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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
TIAGO BRASIL PITA
A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JUSLABORAIS
MESTRADO EM DIREITO FUNDAMENTAIS CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS
LISBOA 2017
TIAGO BRASIL PITA
A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES JUSLABORAIS
Dissertação de mestrado apresentada ao Gabinete de Estudos Pós-Graduados da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais ORIENTADOR: Professor Doutor Alexandre Sousa Pinheiro.
LISBOA
2017
TIAGO BRASIL PITA
A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES JUSLABORAIS
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.
Orientador: ____________________________________ Prof. Dr. Alexandre Sousa Pinheiro
Banca Examinadora:
Prof. Dr. ____________________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________
Prof. Dr. ____________________________________________
Coordenador do Gabinete de Estudos Pós-Graduados: Prof. Dr. ___________________________________
Lisboa, ___________________________________.
Aos amores de minha de vida: minha esposa Taciana, com quem costumo brincar (mas com um fundo de verdade devido à sua capacidade intelectual invejável) que as colunas da Faculdade de Direito tremem quando ela adentra; e a minha filha Bebella, simplesmente por me fazer a pessoa mais feliz do mundo. Aos meus pais, pelo apoio logístico e financeiro desde a primeira aula da Faculdade de Direito.
Em tempos de dificuldades, você pode sentir que os seus problemas parecem que nunca encontrarão um fim. Mas isso absolutamente não é verdade. Toda montanha tem um topo. Todo problema tem uma duração limitada. A questão é: Quem é que vai desistir primeiro, você ou o problema?
Robert Schuller
AGRADECIMENTOS
A Deus: onipresente, onisciente e onipotente. Ao professor Doutor Alexandre Sousa Pinheiro, meus mais sinceros agradecimentos.
RESUMO
O Estado liberal baseado na igualdade de todos os cidadãos mostrou-se, no plano fático, completamente inadequado, transmudando-se para o Estado Social de Direito. Com a evolução da sociedade, deu-se a necessidade da proteção de direitos fundamentais nas relações privadas, inclusive nas relações juslaborais. Contudo, a forma e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não podem ser análogas às do Estado, uma vez que cidadãos são igualmente titulares de direitos fundamentais. O exercício dos direitos fundamentais dos empregados está supraditado e limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato fruto do exercício do direito à autonomia. As teorias da inaplicabilidade dos direitos fundamentais, a teoria da eficácia imediata, a teoria da eficácia mediata e a teoria dos deveres de proteção surgiram para conceber cientificidade ao estudo desses direitos nas relações privadas. A doutrina brasileira inclina-se, quase que à unanimidade, pela possibilidade da aplicação da teoria da eficácia direta ou imediata no Brasil, com fulcro no artigo 5o, parágrafo primeiro, da Constituição Federal brasileira de 1988. Por outro lado, os juristas portugueses defendem a teoria da eficácia mediata com alguns dissidentes abraçando a teoria dos deveres de proteção. É do Parlamento e não do Judiciário, que atua somente supletivamente, o protagonismo da defesa dos direitos da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder, como sói acontecer, regra geral, com as relações de emprego. As decisões do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior do Trabalho e dos demais órgãos do Poder Judiciário trabalhista brasileiro inclinam-se pela aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações de emprego, pois já condicionadas a adotar uma posição favorável ao empregado. O objeto de estudo do presente trabalho é a análise das teorias dos direitos fundamentais nas relações privadas com a consequente conclusão de qual trará maior eficácia a esses direitos das relações juslaborais. Palavras-chave: Direito Fundamental; Teoria da Inaplicabilidade; Teoria da Eficácia Mediata; Teoria da Eficácia Imediata; Teoria dos Deveres de Proteção; Relações Juslaborais.
ABSTRACT
The liberal State based on equality of all citizens demonstrated, in phatic plan, completely inadequate transforming into Social State Right. With the society evolution, it emerged a need for the protection of fundamental rights in private relations, including labor relations. Nevertheless, the form and intensity of the attachment of individuals to fundamental rights cannot be analogous to those of the State, since citizens also holds fundamental rights. The exercise of the fundamental rights of employees is stated and limited by the employment contract, being a justified limitation, since the contract is the result of the exercise of the right to autonomy. Theories such as the state action, horizontal direct effect, horizontal indirect effect, and the state duties of protection arose to conceive scientificity in the study of these rights in private relations. In the one hand, Brazilian doctrine is inclined, almost unanimously, to the possibility of applying the direct or immediate efficacy theory, grounded on fifth article, paragraph one, of 1988 Brazilian Federal Constitution. On the other hand, Portuguese jurists defend the theory of mediate efficacy with some dissenters embracing the theory of protective duties. It is Parliament and not the Judiciary, which only acts in a supplementary way, that the defense of the rights of the weaker party when private power relations are involved, as is usually the case with employment relations. The decisions of the Federal Supreme Court, the Superior Labor Court, and other Brazilian Labor Judiciary structures are based on the direct application of fundamental rights in employment relations, since they are already conditioned to adopt a position favorable to the employee. The object of study of this work is the analysis of theories of fundamental rights in private relations with the following conclusion of which will bring greater effectiveness to these rights of labor relations.
Keywords: Fundamental Rights; State Action Doctrine; Horizontal direct effect theory; Horizontal indirect effect theory; State duties of protection theory; Labor relations.
Lista de Abreviaturas e Siglas
Constituição Federal brasileira (CFb) Tribunal Superior do Trabalho (TST) Constituição da República de Portugal (CRP) Estados Unidos da América (EUA) Organização Internacional do Trabalho (OIT) Ley Orgánica del Tribunal Constitucional (LOTC) Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) Lei Fundamental (LF)
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................... 16
3 AMEAÇA "HORIZONTAL" A DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................. 25
4 TEORIAS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS –
VINCULAÇÃO DAS ENTIDADES PRIVADAS .......................................................... 46
5 TEORIA DA INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS E A DOUTRINA DA “STATE ACTION” ............................ 52
6 EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS ................................................................................................................... 61
7 A EFICÁCIA INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JUSPRIVATÍSTICAS ................................................................................................... 71
8 TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA E DEVER DE PROTEÇÃO ............................. 80
9 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO PRIVADO NO BRASIL,
PORTUGAL E ESPANHA ......................................................................................... 103
10 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JUSTRABALHISTAS ................................................................................................ 115
11 CASOS APRECIADOS PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS DE APLICAÇÃO DA
EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE
EMPREGO.................................................................................................................. 124
12 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 142
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 146
ANEXO ....................................................................................................................... 154
11
1 INTRODUÇÃO
Representa uma tentação sedutora para um juslaborista ultrapassar a
fronteira do Direito Privado para penetrar no âmbito dos direitos fundamentais. Isso
porque a interligação do Direito Privado, em especial do Direito do Trabalho, com os
direitos fundamentais é íntima, máxime quando várias Constituições trazem em seus
bojos direitos trabalhistas como fundamentais.
O intuito de explorar a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares
nas relações juslaborais é procurar oferecer elementos para a instalação de uma
dogmática onde a doutrina brasileira leve os direitos fundamentais a sério, ou seja,
como garantias jurídicas fortes, tão importantes para a teoria geral dos direitos
fundamentais e para as relações de emprego como um todo.
No Brasil, todavia, o estudo da eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, em especial nas relações de emprego, ainda não obteve, das cortes
superiores, seja do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e até mesmo do Supremo
Tribunal Federal (STF), nem da doutrina constitucional, a devida atenção. A doutrina,
de maneira incipiente, com destaque para o Professor Ingo Sarlet, vem se debruçando
sobre o tema, trazendo contribuições para o seu desenvolvimento. Esse fato foi objeto
da atenção do Professor Virgílio Afonso da Silva, segundo o qual, “No Brasil, contudo,
ao contrário do que ocorre em países como Alemanha, Espanha, Itália, Israel, África
do Sul e Portugal, entre outros, a doutrina constitucional ainda não tem dado a devida
atenção aos efeitos dos direitos fundamentais para além da relação cidadão-Estado.”1
Para entender a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas
relações de emprego ou, genericamente, da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações inter privatos, se faz imperioso tecer algumas considerações sobre a
conjuntura histórica que culminou no Estado Social, o qual superou o individualismo
apresentado pelo Estado Liberal, cujos dogmas foram modelados pelos ideais da
Revolução Gloriosa inglesa, da Bill of Rights inglesa, da independência das colônias
inglesas da América do Norte, da Constituição dos Estados Unidos da América, da Bill
1 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 18.
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of Rights norte-americana e, finalmente, da Revolução Francesa e a com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Outro ponto importante para a concretização deste trabalho é a relação entre
os direitos fundamentais e a possibilidade da vinculação de particulares a esses
direitos, máxime quando o artigo 5o, parágrafo 1o, da Constituição Federal brasileira
(CFb), ao prever a aplicação imediata dos direitos fundamentais (“as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” 2), sem
mencionar quem seriam seus destinatários, nos coloca frente à problemática que a
doutrina constitucional denominou de Drittwirkung der Grundrechte.
Sobre o assunto, importante indagar se é possível a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações interprivados ou somente nas relações indivíduo-Estado.3
Isso porque os efeitos dos direitos fundamentais, num primeiro momento, somente
podem existir nas relações verticais, pois as próprias características dos direitos
fundamentais, como a inalienabilidade e inegociabilidade, impedem, a priori, que os
direitos fundamentais sejam invocados nas relações indivíduo-indivíduo, já que essas
relações pressupõem negociabilidade sobre esses mesmos direitos fundamentais.
Contudo, é imprescindível reconhecer que as agressões aos direitos fundamentais,
não raras vezes, são originárias de particulares que, ao exercerem sua autonomia,
malferem direitos garantidos constitucionalmente. Assim, delineia-se a problemática
acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, buscando tecer
breves explicações sobre as principais teorias existentes, utilizando-se das
experiências do direito comparado, pois é impossível ignorar a multiplicidade de
situações com as quais nos deparamos no dia-a-dia em que ocorrem vulnerações de
direitos fundamentais.
O problema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas,
inclusive as relações decorrentes da relação empregatícia, passa pelo estudo de
quatro correntes doutrinárias – teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais;
teoria da eficácia imediata; teoria da eficácia mediata; e a teoria dos deveres de
proteção – que se degladiam com um único objetivo: qual teoria traz maior efetividade
2 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 3 O tema ainda mantém seu interesse teórico e prático apesar de Constituições nacionais estarem perdendo gradativamente centralidade com o fenômeno da internacionalização do Direito, em especial na Europa, e os Estados a capacidade prestacional.
13
aos direitos fundamentais mantendo a lógica do sistema, isso é, tratando esse mesmo
direito como garantias jurídica fortes. E, com isso, construir uma base teórica capaz
de auxiliar juízes, tribunais e aplicadores do Direito em geral na árdua tarefa de tomar
a sério a influência que os direitos fundamentais exercem na relações entre privados.
Com o estudo da teorias, destacaremos os pontos de contato entre uma e as
outras teorias, bem como as divergências entre uma e as demais teorias, enfatizando
os efeitos de cada uma quando há ou não lei regulamentando a situação concreta e
quando as cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados conferem ou não
solução à situação posta.
A teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas,
resumidamente, assevera que não há possibilidade de conceber eficácia aos direitos
fundamentais nas relações privadas. O fundamento principal dessa posição é o de
que os direitos fundamentais surgiram para escudar os particulares contra os abusos
do Estado e que, ao permitir a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, se estaria atacando excessivamente a esfera da autonomia privada dos
cidadãos. É a teoria que sobressai no Direito Constitucional norte-americano.
A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas
defende que os direitos fundamentais podem ser invocados na díade indivíduo-
indivíduo com a mesma projeção da relação indivíduo-Estado, sem a necessidade da
intermediação do legislador por meio de atos específicos ou por meio de inserção de
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
A eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do
pressuposto que esses direitos somente podem ser aplicados através da
intermediação do legislador infraconstitucional. Assim, os valores constitucionais
seriam garantidos por normas imperativas ou através de cláusulas gerais ou conceitos
jurídicos e, quando ausente ou insuficiente a norma de direito privado, buscariam a
Constituição como fonte de interpretação.
A teoria dos deveres de proteção, que parte da ideia de que o Estado tem
deveres de garantia e proteção contra agressões aos direitos fundamentais provindas
quer do Poder Público como dos próprios particulares, afirma-se como postulado
superador e complementar das demais teorias apresentadas.
O trabalho ainda propõe o estudo da doutrina e jurisprudência do Brasil,
Portugal e Espanha, destacando que a CFb supostamente traz em seu artigo 5o (“As
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normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”4)
um verdadeiro mandamento em favor de uma inequívoca aplicação imediata dos
direitos fundamentais na relações privadas; que a Constituição da República de
Portugal supostamente consagra numa interpretação literal à aplicabilidade direta dos
direitos fundamentais na relações privadas, pois não distingue, em seu artigo 18.1 a
vinculação das entidades públicas da vinculação das entidades privadas (“os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” 5 ); e que a doutrina e
jurisprudência da Espanha adotaram a eficácia imediata dos direitos fundamentais,
em sua maioria, com a utilização do recurso de amparo para a defesa desses direitos
inclusive em face dos particulares mesmo sem previsão expressa da Ley Orgánica del
Tribunal Constitucional (LOTC).
No penúltimo capítulo, abordaremos diretamente a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações juslaborais, pois, atualmente, os direitos fundamentais
tonaram-se peças-chave nos diversos ramos do Direito e não há como imaginar as
relações de emprego no cenário jurídico sem levar em consideração não somente os
direitos fundamentais trabalhistas, como também os direitos individuais, sociais e
coletivos6. Assim, em qualquer controvérsia, dificilmente pelo menos uma das partes
envolvidas não sustentará a violação ou ameaça a algum direito fundamental,
principalmente porque, no Brasil, adota-se quase que integralmente a Teoria
alexyana7 dos Direitos Fundamentais e, no Direito do Trabalho, não poderia ser
diferente.
Por fim, no apagar das luzes deste trabalho, analisaremos os principais casos
concretos apreciados pelo Poder Judiciário trabalhista brasileiro, enfatizando apenas
os principais direitos postos em discussão pela impossibilidade de apreciação de
todas as hipóteses relacionadas ao tema, que apresentam uma gama superabundante
4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 5 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 6 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Rev. TST, Brasília, vol. 77, n. 4, p. 60, out./dez. 2011. 7 Teoria desenvolvida por Robert Alexy no seu livro Teoria dos Direitos Fundamentais, que parte da premissa que todos os direitos fundamentais são aplicados prima facie.
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de variáveis. Dessa forma, destacaremos os julgados que tratam dos direitos de
igualdade, de proibição de conduta discriminatória, relativos à dignidade da pessoa
humana, à intimidade e à inviolabilidade de comunicações com comentários sobre os
direitos em discussão em cada caso concreto.
Portanto, respondendo a essas indagações acima propostas, poderemos ter
real compreensão do tema e descobriremos que nem sempre o que parece fornecer
maior eficácia realmente será, uma vez que, na conclusão, decidiremos qual teoria de
eficácia horizontal dos direitos fundamentais adotaremos como a que traz maior
eficácia a esses direitos, mantendo a lógica do sistema de direitos fundamentais como
trunfos e destacando a solução e sua consequência prática dos casos se adotarmos
uma ou outra teorias.
16
2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais, da maneira que conhecemos atualmente, tiveram
início somente no Iluminismo como direitos de defesa contra o Estado Absolutista,
mas, já na ordem jurídica romana, os juristas tiveram posição de destaque na defesa
dos direitos fundamentais dos particulares em face do Estado.8 9
O papel dos pretores, magistrados judiciais competentes para a administração
da justiça; dos juristas, pessoas privadas versadas em Direito; e do iudex, juiz do caso
concreto, homem privado, que não era funcionário público nem tinha conhecimento
do Direito, foi fundamental para que a República Romana desenvolvesse as primeiras
previsões de proteção jurídica em um edito, que era publicado pelos pretores
anualmente.10
Portanto, ao lado do legislador popular, os magistrados judiciais,
aconselhados pelos juristas, através de decisões racionais e compreensíveis, criaram
um gigantesco material de regulação do Direito Privado.11 Esses foram os primórdios
do papel do Estado na defesa dos direitos dos privados.
Após a dissolução da sociedade medieval, nasceu o Estado absoluto,
centrado na figura do rei ou príncipe, com características de ilimitação jurídica (legibus
solutus12) e política. O poder do soberano não estava adstrito ao Direito anterior,
tampouco ao próprio Direito que ele mesmo editava.13
O Estado absoluto não mais se sustentou após um surto de consciência
política que culminou com acontecimentos históricos imprescindíveis para o triunfo da
plataforma liberal: a Revolução Gloriosa inglesa (1688), a Bill of Rights inglesa (1689),
a independência das colônias inglesas da América do Norte (1776), a Constituição
8 “…o Estado é compreendido como uma reunião de cidadãos privados que se unem pelo consenso sobre o Direito e o proveito coletivo, então, por meio da conformação das relações entre privados, se fazem também forçosa e implicitamente correguladas, em essência, as questões do Estado…” (CHIUSI, Tiziana. A dimensão abrangente do Direito Privado romano - observações sistemático-teoréticas sobre uma ordem jurídica que não conhecia “Direitos Fundamentais”. In: MONTEIRO; António Pinto; NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs). Direitos Fundamentais e Direito Privado - Uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 14). 9 Ibid., p. 14 e 15. 10 Ibid., p. 14 e 15. 11 Ibid., p. 15. 12 The prince is above the law, i.e. immune from the law's norms. 13 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 66.
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dos Estados Unidos da América (1787), a Bill of Rights norte-americana (1791), a
Revolução Francesa (1789), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), e a primeira Constituição francesa (1791). Assim, surgiu o Estado Liberal de
Direito, no qual a teoria dos direitos fundamentais e o princípio da separação dos
poderes encontraram solo fértil para se desenvolverem, pois era necessário
estabelecer limites jurídicos e políticos ao poder do Estado.14
As Declarações de Direito das revoluções americanas e francesas no final do
século XVIII são reflexos da concepção liberal dos direitos fundamentais, que é,
primeiramente, uma concepção jusnaturalista, segundo a qual esses direitos são
inerentes ao homem por sua própria natureza, incumbindo ao Direito Positivado
reconhecê-los e agasalhá-los, já que são anteriores ao Direito Positivo e existem
independemente deste.15
O jusnaturalismo é anterior até mesmo à existência do Estado ou qualquer
outra forma de controle ou de dominação e é “constituído por princípios normativos da
conduta social que se impõem como necessárias consequências da natureza humana
e os quais ninguém pode violar sem injustiça”.16 Portanto, o Direito natural, que é,
essencialmente, para o artigo 2o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
os direitos à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão, cumpre
três funções em razão dessa postura. A primeira é ser fundamento do Direito positivo,
que perde o sentido de obrigatoriedade caso se afaste do Direito natural; a segunda
é inspirar o conteúdo do Direito humano e ser constutuído sobre a base dos direitos
individuais; a terceira é ser levado em conta quando da aplicação do Direito positivo
pelo poder político que o deve respeitar e está estampado no artigo 2o da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão: “A finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”.17
14 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 66. 15 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 8. 16 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 8. 17 Declaração dos direitos do homem e do cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em: 12 mai. 2016.
18
Os direitos individuais são os intrínsecos à natureza humana e, portanto, são
os mesmos em todos os tempos e lugares. Como consequência da posição natural
desses direitos, decorre a igualdade de todos os homens, como está no artigo 1o da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Os homens nascem e são livres e
iguais em direitos.”18
Nessa sociedade liberal em que a igualdade dos homens era suficiente para
afastar a ameaça que apenas originava-se do Estado, os direitos fundamentais eram
os direitos de defesa contra o Estado, sendo somente destacados nas relações entre
indivíduos e os poderes constituídos.19
Na lógica do Estado Liberal de Direito, o que garante a liberdade dos
indivíduos é a separação entre o Estado e a sociedade. O Estado, pensado como
violador dos direitos dos cidadãos, deve diminuir a sua atuação ao mínimo para que
a sociedade possa desenvolver-se de maneira harmoniosa. Os direitos fundamentais,
no Estado Liberal, funcionam como direitos de defesa da sociedade em face das
agressões do poder estatal, são exclusivos do campo indivíduo-Estado, não fazendo
sentido falar da eficácia desses direitos nas relações interprivados. A tentativa de
aplicar os direitos fundamentais nas relações indivíduo-indivíduo, nas palavras de
Forsthoff (1971), leva à criação de “conceitos bem intencionados, moralmente
louváveis, mas juridicamente nas nuvens.”20
Portanto, no Estado Liberal, os indivíduos estavam preocupados com a
proteção de sua esfera livre e individual, ou seja, a liberdade estaria melhor garantida
quanto menos o Estado intervisse. Não era desejo dos indivíduos, naquele momento
histórico, a intervenção do Estado, mas, sim, a abstenção dos poderes. Esse fato fica
desmonstrado com os direitos proclamados pelas Revoluções Americana e Francesa,
que são essencialmente direitos negativos.21
18 Declaração de direitos do homem e do cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em: 12 mai. 2016. 19 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 10-11. 20 FORSTHOFF apud DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 256-258, abr.-jun. 1987. 21 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 10-11.
19
O pensamento liberal desenha o arcabouço de garantir a convivência sadia
das liberdades individuais. O Estado democrático é o “garante e regulador” desses
direitos através da vontade da maioria com os contornos bem definidos na lei.22
Os direitos fundamentais que constavam nas primeiras Constituições e
declarações eram os direitos naturais do homem, anteriores à própria noção de
Estado.23 Os direitos fundamentais funcionavam como limites externos ao poder do
Estado. Já a separação dos poderes estabelece-se como limite interno ao poder do
Estado e apresenta-se como a garantia orgânica dos direitos fundamentais.24
Restou evidenciado, nas declarações de direitos e nas Constituições desse
período, que estes dois institutos – reconhecimento dos direitos fundamentais e a
separação dos poderes – fundavam uma nova fase. Esses institutos foram
normatizados no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789):
“toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação
dos poderes determinada não tem Constituição”25.
A sociedade, no Estado Liberal de Direito, pressupunha, como já tido acima,
que o único ente que poderia ameaçar os direitos individuais era o próprio Estado.
Cabe aqui ressaltar que os direitos fundamentais na Europa26, nesse momento da
22 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 14. 23 Artigo 1º da Declaration of Rights de Virginia. Estados Unidos, 1776: “That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety.” Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/virginia_declaration_of_rights.html> Acesso em: 11 mai. 2014. Artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 1789: "A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.” Disponível em: <http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm> Acesso em: 11 mai. 2014. 24 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 68. 25 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm> Acesso em: 11 mai. 2014. 26 Wilson Steinmetz ressalva que: “Nos Estados Unidos da América, ocorreu algo diverso, porque a supremacia da Constituição sobre as demais fontes do direito se afirmou desde o início por meio da judicial review of legislation, mecanismo inaugurado na decisão da Suprema Corte no caso Marbury contra Madison (1803)” (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 70).
20
história, não eram aplicados diretamente nas relações indivíduo-Estado. Aliás, houve
a inserção de um terceiro elemento ao lado dos direitos fundamentais e a separação
dos poderes: o princípio da legalidade. Assim, os direitos fundamentais consagrados
nos instrumentos constitucionais não tinham aplicabilidade direta, eram apenas
direitos programáticos que orientavam futura concretização do Poder Legislativo
através da lei. Portanto, se no Estado absolutista o poder soberano centrava-se na
figura do monarca, agora esse poder centra-se no parlamento ou na assembleia27.
Nas palavras de Wilson Steinmetz (2004): “…os direitos fundamentais eram limites ao
poder do Estado definidos pelo próprio Estado por meio de lei e não definidos pela
Constituição…”.28
Vale mencionar, neste ponto, que apenas os Poderes Executivo e Judiciário
estavam limitados pelos direitos fundamentais através de lei. Isso porque o Poder
Legislativo não estava vinculado aos direitos fundamentais, já que, como criador das
leis, somente estava sujeito a si mesmo29 e sujeição a si mesmo não é sujeição, mas,
sim, liberdade.30
Atualmente, para definir-se em qual o modelo constitucional de sociedade
está inserido determinado Estado, são decisivas as normas de direitos fundamentais
sancionadas, as normas que consagram a forma de Estado e as normas que
estabelecem o sistema econômico. Assim, há uma interligação próxima entre os
direitos fundamentais e o Estado de Direito, uma vez que os direitos fundamentais
demandam, para sua concretização, o Estado de Direito, enquanto o Estado de
Direito, para ser assim denominado, há que ser garantidor dos direitos fundamentais.31
Os direitos fundamentais, no Estado de Direito, constitutuem a garantia
principal para os cidadãos de que os sistemas jurídico e político, em seu conjunto, se
orientarão para fazer respeitar e promover a pessoa humana, seja na sua dimensão
27 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 73-74. 28 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:
Editora Malheiros, 2004. p. 7. 29 Ibid., p. 77. 30 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Beatriz Nizza da Silva. Capítulo XXIX. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Estudos Gerais Série Universitária - Clássicos de Filosofia. 31 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 19.
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individual (Estado liberal de Direito), seja conjugado com a exigência de solidariedade,
corolário da componente social e coletiva da vida humana (Estado social de Direito).32
As alterações do Estado Liberal ao Estado Social, motivadas pela ascensão
social na política, levam ao crescente intervencionismo do Estado, visto como meio
de concretização da felicidade individual. O Estado advém não mais apenas como
violador dos direitos da sociedade, mas começa a atuar como conformador da
sociedade, corrigindo e atenuando os seus desequilíbrios.33
Esse viés democrático, como resultado da Revolução Industrial, iria
desenvolver-se até o final do século XIX, em consequência das mudanças sociais e
econômicas desse processo. E é esse processo de transformação que enseja a
evolução dos direitos fundamentais para os direitos positivos no Estado Social de
Direito.
A matéria dos direitos fundamentais liga-se à ideia do Homem e das suas
relações com os seus pares e com o Estado e essa ideia é, portanto, positivada
através da Constituição.34
Com essas transformações, surgem organismos, como partidos políticos,
sindicatos e associações diversas, que se posicionam entre o indivíduo e o Estado e
não se restringem em tomar ou influenciar o poder desse Estado, mas, sim, vão
adquirindo, paulatinamente, um status de poder.35 “O poder deixa de ser privilégio
exclusivo do Estado, para passar a ser repartido e compartilhado pela própria
sociedade”36. O Estado passa de exclusivo detentor de poder para organismo que
coordena e arbitra os variados poderes agora espalhados na sociedade.37
Dessa forma, os direitos fundamentais, que foram concebidos, a priori, para
colocar freios ao Estado, alargaram sua esfera de proteção para também proteger o
32 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 20. 33 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 262, abr.-jun. 1987. 34 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 7. 35 ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o Direito Privado. Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. 2009. p.223-240. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Faculdade de Lisboa, Lisboa, 1962. 36 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987. 37 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987.
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cidadão em face de todas as situações de poder, uma vez que aquele deixou de ter o
previlégio de ser a única fonte de ameaça. “A liberdade do cidadão em face do poder
não pode se restringir, somente, contra o poder do Estado, mas, também, contra o
poder econômico, o poder empresarial, o poder sindical, o poder da Comunicação
Social, etc.”38
Neste ponto, toma relevo a dimensão objetiva dos direitos fundamentais
quando se contextualiza com o problema da vinculação das entidades privadas pelos
direitos fundamentais. Isso porque o reconhecimento da dignidade humana pela
imputação de direitos fundamentais aos indivíduos tem implicações não somente do
ponto de vista individual, mas como da própria ordem poltíco-jurídica vigorante numa
determinada sociedade. Ou seja, a ordem jurídica vigente, ao conferir direitos
fundamentais aos indivíduos como “direitos fortes”, fica obrigada a criar mecanismos
de proteção efetiva desses direitos – seja nas relações daqueles com o Estado, seja
nas relações interindividuais –, já que seria impensável imaginar que o mesmo
indivíduo tivesse seus direitos fundamentais protegidos em face do Estado e esse
mesmo Estado não os garantisse em face da sociedade.39
Portanto, a importância dos direitos fundamentais enquanto princípios da
ordem jurídica há de estabelecer-se a todas as pessoas que, no dia a dia, ficam
forçadas a não os colocar em xeque.
O Estado liberal, baseado na igualdade de todos os cidadãos, mostrou-se, no
plano fático, completamente inadequado à realidade social, pois a igualdade liberal
limitava-se apenas ao gozo dos direitos. Verificou-se que, no mundo dos fatos, existe
desigualdade entre os indivíduos e que o Estado Liberal não forneceu condições
materiais para que a igualdade não se quedasse no plano meramente teórico.40
Na sociedade atual, é indene de dúvidas que as relações entre indivíduos são
desiguais e que há necessidade de garantir, máxime nas relações com “grupos
sociais” de maior poder, “um efetivo exercício das liberdades nas próprias relações
entre particulares”.41 Esses grupos conseguem se sobrepor à igualdade formal do
38 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987. 39 Ibid., p. 264. 40 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p.15. 41 Ibid., p.16.
