A Escrita Armorial como manifestação cultural a partir da perspectiva de Ernest Cassirer

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CURSO DE FILOSOFIA FAUSTINO DOS SANTOS JOSÉ REINALDO GOMES DE LIMA A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER

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Sobre a Escrita no movimento Armorial

Transcript of A Escrita Armorial como manifestação cultural a partir da perspectiva de Ernest Cassirer

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO

CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

CURSO DE FILOSOFIA

FAUSTINO DOS SANTOS

JOSÉ REINALDO GOMES DE LIMA

A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO

CULTURAL

A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER

RECIFE-PE

MAIO/2013

FAUSTINO DOS SANTOS

JOSÉ REINALDO GOMES DE LIMA

A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO

CULTURAL

A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER

Trabalho apresentado pelos alunos citados acima sob orientação da professora Martha Perusi como requisito avaliativo para a disciplina de Filosofia da Cultura do curso de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

RECIFE-PE

MAIO/2013

A ESCRITA ARMORIAL COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL

A PARTIR DO SIMBÓLICO DE CASSIRER

A arte é assim, um acerto de contas com a realidade.

ARIANO SUASSUNA

1 INTENCIONALIDADE DO MOVIMENTO ARMORIAL

Com a pretensão de criar um movimento que destaque uma arte

genuinamente brasileira como erudita a partir dos elementos populares,

fazendo assim uma mistura do que é clássico do Brasil e do seu popular,

Ariano Suassuna inicia na década de setenta o Movimento Armorial1. Esse

movimento quer dar ênfase a peculiaridade artística do Brasil que com o

passar dos tempos foi-se perdendo, dando lugar a cultura de massa.

São vários aspectos que podem ser elencados como prioritários

para se chegar ao conceito de armorial, como afirma Francisco Beltrão do

Valle em “As Relações entre o Designer e o Armorial de Suassuna”, além

das músicas do Quinteto Armorial, das pinturas e gravuras de artistas

como Francisco Brennand e Gilvan Samico, existem outros elementos

vitais que se somam na construção do conceito referido, como por

exemplo, a “sinalização sertaneja manifestada nos ferros de marcar boi

1 Termo que significa Livro de Brasões ou com conotação dos esmaltes da arte que descreve os brasões (Heráldica). É utilizado esse termo porque são as cores e a peculiaridade escrita do brasão que será responsável por dar destaque e representar referida família ou linhagem, governo, algum indivíduo, etc. A arte Heráldica tem sua origem no século XII e segundo Mollerup (1997) (apud Francisco Beltrão do Valle em “As Relações entre o Designer e o Armorial de Suassuna) “as marcas heráldicas foram usadas pela primeira vez por cruzados que atenderam o chamado Papal em 1095 para participar das cruzadas (1096-1270) lutando contra os muçulmanos na Palestina. [...] as marcas heráldicas nas roupas, escudos e bandeiras ajudavam os cruzados a se conhecer”.

do sertão nordestino” (VALLE, 2008 p. 59), e é sobre esse elemento que

mais a frente debruçaremos.

Suassuna em “O Movimento Armorial” afirmando a abrangência do

termo Armorial no aspecto musical afirma:

Descobri que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os cantares do Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores – toques ásperos, arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a viola-de-arco da nossa música barroca do século XVIII. (SUASSUNA, 1974 p. 9)

Contudo outros aspectos são considerados, na popularidade do Brasil a

fora, como heráldicas não oficiais:

[...] tanto pelos ferros de marcar boi como emblemas dos clubes de futebol; passando também pelas bandeiras das cavalhadas (onde o cordão azul representa os cristãos e o cordão vermelho os mouros), ou ainda pelos estandartes dos maracatus; dos caboclinhos e das escolas de samba. (VALLE, 2008 p.59)

