A Escrita Armorial como manifestação cultural a partir da perspectiva de Ernest Cassirer
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
CURSO DE FILOSOFIA
FAUSTINO DOS SANTOS
JOSÉ REINALDO GOMES DE LIMA
A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO
CULTURAL
A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER
RECIFE-PE
MAIO/2013
FAUSTINO DOS SANTOS
JOSÉ REINALDO GOMES DE LIMA
A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO
CULTURAL
A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER
Trabalho apresentado pelos alunos citados acima sob orientação da professora Martha Perusi como requisito avaliativo para a disciplina de Filosofia da Cultura do curso de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
RECIFE-PE
MAIO/2013
A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL
A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER
A arte é assim, um acerto de contas com a realidade.
ARIANO SUASSUNA
1 INTENCIONALIDADE DO MOVIMENTO ARMORIAL
Com a pretensão de criar um movimento que destaque uma arte
genuinamente brasileira como erudita a partir dos elementos populares,
fazendo assim uma mistura do que é clássico do Brasil e do seu popular,
Ariano Suassuna inicia na década de setenta o Movimento Armorial1. Esse
movimento quer dar ênfase a peculiaridade artística do Brasil que com o
passar dos tempos foi-se perdendo, dando lugar a cultura de massa.
São vários aspectos que podem ser elencados como prioritários
para se chegar ao conceito de armorial, como afirma Francisco Beltrão do
Valle em “As Relações entre o Designer e o Armorial de Suassuna”, além
das músicas do Quinteto Armorial, das pinturas e gravuras de artistas
como Francisco Brennand e Gilvan Samico, existem outros elementos
vitais que se somam na construção do conceito referido, como por
exemplo, a “sinalização sertaneja manifestada nos ferros de marcar boi
1 Termo que significa Livro de Brasões ou com conotação dos esmaltes da arte que descreve os brasões (Heráldica). É utilizado esse termo porque são as cores e a peculiaridade escrita do brasão que será responsável por dar destaque e representar referida família ou linhagem, governo, algum indivíduo, etc. A arte Heráldica tem sua origem no século XII e segundo Mollerup (1997) (apud Francisco Beltrão do Valle em “As Relações entre o Designer e o Armorial de Suassuna) “as marcas heráldicas foram usadas pela primeira vez por cruzados que atenderam o chamado Papal em 1095 para participar das cruzadas (1096-1270) lutando contra os muçulmanos na Palestina. [...] as marcas heráldicas nas roupas, escudos e bandeiras ajudavam os cruzados a se conhecer”.
do sertão nordestino” (VALLE, 2008 p. 59), e é sobre esse elemento que
mais a frente debruçaremos.
Suassuna em “O Movimento Armorial” afirmando a abrangência do
termo Armorial no aspecto musical afirma:
Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os cantares do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa música barroca do século XVIII. (SUASSUNA, 1974 p. 9)
Contudo outros aspectos são considerados, na popularidade do Brasil a
fora, como heráldicas não oficiais:
[...] tanto pelos ferros de marcar boi como emblemas dos clubes de futebol; passando também pelas bandeiras das cavalhadas (onde o cordão azul representa os cristãos e o cordão vermelho os mouros), ou ainda pelos estandartes dos maracatus; dos caboclinhos e das escolas de samba. (VALLE, 2008 p.59)
Muito embora haja alguns relatos sobre com que influência esse
movimento surgiu e quais desacordos travou, como, por exemplo, a
contraposição ao Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil e do
Mangue Beach de Chico Sience, que de alguma forma projetam uma
cultura alargada a referenciais internacionais, incutidos por aspectos
massificadores, Ariano com esse movimento privilegia o Nordeste do
Brasil como o local da resistência a cultura massificadora, àquela que
preserva fortemente as raízes culturais do Brasil. É no interior , segundo
o dramaturgo que se preservam os costumes, é lá que as mudanças
acontecem lentamente, são nesses locais onde se pode buscar as raízes
da cultura nacional. É nesse espaço onde se têm a autenticidade, a partir
da experiência do povo, que embora sofrido, possui uma expressão
cultural original. É o que Maria Thereza Didier de Moraes no seu livro
“Emblemas da Sagração Armorial” afirma: “A autenticidade é, assim,
associada à espontaneidade do povo, o que formaliza uma distinção entre
o caráter intuitivo da cultura popular e o caráter reflexivo da cultura
letrada” (MORAES, 2000 p. 71). Tudo isso pra dizer que é taxativa a
proposta armorial de se criar uma cultura genuinamente brasileira a
partir das raízes populares nacionais unindo o tradicional oral e o popular
escrito pela reflexão das características do povo brasileiro, seus valores,
atitudes e crenças.