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Estado Liberal e impor suas vontades ante a vontade dos indivíduos em face do poder
econômico e social. Daí surge o Estado Social de Direito, contra toda a tradição liberal,
delineado pela primeira vez na Constituição alemã de Weimar, como garantia dos
direitos fundamentais dos indivíduos positivados nas Constituições.
José João Nunes Abrantes (1990) menciona que, no Estado Social de Direito,
começam a aparecer novos direitos, “...quer direitos das colectividades (sic) ou
agrupamentos sociais (família, grupos profissionais, etc.), quer direitos a prestações
do Estado (direito ao trabalho, direito à assistência pública, direito à instrução, etc.)...”
e que esse Estado tem “o direito e o dever de intervir nas relações econômicas entre
os cidadões” mesmo se tal intervenção limite as liberdades contratuais e de
propriedade privada.42
Duas influências marcaram a evolução do Estado para o do Social de Direito:
“um processo de democratização política e um processo de socialização”.43
O processo de socialização, em especial, juntamente com o processo de
democratização, levou a uma nova definição de direitos fundamentais, elevando-os à
categoria de princípios (normas de valor)44. Os direitos fundamentais converteram-se
“no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição”45, irradiando sua
eficácia tanto em direção ao Direito Público como também ao Direito Privado. O
Estado passa a ser visto não como apenas inimigo dos indivíduos, mas, sim, como
algo indispensável para a defesa dos direitos fundamentais numa sociedade marcada
pelas desigualdades de poder.46
O Estado Social de Direito tem como diretriz primordial a igualdade social –
diferente da igualdade jurídica proposta pelo Estado Liberal – e traz uma nova
42 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 43 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 44 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 45 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541. 46 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 18.
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categoria de direitos fundamentais que são os direitos positivos ou “direitos a
prestação do Estado”.47
Os direitos fundamentais positivos são direitos não em face do Estado, mas
que têm como sujeito passivo esse mesmo Estado, que implemantará políticas
públicas que “facultem e garantam o gozo efectivo (sic) dos bens constitucionalmente
protegidos”.48
O Estado e os cidadãos curvam-se para a realidade que de pouco servem os
direitos se não houver os meios eficazes de os exercer, ou seja, é mais importante a
faculdade dos indivíduos poderem gozar de seus bens da vida do que o
reconhecimento meramente formal desses direitos.
47 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 19. 48 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 19.
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3 AMEAÇA "HORIZONTAL" A DIREITOS FUNDAMENTAIS
É sabido que os direitos fundamentais e suas posteriores positivações nas
Declarações e Constituições a partir do final do século XVIII se alicerçam na ideia de
garantir um âmbito privado imune à interferência estatal. A ideia basilar era de uma
sociedade autorregulada, composta de homens iguais, em que a autonomia da
vontade era a mola propulsora, de maneira que as leis e os Códigos não podiam
restrigir e sim, pelo contrário, deviam criar meios de efetivar essa autonomia. Porém,
essa ideia ficou apenas para recordação, já que o binômio Constituição-Código Civil
visto como uma figura de duas retas paralelas não se apresenta mais como apto para
descrever a estrutura fundamental do ordenamento jurídico porque a ideia subjacente,
isso é, a separação igualmente estrita entre Estado e Sociedade, também deixou de
existir.49
As Constituições atuais de países como Portugal50, Suíça51 e África do Sul52
tratam da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, mas,
49 TORRES, Jesús Garcia; BLANCO, Antonio Jimenez. Derechos fundamentales y relaciones entre particulares. Madrid: Civitas, 1986, p. 11-12. 50 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 51 Art. 35o Execução dos direitos fundamentais 1 Os direitos fundamentais devem ser respeitados em toda a Ordem Jurídica. 2 Aquele que exerce funções estatais está comprometido com os direitos fundamentais e obriga-se a colaborar para a sua concretização. 3 As autoridades cuidam para que os direitos fundamentais, desde que aplicáveis, sejam eficazes também entre pessoas privadas. (SUIÇA. Constituição (1999). Constituição Federal da Confederação Suíça. Disponível em: . <http://www.admin.ch/org/polit/00083/index.html?lang=it&download=NHzLpZeg7t,lnp6I0NTU042l2Z6ln1ah2oZn4Z2qZpnO2Yuq2Z6gpJCDdH9,fmym162epYbg2c_JjKbNoKSn6A--> Acesso em: 4 mar. 2014). 52 8. Application 1. The Bill of Rights applies to all law, and binds the legislature, the executive, the judiciary and all organs of state. 2. A provision of the Bill of Rights binds a natural or a juristic person if, and to the extent that, it is applicable, taking into account the nature of the right and the nature of any duty imposed by the right. When applying a provision of the Bill of Rights to a natural or juristic person in terms of subsection (2), a court- a. in order to give effect to a right in the Bill, must apply, or if necessary develop, the common law to the extent that legislation does not give effect to that right; and b. may develop rules of the common law to limit the right, provided that the limitation is in accordance with section 36 (1).
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durante muito tempo, a discussão somente foi enfrentada pela doutrina e
jurisprudência com alguns dispositivos esparsos como o artigo 9o, número 3, da
Constituição alemã.53 54
O artigo 18.o, no 1, da Constituição da República de Portugal autoriza
expressamente que as normas de direitos fundamentais sejam aplicadas diretamente
aos particulares: "Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.55
Destaca-se que parte da doutrina portuguesa entende que a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais somente ocorre por força desse artigo nas
relações entre empresas privadas, pela expressão "entidades privadas", e os
indivíduos e não às relações cidadão-cidadão. Portanto, para essa corrente
doutrinária, caberia a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações
juslaborais.56
Gomes Canotilho (2003) entende que o direitos fundamentais são aplicados
a todos os entes privados, com base no artigo 18.o, no 2, da Constituição portuguesa,
pois, ao contrário da Constituição alemã, na qual diz somente que os direitos
fundamentais vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no tocante à
aplicação direta dos direitos fundamentais, a Constituição portuguesa consagra a
aplicação dos direitos fundamentais às entidades privadas “sem qualquer restrição ou
4. A juristic person is entitled to the rights in the Bill of Rights to the extent required by the nature of the rights and the nature of that juristic person (grifo nosso). ÁFRICA DO SUL. Constituição (1996). Contituição da República da África do Sul. Disponível em: <http://www.constitutionalcourt.org.za/site/constitution/english-web/ch2.html> Acesso em: 3 mar. 2014. 53 Artigo 9, 3, da Constituição alemã: "E garantido a todas as pessoas e profissões o direito de constituir associações destinadas a defender e melhorar as condições econômicas e de trabalho. Consideram-se nulos os ajustes tendentes a restringir ou a impedir esse direito, bem como ilegais as medidas com esse fim. Segundo os artigos 12a, 35a §2, 35a §3, 87a §4 e artigo 91 não podem ser orientadas contra conflitos de trabalho, levados a cabo por associações no sentido da primeira frase, para a defesa e melhoria das condições econômicas e de trabalho" (ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014). Insta mencionar, mais uma vez, que as relações juslaborais são terreno fértil para a consagração da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, conforme se depreende do artigo citado. 54 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 60. 55 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 56 Apenas para esclarecer que o empregador também pode ser pessoa física ou individual.
27
limitação, não sendo, portanto, legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que
a doutrina estrangeira a admite quando nada nas respectivas legislações a impõe”.57
O que pode fortalecer essa tese é a intepretação literal desse artigo, bem como o
efeito socializante da Constituição, os quais fundamentariam a vinculação das
entidades, sejam públicas ou privadas, pelos direitos fundamentais e a proibição de
discriminações públicas e privadas.58
Todavia, há outra corrente doutrinária que advoga a tese que, tal qual nas
relações indivíduo-Estado, nas quais está presente a assimetria de poderes, os
direitos fundamentais, em especial o princípio da igualdade, somente limitariam
entidades privadas poderosas. Isso porque os direitos fundamentais foram
concebidos, primariamente, como direitos a serem exercidos pelos indivíduos em face
do Estado em relações de desigualdade. Portanto, todas as posteriores relações na
sociedade que não mais tiveram o Estado como único violador de direitos
fundamentais e sim outros organimos centralizadores de poder levam a alargar a
aplicação dos direitos fundamentais a todas essas relações, nas quais essa mesma
desigualdade se verifica.59
O Brasil não possui uma regra explícita sobre a vinculação dos particulares
aos direitos fundamentais em sua Constituição Federal, contudo, alguns autores
defendem que há essa vinculação em decorrência do artigo 5o, parágrafo primeiro, da
CFb, o que, data máxima vênia, não é o que texto sugere. Segue a redação do artigo:
“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”60.
Os direitos fundamentais apresentam-se na normativa constitucional de duas
formas, a subjetiva e a objetiva, “ambas mantendo uma relação de remissão e de
complemento recíproco”61.
57 CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1288. 58 Ibid., p. 268-269. 59 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 269, abr.-jun.1987. 60 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da república Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15 abr. 2017. 61 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paul : Saraiva, 2016, p. 166.
28
Na primeira, seriam analisados na sua dimensão subjetiva, isso é, são direitos
subjetivos, dos particulares, constituindo direitos de defesa contra os poderes estatais
e também nas relações entre si.
Portanto, os direitos fundamentais estendem-se a tutelar a liberdade,
autonomia e segurança dos cidadãos não somente nas relações com o Estado, mas
também nas relações frente aos demais membros do corpo social.62 Analisandos-se
a questão pelo viés meramente formal de igualdade entre os indivíduos de uma
mesma sociedade, entendia-se, inicialmente, que os direitos fundamentais foram
concebidos para a defesa do cidadãos frente a todo o poder do Estado, considerando-
se que os direitos fundamentais não teriam razão de ser nas relações entre individuos
do próprio grupo onde se desenvolvem as relações entre particulares. Contudo,
observou-se que, nas relações entre supostamente iguais, na realidade, desenvolvia-
se relações assimétricas, pois, na sociedade neocapitalista da igualdade formal, não
decorre necessariamente a igualdade material. Nessa sociedade, verifica-se que o
pleno desenvolvimento dos direitos fundamentais está impedido nas relações privadas
pelos grandes conglomerados de poder com a mesma força ameaçadora dos órgãos
públicos.
A transição do Estado liberal para o Estado Social de Direito pressupôs a
extensão dos direitos fundamentais a todos os ramos do ordenamento jurídico, o que
também inclui o âmbito privado dessas relações. Antonio E. Perez Luño (1984)
assevera que seria contrassenso o Estado assegurar a livre manifestação de
pensamento aos cidadãos, mas permitir ou tolerar as pressões sobre a liberdade de
pensamento e ideias ou proibição de manifestá-las advindas de um empresário em
relação a seus empregados. É necessária a atuação dos Poderes Públicos na
ampliação da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas para promover
as condições adequadas para que a liberdade e igualdade dos indivíduos sejam reais
e efetivas, bem como retirar obstáculos que atrapalhem ou dificultem a plena eficácia
dos direitos fundamentais.63
Por seu turno, a dimensão objetiva traz os direitos fundamentais como
princípios básicos da órbita constitucional resultante do acordo básico das diferentes
62 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 22. 63 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 23.
29
forças sociais de comprometimento dos cidadãos com o dever de obediência ao
Direito. Para Canotilho (2003), “uma norma vincula um sujeito em termos objectivos
(sic) quando fundamenta deveres que não estão em relação com qualquer titular
concreto”.64
Assim, os direitos fundamentais deixaram de ser meros limites ao exercício
do poder político, vistos apenas no seu aspecto de eficácia negativa de interesses
individuais, e passaram a definir um conjunto de valores que direcionam o Poder
Público para ações positivas65. Além disso, influenciam todo o ordenamento jurídico,
servindo de inspiração para atuação de todos os poderes constituídos.66
Paulo Bonavides (2000) realça que, dentre as consequências da atribuição da
dimensão objetiva aos direitos fundamentais, está a extensão dos direitos
fundamentais para as relações jusprivatísticas.67 Nas palavras do autor:
64 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992, p. 544. 65 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. CIdade: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 21. 66 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 165. 67 Paulo Bonavides destaca outras consequências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais: “...a) a irradiação e a propagação dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito Privado; em rigor, a todas as províncias do Direito, sejam jusprivatistas, sejam juspublicísticas; b) a elevação de tais direitos à categoria de princípios, de tal sorte que se convertem no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição; c) a eficácia vinculante, cada vez mais enérgica e extensa, com respeito aos três Poderes, nomeadamente o Legislativo; d) a aplicabilidade direta e a eficácia imediata dos direitos fundamentais com perda do caráter de normas programáticas; e) a dimensão axiológica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo passo servem de inspiração, impulso e diretriz para a legislação, a administração e a jurisdição; f) o desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros (Drittwirkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisição de um "duplo caráter" (Doppelcharakter; Doppelgestalt ou Doppelqualifizierung), ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimensão subjetiva - da qual nunca se podem apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade - e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que é a dimensão objetiva, dotada de conteúdo valorativo-decisório, e de função protetora tão excelentemente assinalada pelos publicistas e juízes constitucionais da Alemanha; h) a elaboração do conceito de concretização, de grau constitucional, de que se têm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construção jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais; i) o emprego do princípio da proporcionalidade vinculado à hermenêutica concretizante, emprego não raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilíbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando de fato e de maneira insólita o papel de legisladores constituintes paralelos, sem todavia possuírem, para tanto, o indeclinável título de legitimidade; e j) a introdução do conceito de pré-compreensão (Vorverständnis), sem o qual
30
O desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros (Drittwirkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram.68 (BONAVIDES, 2000, p. 541-542).
Essa também é a conclusão do ministro Gilmar Mendes quando afirma que a
dimensão objetiva dos direitos fundamentais traz para o Estado o dever de proteção
desses direitos frente a agressões originadas tanto de particulares como de outros
Estados.69
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais reclama do Estado
providências materiais e até mesmo jurídicas para a concretização prática desses
direitos, corroborando com a ideia de que a dimensão objetiva e a subjetiva
complementam-se reciprocamente, “neste caso, atribuindo-lhe reforço de
efetividade”.70
Os direitos fundamentais contribuem com maior amplitude e profundidade
para moldar o ordenamento jurídico infraconstitucional por serem expressão do
conjunto de valores ou decisões axiológicas básicas de uma sociedade consagrado
nas normas constitucionais.71
Kant via o Direito Privado partindo do princípio do equilíbrio entre a liberdade
de uns e a liberdade de outros. O Direito comum Prusiano protegia a liberdade natural
do homem de poder buscar e promover seu próprio bem-estar sem prejuízo dos
direitos dos outros. Também em Carl V. Rotteck se defende a pluralidimensionalidade
do problema da liberdade com claridade. Segundo ele, o Estado, enquanto instituição
jurídica e em sua qualidade como tal, tem que reconhecer e proteger a liberdade de
seus membros como um direito que têm simplesmente enquanto cidadãos em todas
as esferas da atividade humana. Se o Estado se afasta do dever de intromissão nos
não há concretização” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541-542). 68 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541-542. 69 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 166. 70 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 166. 71 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 21-22.
31
direitos de liberdade de seus membros, deixa de protegê-los contra as intromissões
de outros, o que poderia levar a desproteger alguns de seus cidadãos.72
Dessa forma, entende-se que o Estado não deveria tolerar servidão nem
permitir nada parecido. Deve, sim, governar seus cidadãos através de leis sábias e de
sua administração pública ante o ameaçante esmagamento da liberdade sempre e
onde se produza o abuso do poder privado.73
As proclamações de Direiros dos Estado europeus respondem ao esforço de
dar uma expressão legislativa às doutrinas antiabsolutista de Direito Natural e do
Direito Racional de limitação do poder estatal e aos inalienáveis direitos à liberdade e
à igualdade do indivíduo. O conceito clássico de direito fundamental contido nessas
proclamações era principalmente o de status negativus sive libertatis do indivíduo, que
se dirigia contra o Poder Público, criando um direito do indivíduo instituído sobre uma
esfera livre do Estado, limitando, assim, as possibilidades de injerência do Estado na
esfera jurídica individual.74
As disposições de direitos fundamentais não deviam estabelecer critérios ou
fixar limites às relações jurídicas concretas dos cidadãos entre si, já que não eram
garantias de liberdade e de igualdade em todas as direções, nem dirigidas ou relativas
em relação a terceiros. Eram, sim, garantias de liberdade e de igualdade dirigidas ou
relativas ao Estado, como se deprende do texto do artigo 1.3 da Lei Fundamental de
Bonn75, que expressa uma vinculação imediata dos direitos fundamentais somente ao
Poder Público.
A Constituição de Weimar também caminhava no mesmo sentido, ou seja, o
de proteção dos direitos fundamentais contra o Estado, porém, com duas importantes
exceções que valem a menção. A primeira garantia a liberdade de expressão no artigo
72 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de
Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 69-70, set./dez. 2002. 73 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 69-70, set./dez. 2002. 74 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 70, set./dez. 2002. 75 Artigo 1.3 da Constituição de Bonn: Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos fundamentais aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, execeutivo e judiciário. (ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014.)
32
11876 e mencionava que esse direito estava protegido contra os poderes sociais não
estatais. Vale destacar, que a liberdade de expressão estava assegurada pela
Constituição de Weimar nas relações de emprego e, por óbvio, em face dos
empregadores, podendo-se concluir que referida Constituição, pelo menos em seu
artigo 118, previu a possibilidade da vinculação imediata dos direitos fundamentais
nas relações laborais. A segunda, por sua vez, assegurava aos indivíduos a liberdade
para a formação de sindicatos, como se depreende do artigo 159 da Constituição de
Weimar77, bem como o direito dos trabalhadores de melhorarem suas condições de
trabalho, sendo qualquer contrato de emprego ilegal se limitar ou obstruir referidos
direitos, podendo os particulares invocarem diretamente à Constituição para
assegurar a observância desses direitos. É a aplicação direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas, para alguns autores, e essas duas exceções vêm
confimar a regra geral, a característica de direitos dirigidos em face do Estado dos
direitos fundamentais.78
Ao lado das chamadas normas de Direito Constitucional que já preveem como
destinatários os particulares e que influenciam, portanto, expressamente o Direito
Privado, pode-se, por outro turno, fundamentar a influência do Direito Constitucional
no Direito Privado. Sobre o assunto, há que ter em mente que os direitos fundamentais
formulados na maioria da constituições afetam a relação do indivíduo com o Estado.
Isso porque os direitos fundamentais são a resposta específica do Direito
Constitucional à experiência histórica de que o Poder Público tende a lesionar a
liberdade dos cidadãos.
Não obstante, não somente problemas de liberdade e de igualdade nas
76 Artigo 118 da Constituição de Weimar: “Every German is entitled, within the bounds set by general law, to express his opinion freely in word, writing, print, image or otherwise. No job contract may obstruct him in the exercise of this right; nobody may put him at a disadvantage if he makes use of this right. There is no censorship; in case of the cinema, other regulations may be established by law. Also in order to combat trashy and obscene literature, as well as for the protection of the youth in public exhibitions and performances legal measures are permissible” (ALEMANHA. Constituição de Weimar (1919). Disponível em: <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php> Acesso em: 26 set. 2016.). 77 Artigo 159 da Constituição de Weimar: “The right to form unions and to improve conditions at work as well as in the economy is guaranteed to every individual and to all occupations. All agreements and measures limiting or obstructing this right are illegal” (ALEMANHA. Constituição de Weimar (1919). Disponível em: <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php> Acesso em: 26 set. 2016.). 78 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 71, set./dez. 2002.
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relações entre o cidadão e o Estado, há também dos cidadãos entre si, especialmente
sob o ponto de vista de diferença de sexos e nas relações de desigualdade social,
como ocorre nas relações de emprego. Os constituintes, quando da promulgação da
maioria das Constituições a partir da Consitituição de Weimar, em todo o mundo, já
sabiam da problemática da aplicação dos direitos fundamentais e confiaram ao Direito
Civil já existente e ao futuro legislador civil a resolução da aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas. Portanto, a decisão de conceber eficácia aos
direitos fundamentais não só nas relações indivíduo-Estado como também nas
relações indivíduo-indivíduo tem que ser levada a sério e colocada na base da
interpretação dos direitos fundamentais.79
Sem querer ultrapassar as constatações acima, o ideal é fundi-las à ideia de
que a Constituição e o Direito Privado não estão situados um ao outro sem se
relacionarem. Inclusive, quando no tráfico jurídico entre particulares, devem ser
respeitadas a vida, a saúde, a honra e a propriedade e isso não é uma consequência
de uma vinculação imediata de todos os cidadãos aos direitos fundamentais que foram
concretizados na Constitutição. Na realidade, são regras de convivência social, sobre
as quais também se fundamentam os direitos fundamentais. A imagem do indivíduo
como ser humano propagada nas Constituições não é somente fundamento dos
direitos fundamentais na relação Estado-indivíduo, mas, sim, a base para a
construção do Direito Civil. A garantia da dignidade da pessoa humana expressa na
maioria das constituições ocidentais impõe ao Estado assegurar os meios adequados
para a concretização dessa garantia, inclusive nas relações jurídicas entre
particulares.80 81 82
A pespectiva apresentada anteriormente exclui uma aplicação analógica dos
79 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 73, set./dez. 2002. 80 “Artigo 1.1: A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o Poder Público” (ALEMANHA. . Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Berlim, 1949. Disponível em: <https://www.btgbestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016). 81 “Artigo 10.1. A dignidade, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamento da ordem política e da paz social” (ESPANHA. Constituição (1978). Constituição Espanhola. Madrid: 1978. Disponível em: <http://autodesarrollate.blogspot.com.br/2013/05/constituicao-espanhola-de-1978.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 82 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 74, set./dez. 2002.
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direitos fundamentais que não foram mencionados ao Direito Civil. Assim, o Direito
Civil, no tráfico jurídico, é de sempre e apenas contemplação da imagem do homem
desenhada no âmbito dos direitos fundamentais expressados nas constituições. Isso
é visto ancorado na chamada eficácia jurídica objetiva dos direitos fundamentais
através de decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, em especial, na
decisão do caso Lüth.83
A solução do problema da aplicação dos direitos fundamentais em relação a
terceiros, com a utilização da eficácia jurídica objetiva dos direitos fundamentais, tem
a vantagem de que esses direitos, limitados às relações entre o Estado e o cidadão,
não devem ser manipulados para utilização indiscriminada em face dos particulares.
Além disso, o recurso à imagem do homem estampada nos direitos fundamentais evita
qualquer solução global e forçada. O influxo dos direitos fundamentais sobre o Direito
Privado através do Tribunal Constitucional e dos tribunais ordinários necessita de uma
fundamentação específica além dos deveres concretos de proteção e de igualdade
relacionados ao Direito Civil.84
Por óbvio, as considerações acima, desenhadas para um modelo alemão,
podem e devem ser trazidas para a realidade brasileira, pois os direitos fundamentais,
enquanto parte do Direito Constitucional, gozam de hierarquia superior ao Direito
ordinário e, por consequência, ao Direito Privado. E assim, não é possível impedir a
influência dos direitos fundamentais no Direito Privado.
Com a expressão alemã Drittwirkung der Grundrechte (vinculação dos direitos
fundamentais em relação a terceiros) se denota a incidência dos direitos fundamentais
no Direito Privado e nas relações jurídicas privadas.
Os direitos fundamentais nos Estados Constitucionais, ao longo desses mais
de 200 anos do Estado de Direito, são um sucesso, pois representam garantias
jurídicas, principalmente naqueles Estados que têm o controle de constitucionalidade
fortalecido. E mais, o Direito Constitucional atualmente está centrado na figura dos
direitos fundamentais. Os direitos fundamentais protegem as pessoas, suas
liberdades, suas autonomias, seus estados. Mas em que relações? Quando os direitos
fundamentais surgiram nos Estados de Direito, foram criados sob a ideia de que
83 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 74-75, set./dez. 2002. 84 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 75, set./dez. 2002.
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seriam garantias jurídicas aplicadas em face do Estado. Nos Estados Unidos da
América (EUA), o Judiciário assumiu, já naquele momento histórico, o protagonismo
na análise da constitucionalidade das leis quase da mesma forma que se encontra
atualmente nas democracias constitucionais. Na Europa, ao contrário do que verificou-
se nos EUA, não se constatou a possibilidade de não aplicação da lei com fundamento
de incompatibilidade com o texto constitucional.85 Nas palavras do Professor Jorge
Reis Novais (2012): "Ao invés, depositava-se implicitamente nos Parlamentos
democráticos a competência de garantia e realização política da Constituição”.86
Nos EUA, essas ideias foram logo aplicadas. Assim, restou reconhecido o
protagonismo da Suprema Corte em matéria que envolvesse norma com natureza
constitucional, apesar da visão monocromática do princípio da propriedade privada,
que vigorava naquele momento histórico, embebido das ideias liberais próprias do
século XIX. Porém, houve o amadurecimento dessa Corte Constitucional que, no
século XX, proferiu decisões que albergavam os ideais sociais de defesa dos direitos
fundamentais. Contudo, nas relações entre particulares, os direitos fundamentais não
eram aplicados nos EUA e sim somente nas relações indivíduo-Estado.
A segunda metade do século XX é o marco do novo constitucionalismo. O
mundo deixou de lado o positivismo exacerbado, que fundamentou as mais diversas
barbaridades, vivenciadas, em especial, na Alemanha sob controle do Partido Nazista
para vivenciar a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, não mais
como simples proclamação retórica, porém como mandamento com força normativa.
Em outras palavras, deixou de ser o estudo do Poder Público para se converter em
ordem jurídica fundamental da comunidade.87 Os bens, raças, religiões, sexo ou
convicções deixaram de ser o objeto principal de qualificação do ser humano.
Foi nesse momento que, na Europa, começou-se a discutir como os direitos
fundamentais incidiriam nas relações interprivados, já que houve a mudança da visão
da Constituição como simples papel político para transformá-la em norma jurídica. Nos
85 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa, Jorge Reis Novais, na conferência Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira? realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 86 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 183. 87 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 199.
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EUA, a matéria já tinha sido resolvida pela não aplicabilidade dos direitos
fundamentais às relações privadas.
Uma questão importante na discussão da aplicabilidade dos direitos
fundamentais nas relações horizontais é quem são os destinatários desses direitos.
Serão todos e quaisquer indivíduos ou apenas entes coletivos e/ou individuais com
poder?
Os efeitos dos direitos fundamentais, num primeiro momento, somente podem
existir nas relações verticais, ou seja, nas relações entre os cidadãos e o Estado. Isso
porque as próprias características dos direitos fundamentais, como a inalienabilidade
e inegociabilidade, impedem, a priori, que os direitos fundamentais sejam invocados
nas relações indivíduo-indivíduo, já que essas relações pressupõem negociabilidade
sobre esses mesmos direitos fundamentais, como, por exemplo, quando os indivíduos
celebram um contrato de emprego.
A priori, pode-se definir que os direitos fundamentais que têm como
destinatário exclusivo o Estado estariam excluídos da problemática acima, como
ocorre nas garantias do processo penal, no habeas corpus, na extradição, expulsão e
direito de asilo. 88
Não é somente o Estado que pode ameaçar os direitos fundamentais, mas as
grandes corporações detentoras de poder econômico e político, que podem violar os
direitos fundamentais dos indivíduos, assim como as relações indivíduo-indivíduo. Nas
relações entre os indivíduos e as grandes corporações, essa ameaça apresenta-se
patente, apesar de aparentar que ambos detêm autonomia de vontades, pelo
predomínio da força econômica e política dessas últimas, se equiparam ao Estado
como ameaçadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos.89
Sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, segue
decisão do Tribunal Federal do Trabalho alemão:
Em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destina-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases essenciais da vida social. Isso significa que disposições relacionadas com os direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre os indivíduos. Assim, os acordos de direito
88 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades
e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr.-jun. 1987. 89 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53.
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privado, os negócios e os atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar de ordem básica ou ordem pública.90 (SILVA, 2011, p.166).