Muito embora haja alguns relatos sobre com que influência esse

movimento surgiu e quais desacordos travou, como, por exemplo, a

contraposição ao Tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil e do

Mangue Beach de Chico Sience, que de alguma forma projetam uma

cultura alargada a referenciais internacionais, incutidos por aspectos

massificadores, Ariano com esse movimento privilegia o Nordeste do

Brasil como o local da resistência a cultura massificadora, àquela que

preserva fortemente as raízes culturais do Brasil. É no interior , segundo

o dramaturgo que se preservam os costumes, é lá que as mudanças

acontecem lentamente, são nesses locais onde se pode buscar as raízes

da cultura nacional. É nesse espaço onde se têm a autenticidade, a partir

da experiência do povo, que embora sofrido, possui uma expressão

cultural original. É o que Maria Thereza Didier de Moraes no seu livro

“Emblemas da Sagração Armorial” afirma: “A autenticidade é, assim,

associada à espontaneidade do povo, o que formaliza uma distinção entre

o caráter intuitivo da cultura popular e o caráter reflexivo da cultura

letrada” (MORAES, 2000 p. 71). Tudo isso pra dizer que é taxativa a

proposta armorial de se criar uma cultura genuinamente brasileira a

partir das raízes populares nacionais unindo o tradicional oral e o popular

escrito pela reflexão das características do povo brasileiro, seus valores,

atitudes e crenças.

2 OS TIPOS DE ARTES ARMORIAIS: A ESCRITA ARMORIAL

É lúcida a intensão de Suassuna ao criar esse movimento. Embora

para o público que acompanha suas Aulas Espetáculos2 perceba que há a

predominância do aspecto musical, que é marca presente desde o início

do movimento, outras expressões culturais também fazem parte desse

acervo graças ao esforço e empenho de grandes artistas que já são

realidade. Quanto a isso Suassuna diz:

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música da viola, rabeca ou pífano que acompanha os “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1974 p.7)

Aquilo que antes era sonho como a dança, teatro, artesanato,

monumentos artísticos já começam a dar sinal de vida. Mas é verdade

que a intenção de Suassuna é que essa arte não seja restrita, mas que

seja geral.

É nesse contexto que cabe ressaltar a quão importante se tornou

para Suassuna o estudo e busca pelos ferros de marcar rês. Valle aponta

que o interesse de Suassuna pelas marcas de gado sertanejas surge

desde muito cedo, contudo, seu interesse por esse tema desperta quando

em 1943 ele lê um livro de Gustavo Barroso que tratava dos ferros. Assim

como as outras manifestações culturais, os ferros de marcar boi são

importantíssimos para a construção conceitual de Armorial; s os ferros

2 As Aulas públicas de Suassuna é uma mistura de música, poesia, dança e histórias regionais que fazem delas verdadeiros espetáculos armoriais.

são manifestações heráldicas que poderiam servir para consolidar a

referência visual do movimento.

Os ferros de marcar, remontando a antiguidade dos egípcios,

gregos e romanos chegaram ao Brasil com os povos colonizadores,

contudo é provável que em cada lugar para onde se difundiu essa prática,

as manifestações e técnicas podem ter sido distintas. A função dos ferros

de marcar, segundo Valle, é a seguinte:

Fundamentalmente, as marcas de gado são sinais de propriedade que têm a função de localizar o proprietário da rês. Com o tempo e de modo natural, estas marcas passaram a representar muito mais que um símbolo de propriedade e modo de identificação de gados ou objetos pessoais, tornando-se parte da cultura sertaneja por suas características heráldicas e de designer popular. (VALLE, 2008 p.102)

A partir de alguns estudos se apontou por Maia (2004) (apud Valle,

2008 p. 102) que nem sempre os ferros de marcar possuíam letras, uma

vez que nem todos os ferradores eram letrados, e, portanto, se utilizavam

de pinturas rupestres, de algum símbolo zodiacal, ou ainda de alguma

outra figura. E é isso que se constata no estudo de Suassuna: ele

[...] encontrou semelhanças entre “as formas meio hieroglificas dos ferros sertanejos mais abstratos” e determinados signos ligados à astrologia, ao zodíaco e à alquimia; e sugere que alguns dos primeiros fazendeiros podem ter escolhido para seus ferros os símbolos astrológicos de seus signos e plantas pessoais, além de grafismos rupestres, abundantes no Nordeste brasileiro. (VALLE, 2008 p.106)

Ariano Suassuna diz ser Gustavo Barroso o primeiro escritor do

Brasil a apontar essa prática de marcar gado para identificação como

sendo heráldica. Motivado com esse estudo Suassuna afirma que as

“mesas” que são os elementos identitários dos ferros, são aproveitados

pelos demais familiares, sendo diferenciados por algum elemento que se

acrescenta (divisas); com isso se cria uma heráldica não oficial.