2 OS TIPOS DE ARTES ARMORIAIS: A ESCRITA ARMORIAL
É lúcida a intensão de Suassuna ao criar esse movimento. Embora
para o público que acompanha suas Aulas Espetáculos2 perceba que há a
predominância do aspecto musical, que é marca presente desde o início
do movimento, outras expressões culturais também fazem parte desse
acervo graças ao esforço e empenho de grandes artistas que já são
realidade. Quanto a isso Suassuna diz:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música da viola, rabeca ou pífano que acompanha os “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1974 p.7)
Aquilo que antes era sonho como a dança, teatro, artesanato,
monumentos artísticos já começam a dar sinal de vida. Mas é verdade
que a intenção de Suassuna é que essa arte não seja restrita, mas que
seja geral.
É nesse contexto que cabe ressaltar a quão importante se tornou
para Suassuna o estudo e busca pelos ferros de marcar rês. Valle aponta
que o interesse de Suassuna pelas marcas de gado sertanejas surge
desde muito cedo, contudo, seu interesse por esse tema desperta quando
em 1943 ele lê um livro de Gustavo Barroso que tratava dos ferros. Assim
como as outras manifestações culturais, os ferros de marcar boi são
importantíssimos para a construção conceitual de Armorial; s os ferros
2 As Aulas públicas de Suassuna é uma mistura de música, poesia, dança e histórias regionais que fazem delas verdadeiros espetáculos armoriais.
são manifestações heráldicas que poderiam servir para consolidar a
referência visual do movimento.
Os ferros de marcar, remontando a antiguidade dos egípcios,
gregos e romanos chegaram ao Brasil com os povos colonizadores,
contudo é provável que em cada lugar para onde se difundiu essa prática,
as manifestações e técnicas podem ter sido distintas. A função dos ferros
de marcar, segundo Valle, é a seguinte:
Fundamentalmente, as marcas de gado são sinais de propriedade que têm a função de localizar o proprietário da rês. Com o tempo e de modo natural, estas marcas passaram a representar muito mais que um símbolo de propriedade e modo de identificação de gados ou objetos pessoais, tornando-se parte da cultura sertaneja por suas características heráldicas e de designer popular. (VALLE, 2008 p.102)
A partir de alguns estudos se apontou por Maia (2004) (apud Valle,
2008 p. 102) que nem sempre os ferros de marcar possuíam letras, uma
vez que nem todos os ferradores eram letrados, e, portanto, se utilizavam
de pinturas rupestres, de algum símbolo zodiacal, ou ainda de alguma
outra figura. E é isso que se constata no estudo de Suassuna: ele
[...] encontrou semelhanças entre “as formas meio hieroglificas dos ferros sertanejos mais abstratos” e determinados signos ligados à astrologia, ao zodíaco e à alquimia; e sugere que alguns dos primeiros fazendeiros podem ter escolhido para seus ferros os símbolos astrológicos de seus signos e plantas pessoais, além de grafismos rupestres, abundantes no Nordeste brasileiro. (VALLE, 2008 p.106)
Ariano Suassuna diz ser Gustavo Barroso o primeiro escritor do
Brasil a apontar essa prática de marcar gado para identificação como
sendo heráldica. Motivado com esse estudo Suassuna afirma que as
“mesas” que são os elementos identitários dos ferros, são aproveitados
pelos demais familiares, sendo diferenciados por algum elemento que se
acrescenta (divisas); com isso se cria uma heráldica não oficial.
Segundo Suassuna (1974a) (apud Valle, 2008 p. 105) “a
manifestação cultural dos ferros, confere ao sertanejo a glória de uma
linhagem quase nobre, correspondendo assim a uma verdadeira heráldica
popular”.