Para alguns autores, a vinculação dos particulares a direitos fundamentais
"será tão maior quanto maior for a assimetria na relação".91 Por isso, destaca-se que,
em todas as relações juslaborais, a vinculação dos particulares a direitos
fundamentais mostra-se presente em grau elevado devido à assimetria que existe
nessa relação e que foi consagrada pelos princípios protetivos das relações de
emprego, em especial o princípio in dubio para o empregado. Quanto maior o poder
do empregador na relação empregatícia, maior a sua responsabilidade no tocante à
responsabilidade pelas lesões sofridas pelos seus empregados em seus direitos
fundamentais em decorrência da relação de emprego.92
Há duas questões que precisam ser ventiladas. A primeira é saber se as
entidades privadas estão vinculadas aos direitos fundamentais com a mesma
intensidade das entidades públicas e, em segundo lugar, saber se a vinculação das
entidades privadas tem ou não siginificados distintos consoante a entidade em causa.
Há quem defenda que os direitos fundamentais aplicam-se também às relações entre
particulares, nos mesmos moldes em que se aplicam às relações entre o particular e
o Estado93.
Por outro turno, Vieira de Andrade (1987) defende que a vinculação das
entidades privadas é menos intensa que a das entidades públicas, todavia o seu grau
de intensidade possa variar, dependendo das entidades em causa.94 As entidades
privadas que dispõem de um poder econômico ou social susceptível de conformar
aspectos relevantes da vida dos indivíduos são destinatárias dos direitos
fundamentais. Porém, as situações de poder social são muitas e diferenciadas e o
grau e a medida da aplicabilidade dos direitos fundamentais têm necessariamente de
90 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 166. 91 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53. 92 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na relação de emprego. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 17, 33-45, jan./jun. 2011. 93 CANOTILHO, JJ. Gomes . Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1288. 94 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 270-271, abr-jun; 1987.
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variar conforme os tipos de situações e as circunstâncias que só em concreto podem,
em última análise, ser determinadas. Desse modo, não se pode tratar da mesma
maneira a relação de poder que existe dentro da família entre menores e pais e aquela
que liga um empregador a um empregado numa empresa. Um exemplo prático de
violação de direitos fundamentais seria o das closed-shops, em que os empregadores
se obrigam a não admitir e até, por vezes, a despedir trabalhadores não inscritos num
determinado sindicato. Essa era uma prática frequente na Grã-Bretanha, várias vezes
condenada no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.95
É preciso ter em mente que se trata de uma intensidade menor do que a em
face das entidades públicas, pela necessidade de coordenar a vinculação dos direitos
fundamentais com os princípios básicos do Direito Privado. Contudo, um aspecto que
não oferece dúvidas é quando há uma relação de poder, como nos casos das relações
de emprego. Quando, no caso concreto, está em causa uma relação de desigualdade,
a doutrina é unânime em afirmar que, relativamente a essas entidades privadas, se
verifica uma vinculação quase similar à do Estado.96
Importante frisar que, em alguns casos, será fundamental distinguir relações
típicas entre particulares (entre iguais) e relações em que os privados envolvidos
estão em níveis substancialmente distintos, de modo que um deles possa, em
consequência de uma preeminência de partida, afetar substancialmente as condições
de liberdade e autonomia.97
Concluindo, ao falar da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais,
englobam-se, na mesma expressão, duas modalidades de vinculação distintas. A
primeira vinculação, a título principal, cabe às entidades privadas dotadas de poder e
pela qual estas se encontram obrigadas a um dever ativo de cooperação com os
particulares que, em face delas, podem fazer valer de direitos fundamentais. A
segunda vinculação, a título secundário, que cabe a todo e qualquer indivíduo, é a de
respeitar um direito fundamental reconhecido a um terceiro em face do poder e cujo
reflexo, nas relações interprivadas, é esse dever geral de respeito.98 No primeiro caso,
95 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 263-264. 96 DA SILVA, Vasco, Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 271, abr.-jun.1987. 97 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105-106. 98 O Professor Vasco Pereira da Silva menciona que a vinculação das entidades privadas pelos direitos fundamentais pode assumir a forma de uma eficácia horizontal, quando são
39
a vinculação obriga a um dever ativo de cooperação; no segundo caso, a vinculação
apenas obriga a um dever geral de respeito.99
Vale ainda mencionar que, diferentemente das relações entre o Estado e os
cidadãos, em que aquele somente é sujeito passivo dos direitos fundamentais, nas
relações entre particulares, mesmo que grandes corporações, ambos são titulares de
direitos fundamentais.100 Por isso, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações
privadas não pode ter a mesma eficácia da aplicação dos direitos fundamentais que
nas relações entre os particulares e o Estado e, deve, portanto, ser aplicada cum
grano salis.
É corriqueira a afirmação de que certos direitos fundamentais somente são
dirigidos ao Estado enquanto outros seriam somente dirigidos aos particulares. A
resposta à afirmação acima, com o mínimo de cientificidade, conforme será
demonstrado no decorrer deste trabalho, só é possível se considerar os direitos
fundamentais de forma geral, pois, de outro modo, deixará sempre ao critério do
intérprete o tipo de direito fundamental, se dirigido ao Estado ou ao particular, e da
seleção da teoria a aplicar ao caso, “justificando, dessa forma, uma resposta que,
afinal, já estava encontrada”.101
A dificuldade de saber se os direitos fundamentais produzem efeitos somente
nas relações entre os cidadãos e o Estado ou também nas relações indivíduo-
indivíduo foi apresentada e, durante muito tempo, quase que só debatida na esfera da
doutrina alemã. 102
A questão se os direitos fundamentais exercem influência nas relações
jurídicas entre particulares na Alemanha é tratada pelo nome de Drittwirkung der
Grundrechte e, ao que parece, foi Ipsen quem batizou o problema, conferindo-lhe o
entidades privadas poderosas destinatárias dos direitos fundamentais, ou pode assumir a forma de uma eficácia externa quando sujeitos privados apenas se encontram obrigados a um dever geral de respeito dum direito fundamental, constituído numa relação, relativamente, à qual são terceiros. (DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 272, abr-jun. 1987.). 99 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 272-273, abr-jun 1987. 100 Id. 101 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Coimbra Editora 2006, p. 70. 102 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun. 1987
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nome de eficácia externa dos direitos fundamentais.103 Apesar de haver, de modo
geral, consenso em relação aos efeitos dos direitos fundamentais nas relações de
Direito Privado, a terminologia usada para descrever esse fenômeno legal é um tanto
heterogênea. Os termos mais comuns pela Europa são: eficácia horizontal e eficácia
contra terceiro. Além disso, variações terminológicas são encontradas, como, por
exemplo, efeito reflexo (França e Países Baixos).104
A ideia de efeito externo dos direitos fundamentais inspira-se no Direito Civil,
especificamente no Direito das Obrigações. O conceito de que os direitos de crédito
continham uma eficácia simplesmente inter partes foi dando lugar à afirmação de que
esses direitos possuíam um duplo efeito. Um efeito interno apontado ao devedor e
fixando-lhe uma determinada prestação e um efeito externo, que consiste no dever
atribuído a todos os outros indivíduos de respeitar o direito do credor. Dessa forma,
enquanto o primeiro efeito constititui o cerne da própria relação obrigacional, o
segundo aparece como seu acessório, pois vincula terceiros a uma atitude negativa
de deferência ao direito estabelecido pelos titulares primários da relação creditícia.105
Adaptada essa ideia do efeito externo das obrigações para a esfera dos
direitos fundamentais, tem-se que os direitos fundamentais sujeitam, primacialmente,
o Estado, enquanto as entidades privadas se encontram na posição secundária de
não poder pôr em causa esses direitos.106
Ocorre que essa construção, para muitos autores, tem sido assinalada como
equivocada. Defendem que “não se trata de um efeito externo107 de uma relação
constituída entre o particular e o Estado, mas de saber se as normas de direitos
103 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun.1987. 104 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 11. 105 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 260, abr.-jun.1987. 106 VASCO, Pereira da Silva. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun.1987. 107 Segundo Vital Moreira e Gomes Canotinho, a denominação seria incorreta, uma vez que pressupõe o paradigma liberal assente na ideia das relações indivíduo-Estado. À face da Constituição da República Portuguesa, os particulares não são terceiros, nem constituem uma componente externa da eficácia direta dos direitos, liberdades e garantias. Nesse sentido, Vieira de Andrade defende que nas sociedades de massas não se justifica a concepção que “os direitos fundamentais não valem contra os sujeitos privados, são direitos que os indivíduos apenas podem opôr aos Estados, aos Poderes Públicos”.
41
fundamentais, válidas nas relações individuo-Estado, podem ou não também valer nas
relações interindividuais.”108
Embora soubesse-se que os direitos fundamentais foram originariamente
concebidos na perspectiva vertical como direitos dos cidadãos contra o Estado, hoje,
a ideia que direitos fundamentais influenciam as relações horizontais entre partes
privadas tonou-se componente, inclusive, da “acquis commun”109 compartilhada pelos
ordenamentos jurídicos dos Estado-Membros da União Europeia. Contudo, a
aplicação dos direitos fundamentais em ações judiciais na esfera cível tem sido objeto
de críticas. De fato, a partir da visão estritamente “privatística”, alguém argumentaria
que importar as fundamentações dos direitos fundamentais para o Direito Privado
poderia solapar o rigor metodológico dos tradicionais métodos de aplicação e
interpretação das leis por conceitos vagos e temas filosóficos deduzidos das fontes
constitucionais. Além disso, há um argumento, a partir de uma pespectiva institucional,
de que a constitucionalização do Direito Privado gera o risco da criação do “governo
dos juízes”, o qual poderia minar a atuação do Parlamento eleito democraticamente.
Na mesma linha de pensamento, escolas doutrinárias na Alemanha têm
criticado a interferência da Corte Constitucional na esfera do Direito Civil,
reinvidicando que, dessa forma, haveria usurpação de competência que pertenceria
às cortes ordinárias. Apesar dessas vozes críticas, a análise empírica das leis por toda
União Europeia claramente mostra que os catálogos de direitos fundamentais
conservados nos Estados-Membros da União Europeia ou na Corte Europeia de
Direitos Humanos não definem somente direitos subjetivos individuais em face dos
Estados. Eles também constituem um objetivo sistema de valores permeando todo o
sistema legal, incluindo, especialmente, o Direito Privado. Noutras palavras, a questão
não é se os direitos fundamentais assumem ou não papel nos processos judiciais
cíveis, mas por que e como eles influenciam relações entre privados.110
O professor Mota Pinto (2005) advoga a possibilidade de que as normas
constitucionais, em especial as que consagram direitos fundamentais, têm eficácia
108 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 260, abr.-jun.de 1987. 109 Acervo comunitário que constitui a base comum de direitos e obrigações que vinculam todos os Estados-Membros que fazem parte da União Europeia. 110 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 10.
42
não somente no domínio das relações indivíduo-Estado, mas também nas relações
entre particulares (relações jurídico-privadas), sobrepondo-se, por exemplo, à vontade
dos sujeitos privados nos seus acordos.111
Dessa forma, são agasalhados, nas relações entre privados, sobrepondo-se
às suas vontades, os princípios, exemplificativamente, a seguir: liberdade de
consciência, religião e culto; liberdade de expressão e informação; direito de escolha
de profissão ou gênero de trabalho; direito à vida; direito à integridade pessoal, moral
e física; direito à identidade pessoal; direito à liberdade e à segurança; direito a uma
correta utilização dos meios de informática; princípio da igualdade dos cidadãos, com
proibição de privilégio, benefício ou prejuízo em razão de ascendência, sexo, raça,
língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,
situação econômica ou condição social; direito de constituir família e contrair
casamento; e o reconhecimento da constituição e garantia da proteção familiar.112
Com a expressão eficácia horizontal dos direitos fundamentais, preferida na
Europa, pretendem seus defensores exprimir que os direitos fundamentais incidem
não somente na relações ditas verticais, indivíduo-Estado, como também nas relações
interprivadas. Uma crítica que recai sobre essa expressão e que também é dirigida à
expressão “eficácia externa” é que ao direcionar somente aos efeitos horizontais dos
direitos fundamentais, deixa de falar quanto à intensidade desses efeitos, bem como
quanto aos seus destinatários. Contudo, o emprego da expressão, sem granus salis,
poderia distorcer sua inteligência, desviando-se para um entendimento totalitário dos
direitos fundamentais. Isso porque “somar mais uma eficácia horizontal dos direitos
de liberdade à eficácia vertical antiga seria construir o instrumento para crucificar os
direitos fundamentais ao absolutismo ético, que é, afinal, o seu pior inimigo”.113
O professor Vasco Pereira da Silva (1987) faz uma distinção entre duas
modalidades de vinculação das entidades privadas: das entidades dotadas de poder
e a da eficácia externa. Utiliza essa expressão entidades privadas, pois, no seu
entender, seria a mais adequada para abarcar toda a vasta gama de intensidade de
efeitos dos direitos fundamentais em face dos sujeitos privados.
111 PINTO, Carlos Alberto da Mota.Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 74. 112 PINTO, Carlos Alberto da Mota.Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 74. 113 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun.1987.
43
A vinculação das entidades privadas dotadas de poder
face às quais o particular poder fazer valer os seus direitos fundamentais, encontrando-se a entidade privada poderosa obrigada, não apenas respeitar, mas a colaborar com o particular para a plena realização desses direitos –
trata-se duma ‘eficácia horizontal’ dos direitos fundamentais114 (DA SILVA,
1987, p. 261).
A vinculação da eficácia externa dos direitos fundamentais, na qual todos os
indivíduos são meros terceiros, sujeitos a um dever geral de respeito, que ocorre na
relação interprivados em que não é possível estabelecer relações de poder, ou seja,
não podem estabelecer relações de direitos fundamentais, pois essas apenas valem
nas relações verticais, indivíduo-Estado ou, mais amplamente, nas relações indivíduo-
poder.115
O problema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas
passa também em saber qual a eficácia que essas normas constitucionais terão nessa
seara. Porém, uma primeira advertência que se deve ter em conta é a de que o
problema se dirige a todos os direitos fundamentais, incluindo os direitos fundamentais
que, presentes na Constituição, regulam, aparentemente e de forma quase exclusiva,
relações entre particulares, como, por exemplo, os relacionados à família, ao trabalho,
casamento, propriedade, educação. Isso porque há inclinação dos exegetas de
esquivarem-se às dificuldades por meio de diferenciação de soluções conforme o tipo
de direito fundamental em análise.116
Ora, se o Estado e os particulares são destinatários dos direitos fundamentais
e se os particulares não são destinatários desses direitos com a mesma intensidade
forte que é o Estado, já que tudo precisa de ponderação a ser realizada pelo Poder
Judiciário (teoria da eficácia imediata), há, bem da verdade, um risco da idêntica
fraqueza contagiar a força vinculativa da Constituição, isso é, sua força normativa.117
114 Ibid., p. 261. 115 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun.1987. 116 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70. 117 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora, 2006, p. 114.
44
Insta, por fim, ressaltar que os direitos fundamentais nos países periféricos
como o Brasil são constantemente ameaçados e violados no âmbito das relações
privadas ante contextos sociais caracterizados por grave desigualdade social e
assimetria de poder. Assim, qualquer dúvida acerca da possibilidade de aplicação das
normas de direitos fundamentais nas relações jusprivatisticas é afastada, a priori,
principalmente quando se tem em mente que a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais não se resume à vinculação dos particulares, abarcando a influência da
Constituição sobre as normas infraconstitucionais e sua aplicação pelos tribunais.118
119 Na realidade atual brasileira, “excluir as relações privadas do raio de incidência dos
direitos fundamentais importa em mutilar seriamente estes direitos, reduzindo a sua
capacidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana”.120
Assim, quando em certas situações em que haja ameaça ao indivíduo
proveniente de certas pessoas coletivas, grupos ou indivíduos (sindicatos,
associações partidos, relações de trabalho, situações de monopólio), faz-se
necessário proteger o indivíduo, não apenas em face do Estado, mas também em face
de entidades que detenham uma posição de domínio econômico ou social.
Necessário, contudo, que o indivíduo esteja diante de um poder de fato inequívoco.
Não será suficiente uma dependência subjetiva ou momentânea, salvo se essa
dependência determinar um vício de vontade para celebrar um negócio jurídico. 121
Assim, quando se está diante de situações de desequilíbrio negocial, a
intensidade com que o princípio da igualdade deve atuar varia em função de
118 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 122. 119 Não poderia deixar de mencionar que a doutrina brasileira, por todos, Ingo Sarlet, utiliza normas com sentidos extremamente largos para fundamentar a possibilidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tais como dignidade da pessoa humana, concepções liberais de justiça social, comprometimento da ordem constitucional brasileira com os direitos sociais e princípio informador da ordem econômica brasileira. (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 123). Talvez os autores utilizem desse estratagema, pois a Constituição brasileira não possui regra expressa, diferentemente da Constituição portuguesa, que preveja a possibilidade de expandir a eficácia das normas de direitos fundamentais aos atores privados. 120 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 61, 2011. 121 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 269, 2011.
45
elementos materiais fornecidos pelo caso concreto, de maneira que, quanto maior for
o desequilíbrio, tanto maior será a intensidade de aplicação daquele princípio. A
autonomia real da partes também deverá ser um critério a ser observado. Ao nível das
relações de emprego, por exemplo, a aplicação do princípio da igualdade deverá
variar consoante a dimensão da entidade contratante, o grau de necessidade, as
qualificações e habilitações do trabalhador. Num segundo momento, é a própria
conjuntura econômico-social subjacente à celebração do contrato que poderá
determinar uma maior ou menor necessidade de aplicação do princípio da
igualdade.122
122 MAC CRORIE, Benedita da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra: Edições Almedina, S.A. 2005, p. 57.
46
4 TEORIAS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS –
VINCULAÇÃO DAS ENTIDADES PRIVADAS
Realça-se, prontamente, a divisão da doutrina por quatro teorias quanto à
eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivados: a tese da negativa da
eficácia com sua coirmã, a doutrina da state action norte-americana; a teoria da
eficácia imediata ou direta; a tese da eficácia mediata ou indireta; e a tese dos deveres
de proteção.
Por vários anos, o debate sobre a influência dos direitos fundamentais no
Direito Privado tem sido dominado pela dicotomia entre eficácia horizontal direta e
eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, isso é, tem lugar uma vexata
controvérsia, a de saber se a aplicação dos direitos fundamentais ocorre de maneira
imediata ou mediata.
A eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais defende que a
aplicação desses direitos dar-se-á por construções típicas do privado. Aconteceria
como que uma “recepção” dos direitos fundamentais pelo Direito Privado, seja pelas
leis de Direito Privado concretizadoras de direitos fundamentais, seja pelas cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados, cujo conteúdo seria preenchido com as
normas constitucionais.123
A eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais implica que a parte em
ação judicial cível poderia invocar diretamente um direito fundamental como
fundamento de um direito privado contra um terceiro privado. A partir dessa
pespectiva, direitos fundamentais são usados como fonte de obrigações através das
quais outras partes privadas estão diretamente limitadas. Em contrapartida, de acordo
com a doutrina do efeito horizontal indireto, direitos fundamentais não são utilizados
como fontes de obrigações, mas somente como fonte de inspiração para das regras
de Direito Privado. Consequentemente, eles influenciam as relações entre privados
apenas indiretamente, através da interpretação das cláusulas gerais e dos conceitos
jurídicos indeterminados, como vetores de orientação.124
123 MAC CRORIE, Benedita da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra: Edições Almedina, S.A. 2005, p. 266. 124 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 11.
47
As diversas teorias da incidência dos direitos fundamentais nas relações
jurídicas privadas tentam fundamentar uma vinculação mais ou menos forte aos
direitos fundamentais por parte dos sujeitos de Direito Privado. O ponto de conexão
das considerações das teorias se funda não somente nas relações dos particulares
entre si, mas também na posição do legislador e do juiz cível. As doutrinas sobre a
eficácia dos direitos fundamentais frente a terceiros produzem sempre como resultado
determinar a medida da vinculação aos direitos fundamentais entre os particulares por
meio de uma legislação de Direito Privado que seja conforme aos direitos
fundamentais ou por meio de sentenças de jurisdição cível que sejam igualmente
conforme esses direitos.125
Ao se deparar com as diversas teorias que buscam explicar a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, surge a problemática sobre a denominação que
foi concebida a essas teorias. Para Christian Starck (2002), a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais tem que “sofrer” as consequências das poucos adequadas
expressões – imediatas – e – mediatas – utlizadas para diferenciar seus efeitos.126
Parte da doutrina e o Tribunal Federal do Trabalho alemão aceitam a eficácia
imediata de certos direitos fundamentais concretos. Essa vinculação deriva da
característica dos direitos fundamentais como princípios jurídicos objetivos para todo
o ordenamento jurídico. Outra parte da doutrina dos direitos fundamentais sustenta
esse efeito no dever do Estado de garantir a autonomia privada dos indivíduos. Dessa
forma, o Estado tem que respeitar os direitos fundamentais por meio da regulação
jurídica, das sentenças judiciais e do cumprimento dessas sentenças quando no
âmbito do Direito Privado, isso é, de maneira mais ampla, seria a eficácia dos direitos
fundamentais interprivados sobre a legislação do Estado e sobre a jurisdição na seara
cível.127
A controvérsia acerca do princípio da igualdade evita a teoria da eficácia
imediata dos direitos fundamentais, pois o princípio geral da igualdade constitucional
normalmente não tem vigência no Direito Privado, uma vez que é um dever de
125 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 65-66, set./dez. 2002. 126 Ibid., p. 66. 127 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 66, set./dez. 2002.
48
igualdade de trato dotado de validez geral no âmbito do Direito Privado. A autonomia
privada põe-se geralmente sobre o princípio da igualdade.
A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações
interprivados utiliza conceitos jurídicos abertos, que necessitam ser preenchidos, para
assim introduzir à interpretação das normas de Direito Privado os valores dos direitos
fundamentais. Dessa forma, se respeita o princípio da autonomia privada igualmente
protegido pela Constituição e que não pode ser sacrificado por outros direitos
fundamentais, especialmente pelo princípio da igualdade. A teoria exibida, a qual
aderiu o Tribunal Constitucional Federal alemão desde os anos 1950, se funda na
premissa de que o Direito Privado e a Constituição não estão lado a lado sem
relacionarem-se, mas, sim, que os direitos fundamentais, enquanto ordem objetiva de
valores, têm vigência em todos os âmbitos do ordenamento jurídico. Essa doutrina
não trata da questão de como os direitos fundamentais influem no Direito Civil, se não
há cláusulas gerais adequadas.128
As duas teorias não estão tão afastadas como parece num primeiro momento.
O fundador da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, Nipperdey,
discorria, acertadamente, de uma mudança de paradigma do significado dos direitos
fundamentais que a Alemanha havia experimentado com a nova Constituição de
Weimar. A Constituição não mais somente pronunciaria o estabelecimento da
organização do Estado. Nipperdey defendia que essa mudança de paradigma trouxe,
para os direitos fundamentais, a importante função de princípio imediatamente vigente
para o conjunto do ordenamento jurídico e, por consequência, também do Direito
Privado. Assim, há, nitidamente, uma especial influência dos direitos fundamentais na
legislação e na interpretação das cláusulas gerais do Direito Privado. Nipperdey
apregoou com transparência que a questão da eficácia dos direitos fundamentais não
se pode responder com um preceito de caráter geral, em direção a nenhuma das
teorias formuladas. E continua o doutrinador alemão: ao contrário, deve partir-se do
conteúdo específico, da essência e da função do direito fundamental concreto, mais
especificamente das proposições jurídicas particulares derivadas do direito
fundamental na sociedade atual. Essa visão do problema possibilita, mesmo como
128 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 67, set./dez. 2002.
49
toda a insegurança dogmática, alcançar uma solução razoável para cada caso
concreto.129
O Tribunal Federal do Trabalho alemão não desistiu formalmente da adoção
da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Contudo, em
suas decisões, apreende-se a visão dos direitos fundamentais como expressão de
uma ordem geral de valores que têm validade no Direito Privado e que influem nas
cláusulas gerais deste. Essa visão se expressa na seguinte argumentação: o Tribunal
controla a situação jurídica num primeiro momento, nos moldes do Código Civil, e
pondera depois se a solução encontrada, conforme esse mesmo Código, está em
consonância com a ordem de valores dos direitos fundamentais. A doutrina da eficácia
mediata, que tem como seu maior exponente Dürig, não adota qualquer posição sobre
a influência dos direitos fundamentais na legislação. Advoga que existe, sim, uma
influência dos direitos fundamentais na interpretação da lei. Dürig defende a
autonomia do Direito Privado, que constitui em si mesmo uma expressão dos direitos
fundamentais. Portanto, se o Direito Privado codificado representa como tal uma
essencial garantia de igualdade e liberdade, ele não tem por que ser correto apenas
se estiver sob o manto dos direitos fundamentais.130
Não seria exagero afirmar que o constitucionalismo do Direito Privado no
mundo, em especial na Europa, alcançou o seu ápice na Alemanha através das
decisões do Tribunal Constitucional daquele país.131
Com maior ou menor consonância, a doutrina mundial tem dividido a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas em basicamente eficácia
direta e indireta. Porém, além desses dois modelos, a doutrina acrescentou outros
dois: o da negação da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privados
e o da "imputação das ações dos particulares ao Estado ou da equiparação dessas
ações a ações estatais”.132
129 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 68-69, set./dez. 2002. 130 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 66, set./dez. 2002. 131 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? v. 3, n. 2. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 132 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53.
50
Desde o famoso caso Lüth, que será analisado pormenorizadamente abaixo,
decidido pelo Tribunal Constitucional alemão há mais de 60 anos, os direitos
fundamentais consagrados na Constituição alemã não são considerados apenas nas
relações indivíduo-Estado, mas também como um "sistema objetivo de valores", que
orienta todo o ordenamento jurídico, direciona o legislador, os atos da administração
e as decisões judiciais.133
A consequência lógica é que os direitos fundamentais têm efeitos no Direito
Privado e a mais controvertida questão, que será analisada abaixo, é como esses
efeitos incidirão. Pode-se discutir como ocorre a aplicação, ou seja, a sua intensidade
e os termos da coordenação dos direitos fundamentais com os princípios de direito
privado. Há autores que defendem que, com pressupostos diversos e operando por
vias distintas, chega-se ao mesmo resultado prático, isso é, “falar de aplicação
mediata ou imediata é, bem dizer, questão de palavras ou de formulação”134. Existe a
necessidade de conjugação, a depender das especificidades do caso concreto, com
outros princípios constitucionais, principalmente o princípio da liberdade contratual.135
Impõe-se uma consideração diferenciadora para aplicar os direitos fundamentais entre
particulares, como, por exemplo, ocorre na existência de um poder privado de fato,
social ou econômico, (na maioria das relações de emprego em que há uma situação
de desigualdade).136
Contudo, o problema da aplicação dos direitos fundamentais de maneira
direta ou indireta passa por outra discussão. Isso porque o que se pretende realmente
questionar é a questão da conciliação dos preceitos de direito privado no âmbito do
Direito Constitucional e no âmbito do Direito Privado, como também,
simultaneamente, em ambos.137 É o que pretende explicar o professor Vasco Pereira
da Silva quando trata da matéria e a disposto no artigo 18o da CRP:
133 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? v. 3, n. 2. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 134 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 79. 135 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 79. 136 CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1293. 137 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr-jun. 1987.
51
A expressão do artigo 18.o n.1 da Constituição, aplicabilidade <directa> dos preceitos constitucionais referentes aos direitos, liberdades e garantias, só pode querer significar que esses preceitos não são um mero <flatus vocis>, mas que visam regular as concretas situações da vida, quer essa regulação se verifique através da mediação de normas ordinárias, quer se verifique imediatamente (na ausência de normas concretizadoras ou de conceitos gerais e indeterminados, ou quando estes, existindo, têm um âmbito de aplicação menor que o das normas constitucionais).138 (DA SILVA, 1987, p. 268).
A teoria dos deveres de proteção que mantém, pelos motivos consagrados
nos capítulos abaixo, a lógica do sistema, ou seja, preserva os direitos fundamentais
como garantia jurídica forte, transmite a ideia de uma especial vinculação do Estado
na direção de promover, através de um conjunto diverso de meios, que o gozo ou
exercício dos direitos fundamentais seja protegido de quaisquer ameaças, inclusive
ações de terceiros (entidades públicas ou privadas).139
138 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr-jun. 1987 139 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 100.
52
5 TEORIA DA INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS E A DOUTRINA DA “STATE ACTION”
A teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas,
resumidamente, assevera que não há possibilidade de conceber eficácia aos direitos
fundamentais nas relações privadas. O fundamento principal dessa posição é o de
que os direitos fundamentais surgiram para escudar os particulares contra os abusos
do Estado140 e que, ao permitir a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, se estaria atacando excessivamente a esfera da autonomia privada dos
cidadãos. É a teoria que sobressai no Direito Constitucional norte-americano.