Segundo Suassuna (1974a) (apud Valle, 2008 p. 105) “a

manifestação cultural dos ferros, confere ao sertanejo a glória de uma

linhagem quase nobre, correspondendo assim a uma verdadeira heráldica

popular”.

É a partir desse aspecto que Suassuna pensou dentro do aspecto do

movimento armorial um Alfabeto sertanejo, baseado, sobretudo, nos

ferros de marcar do cariri paraibano onde ele constatou que as marcas

continham as “iniciais de nomes próprios ou familiares dos proprietários

das marcas” (VALLE, 2008 p.106). É o ideal do movimento que prevalece:

“realizou uma construção erudita a partir de fontes populares [...] o fez

utilizando-se de elementos da cultura tradicional de herança ibérica,

incluindo elementos de culturas brasileiras anteriores à chegada dos

colonizadores portugueses, que é o caso da pintura rupestre” (VALLE,

2008 p.107)

Embora seja de difícil leitura, caso se escreva um texto corrido com

seus caracteres maiúsculos e minúsculos, o alfabeto sertanejo, que

caracteriza a escrita armorial, normalmente, se aplicada em títulos ou

textos curtos, por exemplo, podem ser lidos tranquilamente.

A construção do alfabeto sertanejo é cercada de grande simbologia

e significação desde as partes que compõem as letras, com suas hastes e

troncos, fazendo menção ao sagrado e/ou profano, que são a maior

predominância quando se analisa sua estrutura ou representando

elementos e forças da natureza, e alguns outros significados. Quanto a

representação dos ferros afirma Valle na sua tese “As Relações entre

Designer e o Armorial de Suassuna”:

Uma virtude do Alfabeto Sertanejo se encontra na variedade de formas encontradas nos ferros incluídas no projeto: é notável o desejo de Suassuna em representar e abranger uma ampla variedade de formas características dessa manifestação cultural na elaboração do desenho de seus caracteres. (VALLE, 2008 p.109)

Nessas representações alguns símbolos que se relacionam com

Flor, Cruz, Lua, Balança, Galho, Tronco e outros, possuem significados

específicos, como já descritos acima. Além desses elementos que de

alguma forma se somam ao Alfabeto Sertanejo Primitivo3, outras fontes

baseadas na inspiração armorial dos ferros de marcar se desenvolveram.

Logo que o alfabeto armorial de Suassuna se tornou conhecido por

alguns designers, (a saber Ricardo Gouveia de Melo, Giovana Caldas e

Klesley Bastos) houve um interesse da parte deles para criar uma

tipografia digital, e como já apresentado, havendo o problema da

legibilidade quando em texto longo, a escrita armorial gráfica sofreu

algumas alterações e se tornou a Tipografia Armorial. Mas não para por

aí, a ideia de Suassuna de criar esse alfabeto a partir dos ferros de

marcar se alargou e logo depois vieram os Armoriabats baseados nos

ferros de marcar (que se afastam um pouco da ideia primitiva) e os

dingbats armoriais que se baseiam nas xilogravuras populares e eruditas.

Ainda surgiram fontes tipográficas de Virgílio Maia baseados nos ferros

de marcar cearenses e fonte Sertões que se baseiam na obra de Euclides

da Cunha e fazem referência aos mandacarus que resistem ao semiárido

nordestino e que representam a resistência.

Muito embora agente não queira adentrar nas questões das

variações que irromperam ao longo dos anos a partir da iniciação de

Ariano a escrita sertaneja, é importante dizer que elas são importantes

porque dão visibilidade ao rosto popular e erudito que é marca original

da nação.

Entenderemos agora, antes de fazer o paralelo um pouco do

pensamento simbólico de Cassirer a fim de mais adiante traçarmos um

olhar dele sobre o que até agora escrevemos.

3 O SIMBÓLICO DE ERNEST CASSIRER

Naturalmente se constata na vida em geral elementos biológicos e

físicos, e tanto o homem quanto todos os organismos, do menor ao maior,

possuem, segundo Ernest Cassirer, além de estruturas de adaptação ao

ambiente, sistemas de recepção e efetivação. Nas palavras do autor:

3 Apontamos como primitivo o Alfabeto que foi desenhado manualmente por Ariano Suassuna com intenção de uso pessoal, muito embora depois tenha ocorrido o caso de esse tipo de escrita ser elevado a parâmetros de computação gráfica para acessibilidade do público, como se ver em seguida no texto.