É a partir desse aspecto que Suassuna pensou dentro do aspecto do
movimento armorial um Alfabeto sertanejo, baseado, sobretudo, nos
ferros de marcar do cariri paraibano onde ele constatou que as marcas
continham as “iniciais de nomes próprios ou familiares dos proprietários
das marcas” (VALLE, 2008 p.106). É o ideal do movimento que prevalece:
“realizou uma construção erudita a partir de fontes populares [...] o fez
utilizando-se de elementos da cultura tradicional de herança ibérica,
incluindo elementos de culturas brasileiras anteriores à chegada dos
colonizadores portugueses, que é o caso da pintura rupestre” (VALLE,
2008 p.107)
Embora seja de difícil leitura, caso se escreva um texto corrido com
seus caracteres maiúsculos e minúsculos, o alfabeto sertanejo, que
caracteriza a escrita armorial, normalmente, se aplicada em títulos ou
textos curtos, por exemplo, podem ser lidos tranquilamente.
A construção do alfabeto sertanejo é cercada de grande simbologia
e significação desde as partes que compõem as letras, com suas hastes e
troncos, fazendo menção ao sagrado e/ou profano, que são a maior
predominância quando se analisa sua estrutura ou representando
elementos e forças da natureza, e alguns outros significados. Quanto a
representação dos ferros afirma Valle na sua tese “As Relações entre
Designer e o Armorial de Suassuna”:
Uma virtude do Alfabeto Sertanejo se encontra na variedade de formas encontradas nos ferros incluídas no projeto: é notável o desejo de Suassuna em representar e abranger uma ampla variedade de formas características dessa manifestação cultural na elaboração do desenho de seus caracteres. (VALLE, 2008 p.109)
Nessas representações alguns símbolos que se relacionam com
Flor, Cruz, Lua, Balança, Galho, Tronco e outros, possuem significados
específicos, como já descritos acima. Além desses elementos que de
alguma forma se somam ao Alfabeto Sertanejo Primitivo3, outras fontes
baseadas na inspiração armorial dos ferros de marcar se desenvolveram.
Logo que o alfabeto armorial de Suassuna se tornou conhecido por
alguns designers, (a saber Ricardo Gouveia de Melo, Giovana Caldas e
Klesley Bastos) houve um interesse da parte deles para criar uma
tipografia digital, e como já apresentado, havendo o problema da
legibilidade quando em texto longo, a escrita armorial gráfica sofreu
algumas alterações e se tornou a Tipografia Armorial. Mas não para por
aí, a ideia de Suassuna de criar esse alfabeto a partir dos ferros de
marcar se alargou e logo depois vieram os Armoriabats baseados nos
ferros de marcar (que se afastam um pouco da ideia primitiva) e os
dingbats armoriais que se baseiam nas xilogravuras populares e eruditas.
Ainda surgiram fontes tipográficas de Virgílio Maia baseados nos ferros
de marcar cearenses e fonte Sertões que se baseiam na obra de Euclides
da Cunha e fazem referência aos mandacarus que resistem ao semiárido
nordestino e que representam a resistência.
Muito embora agente não queira adentrar nas questões das
variações que irromperam ao longo dos anos a partir da iniciação de
Ariano a escrita sertaneja, é importante dizer que elas são importantes
porque dão visibilidade ao rosto popular e erudito que é marca original
da nação.
Entenderemos agora, antes de fazer o paralelo um pouco do
pensamento simbólico de Cassirer a fim de mais adiante traçarmos um
olhar dele sobre o que até agora escrevemos.
3 O SIMBÓLICO DE ERNEST CASSIRER
Naturalmente se constata na vida em geral elementos biológicos e
físicos, e tanto o homem quanto todos os organismos, do menor ao maior,
possuem, segundo Ernest Cassirer, além de estruturas de adaptação ao
ambiente, sistemas de recepção e efetivação. Nas palavras do autor:
3 Apontamos como primitivo o Alfabeto que foi desenhado manualmente por Ariano Suassuna com intenção de uso pessoal, muito embora depois tenha ocorrido o caso de esse tipo de escrita ser elevado a parâmetros de computação gráfica para acessibilidade do público, como se ver em seguida no texto.