Os Estados Unidos e a doutrina majoritária desse país têm se mantido firmes
na tese liberal de que a Constituição é um limite à atuação dos Poderes Públicos. É
uma norma que tem como única finalidade a regulação das relações entre os
indivíduos e o Estado. Em consequência, os direitos reconhecidos nas sucessivas
emendas à Constituição original estadunidense somente vinculam o Estado e apenas
podem ser invocados na presença de uma ação estatal (state action).141
Contudo, o simples fato da existência de uma discussão que se prolonga por
mais de 50 anos não permitiria outra conclusão que não fosse a de que os direitos
fundamentais teriam alguma eficácia nas relações privadas, pois parece inaceitável a
recusa de qualquer eficácia dos direitos fundamentais nessas relações.142
A teoria da state action parte da premissa de que os direitos fundamentais,
elencados no Bill of Rights da Constituição daquele país, impõem limitações somente
para os Poderes Públicos e não nas relações entre particulares. A única exceção é da
13ª Emenda que proibiu a escravidão.143
140 ALEXANDRINO, José de Melo. O discurso dos direitos. José de Melo Alexandrino. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 357-378. 141 UBILLOS, Juan María Bilbao. Los derechos fundamentales en la frontera entre o público y lo privado (la noción de state action en la jurisprudência norteamericana). Madrid: McGraw-Hill, 1997, p. 15. 142 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 72. 143 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 63, 2011.
53
Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime
whereof the party shall have been duly convicted, shall exist within the United States,
or any place subject to their jurisdiction.144 145
Para a defesa dessa teoria, que é tratada como um axioma pela doutrina e
jurisprudência norte-americana, as justificativas são a aplicação literal da Bill of Rights,
já que a redação de seu texto refere-se aos Poderes Públicos na maioria das cláusulas
definidoras de direitos fundamentais. Porém, a doutrina sustenta outros argumentos
na defesa dessa tese, dentre os principais, destacam-se a preocupação com a
autonomia privada e o reforço dos dois vetores principais da divisão organizacional da
estrutura de governo que a Constituição criou: o federalismo e a separação de
poderes.146
Laurence H. Tribe leciona a preocupação com a autonomia privada quando
menciona que:
...by exempting private action from the reach of the Constitution’s prohibitions, it stops the Constitution short of preempting individual liberty-of denying to individuals the freedom to make certain choices, such as choices of the persons with whom they will associate. Such freedom is basic under any conception of liberty, but it would be lost if individuals had to conform their conduct to the Constitution’s demands.147 148 (TRIBE, 1988, p. 1691).
144 Constitution of the United States – Amendment XIII, section 1. “Note: A portion of Article IV, section 2, of the Constitution was superseded by the 13th amendment” (ESTADOS UNIDOS. Constituição (1787). Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution_amendments_11-27.html>. Acesso em: 09 set. 2016) 145 Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado. (tradução nossa). 146 Há vozes que discordam desse suposto axioma. Professor Charles Black’s assertion from over four decades ago still carries much weight: “[T]he ‘state action’ problem is the most importante problem in American law” (DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.1251, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016). 147 TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2. ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 1691. 148 Imunizando a ação privada do alcance das proibições constitucionais, impede-se que a Constituição atinja a liberdade individual – denegando aos indivíduos a liberdade de fazer certas escolhas, como as de com que pessoas se associar. Essa liberdade é básica dentro de qualquer concepção de liberdade, mas ela seria perdida se os indivíduos tivessem de conformar sua conduta às exigências constitucionais (tradução nossa).
54
Em relação ao reforço do federalismo e da separação de poderes, a doutrina
afirma que, nos Estados Unidos, compete aos estados e não à União legislar sobre
Direito Privado, exceto quando o tema englobe o comércio interestadual ou
internacional. Portanto, a doutrina sustenta que a state action preserva a autonomia
dos estados, uma vez que inibe o Judiciário Federal, sob o suposto argumento de
aplicar a Constituição, de intrometer-se no âmbito das relações privadas.149
Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes fazem um passeio histórico pelo
nascimento da state action doctrine mencionando que esta inicia-se com os Civil
Rights Cases, julgados pela Suprema Corte norte-americana em 1883:
Em 1875, o Congresso Nacional norte-americano aprovara o Civil Rights Act, prevendo uma série de punições civis e penais contra a discriminação racial em locais e serviços acessíveis ao público, com fundamento na competência conferida pela 14ª Emenda à Constituição daquele país, a qual, logo após o fim da escravidão, obrigara os Estados a respeitarem os princípios da igualdade e do devido processo legal.150 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 64).
Porém, julgados da Suprema Corte norte-americana, apreciando cinco casos
de pessoas indiciadas por terem impedido o acesso de negros em hotéis, teatros e
trens, invalidaram o Civil Rights Act na raiz sob o argumento de que o Congresso não
tinha autoridade para promulgar legislação, regulamentando a discriminação racial
entre privados com força na 14ª Emenda à Constituição norte-americana.151 A União
somente tinha competência para editar normas proibindo as discriminações praticadas
pelos próprios estados, segundo a Constituição. As palavras do Juiz Bradley, da
Suprema Corte norte-americana no julgamento The Civil Rights Cases, 109 U.S. at 17
resume o entendimento dos oito juízes daquela corte que aderiram a esse
149 “By limint the scope of the rights which the Constitucion guarantees, the state action requirement limits the range of wrongs which the federal judiciary may right in the absence of congressional action, and thus creates a zone of action which, in the absence of valid congressional legislation, is reserved to the states unencumbered by the constraints of federal supremacy” (TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2. ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 1691). 150 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 64, 2011. 151 DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.. 1256, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016.
55
entendimento: “civil rights, such as are guaranteed by the Constitution against State
aggression, cannot be impaired by the wrongful acts of individuals.”152 153
Duas premissas ficaram ajustadas nesses julgamentos. A primeira é que os
direitos fundamentais da Constituição norte-americana vinculam apenas o Estado e
não os privados. A segunda é a de que a seção 5 da 14ª Emenda à Constituição norte-
americana não confere ao Congresso poderes para regulamentar as condutas
individuais dos particulares, uma vez que essa competência é específica do legislador
estadual, conforme palavras do Juiz Bradley no julgamento The Civil Rights Cases,
109 U.S. at 13: “proceeded in deductive fashion to the conclusion that section 5 of the
Fourteenth Amendment confers no authority on Congress to regulate individual
conduct”154. A primeira das premissas conserva-se até hoje imexível, apesar da public
function theory ter amenizado essa inclinação. A segunda premissa, por sua vez:
Já foi revista pela jurisprudência, que admite atualmente a competência da União para legislar sobre direitos humanos mesmo quando nenhum ator estatal esteja envolvido, o que ocorreu com a promulgação de diversos diplomas na década de 60, na fase áurea do movimento em prol dos direitos civis nos EUA, dentre os quais se destaca o Civil Rights Act de 1964”.155 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 64).
A public function theory veio suavizar essa tendência, pois defende que uma
ação privada constitui uma ação do Estado se o privado atuar em funções tipicamente
reservadas ao Estado. A public function doctrine requer que o ator privado exercite
um poder reservado exclusivamente ao Estado. Assim, se pessoas privadas estão
envolvidas no exercício de funções do Estado, essas atividades estão sujeitas ao
mesmo tratamento de restrição constitucional que esse mesmo Estado. O Estado não
pode se eximir das limitações constitucionais nas operações de suas funções
governamentais apenas delegando certas atividades para o lado dos atores
152 DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.. 1257, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016 153 Os direitos civis, como os que são garantidos pela Constituição contra a agressão do Estado, não podem ser prejudicados pelos atos ilícitos dos indivíduos (tradução nossa). 154 Procedeu de forma dedutiva à conclusão de que a seção 5 da Décima Quarta Emenda não confere autoridade ao Congresso para regular a conduta individual (tradução nossa). 155 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 64, 2011.
56
individuais. Ora, se os agentes privados assumem o papel do Estado se envolvendo
nessas atribuições governamentais, então estarão sujeitos à mesma limitação na suas
liberdades de ação que poderiam ser impostas ao próprio Estado.156
Porém, enquanto essa teoria é facilmente justificada, é muito difícil determinar
quais atividades devam ser definidas como funções públicas e submetidas às
limitações constitucionais.
É também verdade que, se uma pessoa privada desenvolver atividades que
poderiam ser desenvolvidas pelo Estado, não estará submetida às limitações que o
próprio Estado estaria. Isso porque, em teoria, o Estado poderia desenvolver qualquer
atividade. Assim, somente aquelas atividades ou funções que são tradicionalmente
associadas com o próprio Estado nacional e que são operacionalizas quase que
exclusivamente por entidades governamentais podem ser denominadas public
functions. Todavia, a operação do sistema de eleições, o controle de uma cidade ou
território e mesmo a operação do que é apararemente público, como, por exemplo,
um parque, são considerados public functions reguladas pela Constituição. Entretanto,
a mera operação de um negócio que poderia ser operado pelo Estado não pode ser
interpretado como public function por si só porque isso iria envolver uma determinação
com base na importância prática da atividade e não na sua relação como função do
Estado. Portanto, o poder do negócio desenvolvido, mesmo sendo de utilidade
pública, não é uma public function.157
O conceito de função pública teve origem na série de decisões relativas à
aplicabilidade das 14ª e 15ª Emendas à Constituição norte-americana nas eleições
primárias no Texas que excluíam a raça negra do escrutíneo.
Contudo, a utilização mais expressiva da aplicação da public function doutrine
foi a decisão do caso Marsh v. Alabama em 1946:
Discutia-se se uma empresa privada, que possuía terras no interior das quais se localizavam ruas, residências, estabelecimentos comerciais, etc., podia ou não proibir Testemunhas de Jeová de pregarem no interior da sua propriedade. A Suprema Corte declarou inválida tal proibição, pois ao manter uma “cidade privada” (private owned town), a empresa se equiparava ao
156 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul, 1992, p. 533. 157 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul, 1992, p. 534.
57
Estado e se sujeitava à 1ª Emenda da Constituição norte-americana, que assegura a liberdade de culto.158 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 65).
O Direito Laboral também deu seu contributo nessa série de primeiras
decisões iniciais da public function doutrine. Trata-se do caso entre um sindicato e um
centro comercial em que a maioria dos membros da Suprema Corte norte-americana
garantiu que trabalhadores em greve tinham o direito de entrar na área do centro
comercial para realizar um piquete numa loja em face da qual tinham uma disputa
judicial. Esses juízes decidiram que o centro comercial tinha função equivalente à da
companhia que privatizou a cidade no caso Marsh (caso logo acima mencionado).
Assim, não havia necessidade de um contato mais próximo entre o centro comercial
e o Estado para estabelecer a aplicabilidade da Constituição naquele caso
concreto.159
Há, outrossim, outras possibilidades de vinculação horizontal dos direitos
fundamentais permitidas no Direito norte-americano, por exemplo, quando a ação
estatal é determinada na relação entre o Estado e o agente privado que afetou os
direitos fundamentais. Porém, vale ressaltar que não existe uma fórmula pré-
concebida para afirmar em qual medida a ligação entre o Estado e o agente privado
violador dos direitos fundamentais é suficiente para determinar que esse agente
estará sujeito às restrições da Constituição. A Suprema Corte vem destacando que
essa ligação somente pode ser aferível caso a caso para determinar se há ação do
Estado apta a justificar a aplicação da Constituição naquela relação privada: “sifting
facts and weighing circumstances”.160
O caso Shelley v. Kraemer constitui um relevante precedente nesta linha. Na hipótese, existia uma convenção privada vinculando os proprietários de vários imóveis de uma região, que os proibia de aliená-los a pessoas integrantes de minorais raciais. Apesar disso, o dono de um dos imóveis resolveu vendê-lo a um negro, contra o que se opuseram alguns dos demais coobrigados pela convenção, através do ajuizamento de uma ação. A questão chegou à Suprema Corte, que disse que se o Judiciário tutelasse o suposto direito dos autores com base na convenção, ele estaria emprestando a sua força e autoridade a uma discriminação contrária à Constituição. Por este artifício,
158 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 65, 2011. 159 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul,1992, p. 537. 160 Burton v. Wilmington Parking Authority, 365 U.S. 715, 722, 81 S.Ct. 856, 860, 6 L.Ed.2d 45 (1961).
58
reconheceu-se a presença de state action no caso, para rejeitar a ação.161 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 65).
Insta mencionar que a própria doutrina norte-americana tece algumas críticas
à state action doctrine, pois defende que aplicar os direitos fundamentais nas condutas
privadas não significa dizer que toda conduta deva ter a mesma eficácia de aplicação
desses direitos que é exigida nas relações indivídio-Estado. Alega que o Judiciário
poderia aplicar os tradicionais direitos fundamentais para determinar se justificativas
razoáveis existem para validar a conduta do particular supostamente violadora de
direitos fundamentais. E, por fim, essencialmente, o Tribunal deveria sopesar os
direitos do suposto agressor e da suposta vítima e decidir adequadamente. Assim,
todas perguntas necessárias para a teoria da state action seriam desnecessárias,
restando como única pergunta se os direitos fundamentais da pessoa foram
injustificadamente atingidos.162
Os favoráveis à doutrina da state action trazem como argumentos principais
da sua manutenção, os seguintes: (a) advogam que se os pré-requisitos dessa
doutrina não existissem, quase todo crime ou delito seriam aparentemente uma
discussão de direitos fundamentais, ou seja, qualquer negativa de direito à vida,
liberdade ou propriedade seria, indiscutivelmente, ajuizavél com uma reclamação
constitucional, aumentando o custo do aparelho judicial para resolução desses
conflitos; (b) traria um indesejável aumento do poder do Judiciário se aos tribunais
fosse concebido o poder de reparar toda violação de direitos fundamentais, havendo
controle demasiado da sociedade norte-americana; (c) eliminar a doutrina da state
action não teria o impacto desejado porque os direitos podem ser rapidamente
eliminados pelos contratos privados. Assim, os direitos individuais podem ser
ajustados através de contratos, possibilitando que as pessoas renunciem o recente
ganho de proteção com aplicação direta dos direitos fundamentais.163 164
161 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 65, 2011. 162 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 551, 1985. Disponível em: <http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016. 163 Porém, a doutrina ressalta que essa renúnica aos direitos fundamentais é inteiramente voluntária e que tenha um ganho de outro direito com esta renúncia. 164 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 553-554, 1985. Disponível em:
59
Os direitos fundamentais de livre manifestação, privacidade e igualdade são
direitos individuais que devem ser protegidos de injusticáveis interferências. Porém,
isso não significa necessariamente que essa proteção deva vir da Constituição ou do
Judiciário. O Legislativo, seja o estadual ou o federal, pode proteger os direitos
fundamentais da interferência privada editando normas, como fez o Congresso norte-
americano no âmbito dos direitos civis (civil rights). O próprio Judiciário pode proteger
os direitos fundamentais pelo desenvolvimento de suas decisões na lógica da
common law. Portanto, quando a proteção trilha esse caminho, a aplicação direta da
Constituição é desnecessária e poderia ser descartada, não porque será aplicada a
state action doctrine, mas porque não haveria interferência nos direitos pela
sedimentação natural das decisões judiciais ou pelo próprio dever de obediência às
leis ordinárias.165
A aplicação (in)direta da Constituição é necessária somente se verificado que
as outras fontes de proteção não estão agindo adequadamente na proteção dos
direitos fundamentais.
Todavia, a proteção aos direitos fundamentais deve ser ampliada porque
reflete valores fundamentais que devem ser protegidos de interferências injustificáveis
de qualquer fonte, seja pública ou privada, independentemente de eventual aumento
do custo da movimentação da maquina judiciária. Pois, se o Estado foi criado para
proteger os direitos da pessoas, em consequência, é obrigação desse mesmo Estado
investir o que for necessário para permitir que essas pessoas reinvindiquem seus
direitos. Limitar a proteção constitucional para somente as ações estatais é prejudicial
porque permite privações dos direitos fundamentais e é completamente
desnecessária a manutenção da teoria da state action porque nada de valor será
perdido sem ela. Na realidade, o efeito do discarte dessa teoria é que a Constituição
seria vista como um código social moral, não apenas de condução do governo,
estabelecendo que nenhuma entidade, pública ou privada, poderia infrigir esses
direitos sem uma justificativa razoável.
<http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016. 165 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 550, 1995. Disponível em: <http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016.
60
Por fim, em que pesem as atenuações da jurisprudência norte-americana em
relação à aplicação da doutrina da state action, esta não confere uma proteção
minimamente suficiente aos direitos fundamentais, pois é inegável que as ameaças a
esses direitos não advêm somente do Estado, mas também de grupos, pessoas e
organizações privadas. A state action permanece sólida na jurisprudência norte-
americana, pois é consequência evidente dos ideais liberalistas que acompanharam
o nascimento dos Estados Unidos da América e permanecem no “radical
individualismo que caracteriza a Constituição e a cultura jurídica e social daquele
país".166 167
166 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66, 2011. 167 “Não obstante, pelo grande prestígio e influência do Direito Constitucional norte-americano, ela acabou sendo também adotada em outros países, como o Canadá. No Canadá, tal posição foi afirmada no precedente conhecido como Dolphin Delivery, julgado pela Suprema Corte do país em 1986” (SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66, 2011).
61
6 EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS
A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas
defende que os direitos fundamentais podem ser invocados na díade indivíduo-
indivíduo com a mesma projeção da relação indivíduo-Estado, sem a necessidade da
intermediação do legislador por meio de atos específicos ou por meio de inserção de
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Essa teoria parte da premissa que o sistema de garantias deveria atuar frente
ao poder, seja público ou privado, o que reclamaria o “prolongamento da lógica própria
do Estado de Direito (a submissão do poder a regras e limites jurídicos para preservar
a liberdade) no âmbito das relações entre indivíduos e poderes privados” e, portanto,
aplicação dos direitos fundamentais como direitos subjetivos oponíveis a
particulares.168
Aceita a teoria da eficácia direta a muldimensionalidade das ameaças que
recaem sobre a liberdade e a autonomia individuais e enxerga a necessidade de
defendê-las em face de ameaças advindas de quem quer que seja, do público ao
privado.169
Nipperdey, Presidente do Tribunal do Trabalho alemão, defendia a tese que
os direitos fundamentais seriam aplicados não somente contra o Estado, mas
poderiam também ser aplicados nas relações entre privados, pelo menos quando os
casos envolvessem os mais importantes direitos fundamentais.170 Essa teoria também
está associada a Walter Leisner.171
Defendem os autores dessa corrente doutrinária que a aplicação dos direitos
fundamentais deverá ocorrer de forma imediata, com fundamento na unidade da
168 UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares. .Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, p. 250-266. 169 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra 2006, p. 80. 170 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? p. 5. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 171 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 166. A obra que Leisner retrata o assunto é Grundrechte und Privatrecht (1960).
62
ordem jurídica e na força normativa da Constituição, que não permitem que o Direito
Privado possa constituir uma ilha à margem da Constituição.172
Quadra-Salcedo explica que:
(...) la obligacion de respectar los derechos fundamentales por los ciudadanos surge y emana directamente de la Constitucion y no solo de las normas de desarrollo de esta, no es por lo tanto un mero reflejo del ordenamiento que puede sufrir las alteraciones, modificaciones e supresiones que el legislador decida, sino que hay un nucleo esencial que se deduce directamente de la Constitucion y que se impone a todos los ciudadanos. 173 174 (QUADRA-SALCEDO, 1981, p.70).
A implicação dessa concepção é que certos direitos fundamentais poderiam
vincular os indivíduos ou grupos privados na mesma, ou quase mesma, maneira e
com a mesma extensão que vinculariam o Estado.
O artigo 5o, parágrafo primeiro, da CFb175 e o artigo 18o, número 1, da CRP176,
ao pronunciarem sobre aplicabilidade direta/imediata dos preceitos de direitos
fundamentais, parecem consagrar legislativamente a questão da aplicabilidade
imediata.
Um exemplo simplificará o entendimento dessa teoria. Suponha-se que um
grupo de trabalhadores resolva exercer seu direito fundamental de reunião e que o
empregador resolva perturbar ilegitimamente o exercício desse direito. Assim, caso
fosse o Estado que estivesse impedindo o exercício do direito de reunião, o grupo de
trabalhadores poderia invocar o direito fundamental de reunião em face do Estado.
Essa corrente doutrinária defende que esses trabalhadores podem invocar o direito
fundamental de reunião em face do empregador. Isso, é óbvio, se admitissem que não
existe dispositivo legal que proibisse a perturbação do direito à reunião.177
172 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 266, abr-jun.1987. 173 A obrigação de respeitar os direitos fundamentais pelos cidadãos surge e decorre directamente da Constituição e não apenas das normas decorrentes desta, portanto, não é apenas um reflexo do ordenamento que pode sofrer alterações, modificações e supressões que o legislador decidir, mas há um núcleo essencial que decorre diretamente da Constituição e imposta a todos os cidadãos. (tradução nossa). 174 QUADRA-SALCEDO, Tomás. El recurso de amparo y los derechos fundamentales en las relaciones entre particulares. Madrid: Civitas, 1981, p. 70. 175 § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 176 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 177 Exemplo modificado das páginas 86 e 87, tendo vista o objeto deste relatório, do livro SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.
63
Portanto, o grupo de trabalhadores, para essa teoria, resolveria a violação da
mesma forma, caso a violação fosse perpetrada pelo Estado, ou seja, se socorrendo
do Poder Judiciário, alegando que o direito fundamental à reunião restou violado.178
Dessa forma, constata-se que, no âmbito da eficácia direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas, a aplicação efetiva desses direitos passa pela
implementação por meio de um agente estatal, que, nesse caso, é o Poder Judiciário,
a quem cabe a solução da querela.179
Há um ponto de convergência entre as teorias da eficácia mediata ou indireta
dos direitos fundamentais e a da eficácia imediata ou direta: é o fato de ambas
atribuírem aos direitos fundamentais "eficácia operante em todo o ordenamento
jurídico” 180 e concederem aos direitos fundamentais uma dimensão subjetiva e
também uma objetiva.181
Por outro lado, a principal diferença entre o modelo adotado por Dürig – o da
eficácia indireta dos direitos fundamentais – e o modelo adotado por Nipperdey – o
da eficácia direta dos direitos fundamentais – é a necessidade ou desnecessidade da
intermediação legislativa para que o particular invoque aquele direito como se
subjetivo fosse.
Assim, para Dürig, necessitaria de uma porta de entrada para que um direito
fundamental fosse exercido, por exemplo, o artigo 9º da Consolidação das Leis do
Trabalho brasileira – "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo
de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente
Consolidação"182 – ou o artigo 51, inciso XV, do Código de Defesa do Consumidor
178 STERN, Klaus apud SILVA, Virgílio Afonso da., Das Staatsrecht der BundesrepublikDeutschland, III/1, §76, II, 1, p. 1.538, doutrina que: "...esse efeito absoluto dos direitos fundamentais faz com que sejam também desnecessárias 'artimanhas interpretativas' para aplicá-los em relações que não incluam o Estado como ator"'. (SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 87). Efeito absoluto dos direitos fundamentais quer dizer, na ótica de Nipperdey, o mesmo que aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações privadas e não que os direitos fundamentais são absolutos, ou seja, que não podem sofrer restrições. 179 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 126. 180 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 167. 181 Id. 182 BRASIL. Decreto-Lei n. 5452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, DF, 9 ago. 1943. Secção 1, p. 11937-11984.
64
brasileiro – "são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que: estejam em desacordo com o sistema de
proteção ao consumidor”183.
Por outro turno, a ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, da
forma defendida por Nipperdey, implica que o indivíduo tem o exercício do direito de
ação contra outro privado, para alcançar ou defender um direito, diretamente baseado
num direito fundamental que substitui uma regra aplicável de direito privado.
Portanto, Nipperdey tenta brotar uma nova análise da irradiação dos efeitos
dos direitos fundamentais, quebrando com a tese majoritária da eficácia indireta,
celebrizada no caso Lüth.184
O ponto primordial da diferença entre a teoria da eficácia horizontal mediata
dos direitos fundamentais e a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais
nas relações privadas reside na intermediação legislativa para que os direitos
fundamentais se irradiem nas relações jusprivatísticas. Explica-se: a eficácia indireta
dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do pressuposto que esses
direitos somente podem ser aplicados através da intermediação do legislador
infraconstitucional; enquanto que a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais
nas relações privadas defende que os direitos fundamentais podem ser invocados
sem a necessidade da intermediação do legislador por meio de atos específicos ou
por meio de inserção de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Defende-se:
Uma eficácia não condicionada à mediação concretizadora dos Poderes Públicos, isto é, o conteúdo, a forma, e o alcance da eficácia jurídica não dependem de regulações legislativas específicas nem de interpretação e de aplicações judiciais, conforme aos direitos fundamentais, de textos de normas
183 BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /Leis/L8078.htm>. Aceeso em: 16 abr. 2017. 184 Nas palavras de Nipperday: "Na verdade, o ordenamento jurídico é uma unidade; todo o direito somente é válido com base na constituição e dentro dos limites por ela impostos. Também o direito civil, sobretudo o código civil, somente é válido (...) desde que não contrarie a constituição. Para a validade dos direitos fundamentais como normas objetivas aplicáveis ao direito privado não é necessária nenhuma 'mediação', nenhum 'ponto de rompimento', que seriam, na opinião de Dürig, as cláusulas gerais (§§ 138, 826 e 242 do Código Civil alemão) (...). O efeito jurídico [dos direitos fundamentais no direito privado] é na verdade direto e normativo e modifica as normas de direito privado existentes (...)" (SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 90).
65
imperativas de direito privado, de modo especial, daqueles portadores de cláusulas gerais”.185 (STEINMETZ, 2004, p. 167).
E mais, a tese da eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos
fundamentais vai além daquela preconizada na teoria da eficácia mediata na sua
versão que admite a eficácia horizontal dos direitos fundamentais quando há
desigualdade fática ou “relação desigual de poder”186, pois defende que os direitos
fundamentais são posições jurídicas fundadas na Constituição também nas relações
interprivados.
A jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho acolheu a tese da eficácia
da teoria imediata, provavelmente, influenciada pelas ideias de Nipperday, seu
Presidente, quando decidiu um conflito laboral trazido ao Tribunal referido. O caso
retratava o direito à igualdade salarial entre homens e mulheres na Alemanha, uma
vez que não havia normatização específica na legislação laboral.187 Ao decidir pela
eficácia direta do direito fundamental à de igualdade preconizado no art. 3º da Lei
Fundamental, influenciou de modo determinante a jurisprudencia que aquela Corte
por um certo período adotaria.188
Parte da doutrina alemã – e aqui destaca-se Christian Starck – advoga a tese
que alguns direitos fundamentais da Lei Fundamental da República Federal da
Alemanha excepcionam e comprovam a regra geral de aplicação direita dos direitos
fundamentais somente frente ao Estado. Portanto, para referido autor, alguns direitos
fundamentais da Lei Fundamental (LF) alemã garantem ou concedem não somente
direitos de defesa frente ao Estado, mas também em face dos particulares através,
por exemplo, da proteção de filiação a sindicatos (art. 9.3, alínea 3, da LF):189
É garantido a todas as pessoas e profissões o direito de constituir associações destinadas a defender e melhorar as condições econômicas e de trabalho. Consideram-se nulos os ajustes tendentes a restringir ou a impedir esse direito, bem como ilegais as medidas com esse fim. Medidas segundo os artigos 12a, 35 §2, 35 §3, 87a §4 e artigo 91 não podem ser orientadas contra conflitos de trabalho, levados a cabo por associações no
185 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 167. 186 Ibid., 150. 187 A Constituição Federal brasileira consagra a matéria no art. 7º, XXX. 188 ALEMANHA BAG (Bundesarbeitsgericht – Tribunal Federal do Trabalho) 1, 185. Disponível em:<http://www.bundesarbeitsgericht.de/>. Acesso em: 23 jul. 20015. 189 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 71, set./dez. 2002.
66
sentido da primeira frase, para a defesa e melhoria das condições econômicas e de trabalho. (art. 9.3, alínea 3, da LF)190
A teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais possui três
variações 191 : a) uma que admite que os direitos fundamentais operam eficácia
absoluta nas relações interprivados. É a posição de Nipperdey; b) outra que defende
que os direitos fundamentais somente operam sua eficácia irradiante aos particulares
quando de um dos lados das relações está um particular com nítido poder de
ascensão, seja econômico ou social, colocando o outro em posição de sujeição; c)
finalmente, a última variação da eficácia imediata horizontal dos direitos fundamentais
advoga a tese que os direitos fundamentais têm aplicação imediata nas relações
jusprivatísticas, então o problema é de colisão de direitos fundamentais e, dessa
forma, deve ser resolvido através do princípio da proporcionalidade em sentido estrito
(ponderação). A própria natureza jurídica das normas de direitos fundamentais
apresenta a ponderação como forma de solução dos conflitos normativos que os
envolve.192
Essa última variante é a adotada por um dos expoentes em matéria de direitos
fundamentais no Brasil, o Professor Ingo Sarlet (2007), que, em linhas gerais, defende
uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais nas relações jusprivatísticas,
ou seja, podem e devem, em princípio, ser retirados efeitos jurídicos diretamente das
normas de direitos fundamentais também nas relações entre privados, mesmo que
não exista ou seja insuficiente a legislação infraconstitucional.