Cada organismo, mesmo os mais simples, não está apenas, em um sentido vago, adaptado [...] como também inteiramente ajustado [...] ao seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, ele possui [...] um sistema receptor e um sistema efeituador. (CASSIRER, 2005 pp. 46-47)

Esses são elementares para a sobrevivência dos organismos vivos.

Contudo a diferença que existe entre os demais organismos e o homem é

que ele possui um universo além de quantitativamente maior,

qualitativamente também, “o homem descobriu, por assim dizer, um novo

método para adaptar-se ao seu ambiente [...] observamos no homem um

terceiro elemento elo que podemos descrever como o sistema simbólico”

(CASSIRER, 2005 p. 47), e aí reside toda a diferença pelas razões mais

diversas: com o símbolo o homem passa a viver não somente numa

realidade diversa, mas numa nova realidade, ele passa a agir e responder

aos estímulos do ambiente reflexivamente sem o impulso instintivo, o seu

mundo é simbólico pela presença da linguagem, a religião, o mito, a arte;

o homem passa a se relacionar, antes que com as coisas, com os símbolos

das coisas que existem em si, ele vive pelas imagens e fantasias que criou

em si sobre as coisas.

Cabe diante dessas questões, dizer que a vida do homem não é

natural, mas superficial, como exposto, vivendo por meio do símbolo o

homem se esquece do instinto, ou seja, com a presença do simbólico a

realidade física recua. Mas o parêntese que se abre é na justificativa de

que para se conhecer a característica da humanidade é preciso conhecer

a estrutura do trabalho que, por sua vez define o homem.

São muitas as teorias que definem tentam definir o homem, seja

pela política, economia, cultura, enfim, mas Cassirer aponta que sua

filosofia do simbólico não tem pretensão de destronar cada uma delas,

mas de complementá-las, pois não adianta definir o homem pelo seu físico

ou pela sua essência metafísica, mas pelo seu trabalho. Afirma Cassirer:

Não foi concebido para abolir, mas para complementar as visões anteriores. A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definição da natureza ou “essência” do homem, tal definição só poderá ser entendida como funcional e não substancial. Não podemos definir o homem com base em qualquer princípio

inerente a sua essência metafísica – nem [...] por qualquer faculdade ou instinto [...] verificado pela observação empírica. [...] sua marca distintiva não é a sua natureza metafísica ou física, mas o seu trabalho. É esse trabalho que define e determina o círculo da “humanidade” (CASSIRER, 2005 pp. 114-115)

Em outros termos, como afirma o referido autor, se busca com isso

não um emaranhado de efeitos, mas as ações do homem que são o seu

processo criativo.

A distinção existente entre o é que o Símbolo e o Sinal se faz

importante desde já a fim de que mais adiante possamos relacioná-la com

o estudo do alfabeto sertanejo, portanto, o Símbolo possui pretensão

universal e de interpretação variável, ou seja, independente dos sentidos

humanos o símbolo ele tem o poder de significação na vida humana, ele

dá acesso ao mundo do homem por meio do seu pensamento, ainda é

variável porque não se restringe a um caso particular de pensar o símbolo

e por essa razão é distinta do sinal que é inequívoco, que é conhecido

dentro da sua estreiteza e reconhecido por qualquer pessoa onde quer

que vá.

Falando com Cassirer temos:

Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reduzidos a meros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes de discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do significado. Os sinais são “operadores” e os símbolos designadores. Os sinais, mesmo quando entendidos e usados como tais, têm mesmo assim uma espécie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas um valos funcional. (CASSIRER, 2005 p. 58)

Tendo, portanto essa definição, isso nos ajudará em grande

tamanho na busca por uma leitura sobre o Alfabeto sertanejo ou armorial

com os olhos de Cassirer que é o ponto a discutir logo a seguir. Mas antes

disso, fazendo um apanhado geral sobre o simbólico vemos que o mundo

humano é permeado por símbolos, e com isso o homem já não tem

contato direto ou instintivo com a realidade física, que não o define por

completo, assim como também não o metafísico, mas o trabalho que

significa suas ações ou o seu processo criativo. E diante disso se aponta o

aspecto distintivo do sinal e do símbolo que de alguma forma se

enquadram um para o físico e metafísico do homem e o outro para o seu

universo funcional.