Cada organismo, mesmo os mais simples, não está apenas, em um sentido vago, adaptado [...] como também inteiramente ajustado [...] ao seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, ele possui [...] um sistema receptor e um sistema efeituador. (CASSIRER, 2005 pp. 46-47)
Esses são elementares para a sobrevivência dos organismos vivos.
Contudo a diferença que existe entre os demais organismos e o homem é
que ele possui um universo além de quantitativamente maior,
qualitativamente também, “o homem descobriu, por assim dizer, um novo
método para adaptar-se ao seu ambiente [...] observamos no homem um
terceiro elemento elo que podemos descrever como o sistema simbólico”
(CASSIRER, 2005 p. 47), e aí reside toda a diferença pelas razões mais
diversas: com o símbolo o homem passa a viver não somente numa
realidade diversa, mas numa nova realidade, ele passa a agir e responder
aos estímulos do ambiente reflexivamente sem o impulso instintivo, o seu
mundo é simbólico pela presença da linguagem, a religião, o mito, a arte;
o homem passa a se relacionar, antes que com as coisas, com os símbolos
das coisas que existem em si, ele vive pelas imagens e fantasias que criou
em si sobre as coisas.
Cabe diante dessas questões, dizer que a vida do homem não é
natural, mas superficial, como exposto, vivendo por meio do símbolo o
homem se esquece do instinto, ou seja, com a presença do simbólico a
realidade física recua. Mas o parêntese que se abre é na justificativa de
que para se conhecer a característica da humanidade é preciso conhecer
a estrutura do trabalho que, por sua vez define o homem.
São muitas as teorias que definem tentam definir o homem, seja
pela política, economia, cultura, enfim, mas Cassirer aponta que sua
filosofia do simbólico não tem pretensão de destronar cada uma delas,
mas de complementá-las, pois não adianta definir o homem pelo seu físico
ou pela sua essência metafísica, mas pelo seu trabalho. Afirma Cassirer:
Não foi concebido para abolir, mas para complementar as visões anteriores. A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definição da natureza ou “essência” do homem, tal definição só poderá ser entendida como funcional e não substancial. Não podemos definir o homem com base em qualquer princípio
inerente a sua essência metafísica – nem [...] por qualquer faculdade ou instinto [...] verificado pela observação empírica. [...] sua marca distintiva não é a sua natureza metafísica ou física, mas o seu trabalho. É esse trabalho que define e determina o círculo da “humanidade” (CASSIRER, 2005 pp. 114-115)
Em outros termos, como afirma o referido autor, se busca com isso
não um emaranhado de efeitos, mas as ações do homem que são o seu
processo criativo.
A distinção existente entre o é que o Símbolo e o Sinal se faz
importante desde já a fim de que mais adiante possamos relacioná-la com
o estudo do alfabeto sertanejo, portanto, o Símbolo possui pretensão
universal e de interpretação variável, ou seja, independente dos sentidos
humanos o símbolo ele tem o poder de significação na vida humana, ele
dá acesso ao mundo do homem por meio do seu pensamento, ainda é
variável porque não se restringe a um caso particular de pensar o símbolo
e por essa razão é distinta do sinal que é inequívoco, que é conhecido
dentro da sua estreiteza e reconhecido por qualquer pessoa onde quer
que vá.
Falando com Cassirer temos:
Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reduzidos a meros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes de discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são “operadores” e os símbolos designadores. Os sinais, mesmo quando entendidos e usados como tais, têm mesmo assim uma espécie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas um valos funcional. (CASSIRER, 2005 p. 58)
Tendo, portanto essa definição, isso nos ajudará em grande
tamanho na busca por uma leitura sobre o Alfabeto sertanejo ou armorial
com os olhos de Cassirer que é o ponto a discutir logo a seguir. Mas antes
disso, fazendo um apanhado geral sobre o simbólico vemos que o mundo
humano é permeado por símbolos, e com isso o homem já não tem
contato direto ou instintivo com a realidade física, que não o define por
completo, assim como também não o metafísico, mas o trabalho que
significa suas ações ou o seu processo criativo. E diante disso se aponta o
aspecto distintivo do sinal e do símbolo que de alguma forma se
enquadram um para o físico e metafísico do homem e o outro para o seu
universo funcional.