Nas palavras do autor:
Que somente as circunstâncias de cada caso concreto, as peculiaridades de cada direito fundamental e do âmbito de proteção, as disposições legais
190 ALEMANHA. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949. Principal instrumento normativo da Alemanha. Berlim, 2011. Disponível em: <https://www.btgbestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016. 191 Insta mencionar, que o autor alemão Jörg Neuner advoga a tese alternativa que o conteúdo da dignidade da pessoa humana ou seu núcleo essencial vinculam diretamente os particulares tendo como fulcro o artigo 1º, III, da Lei Fundamental alemã. (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.).Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comprado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 132). 192 FRAGOSO, Andréa Barroso Silva de. A norma da proporcionalidade: algumas controvérsias doutrinárias. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo; BRANDÃO, Paulo de Tarso. (Orgs.). Ponderação e Proporcionalidade no Estado Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 261-306.
67
vigentes e a observância dos métodos de interpretação e solução de conflitos entre direitos fundamentais (como é o caso da proporcionalidade e da concordância prática) podem assegurar uma solução constitucionalmente adequada...193 (SARLET, 2007, p. 132-133)
Na seara laboral, levando-se em conta a natural projeção do empregador
sobre o agir profissional do empregado, bem como a correspondente obediência do
empregado ao poder de mando do empregador não somente durante a execução de
suas atividades, como também (e principalmente) no momento de admissão quando,
via de regra, o indivíduo está ansioso por conquistar uma vaga no mercado de trabalho
na tentativa de sobreviver dignamente, tem levado parte da doutrina a defender a tese
da eficácia imediata dos direitos fundamentais nessas relações.194
Nas relações privadas de poder pode-se validar um tratamento distinto
daquele em que os privados estão em pé de igualdade, no sentido de uma aplicação
imediata de certos preceitos constitucionais.195
Todavia, a tese da eficácia imediata não fortalece os direitos fundamentais,
pelo contrário, enfraquece-os. Por quê?
Na Alemanha, os constitucionalistas defendiam que a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas ocorreria de forma mediata, de forma indireta,
através da lei, diferentemente da relações indivíduo-Estado, em que os direitos
fundamentais eram aplicados de forma imediata. Por que os constitucionalistas agiam
dessa forma? Não era por causa da desconfiança nos direitos fundamentais, mas um
problema de efetividade, ou seja, se se quer levar os direitos fundamentais a sério,
eles têm quer ser garantias jurídicas fortes que podem limitar o Estado, por isso, eram
aplicados de forma imediata na relação indivíduo-Estado. Assim, para o Estado limitar
um direito fundamental, deve possuir uma justificação forte e, mesmo quando tem
essa justificativa forte, é preciso respeitar os princípios auxiliares da igualdade,
proporcionalidade e segurança jurídica. E por que os direitos fundamentais não podem
ser aplicados às relações jusprivatísticas da mesma forma que ao Estado? Simples,
193 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.).Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comprado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p.132-133. 194 WOLFGANG, Ingo. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 13-16. 195 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 106.
68
porque nos dois lados da relação entre particulares, há direitos fundamentais
escudando cada um dos lados, o que não ocorre na relação indivíduo-Estado, em que
somente um dos lados da relação é sujeito ativo dos direitos fundamentais enquanto
o outro é destinatário desses mesmos direitos.196
Portanto, nas relações privadas, ou levamos o direito fundamental de um lado
a sério ou levamos o direito fundamental do outro a sério, como garantia jurídica forte.
Senão os direitos fundamentais transmudariam a uma referência fraca, meramente
retórica.197
A teoria da eficácia direta começa a fraquejar no âmbito da relações de
emprego quando da aplicação do princípio da igualdade, pois os particulares e os
poderes privados impendem sobre a liberdade individual, ameaça ou lesão a direitos
que são decorrência daquele princípio, como as discriminações, o tratamento
inigualitário, o desfavorecimento arbitrário, os prinvilégios injustificados, a perseguição
ou o assédio em função de raça, sexo, orientação sexual, território de origem,
ideologia ou religião. O princípio da igualdade é um princípio estruturante nos Estados
de Direito e está na gênese de toda a racionalidade e estruturação do Estado
constitucional.198
Um exemplo trará claridade do porquê da inconsistência prática da teoria da
eficácia imediata dos direitos fundamentais. Num concurso público, um canditado não
é admitido pelo simples fato de sua orientação sexual. Ora, aqui, o Estado violou o
princípio da igualdade, cometendo uma inconstitucionalidade por violação do princípio
da igualdade ou do direito a tratamento não discriminatório. Ao contrário do que
querem fazer crer os defensores da teoria direta, não violou “somente um pouquinho”
o princípio da igualdade, conforme a distinção dworkiniana ou alexiana entre normas-
regras e normas princípios.199
196 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 197 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 198 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 95. 199 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-97.
69
Se fosse-se aplicar os direitos fundamentais de forma imediata como direitos
subjetivos da forma propagada pela teoria da eficácia direta, ter-se-iam mais
problemas que soluções quando da aplicação dos direitos fundamentais. Suponha-
se, na mesma linha de raciocínio acima, que um particular fizesse uma festa privada
e, por razões quaisquer, não admitisse a entrada de pessoas com orientação sexual
diversa da sua. Por que motivo não haveria violação do princípio da igualdade, já que
a teoria da eficácia imediata propugna a aplicação dos direitos fundamentais nas
relações privadas com a mesma força que nas relações indivíduo-Estado? A resposta
é simples, mas a teoria da eficácia imediata não consegue responder: somente não
há violação do princípio da igualdade, pois este tem com destinatário o Estado, que
deve garantir a aplicação desse princípio quando houve déficit; e não os particulares
são os destinatários.200
Ora, se a razão para justificar uma discriminação fosse o princípio da
autonomia privada “então a mesma razão valeria igualmente para diferenciar entre
Estado e particulares em termos de oponibilidade subjetiva dos direitos
fundamentais”201. Se o Estado admite alguém baseado na cor de sua pele ou por não
ser torcedor do time de futebol brasileiro Ceará Sporting Club, comete uma
inconstitucionalidade; porém, se uma família não contrata determinada pessoa sob as
mesmas condições, “a discriminação não é menos arbitrária, mas já não há qualquer
problema jurídico.”202
Então o princípio da igualdade não produziria quaisquer efeitos nas relações
entre particulares? O princípio da igualdade vale nas relações interprivados, porém
não enquanto imposição constitucional que lhes seja diretamente dirigida, como
queriam os adeptos da teoria da eficácia imediata. O princípio da igualdade, a igual
dignidade humana, o direito a um tratamento igual, a proibição de discriminação ou
diferenciações arbitrárias são princípios que vinculam estritamente o Estado. Assim,
cabe aos órgãos do Estado, o Legislativo num primeiro momento, a configuração
jurídica das relações interprivados em conformidade com aqueles princípios,
“prevenindo, impondo e reprimindo correspondente comportamento dos
200 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 97-98. 201 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-100. 202 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-100.
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particulares”203. Contudo, enquanto o Estado não agir no plano da legislação, os
particulares são livres, pois o princípio da igualdade não os limita direta e
juridicamente, mesmo sendo um dever geral de respeito.204
203 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 98. 204 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 98.
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7 A EFICÁCIA INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JUSPRIVATÍSTICAS
A teoria da eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais foi criada e
desenvolvida na Alemanha, tendo como seu precursor Günther Dürig205, e é a teoria
melhor aceita pela doutrina e jurisprudência na Europa. Caracteriza-se com posição
mediadora entre a que meramente denega a vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais e aquela que ampara a incidência direta desses direitos no âmbito
privado.
A eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do
pressuposto que esses direitos somente podem ser aplicados através da
intermediação do legislador infraconstitucional. Assim, os valores constitucionais
seriam garantidos por normas imperativas ou através de cláusulas gerais ou conceitos
jurídicos e, quando ausente ou insuficiente a norma de direito privado, buscariam a
Constituição como fonte de interpretação.206 O legislador aqui terá a árdua tarefa de
delimitar o alcance das normas de direitos fundamentais que serão traduzidas em
normas de direito privado que acomodarão as relações entre particulares.207
Importante neste momento destacar que há variações da teoria da eficácia
mediata dos direitos fundamentais que, na realidade, se aproximam das teorias da
eficácia imediata e da teoria dos deveres de proteção.
A primeira variação, restritiva, tendo como seguidores García Torres e Cruz
Villalón, defende a ideia de que a eficácia das normas de direitos fundamentais estaria
condicionada a concretização legislativa.208 Assim, se o legislador não concretizou a
norma de direito fundamental no âmbito do Direito Privado, não há que se falar em
vinculação dos particulares.
A segunda variação, que se pode considerar moderada, advoga a tese de que
cabe ao legislador, preferencialmente, estabelecer os limites da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas, mas que, na ausência de concretização
205 DE LA CRUZ, Rafael Naranjo. Los limites de los derechos y fundamentales em las relaciones entre particulares: labuenafe. Madrid: CEPC, 2002. p. 169. 206 ABRANTES, José João Nunes. A Vinculacao das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990. p. 38. 207 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros. 2004, p. 138. 208 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 149.
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legislativa, caberia ao juiz, utilizando-se de cláusulas gerais, preencher o conteúdo
com a força irradiante dos direitos fundamentais. Se isso não fosse possível, ou seja,
preencher o conteúdo das cláusulas gerais com o conteúdo irradiante dos direitos
fundamentais, mantendo-se a lógica do sistema, os direitos fundamentais não
vinculariam os particulares.209
A terceira variação, progressista, teria a mesma sequência lógica da segunda,
isso é, cabe ao legislador, preferencialmente, estabelecer os limites da eficácia dos
direitos fundamentais nas relações privadas, mas que, na ausência de concretização
legislativa, caberia ao juiz, utilizando-se de cláusulas gerais, preencher o conteúdo
com a força irradiante dos direitos fundamentais. Se isso não fosse possível,
excepcionalmente, seria admitida a eficácia direta ou imediata dos direitos
fundamentais nas relações em que houvesse evidente relação de desigualdade fática
ou “relação desigual de poder”210.
Na quarta e última variação, a quase imediata, quando não houver atividade
legislativa, tampouco a possibilidade de utilizar as cláusulas gerais,
independentemente da evidente relação fática de poder, as normas de direitos
fundamentais seriam aplicadas diretamente nas relações jusprivatísticas.211
Os direitos fundamentais, para a teoria da eficácia mediata, não podem ser
invocados pelos particulares como direitos subjetivos, “que possam ser invocados a
partir da Constituição”212, mas, sim, como normas objetivas de princípios.213
Essa corrente doutrinária também parte do princípio que, aos particulares, é
conferido o direito de liberdade geral para contratar, consagrado na maioria das
Constituições democráticas, e é esse mesmo direito que permite desviar a
aplicabilidade dos direitos fundamentais nessas relações.214 E mais, conforme Durig,
citado por Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes (2011), “a proteção
constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos
209 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p.149. 210 Ibid., p.150. 211 Id. 212 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66-67, 2011. 213 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:Editora Malheiros, 2004, p. 138. 214 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 75.
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renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas que mantêm, o
que seria inadmissível nas relações travadas com o Poder Público”.215
Diferentemente do binômio indivíduo-Estado, em que as normas de direitos
fundamentais são aplicadas diretamente, no âmbito da relação indivíduo-indivíduo, o
princípio da liberdade geral de autodeterminação incide de maneira a frear o instinto
protetor dos direitos fundamentais. Se assim não fosse, cláusulas contratuais de
nosso cotidiano seriam consideradas nulas, a partida, pois violariam os direitos
fundamentais. É o que ocorreria com a cláusula que prevê a possibilidade do
proprietário de um imóvel (senhorio) de inspecioná-lo na constância do contrato de
locação (arredamento). Isso porque, em análise superficial, afronta o direito de
fundamental do inquilino à inviolabilidade de domicílio.
Há quem entenda que, nas relações entre iguais, e somente nestas, ou seja,
entre entes privados sem supremacia de poder de um sobre o outro, funcionará
plenamente a teoria da eficácia mediata, regendo, com toda sua plenitude, os
princípios da autonomia e da liberdade, que não devem ser afastados pela aplicação
direta dos direitos fundamentais. Eventuais colisões normativas devem ser resolvidas
por meio da aplicação das regras de direito privado e, na ausência, através de
cláusulas gerais.216
Contudo, os direitos de liberdade e de autonomia não são absolutos, pois, se
assim fossem, o Direito Privado e os direitos fundamentais estariam separados
totalmente.217 E mais, o papel dos Tribunais Constitucionais (Supremos Tribunais)
estaria esvaziado, já que não ocorreria violação a direito no âmbito dos direitos
fundamentais e sim no âmbito do Direito Privado, que seria solucionado pelos
Tribunais comuns e não pelo Tribunal mais afeto a decidir questões de natureza
constitucional.
Assim, para harmonizar os direitos fundamentais com o Direito Privado, a
doutrina que propugna a eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais propõe
215 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 67, 2011. 216 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed.Cascais: Princípia, 2011, p. 106. 217 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76.
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que o Direito Privado seja irradiado por um sistema de valores218 através de cláusulas
gerais.219 220
Portanto, através de cláusulas gerais221, o idealizador da teoria da eficácia
mediata dos direitos fundamentais nas relações jusprivatísticas, Dürig, fundamenta
que os direitos fundamentais se irradiam no Direito Privado, mantendo a
independência dos sistemas, mas correlacionando-os.222 Dar-se-ia a “recepção” dos
direitos fundamentais pelo Direito Privado, que é justificada pela necessidade de
interligação daqueles direitos com os direitos subjetivos privados, peocupando-se com
as especificidades das relações interprivadas.223 Isso porque a aplicação direta dos
direitos fundamentais, como se direitos subjetivos fossem, poderia sufocar a vida
jurídica privada, pois poderia ocorrer uma sobreposição, por exemplo, do princípio da
igualdade à liberdade contratual, dificultando o comércio jurídico. Poderia acontecer,
ainda, que a liberdade de expressão preponderasse sobre o dever de segredo,
imposto pelo dever de cooperação, seja nas relações típicas de direito civil como
também nas relações de emprego em que há contratos de confidencialidade, ou seja,
218 Explica Virgílio Afonso da Silva que os direitos fundamentais deixaram de ser apenas direitos exigíveis em face do Estado, seja negativamente ou positivamnete, para expressar um sistema de valores para todo o ordenamento jurídico. (SILVA, Virgilio Afonso da.A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76). 219 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76. 220 São exemplos de cláusulas gerais no direito laboral brasileiro os artigos 425 e 483, “a", da CLT. Art. 425 - Os empregadores de menores de 18 (dezoito) anos são obrigados a velar pela observância, nos seus estabelecimentos ou empresas, dos bons costumes e da decência pública, bem como das regras da segurança e da medicina do trabalho. Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato... (BRASIL. Decreto-Lei n. 5452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, DF, 9 ago. 1943. Secção 1, p. 11937-11984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.) 221“…as cláusulas gerais são havidas como recurso interpretativo-aplicativo, que o legislador põe à disposição do juiz, para a restrição, in concreto, da autonomia privada e do exercício de direitos ou interesses subjetivos legais” (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:Editora Malheiros, 2004, p. 147). 222 Um exemplo de aplicação de cláusulas gerais seria aquela que o Judiciário entendesse que há abuso de direito no caso de um empregador que deixasse de contratar um particular por motivo de orientação sexual. 223 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun. 1987.
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durante o contrato de trabalho e mesmo após o empregado não pode divulgar dados
confidenciais obtidos em seu emprego.224 Busca-se, com isso, com a atenuação,
evitar a rigidez, inautenticidade e o irrealismo da vida jurídica privada caso
aplicassem-se os direitos fundamentais de maneira não coordenada com as normas
de direito privado.225
Além das vantagens já expostas acima, de preservação da autonomia privada
e de assegurar a autonomia do Direito Privado, a eficácia mediata ou indireta dos
direitos fundamentais é a teoria que melhor traduz o postulado da certeza jurídica,
pois as normas de direito privado apresentam um grau maior de especificidade do que
as normas de direitos fundamentais que apresentam, geralmente, conteúdo vago. E
mais, essa teoria evita que tudo se transforme em problema de direitos fundamentais,
ou seja, evita a "panconstitucionalização" do ordenamento jurídico, com a
consequente sobrecarga da Jurisdição Constitucional.226
O chamado caso Lüth, 1950, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, foi
pioneiro na aplicação da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas.
Erich Lüth, presidente de uma associação de imprensa de Hamburgo, na Alemanha, em uma conferência na presença de diversos produtores e distribuidores de filmes para cinema, defendeu um boicote ao filme UnsterblicheGeliebte (Amantes imortais), do diretor VeitHarlan, que, na época do regime nazista, havia dirigido filmes anti-semitas e de cunho propagandístico para o regime em vigor. Diante disso, o produtor do filme ajuizou ação, considerada procedente pelas instâncias inferiores, contra Lüth no intuito de exigir indenização e proibi-lo de continuar defendendo tal boicote, com base no § 826 do Código Civil Alemão, segundo o qual "aquele que, de forma contrária aos bons costumes, causa prejuízo a outrem, fica obrigado a indenizá-lo". Em face do resultado, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional, que anulou as decisões inferiores, sustentando que elas feriam a livre manifestação do pensamento de Lüth. Mas a decisão não se fundou em uma aplicabilidade direta do direito à manifestação do pensamento ao caso concreto, mas em uma exigência de interpretação do próprio § 826 do Código Civil alemão, especialmente do conceito de bons costumes, pois, segundo o Tribunal, “toda [disposição de direito privado] deve ser interpretada sob a luz dos direitos fundamentais”227 (SILVA, 2011, p. 80
224 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 266, abr.-jun. 1987. 225 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 76. 226 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 138. 227 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 80.
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O ponto de partida da decisão do caso Lüth foi que a Constituição contém um
"sistema objetivo de valores" para todo ordenamento jurídico, o que inclui, por óbvio,
o Direito Privado, influenciado por esses mesmos valores. Para a doutrina da eficácia
mediata dos direitos fundamentais interprivados, as regras de direito privado não
podem chocar-se com o "sistema objetivo de valores" que irradiam da própria
Constituição e, portanto, todas as regras de direito privado devem ser construídas
para dar efetividade a esse sistema. Os valores consagrados na Constituição são os
mesmos para todo ordenamento jurídico e, dessa forma, devem ser prestigiados tanto
nas relações indivíduo-Estado como também nas relações jusprivatísticas. Esse
sistema de valores permeia o Estado e a sociedade, o público e o privado, seja lá
onde a linha que divide os dois esteja.228
Essa decisão foi o ponto de partida para pelo menos duas mudanças de
pensamento constitucional após a Segunda Guerra Mundial. Primeiro, com a
admissão de aplicar horizontalmente os direitos fundamentais, afastando a ideia,
vigente à época, que os direitos fundamentais somente tinham protagonismo da díade
indivíduo-Estado. A segunda, não menos importante, foi a possibilidade dos juízes
utilizarem o sistema de judicial balancing – sopesamento de interesses – para
fundamentar suas decisões.229
228 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 229The Lüth decision can be seen as a foundational moment for at least two transformative Post-War developments in constitutional thinking that continue to influence legal systems around the world. The judgment, first of all, stands at the origin of the phenomenal spread in the acceptance of doctrines on the ‘horizontal effect’ of constitutional norms. With its principled and affirmative answer to “the fundamental question of whether Constitutional norms affect private law”, the FCC set in motion an expansion of the sphere of influence of rights that has rippled through countries as diverse as South Africa and Canada, and that has arguably culminated in last year’s decision of the Court of Justice of the European Communities on the ‘horizontal effect’ of Community rules on freedom of movement. Secondly, and, if possible, even more importantly, the Lüth decision can be regarded as the foundation of what has come to be called the ‘Postwar Paradigm’ of constitutional rights adjudication. With Lüth – and with the Apotheken decision of a few months later – a movement began on the part of increasing numbers of courts around the world to adopt the language of judicial balancing to justify their decisions on constitutional rights.(BOMHOFF, Jacco. Luth’s 50th Anniversary: Some Comparative Observations on the German Foundations of Judicial Balancing. Revista GERMAN LAW JOURNAL, v. 9, n. 2, p. 121-124. Disponível em: <http://www.germanlawjournal.com/pdfs/Vol09No02/PDF_Vol_09_No_02_121-124_Articles_Bomhoff.pdf> Acesso em: 14 mar. 2014).
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Destaca-se, outrossim, que a importância da decisão do Tribunal
Constitucional alemão é primordial, pois, caso a matéria não tivesse sido apreciada à
luz dos direitos fundamentais, admitida pelo pioneirismo da aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas, o resultado seria totalmente diverso, para não
dizer equivocado. Isso porque os tribunais inferiores decidiram que o Sr. Lüth não
poderia tentar boicotar o filme e que teria que pagar indenização a Veit Harlan (diretor
do filme) por esse fato. Assim, o direito fundamental do senhor Lüth de liberdade de
expressão estaria violado, o que, em última análise, violaria a própria Constituição, se
não fosse a mão firme do Tribunal Constitucional alemão em premiar a efetivação dos
direitos fundamentais, colocando-os em lugar de destaque no âmbito das decisões
judiciais.
Portanto, a decisão do Tribunal Constitucional alemão determinou que o § 836
do Código Civil alemão seria uma fonte por onde os direitos fundamentais se
irradiariam nas relações jusprivatísticas. E mais, as decisões judiciais e relações
jurídicas entre privados que não observassem os direitos fundamentais e/ou não
interpretassem os bons costumes à luz desses mesmos direitos seriam fulminadas
por nulidade.230
Insta frisar, por fim, que teoria da eficácia mediata conserva a lógica que os
direitos fundamentais devem manter sua característica de proteção de todos os
cidadãos, pois, caso assim não fosse, os cidadãos viriam os direitos fundamentais e,
em última analise, a Constituição, como seus inimigos e não como trunfos que
poderiam dispor. Esse pensamento vai ao encontro do que Korand Hesse (1995)
pensa sobre a teoria da eficácia mediata: “…em um conflito jurídico entre privados
todos os interessados gozam da proteção dos direitos fundamentais, enquanto que
na relação do cidadão com o Estado tal tutela não corresponde ao Poder Público”.231
Portanto, se os direitos fundamentais incidissem nas relações privadas com a
mesma intensidade que incidem nas relações indivíduo-Estado, os indivíduos
começariam a vislumbrar os direitos fundamentais não mais com a finalidade precípua
de proteção, mas, sim, como uma ameaça constante. “Os direitos fundamentais
transformavam-se, assim, de direitos contra o Estado em deveres de todos contra
230 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 80-81. 231 HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Traduzido por Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995, p. 60. Título original: VerfassungsrechtundPrivatrecht, 1988.
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todos e os particulares, de titulares de direitos, em titulares de deveres
fundamentais”.232
Há um ponto em que as teorias da eficácia mediata e a teoria da eficácia
imediata são diametralmente opostas. Seria o caso em que não há lei que
especificamente regule a situação e a interpretação conforme a Constituição seja
improdutiva ou insuficiente. Nesse caso, a tese da eficácia mediata rejeitará qualquer
efeito adicional produzido pelos direitos fundamentais com base nas normas
constitucionais; enquanto que a teoria da eficácia direita ou imediata empregará “o
direito fundamental constitucional consagrado na sua dimensão de vinculatividade
jurídica mais ambiciosa, isso é, na qualidade de direito subjetivo oponível a outros
particulares.” 233
Uma crítica que recai sobre a teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos
fundamentais é aquela que afirma que as cláusulas gerais, como a boa-fé, não
suportarão dar refúgio a todas as situações entre particulares que necessitem a
irradiação dos direitos fundamentais.234
Outra crítica, que é talvez a que tenha reflexo mais visível no aspecto prático,
afastando-se de questões com viés apenas teórico ou, na sua essência, apenas
teórico, seria a perda da autonomia do Direito Privado. Explica-se: com a irradiação
dos direitos fundamentais no Direito Privado e com a infiltração desses mesmos
através das cláusulas gerais e conceito jurídico indeterminados nas relações
jusprivatísticas, ter-se-ia a sobreposição do Direito Constitucional sobre o Direito
Privado. Porém, o aspecto mais importante dessa análise, até este ponto, apenas
teórica, é admitir, com essa sobreposição, que o Tribunal Constitucional transforme-
se em “superinstância revisora de toda a jurisdição ordinária", pois essa irradiação dos
direitos fundamentais teria o dom de metamorfosear todas as questões de direito
privado em casos de direito constitucional.235
A tese da eficácia mediata não apresenta uma resposta satisfatória para os
casos em que não há lei que especificamente regule a situação e a interpretação
232 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 74. 233 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75. 234 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 222. 235 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 86.
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conforme é improdutiva ou insuficiente, uma vez que não fornece solução para os
casos em que a lacuna do legislador deixa a liberdade individual completamente
desamparada ante eventuais e graves agressões oriundas de outros particulares.
O juiz com competência constitucional para decidir o caso concreto posto não
pode fundamentar a decisão com fulcro no valor da autonomia do Direito Privado
quando pelo menos uma das partes invoca a proteção conferida por uma norma
constitucional. O juiz pode até decidir ao cabo que a invocação não se justifica, mas
não pode desobrigar-se da aplicação do Direito Constitucional dando prevalência ao
princípio da autonomia do Direito Civil.
Se o princípio da autonomia da privada fosse justificativa suficiente para recusar a aplicação das normas constitucionais, permaneceria sem fundamento a própria instituição da jurisdição constitucional, pois a recusa da intervenção do poder judicial numa situação de omissão legislativa teria, em rigor, de ser acompanhada de análoga recusa da possibilidade de controlo de constitucionalide da legislação civil por parte do juiz constitucional. 236 (NOVAIS, 2006. p. 76).
No caso português, essa tese seria teoricamente indefensável, uma vez que
a própria CRP expressa literalmente a aplicação dos preceitos constitucionais sobre
direitos fundamentais às entidades privadas: “Os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e
vinculam as entidades públicas e privadas”.237
A tese da eficácia mediata cumpriu bem sua função na garantia da efetividade
dos direitos fundamentais na primeira fase do “ressurgimento constitucional do
segundo pós-guerra”, contudo, franqueja na tentativa de conceber plenitude de tutela
judicial aos direitos fundamentais, o que abriu espaço para os críticos dessa teoria a
atacarem e defenderem a teoria da eficácia direta em situações mais necessitadas de
proteção jusfundamental e de efetividade da Constituição.238
236 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 76. 237 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 238 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora
Coimbra, 2006, p. 76-77.
80
8 TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA E DEVER DE PROTEÇÃO
Na Alemanha, fortemente influenciada pela teoria da eficácia mediata, surgiu
a teoria dos deveres de proteção, tendo como seu maior propulsor Claus-Wilhelm
Canaris. Em 10 de junho de 1998, Canaris proferiu palestra na conferência da
Sociedade Jurídica de Berlim. Essa palestra, depois ampliada e atualizada, serviu de
base para seu livro Direitos Fundamentais e Direito Privado.
A teoria da eficácia mediata e a teoria dos deveres de proteção têm raiz
comum, porém diferem em alguns pontos cruciais.
Fundamentalmente, a teoria da eficácia mediata considera que os efeitos dos
direitos fundamentais nas relações privadas se esgotam através das seguintes vias:
intervenção concretizadora do legislador ordinário, a interpretação das normas
ordinárias em conformidade à Constituição, aplicação dos conceitos jurídicos
indeterminados e das cláusulas gerais oriundas do Direito Civil, “considerados, por
excelência, como verdadeiros pontos de irrupção dos direitos fundamentais num
mundo regido primariamente pelo Direito Privado.”239
Por seu turno, a teoria dos deveres de proteção, sem se olvidar da importância
concretizadora da eficácia da teoria mediata através da vias acima mencionadas,
parte do pressuposto da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, somando-se
com a dimensão subjetiva, em que os direitos fundamentais têm substância jurídico-
objetivos resultantes da sua ascensão a valores ou princípios constitucionais objetivos
e cujos efeitos se expandem em vários sentidos.240
O professor Jorge Reis Novais (2006) destaca que a principal consequência
do conteúdo jurídico-objetivo dos direitos fundamentais é a que se exprime na
obrigação jurídica de proteção dos direitos fundamentais que recai sobre todos os
órgãos do Estado, incluindo o Poder Judiciário.241
Porém, vale mencionar, e essa observação serve não somente para a teoria
dos deveres de proteção como também para as teorias da eficácia imediata e da
mediata, que o legislador tem papel fundamental, pois, a priori, lhe cabe acomodar o
239 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 72-73. 240 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73. 241 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73.