4 O SIMBÓLICO DO ALFABETO SERTANEJO

Concordando que é plausível o olhar e aprofundamento de

Suassuna pelo resgate dos elementos que aos poucos a cultura de massa

foi sufocando no que diz respeito a originalidade da cultura brasileira,

esse aspecto já pode ser visto a partir de uma ótica Cassireriana quando

se define que o simbólico busca atar os elos perdidos ao longo do tempo,

ou seja, com a atividade recriadora e de resgate da cultura genuinamente

brasileira se vê nisso a busca por aquilo que foi separado, esquecido e em

alguns lugares, inclusive perdido, pela substituição de outros elementos

culturais massificadores.

Visto que para dar consistência ao movimento armorial se buscou

nos elementos populares e de herança ibérica manifestações culturais das

mais variadas possíveis, como a pintura, dança, música, artesanato,

arquitetura, poesia, teatro, escrita e muitos outros, que remontam,

sobretudo, ao sertão nordestino, como lugar privilegiado por resguardar

a rica herança do passado brasileiro, poderíamos, desde Ariano Suassuna,

o mentor desse movimento, fazer uma leitura do simbólico que ele com

grande sensibilidade e inspiração defende e busca resgatar, mas não é

nossa intensão nesse trabalho.

Contudo, a partir de Cassirer podemos ver de diferentes modos

essa atitude: primeiro, existe um movimento de transformação do

simbólico para o sinal, ou seja, Ariano com sua atitude pega as ricas

manifestações vitais do povo e transforma em sinais, acreditamos que não

com a intenção de destruir ou restringir o simbólico, que como visto, é

universal, em unilateralidade, que mais representa o sinal, mas com a

intenção de difusão da manifestação da cultural a fim de que outras

pessoas possam ao menos momentaneamente sentir o que é

genuinamente do Brasil. E talvez, já nesse sentido podemos vislumbrar a

outra perspectiva que é de tornar a interpretação do que é, ou do que foi

manifesto no passado, presente com fins de valorização.

Chegando, portanto ao que nos interessa, a atividade de criar, a

partir dos ferros de marcar boi um alfabeto nos estimula e intriga

bastante. Mas tentaremos ler isso com os olhos de Cassirer.

A princípio ferrar gado, embora seja de um todo universal àqueles

que conhecem essa prática, possui particularmente um valor sinalizador

quando lembramos que a ferroada que é dada no gado tem a intenção de

marca-lo pra identificar o seu proprietário. A rês marcada passa a ver

vista por meio do símbolo que agora pertence. O seu proprietário a

identifica subjetivamente pela marca que ela possui, ou seja, age com o

animal de modo simbólico e a marca que faz já provém de outra atitude

simbólica (o que em Suassuna chamaríamos de atitude heráldica) que é

justamente da criação, a partir daquilo que vislumbra ser, o ideal ferro de

marcar para seu uso identitário.

Valorizando essa atividade como sendo importante ao seu

movimento, Suassuna quer ir além desse processo que já poderíamos

chamar de criativo, que tem a ver com o trabalho do homem do semiárido

nordestino. Ele quer que, além dos fins de marcação, as “mesas” possam

simbolicamente estar presentes na sua vida cotidiana, ou seja, transforma

a criatividade da fabricação dos ferros em letras oficiais para seu bel uso

rotineiro.

A criação de um alfabeto baseado em ferros de marcar estabelece

com isso um afastamento quase que completo daquilo se pode ser

entendido como a atividade prática de ferrar o gado. Pode-se inferir

simbolicamente que já que agora eu possuo as formas dos ferros

rotineiramente comigo, sendo usado no meu cotidiano, eu não precise

construir ferros de marcar com a finalidade de marcar os bois. Claro, isso

é uma conclusão radical e que Suassuna não tem a intenção de fazer isso

uma vez que ele tem o desejo de perpetuar essa prática que até hoje se

preserva no nordeste do Brasil e no Rio Grande do Sul com mais

assiduidade. Mas isso seria aquilo que chamamos de extremar o

simbólico no sinal, o que acarretaria em grande perda.

