livro Mil Plats construdo dessa maneira, a leitura pode ser iniciada por qualquer captulodequalquervolume.Inexisteumaobrigaosequencialasercumpridacoma finalidade de atingir uma unidade compreensiva final.Assim tambm o livro em questo, a construo rizomtica permite que o leitor escolha um captulo qualquer da obra e faa a sua leitura,equeassimcontinue,nooobrigandoaestabelecerumaaodeterminadae ordenada,poisaprpriaescritadesideSfatcomacolaboraodeCaballero antigenealgica, fugindo sempre da imagem una da rvore.DeleuzeeGuattari(2009a)concluempostulandoosdoisltimosprincpios: cartografia e decalcomia. De acordo com os autores, um rizoma no deve seguir um padro de estruturanemdeproduo.(p.21).Comisso,nosedevefazerumdecalque,oumelhor, reproduzirtalequalummodelo,massimfazerummapa(p.22),poisomapaconstrudo conformeaspossibilidadesenecessidades,almdeserabertoeconstrudo,desconstrudoe reconstrudo, nunca objetivando um construto final igual aos demais. Caballero e Sfat (1988) tambm conseguem essa originalidade, pois fogem do modelo tradicional das escritas de si, a biografiaouautobiografiaclssicas,dispondodeformanomodelardiversosfragmentos distintosdeDinaSfat,depoimentosdepersonalidades,recortesvariados.Tudoissofeito com intuito de no totalizao e unificao de uma nica imagem representativa de Dina Sfat, mas sim de vrias Dinas.Outracaractersticarizomticapresentenolivroocompromissosomentecomo meio, um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,intermezzo(DELEUZE;GUATTARI,2009a,p.37).Asautorasnose comprometeramemcriaremodelaroselementosdaorigemedefinalidade,pelocontrrio, quandodestacamagnese,fazemdeformaquenovalorizeaimagemdeDinaSfat,mas atravsdeumpasseiopelosantepassadoseirmos,semprevalorizandoasmultiplicidadese no a uma imagem de Dina Sfat. inegvel,dessaforma,apresenadaescritarizomticanaobraanalisada,uma escritaquesedeterminapelaanulaodopensamentounvocoemodelar,atravsdeum mapeamentoexperimentalemtornodevariedadestextuais,contribuindo paraumaexpanso das multiplicidades das Dinas. por entre as multiplicidades de possibilidades que associamos Dina Sfat: palmas pra quetequerocomocorposemrgos(CsO)deDeleuzeeGuattari.Emboraessa denominao de CsO no tenha partido dos autores (mas so eles que transformam o conceito em prtica), e sim do poeta e dramaturgo francs Antonin Artaud ao declarar: sequiserem,podemmeter-menumacamisadeforamasnoexistecoisa mais intil que um rgo. Quando tiverem conseguido um corpo sem rgos entooterolibertadodosseusautomatismosedevolvidosuaverdadeira liberdade. (ARTAUD, 1983, p.161). DeleuzeeGuattari(2009b)estabelecemanecessidadedecriarcorpossemrgos, corposquesesoltemdasregrasmoldadaseforadasinstitucionalmente,bemcomousufruir Anais do SILEL. Volume 2, Nmero 2. Uberlndia: EDUFU, 2011.7 depossibilidadesdiferentes.assimqueseascendeaideiadebagunarosrgos,de destruir os limites e as regras j solidificadas, transformando o corpo em um anarquista, pois segundo Deleuze e Guattari (2009b)o CsO no se ope aos rgos, mas, com seus rgos verdadeiros que devem ser compostos e colocados, ele se ope ao organismo, organizao orgnica dos rgos. (p. 21). Assim tambm foi construda a obra em destaque, um trabalho que se desvinculou das amarras do logocentrismo ditatorial da modernidade, e se estabeleceu comoumacoleoabertamultiplicidades,parcerias,sdesterritorializaese reterritorializaes, assim comoum CsO: Eisentooqueserianecessriofazer:instalar-sesobreumestrato, experimentarasoportunidadesqueelenosoferece,buscaraumlugar favorvel,eventuaismovimentosdedesterritorializao,linhasdefuga possveis,vivenci-las,asseguraraquiealiconjunesdefluxos, experimentarsegmentoporsegmentodoscontnuosdeintensidades,ter sempreumpequenopedaodeumanovaterra.(DELEUZE;GUATARRI, 2009b, p.24). 4. Consideraes Finais OquepodemosdepreenderdaanlisedeDinaSfat:palmaspraquetequeroa relevnciaemanalisaroespaodeconstruodassubjetividades,apoiando-senasvrias formas, na articulao entre elas, cedendo ao leitor uma tarefa importante no ato literrio, o de suplemento.Issoconcretizadoconformeoentendimentodaobracomoumobjetoaberto, incompleto e feito para o fora. interessanteobservarqueaarticulaoentreosfragmentosdiversosnoespao biogrfico permite a montagem das vrias subjetividades de Dina Sfat, alm de se esquivar do esteretipodeunidadequeasformasclssicasestoacostumadasaconstruir.Atravsdessa fragmentaoexemplifica-seaimpossibilidadedeunificaodeumavida,bemcomoa conscientizao das multiplicidades de cada um, consigo mesmo e em articulao com outro. Assimaescritadesiseconcretizanafiguradeumrizoma,poiscomoafirmaPhilippe Lejeune:Somossemprevriosquandoescrevemos,mesmosozinhos,mesmonossaprpria vida. (LEJEUNE, 2008, p. 118). 5. 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