81
convívio entre as esferas de autonomia e liberdade dos cidadãos, sopesando o
princípio da liberdade com o princípio da autonomia privada na seara de relações entre
iguais que livremente se autodeterminam. Esse papel cabe ao legislador, uma vez que
possui legitimidade decorrente do poder conferido pelos cidadãos por meio do sufrágio
para avaliar quais medidas são as que garantem a maior eficácia dos preceitos
constitucionais, já que há discricionariedade na opção normativa, salvo se
frontalmente inconstitucionais.242
Assim, vale mencionar que não compete ao Judiciário verificar se as medidas
legislativas de promoção dos direitos fundamentais são as que garantem a maior
eficácia dos preceitos constitucionais, já que há discricionariedade na opção
normativa, “mas apenas se as decisões do legislador ofendem, ou não, o disposto
nesses preceitos, respeitando o espaço de livre conformação política que a mesma
Constituição garante ao poder legislativo democraticamente legitimado pela via
eleitoral.”243
O papel primário da intervenção do Estado nas relações entre privados é
mesmo do legislador democrático, nos termos das garantias gerais de Estado de
Direito, em especial do princípio da reserva legal (art 5o, inciso II, da CFb/88: “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). Esse
protagonismo é reconhecido pela tese dos deveres de proteção enquanto que a tese
da eficácia imediata desloca-o para o Judiciário quando entende o conflito entre
particulares a partir da “pretensa existência de um direito subjetivo fundamental que
um dos particulares tem contra o outro, e fazendo assentar esse direito subjectivo (sic)
directamente (sic) na norma constitucional”244, considerando a intervenção do juiz
como necessária, imediata e independetemente da prévia regulação do caso por parte
do legislador mesmo que decorra de silêncio tácito.245
242 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora
Coimbra, 2006, p. 74. 243 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Parecer solicitado pelo Governo de Portugal em relação a alguns aspectos da Lei no 66-B/2012, de 31 de dezembro. Disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/media/1175315/Parecer%20Jose%20Carlos%20Vieira%20de%20Andrade%20OE%202013.pdf.> Acesso em: 13 fev. 2014. 244 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 105 245 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 105.
82
O legislador, mais cedo ou mais tarde, na atuação de sua função primordial,
faz surgir a devida legislação que abarque situações de ameaça aos direitos
fundamentais perpetrada por particulares. Se ainda não o fez, ante abusos manifestos,
as cláusulas gerais ou, ao cabo, o princípio da dignidade da pessoa humana, permitem
resolver o problema.246
O juiz somente deve intervir, fazendo valer o dever de proteção, em casos
extremos ou de visível déficit de proteção da liberdade individual. E, nessa atuação,
deverá ponderar esse dever de proteção com outros princípios que casualmente
indiquem em sentido inverso, como o princípio da autonomia privada e dos direitos
fundamentais a ele ligados.
As três teorias – mediata, imediata e deveres de proteção – direcionam-se
quanto ao modelo de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas no
sentido de que se deve utilizar a lei ordinária, a interpretação conforme à Constituição
e a densificação das claúsulas gerais. Concordam, ainda, com a ideia de que cabe ao
Poder Judiciário verificar se decisões do legislador ofendem ou não o disposto nos
preceitos constitucionais, ou seja, se a opção feita pelo legislador é
constitucionalmente aceitável.247
A teoria dos deveres de proteção recusará a aplicação direta dos direitos
fundamentais em face de outros particulares como se direitos subjetivos fossem, tal
qual a teoria da eficácia mediata, quando não há lei que regule especificadamente a
situação e a interpretação conforme é improdutiva.
Contudo, diferentemente da teoria da eficácia mediata e aproximando-se um
pouco da teoria da eficácia imediata, a teoria dos deveres de proteção defende algum
outro tipo de eficácia nos casos em que não há lei ou clásula geral aplicável. A teoria
dos deveres de proteção considera, nesse caso, que os direitos fundamentais
projetam efeitos jurídicos nas relações interprivados, porém não enquanto direitos
subjetivos (como sustenta a teoria da eficácia imediata) oponíveis a outros particulares.
Nas palavras de Jorge Reis Novais:
Mediatamente através do reconhecimento de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais de onde decorrem, para todos os poderes do Estado,
246 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 106. 247 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75.
83
incluindo o poder judicial, especiais deveres de proteção dos direitos fundamentais que permitem excepcionalmente ao juiz, sempre que a proteção dos direitos fundamentais o exija e o legislador (ainda) não tenha cumprido adequadamente esses deveres, o recurso directo à norma constitucional na resolução de conflitos entre particulares.248 (NOVAIS, 2006, p. 75).
O ponto de partida para a doutrina dos deveres de proteção foi a teoria dos
direitos fundamentais como princípios objetivos que obrigam o Estado a assegurar os
meios necessários para torná-los efetivos. Assim, “dos direitos fundamentais pode
resultar diretamente uma obrigação estatal de preservar um bem jurídico protegido
mediante os direitos fundamentais contra lesões e ameaças provenientes de terceiros,
sobretudo de caráter privado” 249, como também por outros Estados – pessoas e
poderes que não são destinatários de direitos fundamentais.
Sustenta Canaris que, na Alemanha, os Poderes Públicos estão diretamente
vinculados aos direitos fundamentais, o que importa dizer que eles limitam tanto a
atividade legislativa como a administração pública. Porém, se estes não tiverem como
norte a Constituição, ao juiz cabe o dever de proteger os direitos fundamentais dos
cidadãos. Assim, tanto o legislador, a Administração Pública e os juízes estão
obrigados a se absterem de violá-los, contudo, devem também protegê-los frente às
ameaças e às agressões provenientes de particulares. Porém, se o juiz também não
observar os direitos fundamentais, caberá recurso ao Tribunal Constitucional.
Assim, a teoria dos deveres de proteção traz, além dos efeitos jurídicos
objetivos já mencionados acima, o encargo principal que compete ao legislador o
cumprimento dos deveres de proteção dos direitos fundamentais. E mais:
Complementa aqueles efeitos e estes deveres por meio de novas possibilidades de intervenção reconhecidas ao Poder Judiciário e que se somam às que este já possuía no plano da interpretação da legislação ordinária em conformidade aos direitos fundamentais e no plano do preenchimento e densificação jusfundamentalmente orientados de conceitos indeterminados e cláusulas gerais do Direito privado.250 (NOVAIS, 2006, p. 73).
248 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75. 249 HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56. 250 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73.
84
O juiz está, portanto, compelido pelos deveres de proteção dos direitos
fundamentais, na falta da lei ou de claúsula geral aplicável e até mesmo em
circunstâncias extraordinárias contra a lei, a intervir no sentido de proteção dos
direitos fundamentais nas situações de nítido déficit de proteção e de premente
necessidade de o suprir.
É sabido que há direitos fundamentais na Constituição que, aparentemente,
têm como objeto primário ou até exclusivo a regulação de relações jurídicas
interprivados, como as passagens que tratam do direito de greve ou das liberdades
sindicais na empresa. Contudo, a partir do instante em que um direito fundamental foi
colocado no corpo da Constituição, independentemente da causa que o elevou a essa
condição, surgem o mesmo tipo de perguntas como a qualquer direito fundamental.
Os sujeitos passivos da proibição, imposição ou permissão são os particulares ou é o
Estado? Verificaremos que, ao Estado, serão impostos “especiais deveres de
proteção e especiais deveres de conformação das relações privadas e indicar, desde
logo, o sentido material dessa conformação e proteção”.251
O dever de proteção (Schutzpflicht) pretende transmitir a ideia de uma
especial vinculação do Estado na direção de promover, por meio de um conjunto
diverso de meios, que o gozo ou exercício dos direitos fundamentais seja protegido
de quaisquer ameaças, inclusive ações de terceiros (entidades públicas ou
privadas).252
O modelo dos deveres de proteção assevera que os preceitos de direitos
fundamentais se empregam, a priori, aos Poderes Públicos253, no entanto, estes,
“para além do dever de os respeitaram (designadamente de se absterem de os violar)
e de criarem as condições necessárias para a sua realização, teriam ainda o dever de
os proteger contra quaisquer ameaças, incluindo as que resultam da atuação de
outros particulares”.254
O legislador, que se beneficia de uma reserva do politicamente adequado,
deve ativar o dever de proteção no sentido de proteger, com maior ênfase, a situação
251 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70-71. 252 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 100. 253 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 101-102. 254 ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 251.
85
da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder em que há
supremacia de uma parte sobre a outra, como sói acontecer, regra geral, com as
relações de emprego. Só excepcionalmente o juiz deverá lançar mão das soluções às
quais lhe seja permitido recorrer dentro da moldura da ordem jurídica como um todo,
sem se olvidar da possibilidade de recurso último à norma da dignidade da pessoa
humana (funcionando aqui como regra) ou ao que constitua o standart mínimo de
proteção da pessoa humana universalmente reconhecido.255
Daniel Sarmento (2006) sustenta que o Tribunal Constitucional alemão, em
importante decisão proferida em 1990 (BverfGE 81, 242), defendeu explicitamente a
teoria dos deveres estatais de proteção para tutelar direitos fundamentais numa
relação jusprivatística, especificamente numa relação de trabalho lato sensu256.
Nas palavras de Barroso:
No caso, uma empresa vinícola havia rescindido contrato celebrado com um seu representante comercial, sem pagamento de qualquer indenização, em razão de suposta falta grave cometida por ele. No Código Comercial alemão, estava prevista a possibilidade de as partes no contrato de representação comercial aventarem a proibição do ex-representante de exercer negócio no mesmo ramo, por até dois anos, sem qualquer indenização, caso seu afastamento decorresse de motivo relevante. Esta cláusula fora pactuada, mas o antigo representante comercial insurgiu-se contra ela, alegando violação ao seu direito fundamental ao livre exercício de profissão ou ofício. Em seu julgamento, o Tribunal Constitucional germânico reconheceu, em primeiro lugar, que pelo princípio da autonomia privada, as pessoas podem engajar-se em negócios jurídicos envolvendo restrição ou renúncia ao exercício de direitos fundamentais. Todavia, a validade destes acordos pressupõe a liberdade no consentimento da parte prejudicada, o que exige que se verifique se esta se encontrava, ao celebrar o contrato, numa situação de desequilíbrio de forças em relação à sua contraparte. Afirmou o Tribunal que o 'o artigo 12, parágrafo primeiro da Lei Fundamental, ordena ao legislador privado o estabelecimento de medidas de proteção do livre exercício de uma profissão ou ofício frente a restrições contratuais, especialmente quando não exista um equilíbrio aproximado de forças entre as partes'. Assim, para a Corte Constitucional alemã, o legislador não havia tomado em consideração este elemento ao estabelecer a norma do Código Comercial acima mencionado, e portanto violar o seu dever de proteção à liberdade de profissão. Com base neste argumento, a Corte, afastando o dispositivo do Código Comercial em questão, deu ganho de causa ao antigo representante comercial.257 (BARROSO, 2006, p. 238).
255 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 106. 256 Relação de trabalho corresponde a qualquer vinculo jurídico por meio do qual uma pessoa natural executa obras ou serviços para outrem, mediante o pagamento de uma contraprestação. (SARAIVA, R. Direito do Trabalho para concursos públicos. 4. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 34). 257 BARROSO, Luís Roberto (Org.). A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 238.
86
Assim, ainda que não se possa cogitar de vinculação direta do cidadão aos
direitos fundamentais, podem esses direitos legitimar limitações à autonomia privada,
seja no plano da legislação, seja no plano da interpretação.258
A teoria dos deveres de proteção parte da premissa que os direitos
fundamentais são eminentemente direitos em face do Estado e somente
excepcionalmente o Estado intervém nas relações interprivados para a defesa desses
direitos fundamentais.
Nesse sentido, Christian Starck (2002) menciona que, em dois direitos
fundamentais (art. 3.2, linha 1 da Lei Fundamental (LF) alemã259 combinado com o
artigo 117.1260 e também no caso do artigo 6.5 da LF 261), o Estado, no caso a
Alemanha, está obrigado a realizar a igualdade. Esses deveres de proteção da
igualdade exercem sua influência de modo direto no Direito Civil. Assim, não se trata
aqui somente de clássicos direitos de defesa, mas, sim, de direitos de igualdade cuja
a realização reclama a devida regulação do Direito Civil. Essas considerações
permitem solucionar alguns dos problemas da chamada eficácia dos direitos
fundamentais frente a terceiros, sem que os direitos fundamentais se expandam de
modo global no âmbito do Direito Privado e sem que tenham que ser delimitados pelo
Estado-Juiz quando já foram pelo legislador democraticamente eleito.262
Os direitos fundamentais na Constituição espanhola estão dirigidos à defesa
frente às ingerências do Estado, contudo, de forma mais acentuada que na Lei
Fudamental de Bonn. Igualmente se apresentam na Constuição espanhola deveres
de garantia e encargos de igualdade ao legislador que influenciam no Direito Privado.
258 Citação retirada do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do Supremo Tribunal Federal brasileiro: Disponível em: <http://www.gilmarmendes.org.br/index.php?option=com_phocadownload&view=category&download=286:re-201819-&id=21:as-garantias-processuais-fundamentais-e-os-principios-do-contraditorio-e-da-ampla-defesa&Itemid=76.> Acesso em: 20 abr. 2014. 259 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 260 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 261 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 262 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 72, set./dez. 2002.
87
Dessa forma, se reconhecem e protegem os direitos enumerados no artigo 20 da
Constituição espanhola263. O artigo 24 estabelece o direito de obter uma tutela efetiva
dos juízes e tribunais264. Os artigos 28265 e 37 devem ser entedidos de modo que o
direito de filiação a sindicato deva ser reconhecido também aos trabalhadores
empregados do setor privado.266
O dever do Estado vai além da mera proibição de intervenção na esfera da
liberdade do cidadão, ou seja, consiste na necessidade de amparo estatal a prejuízos
ou ameaças à liberdade das pessoas por poderes alheios ao Estado267 na medida em
que também deve defender os particulares da intervenção ilegítima de outros
particulares (proibição de intervenção).
Para fornecer cientificidade à sua teoria, Canaris desenvolveu duas funções
dos direitos fundamentais em relação ao Estado. A primeira seria a de proibição de
intervenção (uma vinculação negativa), no que concerne aos deveres de não violar
tais direitos; e a segunda seria a de imperativo ou mandamento de tutela (uma
vinculação positiva), no que respeita ao dever de protegê-los.
A teoria dos deveres de proteção detém um argumento que é insuperável (ou
quase) para a defesa de sua tese que é a questão de que os direitos fundamentais
263 Art. 20 Direito à liberdade de expressão e informação. Direito à produção e criação literária, artística, científica e técnica. Direito à liberdade de cátedra. O exercício destes direitos não pode ser restringido mediante censura prévia. Estas liberdades têm seu limite no respeito aos direitos reconhecidos neste título. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 264 Art. 24 Direito ao livre acesso à justiça. Constituição espanhola de 1978. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016) 265 Art. 28 Direito de sindicación e de greve. Constituição espanhola de 1978. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016) Art. 37 Direito à negociação coletiva trabalhista. Constituição espanhola de 1978.(ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 266 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 72, set./dez. 2002. 267 HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56.
88
são considerados pelos cidadãos como “amigos" com os quais eles podem contar nos
momentos mais difíceis. Ocorre que, se um particular olhar para os direitos
fundamentais com receio que esses mesmos direitos possam ser utilizados contra
seus interesses, a própria lógica de defesa dos direitos fundamentais estará
esvaziada.268
Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes asseveram:
Na verdade, não seria correto simplesmente transplantar o particular para a posição de sujeito passivo do direito fundamental, equiparando o seu regime jurídico ao dos Poderes Públicos, pois o indivíduo, diversamente do Estado, é titular de direitos fundamentais, e está investido pela própria Constituição em um poder de autodeterminação dos seus interesses. Uma equiparação do particular ao Estado, para fins de sujeição aos direitos fundamentais, tenderia a revelar-se autoritária, ao restringir em demasia a sua liberdade de fazer escolhas e agir de acordo com elas.269 (SARMENTO; GOMES, 2011, p. 61).
Idêntica orientação é adotada por Konrad Hesse, citado no voto-vista do
Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do
Supremo Tribunal Federal brasileiro, que destaca serem as relações entre pessoas
privadas marcadas, fundamentalmente, pela ideia de igualdade. A vinculação direta
dos entes privados aos direitos fundamentais não poderia jamais ser tão profunda,
pois, ao contrário da relação Estado-cidadão, os direitos fundamentais operariam a
favor e contra os dois partícipes da relação de Direito Privado.270
268 Ingo Sarlet defende a tese da eficácia direta dos direitos fundamentais e também que não há grandes diferenças práticas entre aquela e a teoria dos deveres de proteção, já que ao Poder Judiciário caberá a última palavra para a solução da controvérsia: "mesmo que se possa concordar com a tese de que são os órgãos estatais os destinatários diretos dos deveres de proteção estatais, isto, no nosso sentir, não conduz inexoravelmente à correção da tese acima exposta, designadamente naquilo em que se refuta uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre atores privados..." (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 126). 269 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 61, 2011. 270 Citação retirada do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do Supremo Tribunal Federal brasileiro: Disponível em: <http://www.gilmarmendes.org.br/index.php?option=com_phocadownload&view=category&download=286:re-201819-&id=21:as-garantias-processuais-fundamentais-e-os-principios-do-contraditorio-e-da-ampla-defesa&Itemid=76>. Acesso em: 20 abr. 2014.
89
Mesmo os autores que defendem a aplicação de outra teoria (mediata neste
caso271) que não a teoria dos deveres de proteção na aplicabilidade dos direitos
fundamentais nas relações interprivados parecem se curvar à cientificidade
conseguida por essa teoria. Discorrendo sobre a aplicação dos direitos fundamentais,
também às entidades privadas quando em jogo os artigos 27o, no 2, 34o, no 3, primeira
parte, 37o, no 4, 50o,no 2, todos da CRP, José de Melo Alexandrino, admitindo a
aplicação direta desses direitos fundamentais nas relações privadas, sugere a
aplicação da teoria dos deveres de proteção: “Estas são situações em que há um
adoçamento da regra, mas não excepção (sic), porque em todas é possível configurar
pelo menos um dever de proteção (Schutzpflicht) dirigido ao Estado como conteúdo
principal da correspondente garantia constitucional.”272
Surge uma indagação. Poder-se-ia conceber tratamento diferenciado à
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas em razão da origem da
agressão que sofre uma determinada liberdade, como, por exemplo, das relações
juslaborais em que há, na maioria dos casos, uma relação de superioridade jurídica e
econômica evidente?
Acredita-se que não, pois, para conceber cientificidade à teoria da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, há que tratá-la de modo uniforme, ou seja, não
pode-se-ia aplicar a teoria a eficácia direta dos direitos fundamentais para as relações
juslaborais, como fica tentado o exegeta, e empregar a teoria do dever de proteção
para aquelas relações em que há paridade de forças. Os direitos fundamentais devem
proteger, portanto, frente ao poder, sem adjetivos; e o sistema de garantias, para ser
coerente e eficaz, deve ser polivalente e operar em todas as direções. Não há
nenhuma razão para pensar que o problema de fundo transforma-se em função de
qual seja a origem da agressão que sofre uma determinada liberdade. O tratamento
há de ser, na essência, o mesmo.273
271 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105-106. 272 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105. 273 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 170.
90
Apesar de parte da doutrina brasileira274 fundamentar a aplicação da eficácia
direta dos direitos fundamentais nas relações horizontais na assimetria da relação
gerada pela presença de um ator social forte, o maior ou menor desequilíbrio dessa
relação serve para justificar a necessidade do Estado de efetivar, de forma mais ou
menos intensa, o seu dever de proteção, autorizando eventual restrição do direito
fundamental da parte poderosa. Logo vêm à mente os casos da relação de trabalho
strictu sensu. Porém, se a matéria for analisada com cientificidade, a conclusão obtida
é que nem sempre as relações de emprego geram a assimetria que querem defender
os autores que propugnam pela aplicação direta dos direitos fundamentais nessas
relações. Um exemplo ilustrará a afirmação: (a) um jogador de futebol, sem grande
expressão mundial, esteja a tratar de seu contrato com o Real Madrid, um dos mais
poderosos clubes de futebol do mundo, e esse clube queira inserir uma cláusula
contratual que viole algum dos direitos fundamentais daquele jogador. Em princípio,
os defensores da teoria da eficácia imedita dos direitos fundamentais entre privados
advogariam a tese da aplicação da Constituição como se direito subjetivo fosse ante
a assimetria da relação entre o jogador e o clube de futebol; (b) por outra volta, se o
jogador que estivesse a tratar com o Real Madrid fosse o Cristiano Ronaldo, com o
clube querendo estabelecer uma cláusula que violasse um dos direitos fundamentais
daquele jogador ou mesmo se Cristiano Ronaldo quisesse impor uma cláusula que
violasse, em tese, um direito fundamental do clube madrilenho. Aqui, a relação de
assimetria escancara uma de suas facetas até então não imaginadas pela exegeta
que defende a aplicação direta dos direitos fundamentais nesses casos: há relações
em que o empregado não é o hipossuficiente da relação de trabalho strictu sensu e
sim o empregador. O poder de estabelecer condições que violem os direitos
fundamentais da empresa é muito maior do lado do Cristiano Ronaldo que o do próprio
Real Madrid. Nesse exemplo, é provável que os apoiadores da tese da aplicação
direta dos direitos fundamentais não defendessem que esses direitos fossem
aplicados diretamente em face do jogador português e em prol do clube espanhol.
Portanto, ou se mantém a lógica da teoria, ou seja, a aplicação direta dos
direitos fundamentais em todas as relações de assimetria trabalhista, seja do lado do
empregado seja do lado do empregador, ou a teoria não se sustenta com a
274 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p.77
91
cientificidade almejada neste trabalho, já que não pode se justificar a defesa irrestrita
dos empregados baseado em coitadismos.
Porém, insta mencionar que o maior expoente na defesa da teoria dos deveres
de proteção, Claus-Canaris (2013), em palestra ministrada na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, mitigou ou excepcionou seu entendimento para admitir
a aplicação direta dos direitos fundamentais na relações jusprivatísticas.275
Defendeu o referido autor que a proibição de discriminação, quando vise a
proteção da dignidade da pessoa humana, deve ter proteção direta dos direitos
fundamentais devido à supremacia absoluta desse princípio. E, portanto, ao Judiciário,
cabe sempre a proteção da não discriminação.276
O autor alemão fornece, como contemporâneo daquele momento histórico, o
seguinte exemplo em que a eficácia do direitos fundamentais deveria incidir de
maneira direta, ou seja, com proteção direta do Judiciário: seria o caso da
discriminação vivenciada pelos judeus na Alemanha de Hitler.277
Contudo, a discriminação na Alemanha sob império do partido Nazista
originava-se do próprio Estado numa relação Estado-indivíduo, o que, por óbvio,
enseja a proteção direta dos direitos fundamentais, já que, no outro lado da relação,
o do Estado, há apenas obrigação de garantir esses direitos, ou seja, é apenas sujeito
passivo da relação.278 Portanto, a matéria não seria regida pelo Direito Privado,
diferentemente do entendimento de Canaris279, e sim pelo Direito Público.
Vale mencionar que Canaris continua a defender que se a discriminação tiver
por objeto a consecução de fins de natureza profissional, social ou política, a
prerrogativa da conformação encontra-se nas mãos do Poder Legislativo. Assim, o
275 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p.15-20, jan./mar. 2013 276 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013. 277 Id. 278 Canaris faz uma distinção entre Direito Público e Direito Privado para dar sustentáculo lógico ao seu exemplo de discriminação dos judeus na Alemanha nazista. 279 Transcrevo no anexo deste trabalho, para a ciência da comunidade científica, a palestra ministrada por Canaris e que se encontra transcrita na revista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, devido à dificuldade de aquisição da referida obra em outras regiões do Brasil quiçá em Portugal.
92
Poder Judiciário não poderá valer-se do instrumental da eficácia direta das proibições
de discriminação na esfera das relações privadas.280
As diversas teorias que tratam da matéria – a da negação da aplicação dos
direitos fundamentais às relações privadas, a teoria da eficácia mediata, a da eficácia
imediata e dos deveres de proteção – trazem um equívoco interpretativo que importa
ressaltar.
O primeiro equívoco interpretativo seria admitir, sem uma análise mais detida
da questão, que a teoria da eficácia imediata traria maior eficácia aos direitos
fundamentais, baseada em uma primeira concepção ultrapassada de que, no Estado
Liberal, os direitos fundamentais eram tidos como direitos em face do Estado e
atualmente sabe-se que as ameaças aos direitos fundamentais são perpetradas tanto
pelo Estado quanto também pelos particulares.281
Daí surge uma pergunta. Por que reservar os direitos fundamentais à relação
indivíduo-Estado? Por que não aplicá-los nas relações interprivados que seriam sua
consequência natural através da teoria da eficácia imediata, já que é a que mais
corresponde a essa necessidade?282
Ocorre que, numa análise mais apurada, todos esses pressupostos
fraquejam. 283 Na realidade, a tese da eficácia imediata enfraquece os direitos
fundamentais.284
Na Alemanha, quando surgiu a tese da eficácia imediata, nomeadamente no
âmbito do Direito Laboral, os constitucionalistas não apoiaram a ideia. E por que razão
os constitucionalistas não apoiaram essa posição?285
Na Alemanha, os constitucionalistas defendiam que a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas ocorreria de forma mediata, de forma indireta,
através da lei, diferentemente da relação indivíduo-Estado em que os direitos
fundamentais eram aplicados de forma imediata. Não era por causa da desconfiança
280 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013. 281 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 282 Id. 283 Id. 284 Id. 285 Id.
93
nos direitos fundamentais, mas era um problema de efetividade, ou seja, se se quer
levar os direitos fundamentais a sério, eles têm quer ser garantias jurídicas fortes que
possam limitar o Estado, por isso, eram aplicados de forma imediata na relação
indivíduo-Estado. Assim, para o Estado limitar um direito fundamental, deve possuir
uma justificação forte e, mesmo quando tem essa justificativa forte, deve respeitar os
princípios auxiliares da igualdade, proporcionalidade e segurança jurídica. E por que
os direitos fundamentais não podem ser aplicados às relações jusprivatísticas da
mesma forma que ao Estado? Simples, porque nos dois lados da relação entre
particulares há direitos fundamentais escudando cada um dos lados, o que não ocorre
na relação indivíduo-Estado em que somente um dos lados da relação é sujeito ativo
dos direitos fundamentais enquanto o outro é destinatário desses mesmos direitos.286
As hipóteses de aplicação da teoria dos deveres de proteção serão abordadas
abaixo.
Segue a primeira hipótese. Se há lei que decide o caso, deve ser aplicada na
resolução do conflito concreto. Enquanto as teses mediata e dos deveres de proteção
só questionam a aplicação em caso de inconstitucionalidade da lei ordinária ou em
caso da eventual necessidade de uma interpretação em conformidade à Constituição,
a teoria da eficácia imediata, para manter sua unidade lógica, defende que o
hermeneuta poderia se valer da Constituição, invocando seu direito subjetivo
fundamental, utilizando-a para resolução do caso concreto.287
A hipótese seguinte parte da premissa de que não há lei que dirima
diretamente o conflito jusprivatístico ou, se houver, apenas fornece soluções fulcradas
em fórmulas vagas ou conceitos indeterminados. A teoria da eficácia imediata socorre-
se dos direitos fundamentais modelados na Constituição. Por outro lado, as teorias
mediata e deveres de proteção apresentam solução diversa. Propõem, como forma
de resolução do conflito, uma densificação e concretização dessas cláusulas gerais e
286 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 287 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 227-291. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014.
94
conceito jurídicos indeterminados conforme aos direitos fundamentais e à
Constituição.288
O problema surge quando se está diante da terceira hipótese, ou seja, quando
não há lei que apresenta solução para lide jusprivatística tampouco cláusula geral ou
conceito indeterminado objetivamente susceptíveis de aplicação ao caso concreto. A
teoria da eficácia imediata invoca norma da Constituição como se direito subjetivo
fosse para a solução do caso posto. A tese mediata resolve a problemática de maneira
simplista, pois transfere:
Exclusivamente a solução do problema para o foro tradicional da autonomia privada, uma vez que, para essa concepção, as únicas modalidades admissíveis através das quais os direitos fundamentais se aplicam nas relações entre particulares são a mediação do legislador e, excepcionalmente, a densificação judicial dos conceitos indeterminados e cláusulas gerais do Direito Civil.289 (NOVAIS, 2014, p. 54).