4 O SIMBÓLICO DO ALFABETO SERTANEJO
Concordando que é plausível o olhar e aprofundamento de
Suassuna pelo resgate dos elementos que aos poucos a cultura de massa
foi sufocando no que diz respeito a originalidade da cultura brasileira,
esse aspecto já pode ser visto a partir de uma ótica Cassireriana quando
se define que o simbólico busca atar os elos perdidos ao longo do tempo,
ou seja, com a atividade recriadora e de resgate da cultura genuinamente
brasileira se vê nisso a busca por aquilo que foi separado, esquecido e em
alguns lugares, inclusive perdido, pela substituição de outros elementos
culturais massificadores.
Visto que para dar consistência ao movimento armorial se buscou
nos elementos populares e de herança ibérica manifestações culturais das
mais variadas possíveis, como a pintura, dança, música, artesanato,
arquitetura, poesia, teatro, escrita e muitos outros, que remontam,
sobretudo, ao sertão nordestino, como lugar privilegiado por resguardar
a rica herança do passado brasileiro, poderíamos, desde Ariano Suassuna,
o mentor desse movimento, fazer uma leitura do simbólico que ele com
grande sensibilidade e inspiração defende e busca resgatar, mas não é
nossa intensão nesse trabalho.
Contudo, a partir de Cassirer podemos ver de diferentes modos
essa atitude: primeiro, existe um movimento de transformação do
simbólico para o sinal, ou seja, Ariano com sua atitude pega as ricas
manifestações vitais do povo e transforma em sinais, acreditamos que não
com a intenção de destruir ou restringir o simbólico, que como visto, é
universal, em unilateralidade, que mais representa o sinal, mas com a
intenção de difusão da manifestação da cultural a fim de que outras
pessoas possam ao menos momentaneamente sentir o que é
genuinamente do Brasil. E talvez, já nesse sentido podemos vislumbrar a
outra perspectiva que é de tornar a interpretação do que é, ou do que foi
manifesto no passado, presente com fins de valorização.
Chegando, portanto ao que nos interessa, a atividade de criar, a
partir dos ferros de marcar boi um alfabeto nos estimula e intriga
bastante. Mas tentaremos ler isso com os olhos de Cassirer.
A princípio ferrar gado, embora seja de um todo universal àqueles
que conhecem essa prática, possui particularmente um valor sinalizador
quando lembramos que a ferroada que é dada no gado tem a intenção de
marca-lo pra identificar o seu proprietário. A rês marcada passa a ver
vista por meio do símbolo que agora pertence. O seu proprietário a
identifica subjetivamente pela marca que ela possui, ou seja, age com o
animal de modo simbólico e a marca que faz já provém de outra atitude
simbólica (o que em Suassuna chamaríamos de atitude heráldica) que é
justamente da criação, a partir daquilo que vislumbra ser, o ideal ferro de
marcar para seu uso identitário.
Valorizando essa atividade como sendo importante ao seu
movimento, Suassuna quer ir além desse processo que já poderíamos
chamar de criativo, que tem a ver com o trabalho do homem do semiárido
nordestino. Ele quer que, além dos fins de marcação, as “mesas” possam
simbolicamente estar presentes na sua vida cotidiana, ou seja, transforma
a criatividade da fabricação dos ferros em letras oficiais para seu bel uso
rotineiro.
A criação de um alfabeto baseado em ferros de marcar estabelece
com isso um afastamento quase que completo daquilo se pode ser
entendido como a atividade prática de ferrar o gado. Pode-se inferir
simbolicamente que já que agora eu possuo as formas dos ferros
rotineiramente comigo, sendo usado no meu cotidiano, eu não precise
construir ferros de marcar com a finalidade de marcar os bois. Claro, isso
é uma conclusão radical e que Suassuna não tem a intenção de fazer isso
uma vez que ele tem o desejo de perpetuar essa prática que até hoje se
preserva no nordeste do Brasil e no Rio Grande do Sul com mais
assiduidade. Mas isso seria aquilo que chamamos de extremar o
simbólico no sinal, o que acarretaria em grande perda.