A escrita armorial também pode ter a pretensão de,

simbolicamente, substituir o alfabeto com as formas usuais a fim de que

ele represente melhor a cultura e a originalidade do povo brasileiro uma

vez que é essa a intensão do movimento em questão. E nessa relação de

simbólicos se constata aquilo de Cassirer afirma quando diz que o

universo do homem é de ralações simbólicas inclusive com aquilo que ele

próprio pensa. Assim, se vê que o simbolismo de transformar os ferros de

marcar em alfabeto tem por trás o desejo de criar um mapa das práticas e

dos significados que a atividade de ferrar gado tem para o povo que a

utiliza, e por isso é símbolo porque isso tem pretensão de universalidade.

Essas atividades acontecem em todos os lugares que existe essa cultura,

com a mesma finalidade: representar e/ou identificar alguém

individualmente ou uma família, ou algum dado importante, seja ele

religioso, cósmico ou profano.

Afirmamos ser uma relação de simbólicos porque, embora

possuidores de um alfabeto já formado e estabelecido, com a criação de

um alfabeto armorial surge um movimento criador para, além do símbolo

já existente, ter outros que representem melhor o universo simbólico do

seu pensamento.

E é fato que quando conhecedores, profundos ou rasos, de qualquer

atitude que conscientemente podemos assimilar, isso se nos transforma

em símbolo, que contudo possui a variável de que cada um pode pensar

sobre aquilo que se assimilou de modo distinto, e, mesmo assim, não

deixa de ser simbólico porque ele abarca todas essas formas. É o que

acontece com as diferentes variantes das escritas com motivação

armorial ao longo do tempo, as transformações acontecem porque cada

um assimila ou vislumbra a atividade variavelmente embora a

funcionalidade seja a mesma. O mundo simbólico que cada um cria é

livre, e vemos que é com essa liberdade que Suassuna inicia esse

movimento e leva a cabo a iniciativa de criar a partir da atividade

humana de ferrar gado margem a criação de um alfabeto que, assim

como os proprietários leem na atitude de ferrar suas rês o seu legítimo

domínio sobre ela, ao ler a escrita armorial eu leia não somente letras

enfeitadas, mas também a atitude de marcar o gado no sertão.

O mundo simbólico é por fim o acesso ao mundo do homem, da sua

capacidade criadora ou cultural, e vemos que é essa a intensão de

Suassuna ao criar seu movimento, ele quer pintar o Brasil com suas

próprias cores, a partir dos seus costumes, crenças, valores e expressões.

REFERÊNCIAS

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CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo. Martins Fontes. 2005. Caps. II, III, IV.

LIMA, Ana Paula Campos. O movimento Armorial e suas fases. Bolsa de pesquisa. Curso de Comunicação Social. UNICAP, 2000.

MAIA, Virgílio. Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

MORAES, Maria Thereza Didier de. Emblemas da sagração armorial:

Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (1970-76) Maria Thereza

Didier de Moraes. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000.

NÓBREGA, Ariana Perazzo da. A música no movimento Armorial. Artigo on-line Disponível em http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/musicologia/musicol_APNobrega.pdf> Acesso <05/05/2013, 10:20>

SUASSUNA, Ariano. O movimento Armorial. Recife: Editora Universitária – UFPE, 1974: 2 ed. Separata de Revista Pernambucana de Desenvolvimento. Recife: Condepe, jan-jun. 1977: 7.

_________________. Ao Sol da Prosa Brasiliana. In: Cadernos de Literatura Brasileira. Nov. de 2000, nº 10.

VALLE, Francisco Beltrão do. As relações entre Design e o Armorial de Suassuna. Dissertação de mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro. 2008.

VENTURA, Leonardo Carneiro. Musica dos Espaços: Paisagem sonora do nordeste no movimento Armorial. Dissertação de mestrado no curso de Pós-Graduação em História. Natal. UFRN, 2007.

(Sem Descrição do Autor) Introdução de artigo. Disponível em < http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0410541_06_cap_01.pdf > PUC-RJ Certificado Digital Nº: 0410541/CA. <Acesso <05/05/2013, 10:30>