A teoria dos deveres de proteção resolverá o caso de outra forma,
dogmaticamente sólida, consentânea com a história e a teoria dos direitos
fundamentais e apta a fundamentar uma proteção adequada nas relações entre
particulares.
A teoria dos deveres de proteção baseia-se, desde logo, na premissa de que
os direitos fundamentais sempre foram admitidos como direitos contra o Estado, não
sendo, portanto, possível sua invocação nas lides jusprivatísticas diretamente.
Portanto, esta tese rejeita a possibilidade de aplicação direta e imediata dos direitos
fundamentais às relações entre privados. Assim, a teoria dos deveres de proteção
apresenta-se associada à teoria da eficácia mediata, como desenvolvimento desta.290
A tese da aplicabilidade mediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas e a teoria dos deveres de proteção têm como ponto comum o
reconhecimento da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou seja,
reconhecimento dos direitos fundamentais como princípios básicos de uma ordem
constitucional. A dimensão objetiva faz ligação ao caráter vinculativo dos direitos
288 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 51-52. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 289 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 52. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 290 Id.
95
fundamentais ao Estado. Isso é, refere-se ao dever de respeito e compromisso do
Estado com os direitos fundamentais. Independente do que se possa extrair do caráter
subjetivo de um direito, o Poder Público deve guiar sua atuação sempre de maneira a
satisfazer e concretizar os direitos fundamentais.291
É a partir do reconhecimento da dimensão objetiva e da força irradiante dos
direitos fundamentais sobre o Estado que surge o dever de proteção da liberdade,
autonomia individual e dos bens jusfundamentalmente protegidos. Esse dever de
proteção é escudo protetor tanto das ameaças ou agressões provenientes das
entidades públicas como também das entidades privadas. Isso porque os particulares
não dispõem de meios de autotutela desses direitos e também pelo fato de o Estado
ter o monopólio, de usar a força coercitiva, própria do Estado de Direito, resultando
daí que a defesa plena e efetiva só pode ser prestada legitimamente pelo Estado.292
É momento para colocar frente a frente a teoria dos deveres de proteção e a
teoria da eficácia imediata defendida arduamente pela quase totalidade da doutrina
brasileira como a que traz a maior defesa da efetividade dos direitos fundamentais e
da força normativa da Constituição. No âmbito trabalhista, toda a doutrina brasileira
defende a tese da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações de
emprego, fundamentando na superioridade da empresa em detrimento do empregado
e também no princípio da proteção tão festejado no âmbito dessa seara do Direito.
Será mesmo a teoria da eficácia imediata a que trará a plenitude de defesa dos direitos
fundamentais do empregado? E mais, onde fica a posição do empregador como
sujeito ativo dos direitos fundamentais? Por que o direito fundamental do empregado
deverá prevalecer sobre o direito fundamental do empregador que também é detentor
de direitos fundamentais?
Essas perguntas precisam ser respondidas, sob pena do interpréte, já
condicionado a adotar uma posição favorável ao empregado, supostamente sujeito
mais “fraco” da relação justrabalhista, escolher a teoria da eficácia direta dos direitos
fundamentais, utilizando o princípio da proporcionalidade apenas para justificar a
conclusão que já era sabida anteriormente, numa adesão quase emocional por parte
291 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 53. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 292 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 53-54. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014.
96
de quem, abordando pela primeira vez o problema, o faz a partir de uma preocupação
ou perspectiva garantista de proteção.
Os defensores da teoria da eficácia imediata utilizam argumentos com forte
hipósteses de sucesso para justificar a utilização da teoria: a) por que os direitos
fundamentais só deveriam valer nas relações indivíduo-Estado quando há, em
especial na seara trabalhista, ameaças à liberdade dos indivíduos nas relações
privadas?; b) por que e para quê circunscrever o potencial de eficácia dos direitos
fundamentais às relações do indivíduo com o Estado se a dignidade da pessoa
humana é una e indivisível e se pode ser seriamente ameaçada por outros
particulares?293
Responderiam os alvoroçados em defender a tese da eficácia imediata que o
motivo seria dar prevalência à autonomia negocial, à liberdade contratual, fazendo
prevalecer os direitos patrimoniais e o direito de propriedade sobre os direitos de
liberdade pessoal. “Seria sacrificar os direitos fundamentais no altar de uma
sacralização da livre iniciativa privada numa hierarquização de prioridades que,
objetivamente, oculta o domínio dos economicamente mais poderosos”.294
Poder-se-ia colocar em dois lados distintos os que são supostamente mais
favoráveis aos direitos fundamentais ao encontro da teoria da eficácia imediata e os
que são supostamente favoráveis à autonomia privada ao encontro das outras teses.
Ou seja, quem supostamente é favorável à correção das diferenças socias, de
limitação dos poderes privados, quem tem preocupações igualitárias, sustentando a
teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais; e, do outro lado, quem deseja
conservar a posição inigualitária mantendo os direitos fundamentais apenas nas
relações com o Estado, protegendo a esfera privada dos transtornos da aplicação dos
direitos fundamentais de forma direta.295
Se a questão é posta dessa forma, constitui forte apelo a favor da teoria da
eficácia imediata dos direitos fundamentais. Não é à toa que a Constituição
portuguesa inclinou-se literalmente para a tese da eficácia direta: “Os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
293 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 77. 294 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 77-78. 295 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 78.
97
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”296; assim como a doutrina do
Brasil e de toda América Latina.
Uma crítica que recai sobre a teoria dos deveres de proteção é a que os
resultados obtidos seriam os mesmos obtidos pela teoria da eficácia imediata.
Contudo, se realmente fosse verdadeira a afirmação, o que não é, caberia a teoria da
eficácia direta explicar o motivo pelo qual introduziu um fator de perturbação no plano
relativamente estabilizado da fundamentação tradicional. Explica-se: é uníssona a
afirmação que os direitos fundamentais têm sua origem como direitos de defesa
primariamente em face do Estado e a teoria da eficácia direta dos direitos
fundamentais pretende conceber aos direitos fundamentais um alcance
substancialmente diferente com a aplicação direta dos direitos fundamentais nas
relações interprivados.
Os defensores da teoria da eficácia direta concordam com a ideia de que os
direitos fundamentais até hoje são dirigidos contra o Estado. E essa teoria argumenta
que a eficácia direta seria a evolução dos direitos fundamentais, já que ameaças
também provêm dos particulares, não havendo razão para limitar a eficácia às
relações indivíduo-Estado.
Contudo, esse argumento é falacioso porque as ameaças à liberdade
individual oriundas dos particulares já são conhecidas do Estado desde outrora. O
Estado Liberal de Direito, consagrado na tríade liberdade/segurança/propriedade, não
tinha por outro objetivo senão garantir aos particulares o direito de propriedade através
de mecanismos de segurança interna e externa. A dimensão interna é resumidamente
a consciência da existência de ameaças sociais pela classe dominante na época
advindas de particulares em face do direito de propriedade.297
Assim, o Estado assumia o dever de proteção da liberdade individual através
da proteção do direito de propriedade contra ameaças a essa liberdade provindas de
outros particulares. Esse posicionamento era levado tão a sério que o direito de voto
somente era exercido pelos proprietários de terra.298
296 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002.
297 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 84-85. 298 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 95.
98
Com a evolução do Estado de Direito liberal para o Estado Social de Direito,
as Constituições incluíram em seus bojos os chamados direitos sociais, que não são
direitos que têm como destinatários principais entidades privadas – como querem
fazer crer os aficionados da tese da teoria da eficácia imediata – e sim direitos que
consagram especiais deveres de proteção que competem ao Estado na preservação
da liberdade nas relações privadas.
O professor Jorge Reis Novais explica o mencionado no parágrafo anterior
utilizando-se de direitos do empregado, o que se alinha com o objetivo deste trabalho:
Assim, quando algumas constituições, por exemplo, regulam especificamente os direitos sindicais na empresa, o direito à greve ou os direitos dos jornalistas, não fazem mais que impor determinadas orientações de conformação do Direito privado por parte do legislador, reduzindo, por vezes totalmente, a margem de discricionariedade de que este, à partida, disporia no âmbito do cumprimento dos seus deveres de protecção (sic) dos direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido, na medida em que reduz a discricionariedade legislativa, as normas constitucionais em questão abrem novas possibilidades de intervenção ao juiz, mas, no fundo, pesem embora as aparências, os destinatários dessas normas constitucionais continuam a ser o Estado e as entidades públicas. (NOVAIS, 2006, p. 84-85).299
A corrente doutrinária que propugna pela eficácia imediata dos direitos
fundamentais tem uma subvertente que defende a aplicação direta dos direitos
fundamentais quando, em um dos polos da relação interprivados, estiverem os
chamados poderes privados, ou seja, situação em que uma entidade privada, sem
características de state action, é dotada de poder social de natureza econômica,
cultural, religiosa ou circunstancial que permita se sobrepor a outra parte,
caracterizando situação de sujeição objetiva.300
E verdade que essa situação é bastante comum nas sociedades atuais e mais
especialmente na seara trabalhista onde quase a totalidade das relações são
caraterizadas pela sujeição do empregado ao empregador (geralmente entidades de
grande força econômica) 301, contudo, não haveria qualquer razão que autorizasse
299 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 84-85. 300 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88. 301 O professor Jorge Reis Novais tem posição, que pouco ou não leva em consideração as peculiaridades da relação de emprego, que os desequilíbrios são próprios de uma sociedade plural: “...de facto relações deste género, cuja assimetria carece de ser devidamente tida em conta, não é esta a situação comum na ordem jurídica privada, onde os desequilíbrios existente são próprios de uma sociedade plural e são susceptíveis de ser adequadamente
99
renovar artificialmente para que as relações interprivados dotadas de desigualdade
de poderes tivessem o mesmo tratamento das relações jurídicas entre Estado e
indivíduo e tratamento diverso de todas as outras relações em que intervenham
entidades privadas. 302
Porém, a razão maior para que os direitos fundamentais nas relações
interprivados não sejam delineados pela teoria da eficácia imediata é a de que um
sujeito privado não pode olhar para um direito fundamental como inimigo.
Os direitos fundamentais nos últimos 200 anos são vistos como garantias
jurídicas fortes em que o Estado democrático, à maioria, só pode neles penetrar para
garantir um outro bem igualmente digno de proteção jurídica e que, nas circunstâncias
do caso concreto, apresente peso superior ao meu trunfo. E essa abrangência dos
direito fundamentais que faz com que sejam garantias jurídicas fortes contra os
Poderes Públicos.303
Para os defensores da teoria da eficácia imediata, o mesmo ocorreria quando
estivessem em conflito dois direitos fundamentais nas relações interprivados, ou seja,
um direito fundamental cederia perante outros bens que apresentem um maior peso.
A ponderação entre direitos fundamentais conflitantes somente é valorativamente
enquadrada de maneira adequada se observado for o princípio parametrizador da
dignidade humana.304
Ocorre que, diferentemente da relação indivíduo-Estado – em que um direito
fundamental somente cede se o Estado encontrar uma justificação de peso
essencialmente irrefutável, pois a simples vontade da maioria democrática não é
suficiente para justificar a restrição –, nas relações entre privados, quando um deles
utiliza do trunfo, invarialmente a outra parte apresenta o trunfo de mesmo peso ou até
o mesmo trunfo. Qual deveria prevalecer?
O professor Jorge Reis Novais responde:
absorvidos e tidos em conta na legislação ordinária que regula o estabelecimento de relações privadas.” (NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88). 302 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88-89. 303 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 304 COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Sobre a justificação das restrições aos Direitos Fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Coord.). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia. v. 1. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 557-574.
100
...toda a argumentação a favor de uma posição jusfundamental pode ser replicada com os mesmos ou idênticos argumentos a favor da outra posição jusfundamental em confronto, donde que o pretendido acréscimo de proteção visado com esta teoria305 seria imediatamente neutralizado pela recíproca invocação dos mesmos argumentos a favor da outra parte.306 (NOVAIS, 2006, p. 90).
Dessa forma, logo no primeiro momento de aplicação de direito fundamental
como se subjetivo fosse contra outros particulares, a força desse direito é
desvitalizada ou neutralizada por meio da invocação mútua por parte do oponente.307
Observem, para não cair na armadilha dos aplicadores da teoria da eficácia
imediata, que a relação indivíduo-Estado é qualitativamente diferente da relação
indivíduo-indivíduo. Isso porque, naquela, o Estado não é titular de direitos
fundamentais, “ele dificilmente pode invocar razões jusfundamentais a favor do
interesse que pretende prosseguir” 308 . Por outro lado, nas relações interprivados,
ambas as partes da relação são sujeitos ativos dos direitos fundamentais, quedando-
se a ponderação sem critérios jusfundamentais de solução. E mais, aquilo que a teoria
da eficácia imediata prometera, ou seja, maior proteção decorrente do
reconhecimento de um direito subjetivo jusfundamental, é esvaecida precisamente
“pela mesma via por onde entrara: a neutralização implicada na existência de um
direito subjetivo de idêntico peso do lado contrário”.
A teoria do dever de proteção, verificada a assimetria da relação, como a
maioria das relações empregatícias, a dimensão do poder privado, obriga o Estado a
adotar uma posição de preservar os direitos fundamentais ante ameaças e
compressões que padeçam em decorrência da própria multifacetada dinâmica das
relações entre particulares.309
Assim, o Estado deve proteger quem se encontre numa posição de
necessidade que impeça o livre exercício dos direitos fundamentais e deve proteger
quem se encontre numa situação de fragilidade perante poderes privados
305 Teoria da eficácia direta ou imediata. 306 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 307 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 308 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 92-93. 309. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 93.
101
demasiadamente fortes, colocando em igualdade de condições em relações
assimétricas.310
Por fim, qualquer conflito entre direitos fundamentais entre particulares, quando
levado a cabo, transmuda-se em relações de colisão entre esses direitos e, na
ausência de qualquer hierarquia constitucional pré-definida, terá que ser decidida pelo
juiz. O resultado dessa decisão irremediavelmente trará como consequência a
cedência de um direito fundamental, isso é, a restrição de direito fundamental através
da decisão judicial. Na realidade, ao cabo, o que ocorre é uma relação vertical
jusfundamental entre o Estado e o indivíduo que origina-se na intervenção restritiva
dicidida pelo juiz. A tese da eficácia imediata que procurava afastar-se da mediação
do Estado, que nada mais é do que o dever de proteção do Estado, termina a remeter
a questão para o plano das relações Estado-indivíduo.
Questão importante e que precisa estar clara para melhor compreensão do
tema pelo intérprete é que os deveres de proteção recaem sobre todos os órgãos do
Estado e, primariamente, sobre o legislador e que os direitos fundamentais se
realizam nas relações interprivados através desses deveres e não através da
titularidades desses direitos por parte de particulares em face de outros particulares.
Um exemplo da seara trabalhista elucidará o acima mencionado. Se não fosse
dessa forma, ou seja, se os direitos fundamentais não se materializassem através do
Estado, um empregador não poderia admitir um filho de um amigo na sua empresa,
tendo ciência que há outro canditado melhor preparado para assumir a vaga, pois
bastaria esse canditado invocar o direito fundamental à igualdade para conquistar a
referida vaga. E justamente por não se realizarem nas relações privadas através da
titularidade por parte dos privados que os direitos fundamentais não podem ser
invocados no exemplo acima diretamente pelo particular. O professor Jorge Reis
Novais (2006) indaga se o empregador poderia manter o filho do amigo no emprego
em detrimento de outro empregado, mesmo esse passando por dificuldades
financeiras e com maior produtividade na empresa. Pode sim, salvo “se o legislador,
no exercício de seu direito constitucional de proteger o direito ao trabalho, a família ou
310 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 94.
102
a própria igualdade, tenha estabelecido restrições (não ilegítimas ou inconstitucionais)
àquela minha liberdade geral de acção (sic).”311
A liberdade individual, para a tese dos deveres de proteção, pode e deve ser
limitada pela obrigação do Estado de resguardar e fomentar a igualdade enquanto
preceito constitucional. Contudo, se a atividade estatal, sob o pretenso argumento de
igualar, implicar restrição de direitos fundamentais, estará submetida ao
correspondente controle de constitucionalidade.312
Se o Estado legisla impondo determinados deveres de comportamento aos
particulares nas relações interprivados, com fulcro no princípio da igualdade e o
mesmo vale para os demais direitos fundamentais, nesse caso brotam direitos
subjetivos invocáveis nessas relações.313
A tese da eficácia direta dos direitos fundamentais não se sustenta
empiricamente com exemplos da vida cotidiana e, em verdade, desloca os direitos
fundamentais à fase historicamente superada em que os direitos fundamentais valiam
como meras proclamações pregramáticas, ou seja, volta a remetê-los para o âmbito
das boas intenções. Levando a sério o predicado de direitos subjetivos oponíveis a
outros particulares, os direitos fundamentais levariam o hermeneuta a situações
esdrúxulas em que os particulares destinatários de direitos fundamentais estariam
obrigados a observâncias desses princípios. Se a teoria que defende que os direitos
fundamentais deveriam ser aplicados diretamente nas relação privadas fosse
adotada, um homem poderia exigir judicialmente que o deixasse jogar em um
determinado time de futebol pelo simples fato de ter sido preterido por alguém que
demonstrasse simpatia por esse time nas redes sociais. Ou de um condômino poder
impugnar a realização de uma festa num apartamento, pelo simples fato de não ter
sido convidado por razões meramente ideológicas de simpatia à ditadura militar.314
311 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 99. 312 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 99-100. 313 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 100. 314 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 100.
103
9 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO PRIVADO NO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA
Neste capítulo será empregada uma análise mais descritiva do que a
analítica-reflexiva da posição da doutrina e jurisprudência no Brasil, Portugal e
Espanha sobre o papel dos direitos fundamentais no Direito Privado.
A eficácia da Constituição no Direito Privado passa pelo olhar de duas
perspectivas. A interpretação das normas de direito privado conforme a Constituição
e também da incidência da Constituição no âmbito das relações jusprivatísticas.315
Insta mencionar, para evitar confusões terminológicas, que quando se utilizam
as expressões "eficácia horizontal" ou a expressão alemã Drittwirkung (eficácia em
relação a terceiros) não se quer limitar a eficácia das normas de direitos fundamentais
às relações jusprivatísticas, mas também reconhecer que essas normas irradiam suas
influências para atos dos agentes estatais, como se depreende da teoria dos deveres
de proteção.316
A doutrina brasileira, capitaneada pelo professor Ingo Sarlet, maior expoente
brasileiro em matéria de direitos fundamentais, segue a teoria da eficácia imediata dos
direitos fundamentais às relações privadas.
Dessa forma, enquanto que praticamente todos os autores brasileiros que
recentemente têm se debruçado sobre o tema anuem, com distinções de minudência,
à tese da eficácia imediata, por outro lado, parte substancial da doutrina portuguesa
apresenta-se em caminho contrário.
O principal fundamento da doutrina majoritária é que a Constituição brasileira
de 1988 expressamente dispôs que as normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º, da CFb: “As normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 317 ).
Defende essa corrente doutrinária que esse artigo seria um verdadeiro mandamento
315 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 120. 316 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 125. 317 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.
104
em favor de uma inequívoca eficácia direta das normas de direitos fundamentais "no
sentido de que todos os órgãos estatais estão obrigados a assegurar a maior
efetividade e proteção possível aos direitos fundamentais".318
Seria compreensível entender que o artigo 5º, parágrafo 1º, da CFb realmente
quis conceber aos direitos fundamentais eficácia direta em relação aos órgãos
estatais, porém, a doutrina brasileira foi mais adiante para admitir a eficácia imediata
aos direitos fundamentais também às relações privadas, pois, se assim não fosse,
estar-se-ia instaurando uma espécie de dupla ética social.
Porém, se o constituinte quisesse conceber eficácia imediata aos direitos
fundamentais às relações privadas, teria utilizado a redação do artigo 18 da
Constituição portuguesa que prevê expressamente a inclusão das entidades privadas
no rol dos destinatários dos direitos, liberdades e garantias. Isso porque a Constituição
portuguesa é anterior à Constituição brasileira, que é de 1988, e sofreu grande
influência daquela, mantendo o intercâmbio, já que o controle de constitucionalidade
difuso português sofrera forte influência do mecanismo já adotado no Brasil.319
Na realidade, andou bem o legislador constituinte brasileiro quando não
incluiu expressamente a incidência imediata dos direitos fundamentais também às
relações privadas, pois essas relações têm peculiaridades que as distinguem
sobremaneira das relações indivíduo-Estado.
Daí, surge uma primeira indagação. A Constituição brasileira não tem
nenhuma norma clara sobre forma de aplicação dos direitos fundamentais às relações
jusprivatísticas, todavia, a doutrina brasileira converge na afirmação da aplicabilidade
318 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 128. 319Mas foi dos portugueses que o constituinte transportou a sequência inicial de organização sistemática do texto. Comparando o Diploma Supremo de Portugal de 1976 com a Lei Maior dos brasileiros de 1988, iremos detectar a mesma ordem na distribuição das matérias, a saber: preâmbulo, princípios fundamentais e direitos fundamentais. A explicação para esse fato prende-se às ‘tradicionais afinidades histórico-culturais entre os dois países, mas também pela vivência contemporânea de processos de transição democrática, não obstante os seus traços diferenciadores. Deu-se, pois, continuidade a um intercâmbio jurídico que conheceu breves intervalos, como no caso do afastamento dos textos portugueses, logo após a independência, qualificado de ‘freudiano’ por Gilberto Freyre. Evoquem-se, por exemplo, a repercussão da Constituição portuguesa de 1820 na imperial brasileira de 1824, na portuguesa de 1826; a nossa republicana de 1891, na deles de 1911; a deles de 1933, na Constituição do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937’[...] (BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 63).
105
direta dos direitos fundamentais; a Constituição portuguesa, por seu turno, consagra
a aplicabilidade direta de forma aparentemente inequívoca, se utilizada a
interpretação literal, pelo menos no sentido em que não distingue a vinculação dos
entes públicos da vinculação dos privados (“os preceitos constitucionais respeitantes
aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas”320) e os portugueses demonstram evidentes cautelas
em abraçar tal posição.321
Assim, é indispensável a análise do Direito Comparado quando em análise a
experiência brasileira. Mesmo em Portugal, onde há previsão expressa pelo menos
em uma interpretação literal do texto constitucional, a questão da possibilidade de
eficácia imediata dos direitos fundamentais às relações privadas não foi solucionada
pela doutrina:
Dado que a leitura da Constituição não permite, por si só, retirar qualquer conclusão segura, parece preferível não nos centramos acirradamente na exegese do texto constitucional – donde é sempre possível retirar mais ou menos do que ele efeticvamente diz – e considerar preferencialmente o problema no plano geral da controvérsia que tem ocupado a doutrina e jurisprudência dos Estados de Direito há mais de meio século.322 (NOVAIS, 2006, p. 70).
O professor José de Melo Alexandrino (2011), trantando da aplicação dos
direitos fundamentais nas relações privadas em Portugal, defende a tese que os
direitos fundamentais não são aplicáveis diretamente nas relações entre particulares,
pois existe uma diferença de fundo entre a vinculação do Estado e a vinculação da
sociedade. Os Poderes Públicos estão total, direta e imediatamente vinculados aos
direitos fundamentais, enquanto os particulares gozam de autonomia e de liberdade,
“no quadro do sistema de direitos e liberdades fundamentais” 323 . E continua o
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa acastelando a tese da
eficácia mediata de aplicação dos direitos fundamentais na relação interprivados, não
é direta porque, na compreensão dos direitos fundamentais da CRP, na série de
320 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 321 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 69-70. 322 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70. 323 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 102.
106
valores, bens e interesses constitucionais importantes, a liberdade negativa desfruta
ao cabo de uma precedência sobre outras referências (como a solidariedade) e outros
princípios constitucionais, “a isso correspondendo a vincada reafirmação da primazia
dos direitos fundamentais de liberdade na sua função dominante”.324
O exemplo dado pelo referido professor para explicar o porquê da prevalência
da teoria do eficácia mediata do direitos fundamentais, mesmo sem olvidar da
importância da teoria dos deveres de proteção com o reforço que lhe é dado pelo
modelo dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria, em detrimento da
teoria da eficácia imediata, é na seara trabalhista. Segue o exemplo:
Saber se é ou não lícito a uma entidade patronal exigir aos candidatos a um lugar que se submetam a determinados exames médicos não deve ser resolvido por força da aplicação directa do direito à reserva da intimidade da vida privada (26o, no 1), mas sim por recurso às soluções desenhadas pelo legislador (no caso, o artigo 19o do Código do Trabalho) ou, na sua ausência, por recurso aos princípios gerais do Direito privado.325 326 (ALEXANDRINO, 2011, p. 102).
Na Alemanha, a redação do artigo 1º, 3, da Constituição deste país (“Os
direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente
aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário” 327 ) orienta o
intérprete, em interpretação literal a contrario sensu, que o constituinte adotou a teoria
da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Isso porque há
a adoção da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais em relação aos
324 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 102. 325 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 103-104. 326 O professor José de Melo Alexandrino traz interessante exemplo, na seara trabalhista, para justificar que um direito fundamental não tem como destinatário exclusivo um particular. “Poderá o direito à greve (do artigo 57o da CRP) ter como destinatário principal ou exclusivo as entidades patronais privadas? ...o conteúdo da garantia fundamental do direito à greve analisa-se numa relação entre o sujeito activo (o trabalhador), o sujeito passivo (o Estado) e o objeto do direito (o conjunto de poderes necessários para decidir, aderir a, e conduzir a greve), onde de modo algum figuram entidades patronais.” (ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 104). 327 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar.2 014.
107
órgãos estatais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, conforme redação
literal do artigo, e não há inserção dos particulares na redação do referido artigo.328
O Supremo Tribunal Federal brasileiro em três ocasiões inclinou-se a favor da
teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais.
Seguem as decisões:
A primeira (Recurso Extraordinário 158215-4/RS) debateu sobre a aplicação
da ampla defesa e do contraditório em caso de exclusão de sócio de cooperativa sem
adentrar com profundidade na temática da distinção entre eficácia imediata e
mediata.329Contudo, a decisão prestigiou a tese da eficácia imediata dos direitos
fundamentais.
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLACAO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais.
328 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 129. 329 Paulo Gustavo Gonet Branco analisa essa decisão: “A segunda turma do Supremo Tribunal enxergou controvérsia constitucional apta a ensejar o conhecimento e provimento de recurso extraordinário em causa em que se discutia a legitimidade formal da expulsão de sócios de uma cooperativa, sem a observância dos preceitos estatutários relativos à defesa dos excluídos. O relator, Ministro Marco Aurélio, dirigiu toda a apreciação do caso para o ângulo da garantia constitucional da ampla defesa. Argumentou que ‘a exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. (...) Incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-los sumariamente do quadro de associados(...), sem a abertura de prazo para produção de defesa e feitura de prova’. O acórdão não se deteve em considerações acadêmicas sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, o que o torna ainda mais sugestivo. A decisão tomou como indiscutível que há normas de direitos fundamentais que incidem diretamente sobre relações entre pessoas privadas. Deixou para os comentadores os adornos doutrinários” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associacoes, Expulsao de Socios e Direitos Fundamentais, Direito Publico. v. 1, n. 2. Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, p. 170-174).
108
COOPERATIVA - EXCLUSAO DE ASSOCIADO – CARATER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa. RE n° 158.215-RS, Rel. Min. Marco Aurélio., DJ de 07 de junho de 1996. (BRASIL, 1996)330
A segunda decisão (Recurso Extraordinário 161.243-6/DF) que versava sobre
a aplicação do princípio da igualdade às relações trabalhistas no caso de empresa
que diferenciava empregados brasileiros e estrangeiros também não enfrentou o
espinhoso tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas suas diversas
teses. Porém, sinalizou pela adoção da teoria da eficácia imediata.
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCIPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. CF, 1967, art. 153, § 1o; CF, 1988, art. 5o, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: CF, 1967, art. 153, § 1o; CF, 1988, art. 5o, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: AI 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.331 RE n° 161.243-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 19 de dezembro de 1997. (BRASIL, 1997).
A terceira decisão (Recurso Extraordinário 201819), que teve o voto-vista do
Ministro Gilmar Ferreira Mendes e a sua defesa em prol da eficácia direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas, foi a que melhor enfrentou a temática da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no âmbito do Supremo
Tribunal Federal. Contudo, vale ressaltar que a decisão ocorreu no âmbito de controle
330 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 158.215-RS. Relator: AURÉLIO, Marco. Diário Oficial, Brasília, 7. mai. 1996, p. 19830. 331 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057.