A escrita armorial também pode ter a pretensão de,
simbolicamente, substituir o alfabeto com as formas usuais a fim de que
ele represente melhor a cultura e a originalidade do povo brasileiro uma
vez que é essa a intensão do movimento em questão. E nessa relação de
simbólicos se constata aquilo de Cassirer afirma quando diz que o
universo do homem é de ralações simbólicas inclusive com aquilo que ele
próprio pensa. Assim, se vê que o simbolismo de transformar os ferros de
marcar em alfabeto tem por trás o desejo de criar um mapa das práticas e
dos significados que a atividade de ferrar gado tem para o povo que a
utiliza, e por isso é símbolo porque isso tem pretensão de universalidade.
Essas atividades acontecem em todos os lugares que existe essa cultura,
com a mesma finalidade: representar e/ou identificar alguém
individualmente ou uma família, ou algum dado importante, seja ele
religioso, cósmico ou profano.
Afirmamos ser uma relação de simbólicos porque, embora
possuidores de um alfabeto já formado e estabelecido, com a criação de
um alfabeto armorial surge um movimento criador para, além do símbolo
já existente, ter outros que representem melhor o universo simbólico do
seu pensamento.
E é fato que quando conhecedores, profundos ou rasos, de qualquer
atitude que conscientemente podemos assimilar, isso se nos transforma
em símbolo, que contudo possui a variável de que cada um pode pensar
sobre aquilo que se assimilou de modo distinto, e, mesmo assim, não
deixa de ser simbólico porque ele abarca todas essas formas. É o que
acontece com as diferentes variantes das escritas com motivação
armorial ao longo do tempo, as transformações acontecem porque cada
um assimila ou vislumbra a atividade variavelmente embora a
funcionalidade seja a mesma. O mundo simbólico que cada um cria é
livre, e vemos que é com essa liberdade que Suassuna inicia esse
movimento e leva a cabo a iniciativa de criar a partir da atividade
humana de ferrar gado margem a criação de um alfabeto que, assim
como os proprietários leem na atitude de ferrar suas rês o seu legítimo
domínio sobre ela, ao ler a escrita armorial eu leia não somente letras
enfeitadas, mas também a atitude de marcar o gado no sertão.
O mundo simbólico é por fim o acesso ao mundo do homem, da sua
capacidade criadora ou cultural, e vemos que é essa a intensão de
Suassuna ao criar seu movimento, ele quer pintar o Brasil com suas
próprias cores, a partir dos seus costumes, crenças, valores e expressões.
REFERÊNCIAS
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CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo. Martins Fontes. 2005. Caps. II, III, IV.
LIMA, Ana Paula Campos. O movimento Armorial e suas fases. Bolsa de pesquisa. Curso de Comunicação Social. UNICAP, 2000.
MAIA, Virgílio. Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
MORAES, Maria Thereza Didier de. Emblemas da sagração armorial:
Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (1970-76) Maria Thereza
Didier de Moraes. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000.
NÓBREGA, Ariana Perazzo da. A música no movimento Armorial. Artigo on-line Disponível em http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/musicologia/musicol_APNobrega.pdf> Acesso <05/05/2013, 10:20>
SUASSUNA, Ariano. O movimento Armorial. Recife: Editora Universitária – UFPE, 1974: 2 ed. Separata de Revista Pernambucana de Desenvolvimento. Recife: Condepe, jan-jun. 1977: 7.
_________________. Ao Sol da Prosa Brasiliana. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Nov. de 2000, nº 10.
VALLE, Francisco Beltrão do. As relações entre Design e o Armorial de Suassuna. Dissertação de mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. 2008.
VENTURA, Leonardo Carneiro. Musica dos Espaços: Paisagem sonora do nordeste no movimento Armorial. Dissertação de mestrado no curso de Pós-Graduação em História. Natal. UFRN, 2007.
(Sem Descrição do Autor) Introdução de artigo. Disponível em < http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0410541_06_cap_01.pdf > PUC-RJ Certificado Digital Nº: 0410541/CA. <Acesso <05/05/2013, 10:30>