109
difuso e incidental de constitucionalidade. Assim sendo, tal decisão não gera efeitos
erga omnes nem tampouco eficácia vinculante.
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os Poderes Públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. Recurso extraordinário
110
desprovido.STF – RE 201819 / RJ – 2ª Turma – Relª. Minª. Ellen Gracie – DJ 27 de outubro de 2006.. (BRASIL, 2006).332
Todavia, a decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal traz uma
importante questão. Na decisão, restou evidenciado que somente pelo caráter público
e geral do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais se
legitimaria a aplicação da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas
relações privadas: "Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui
para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido
processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) ao processo
de exclusão de sócio de entidade"333.
Ora, a contrario sensu, o Ministro Gilmar Mendes parece não admitir a teoria
da eficácia horizontal dos direitos fundamentais de forma direta quando a relação
privada não tiver carácter público e geral, aproximando-se da public function theory.
Dessa forma, conclui-se que, mesmo sem entrar nas discussões sobre as
mais diferentes teorias acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o
Supremo Tribunal Federal brasileiro está inclinado a adotar a teoria da eficácia
imediata, ou seja, vem aplicando diretamente os direitos individuais consagrados na
Constituição na resolução de litígios privados.
A Constituição portuguesa, embebida por ideias de conceber maior
efetividade aos direitos fundamentais e por receio de que os juízes aplicassem as leis
de direito privado sem observar os princípios objetivos da Constituição, normatizou
em seu texto a ideia da eficácia imediata dos direitos fundamentais. Isso porque o
constituinte já sabia, naquela altura, que os alemães já discutiam as teorias da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais há 20 anos. A Constituição espanhola da mesma
época, de maneira oposta, não previu nada a respeito da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas.334
332 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11 out. 2005. Diário Oficial, Brasília, 27 out. 2006, p. 00064. 333 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11 out. 2005. Diário Oficial, Brasília, 27 out. 2006, p. 00064. 334 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
111
Assim, surge uma indagação: onde os direitos fundamentais nas relações
privadas são melhor protegidos, em Portugal ou na Espanha?
Por mais incrível que pareça, não há jurisprudência do Tribunal Constitucional
português sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, salvo casos de direito
laboral em matéria de direito coletivo, diferente do Tribunal Constitucional espanhol
que julgou centenas de casos.335
Portanto, verifica-se que a adoção da teoria da eficácia imediata dos direitos
fundamentais, como, por exemplo, o caso português, nem sempre é a que traz maior
eficácia aos direitos fundamentais e isso ocorre porque a dimensão material e a
dimensão processual devem seguir juntas, pois senão há um vazio, não há proteção
aos direitos fundamentais.336
A eficácia jurídica dos direitos fundamentais no Direito Privado não é apenas
um problema jurídico-material, mas que tem consequências processuais e
institucionais consideráveis. A mais simples é a situação nos Estados em que não há
Tribunais Constitucionais específicos. Os direitos fundamentais garantidos na
Constituição são acolá protegidos através dos tribunais ordinários e, em última
instância, pelo Tribunal Supremo, que exerce, ao mesmo tempo, as funções de
tribunal de revisão e de tribunal constitucional (jurisdição constitucional), aplicando a
primazia dos direitos fundamentais constitucionais sobre o Direito Privado ao
interpretar a lei.
A CRP previu expressamente a eficácia imediata dos direitos fundamentais
nas relações interprivados (esfera material) e nenhuma violação de direito
fundamental perpetrada por privados chega à Corte mais afeta para decidir violações
a direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional português. Ora, a ideia do
constituinte era justamente retirar do juiz comum a apreciação dessas violações
quando inseriu o artigo 18 da CRP para levá-las ao Tribunal Constitucional, mas, no
sistema de fiscalização da constitucionalidade português, essas questões não
chegam ao Tribunal Constitucional para apreciação.
E por que isso acontece? Por que a matéria da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais não chega para apreciação do Tribunal Constitucional no sistema de
335 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 336 Id.
112
fiscalização da constitucionalidade? Simples, porque o sistema de constitucionalidade
português somente previu a fiscalização de constitucionalidade de normas e os
particulares não fazem norma, exceto convenções coletivas de trabalho. Assim, a
mais grave violação em matéria de direitos fundamentais na relação jusprivatística é
resolvida pelo juiz comum e não pelo Tribunal naturalmente afeto a decidir essas
questões.337
E mais, se um juiz comum, quando decide um conflito de direito privado, não
atende, ou até viola, um direito fundamental de uma das partes afetadas por ação de
outro particular, o cidadão português lesado pode invocar essa violação perante o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas já não o pode fazer perante o seu
Tribunal Constitucional.338
Na Espanha, onde a doutrina e jurisprudência adotaram a teoria da eficácia
imediata dos direitos fundamentais e há possibilidade de manejar o recurso de
amparo, estaria o Tribunal Constitucional espanhol realmente dando efetividade aos
direitos fundamentais das relações interprivados?
A Ley Orgánica del Tribunal Constitucional (LOTC), no seu artigo 41.2, exclui
do âmbito objetivo do procedimento constitucional do amparo as pretensões que não
se dirijam contra atos dos Poderes Públicos. Portanto, as condutas dos particulares
que se considerem lesivas de um direito fundamental serão apreciadas
exclusivamente por juízes e tribunais ordinários e não pelo Tribunal mais afeto às
questões que envolvam direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional.
Felizmente, a tendência inicial a mesclar ou confundir os planos material e
processual em matéria de eficácia horizontal dos direitos fundamentais parece
superada. Para decidir qual teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações
interprivados o hermeneuta estará mais afeto, é irrelevante a configuração legal do
procedimento extraordinário do amparo como garantia que feche o sistema339, mas é
337 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 338 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados. Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 21. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 339 UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 170.
113
relevante para determinar qual sistema e teoria trarão maior efetividade aos direitos
fundamentais.
Estranhamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol admite
dizer a última palavra nos casos em que a violação que se aprecia tenha sido causada
extrajudicialmente por um particular. Isso porque o artigo 44 da LOTC admite o recurso
de amparo contra violações causadas por órgãos judiciais.
Portanto, ao encontro do quanto determinado na teoria dos deveres de
proteção, o Tribunal Constitucional ultrapassa o obstáculo do 41.2 da LOTC, que
admite o recurso de amparo em face de violações dos Poderes Públicos, e abre a
possibilidade, de maneira reflexa, de apreciar, via recurso de amparo, controvérsias
entre particulares. Porém, há que se reconhecer que a admissão de uma demanda
como essa implica necessariamente a transformação de uma pretensão originária em
outra que se dirigirá agora contra um Poder Público (o Poder Judiciário).340
E mais, o artigo 44.1 LOCT estabelece que a violação apta a ensejar o manejo
do recurso de amparo tenha sua origem imediata e direta em um ato ou órgão judicial.
E é óbvio que a violação não surgiu imediata e diretamente do órgão judicial e sim do
ato causado em primeiro plano por um sujeito privado.
Mas por que o Tribunal Constitucional espanhol faz esse malabarismo?341
Simples, para dar maior efetividade aos direitos fundamentais. Contudo, se o
ordenamento jurídico espanhol tivesse adotado o recurso de amparo nos moldes do
adotado no Chile, inclusive em face de atos dos particulares, não teria o Tribunal
Constitucional todo esse trabalho argumentativo e talvez não gerasse eventual
rachadura no princípio da separação dos poderes, já que o legislador espanhol,
diferentemente do chileno que previu o super amparo, inclusive quando, em conflito
Ubillos afirma: “Lo que cruenta, lo que resulta determinante es la extensión de la tutela general de los derechos a cargo de la jurisdicción ordinaria. Es en este terreno en el que se juega realmente la partida”. (UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 171.) 340 Ibid. 172. 341 Ibid. 173. O próprio Ubillos bem caracteriza o procedimento do Tribunal Constitucional espanhol quando admite o recuso de amparo nestes casos: “Se acude en estos casos a un expediente técnico ingenioso, que consiste en laimputación al órgano judicial de la violación cometida originariamente en el seno de una relación jurídico-privada”. (UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 173.)
114
direitos fundamentais dos particulares, não previu a possibilidade de recurso de
amparo para apreciar a questão entre particulares.
115
10 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
JUSTRABALHISTAS
Atualmente, os direitos fundamentais tornaram-se peças-chave nos diversos
ramos do Direito. Assim, em qualquer controvérsia, dificilmente pelo menos uma das
partes envolvidas não sustentará a violação ou ameaça a algum direito fundamental,
principalmente porque, no Brasil, adota-se quase que integralmente a teoria
alexyana342 dos Direitos Fundamentais e, no Direito do Trabalho, não poderia ser
diferente. Não há como imaginar as relações de trabalho no cenário jurídico sem levar
em consideração não somente os direitos fundamentais trabalhistas, como também
os direitos individuais, sociais e coletivos.343
Não há discussão na seara doutrinária e jurisprudencial brasileira sobre a
aplicação dos direitos fundamentais nas relações justrabalhistas, mas o que ainda não
restou consolidada nem mesmo pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro tampouco
pelo Tribunal Superior do Trabalho brasileiro foi como se dá a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações no âmbito do Direito do Trabalho, ou seja, qual teoria dos
direiros fundamentais entre privados trará maior eficácia dos direitos fundamentais
aos particípes daquela relação, seja o empregado seja o empregador. Isso para dar
cientificidade à discussão e não aplicar indistintamente a teoria imediata dos direitos
fundamentais nas relações jusprivatísticas sob a ótica exclusiva do trabalhador,
olvidando que, do outro lado da relação, há uma parte (pessoa jurídica/coletiva privada
ou física/individual) também detendora de direitos fundamentais.344
342 Teoria desenvolvida por Robert Alexy no seu livro Teoria dos Direitos Fundamentais, que parte da premissa que todos os direitos fundamentais são aplicados prima facie. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Título original: Theorie der Grundrechte). 343 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 60, 2011. 344 Não há, em princípio, impedimento insuperável a que pessoas jurídicas venham, também, a ser consideradas titulares de direitos fundamentais, não obstante estes, originalmente, terem por referência a pessoa física. Acha-se superada a doutrina de que os direitos fundamentais se dirigem apenas às pessoas humanas. Os direitos fundamentais suscetíveis, por sua natureza, de serem exercidos por pessoas jurídicas podem tê-las por titular. (…) Garantias, porém, que dizem respeito à prisão (e.g., art. 5.º, LXI) têm as pessoas físicas como destinatárias exclusivas. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 271).
116
Não há dúvida de que, num ordenamento que reconhece as liberdade
econômicas – e, especialmente, a da empresa – como um direito fundamental as
faculdades do empregador/empresário de criar, organizar e dirigir sua empresa,
pressupõe-se, necessariamente, a liberdade de dispor sobre todos os fatores que
intervém no processo produtivo ou na atividade econômica daquela, entre estes,
naturalmente, está o fator trabalho.345
A liberdade da empresa compreende vários aspectos. O primeiro deles supõe
a liberdade de empreender atividades econômicas, no sentido de livre fundação de
empresas e de livre acesso ao mercado de bens e serviços. Também como parte
essencial desse direito estão a liberdade de organização, de eleição de formas, nome
ou identidade da empresa, constituição interna etc e, finalmente, a liberdade de
exercício da atividade empresarial, liberdade de tomar decisões e de competir num
mercado livre.346
A Constituição brasileira reconhece a liberdade da empresa como um direito
fundamental, ao prever, nos incisos III e IV do art. 1º, que elencam como fundamentos
da República Federativa do Brasil, sob o regime político do Estado Social
Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho
e a livre iniciativa.
Esses postulados são também fundamentos da ordem constitucional
econômica, que se encontra prevista e regulamentada no art. 170 da CFb: “A ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”347. Esse
novo tratamento conferido à ordem econômica demonstrou a preocupação com o
equilíbrio entre a exploração da atividade econômica e a proteção dos direitos e
garantias constitucionalmente assegurados.
345 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 126. 346 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 126-127. 347 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.
117
Portanto, a livre iniciativa compreende a liberdade de organização, que, por
sua vez, inclui a contratação de pessoal, a política de pessoal e, em geral, a
administração das relações laborais.
Nesse sentindo, é inegável que, em um regime que, de forma explícita,
reconhece a liberdade da empresa, assim como o direito de propriedade e, em geral,
a iniciativa privada e a economia de mercado, o empregador, enquanto titular ou
proprietário da empresa, deve gozar das faculdades necessárias para organizá-la,
dirigi-la e administrá-la de acordo com seus interesses e objetivos, o que inclui,
necessariamente, a organização e direção do trabalho.348
O empregador, ao exercer o poder de direção, atua, por conseguinte, como
titular do direito fundamental da livre iniciativa, sendo que este se investe de
legitimidade prima facie de referido poder. Entretanto, não significa que esse poder
não se encontre sujeito aos limites provenientes do dever geral de respeito aos direitos
fundamentais dos empregados.349
O reconhecimento da legitimidade do poder de direção do empregador,
fundada no cruzamento direto com o direito fundamental de livre iniciativa, não
autoriza afirmar que esse direito é absoluto, porque tampouco é absoluto o próprio
direito fundamental de livre iniciativa.
O poder de direção tem a função, dentro do esquema organizativo da
empresa, de conceder ao empregador a autotutela para a realização de seu interesse
econômico. E, nesse sentido, o poder de direção, como todo poder, obedece a uma
necessidade social que, nesse caso, consiste no uso adequado da força de trabalho,
coordenando e dirigindo suas atividades, de modo que este concorra, de maneira mais
eficiente, para obtenção dos resultados e benefícios que todo investidor espera obter
quando funda uma empresa. Fora desse âmbito, referido poder não existe, porque a
relação de trabalho vincula duas pessoas dotadas de liberdades e igualdade jurídica
348 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 128. 349 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 128-129.
118
que, como pessoas e cidadãos, se encontram relacionados por vínculos de
coordenação e não de subordinação nem de submissão.350
Portanto, o poder de direção está submetido, em primeiro lugar, aos limites
internos que nascem de sua própria natureza, como a faculdade atribuída ao
empregador para a organização e a administração eficiente do trabalho humano na
empresa. Essa faculdade circunscreve as manifestações concretas deste poder no
âmbito das relações laborais, sem permitir ao empregador extender-se,
indevidamente, em aspectos próprios da vida de cada trabalhador, estranhos à sua
atividade laboral. Na legislação espanhola (artigos 5.c e 20.2 do Estatuto do
Trabalhador de Espanha351), somente é exigível obediência do trabalhador às ordens
e instruções do empregador que esteja no exercício regular de suas faculdades de
direção.352
Os direitos fundamentais dos empregados são limites do poder de direção do
empregador que se funda no reconhecimento da eficácia erga omnes ou de eficácia
entre particulares dos direitos fundamentais. Em princípio, não é difícil reconhecer,
inclusive para os empregadores, a existência desses limites cujo fundamento resulta,
inquestionavelmente, na medida em que se entendam englobados no âmbito dos
direitos fundamentais laborais, os quais, por sua natureza, estão inseridos desde o
primeiro momento no conteúdo do contrato de trabalho, sendo indisponíveis para as
partes que o celebram.353
350BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 130. . 351 Artículo 5. Deberes laborales. Los trabajadores tienen como deberes básicos: c) cumplir las órdenes e instrucciones del empresario en el ejercicio regular de sus facultades directivas; Artículo 20. Dirección y control de la actividad laboral. 2. En el cumplimiento de la obligación de trabajar asumida en el contrato el trabajador debe al empresario la diligencia y la colaboración en el trabajo que marquen las disposiciones legales, los convenios colectivos y las órdenes o instrucciones adoptadas por aquél en el ejercicio regular de sus facultades de dirección y, en su defecto, por los usos y costumbres. En cualquier caso, el trabajador y el empresario se someterán en sus prestaciones recíprocas a las exigencias de la buena fe. 352 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 130-131. 353 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 132.
119
Parece óbvio afirmar que o empregador se encontra vinculado aos direitos
fundamentais, tanto os do empregado enquanto cidadão como os vinculados
diretamente à relação de emprego, na mesma medida em que o empregado está
vinculado aos do empregador em cumprimento ao dever geral imposto a todos os
cidadãos brasileiros e portugueses nos artigos 5o, parágrafo primeiro, da CFb354 e o
18.1 da CRP 355 , que determinam a aplicação dos direitos fundamentais, sem
ressalvas, a todos os cidadãos. Isso significa que o empregador tem a obrigação de
respeitar os direitos da pessoa do trabalhador sem interferência ou coações de seu
livre exercício.356
É necessário distinguir as duas formas como os direitos fundamentais
vinculam o empregador. No primeiro caso, a vinculação negativa do empregador aos
direitos fundamentais do trabalhador não suscita nenhum problema, porquanto, como
pessoa e cidadão, o empregado exerce esses direitos fundamentais em face do
Estado, isso é, fora do âmbito da relação de emprego e, portanto, o que não se exige
é que o empregador não intervenha no exercício de referidos direitos. Em tal sentido,
o trabalhador pode processar determinada crença religiosa ou ideológica; pode
exercer ou deixar de exercer o direito de voto, incluído o de ser candidato a um cargo
de eleição popular; pode proteger sua intimidade familiar e sua honra no âmbito social
etc. Dessa forma, nada influencia a relação laboral que vincula o empregado ao
empregador e sem que, portanto, este se veja obrigado a atuar de forma alguma para
que o trabalhador exerça aqueles direitos.357
Contudo, distinta é a situação quando a operatividade de alguns desses
direitos é exercida em face do empregador no âmbito próprio da relação de emprego,
na medida em que o exercício desses direitos se contraponha ao poder diretivo do
empregador. Destaca-se que, dada a forte implicação da pessoa do trabalhador na
execução da prestação laboral, os poderes do empresário (poder de direção e
354 § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 355 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 356 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 135-136. . 357 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 137.
120
disciplinar) constituem uma ameaça potencial para os direitos fundamentais dos
trabalhadores.358
O exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores está supraditado e
limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato
fruto do exercício do direito à autonomia negocial que não é outra coisa que a
manifestação do direito de liberdade.359
O objeto do contrato de trabalho constitutui, portanto, o primeiro limite que
encontra o trabalhador para o exercício de seus direitos fundamentais, pois estes
podem estar restringidos ou não exercitáveis na relação de emprego em função do
serviço que o trabalhador está obrigado a prestar e das condições para executá-lo,
ficando satisfeitas ambas as partes do contrato. Como exemplo dessa classe de
limitações estão aquelas afetas à aparência pessoal, tais como a do empregado
ostentar uma barba ou bigode.360
Desse modo, se produz um processo de interiorização da lógica contratual
sobre os direitos fundamentais dos trabalhadores que atuará como barreira natural ou
muro de contenção frente a qualquer tentativa do trabalhador de modificação das
condições de prestação laboral pactuada, tendo como fundamento o respeito a seus
direitos fundamentais. Os direitos fundamentais dos trabalhadores no contrato de
trabalho não podem afetar o restante de seus deveres contratuais.361 Seria o exemplo
caricato do jogador de futebol Cristiano Ronaldo querer exercer seu direito
fundamental ao lazer, saindo da concentração do time em um hotel, na noite anterior
a uma partida final da Champions League. O jogador profissional de futebol, cuja a
vida privada tem inegável influência em seu rendimento, tem limitado seu direito
fundamental à privacidade, pois se reconhece ao empregador – o clube de futebol –
358 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 137. 359 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 139. 360 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141. 361 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141.
121
o direito de regular certos aspectos daquela.362 Conduto, apesar da natureza da
prestação laboral do jogador profissional de futebol lhe impor certas exigências
necessárias para garantir seu rendimento, não atribui ao empregador uma faculdade
específica para intervir diretamente em sua vida privada, determinando qual conduta
observar e qual evitar. 363
Essa situação de verdadeira subordinação dos direitos fundamentais às
obrigações nascidas do contrato de trabalho cederá unicamente quando estiver em
jogo a dignidade da pessoa do trabalhador364, quando a prevalência dos interesses
do empregador não suponha lesão aos valores elementares da dignidade da pessoa
que, dessa forma, atua como limite dos limites dos direitos fundamentais do
trabalhador. 365
362 Vicente Pachés assevera que no caso do jogador de futebol não é que este resulte privado do direito de conduzir sua vida pessoal como desejar – mesmo que de forma não condizente com o esporte que pratica – mas que esteja ciente que a causa para uma sanção ou eventual resolução de seu contrato de trabalho consistirá não de referida conduta, mas sim de seu rendimento deficiente como resultado direto de seu comportamento. (VICENTE, Fernando de Pachés. El derecho del trabajador al respeto de su intimidad. Madrid: Consejo Económico y Social, 1998, p. 363). 363 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 270. 364 Como no emblemático caso do arremesso de anões. Em uma cidade francesa chamada Morsang-sur-Orge, a Prefeitura, utilizando seu poder de polícia, resolveu interditar um bar onde era praticado o lançamento de anões, argumentando que aquela atividade violava a ordem pública, pois era contrária à dignidade da pessoa humana. Não se conformando com a decisão do Poder Público, o próprio anão (Sr. Wackenheim) questionou a interdição, argumentando que necessitava daquele trabalho para a sua sobrevivência. O anão argumentou que o direito ao trabalho e à livre iniciativa também seriam valores protegidos pelo direito francês e, portanto, tinha o direito de decidir como ganhar a vida. Em outubro 1995, o Conselho de Estado francês, órgão máximo da jurisdição administrativa daquele país, decidiu, em grau de recurso, que o Poder Público municipal estaria autorizado a interditar o estabelecimento comercial que explorasse o lançamento de anão, pois aquele espetáculo seria atentatório à dignidade da pessoa humana e, ao ferir a dignidade da pessoa humana, violava também a ordem pública, fundamento do poder de polícia municipal. O Sr. Wackenheim, mais uma vez inconformado, recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, alegando que a decisão seria discriminatória e violava o seu direito ao trabalho. Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU confirmou a decisão do Conselho de Estado francês, reconhecendo que o lançamento de anão violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Disponível em: <https://direitosfundamentais.net/2007/08/14/jurisprudenciando-casos-curiosos-julgamentos-pitorescos/>. Acesso em: 8 abr. 2017. 365. BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141.
122
Numa relação de emprego, o hermeneuta deve atentar para o parâmetro com
respeito ao qual se coteja o direito fundamental do trabalhador, porque o conflito que
se apresenta não se dá entre esse direito e as obrigações contratuais do trabalhador
e sim com as faculdades organizativas do empregador, isso é, com seu direito,
também fundamental, de livre iniciativa empresarial. Se o conflito ocorresse entre os
direitos fundamentais do empregado e as obrigações contratuais do trabalhador,
sempre (ou quase sempre) penderia a balança em favor do empregado devido ao
conteúdo e significado daqueles que deverão prevalecer sobre estas, depedendo do
direito fundamental implicado e do caso concreto. Acontece que, na realidade, o
conflito que ocorre é entre direitos fundamentais para aqueles que defendem a
aplicação imediata dos direitos fundamentais ou dever do Estado de proteção para os
adeptos da teoria defendida por Canaris.
Se o conflito ocorre entre os direitos fundamentais do empregado e
obrigações contratuais do trabalhador, equivale a privar de sua fundamentalidade
aqueles direitos, pois, ao empregador, pode bastar a simples invocação de uma
norma, inclusive as de categoria inferior, ou de uma claúsula de uma convenção
coletiva de trabalho ou de um contrato individual, que estabeleçam certas obrigações
a cargo do trabalhador ou lhe confiaram determinadas ordens para produzir o efeito
limitativo do direito fundamental do trabalhador. É o que ocorreria com um trabalhador
que invocasse o direito fundamental de liberdade religiosa para rezar durante um
experimento científico instantâneo que, caso demorasse, mataria milhares de células
que combatessem grave doença. Ou seja, empiricamente, pelo que as sociedades
ocidentais acreditam como razoáveis, podemos afirmar que o conflito acima narrado,
com prevalência para as obrigações contratuais do empregado em detrimento de seu
direito fundamental à liberdade religiosa, poria em questão o pacto social fundante
das constituições modernas e, em última análise, o próprio fundamento axiológico da
configuração dos direitos da pessoa humana como direitos fundamentais.
O fato de o empregador também ser sujeito ativo de direitos fundamentais traz
como consequência a situação jurídica do trabalhador ser albergado de duas
maneiras: uma fora e outra dentro da empresa. Desse modo, no interior da empresa,
funciona como pressuposto do exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores
uma certa lógica contratual em que o empregado voluntariamente adere ao quanto
estabelecido no contrato de trabalho e deixa de exercitar seus direitos fundamentais
em plenitude. Assim, os direitos fundamentais que os empregados exercitam fora da
123
empresa, e que constituem o sustentáculo e conteúdo de sua condição de cidadão,
deixam de ser exercitados plenamente, pois é submetido a uma lei própria (contrato
de trabalho, regulamento de empresa etc) e específica em que se estabelecem
preceitos obrigatórios de seu comportamento. Isso ocorre pelo simples fato do
cidadão, enquanto fora do ambiente empresarial, na sua relação com Estado, é
somente sujeito ativo de direitos fundamentais em face desse mesmo Estado, que é
somente sujeito passivo desses direitos; enquanto que, na relação empregado-
empregador, ambos são sujeitos ativos e passivos de direitos fundamentais, como já
defendido na apresentação da teoria dos deveres de proteção.
O contrato de trabalho é, no tocante a seu conteúdo laboral, um contrato
“normado”, obrigado, portanto, a respeitar e realizar os direitos fundamentais
específicos do trabalhador e o poder de direção do empregador, por consequência, é
submetido a diversas limitações e controles, dentro de um esforço de regulação e
racionalização destinado a reduzir a possibilidade de seu exercício arbitrário, o que,
por óbvio, não afasta a possibilidade de vínculos de vassalagem.
124
11 CASOS APRECIADOS PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS DE APLICAÇÃO DA
EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE
EMPREGO
Ao Poder Judiciário brasileiro, chegam diversos casos concretos nos quais o
debate se circunscreve ao redor da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no
domínio das relações privadas e da licitude ou ilicitude de condutas empresárias –
comissivas ou omissas – que, potencial ou efetivamente, venham a dificultar ou a
embaraçar os direitos fundamentais dos trabalhadores.366
Pelas impossibilidades material, temporal e espacial de explicitar todas as
hipóteses relacionadas ao tema, que apresentam uma gama superabundante de
variáveis, serão apresentados alguns julgamentos que enfrentaram o assunto na
esfera dos tribunais trabalhistas brasileiros.367
O Supremo Tribunal Federal, em 1996, proferiu decisão paradigmática sobre
a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 161.243-6, com fulcro no princípio
da igualdade, determinou a extensão a empregado brasileiro da Compagnie Nationale
Air France dos benefícios previstos em regulamento empresarial, que, até então, eram
privativos dos empregados que tivessem a mesma nacionalidade da empresa.
Segundo o Relator, Ministro Carlos Velloso, “A discriminação que se baseia em
atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a
nacionalidade, o credo religioso etc., é inconstitucional”368. O princípio da igualdade
foi escolhido para análise, pois se trata de um princípio que se manifesta em múltiplas
normas consagradoras de outros direitos fundamentais.369
366 EFICÁCIA horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego: algumas verdades. Brasília: TST Jus, 2011. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/documents/1295387/3482748/Efic%C3%A1cia+horizontal+dos+direitos+fundamentais+nas+rela%C3%A7%C3%B5es+de+emprego+-+algumas+verdades.> Acesso em: 12 fev. 2017. 367 EFICÁCIA horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego: algumas verdades. Brasília: TST Jus, 2011. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/documents/1295387/3482748/Efic%C3%A1cia+horizontal+dos+direitos+fundamentais+nas+rela%C3%A7%C3%B5es+de+emprego+-+algumas+verdades.> Acesso em: 12 fev. 2017. 368 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057. 369 MORAIS, Carlos Blanco de. Os direitos, liberdades e garantias na jurisprudência constitucional portuguesa: um apontamento. In: O Direito. Ano 132. III-IV (Julho-Dezembro). Editora Internacional. Lisboa: Editora Internacional, 2000, p. 361-380.
125
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.STF – RE 161243/DF – 2ª Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 19 de dezembro de 1997 (BRASIL, 1997).370
A esfera das relações laborais é uma daquelas em que a tutela
antidiscriminatória resulta mais necessária, tendo em vista a intensidade com que o
fenômeno da discriminação se encontra presente.
A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define,
precisamente em seu artigo 1o, parágrafo primeiro, alínea “a”, no âmbito laboral, a
discriminação:
a) Toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) Toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Estado Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de patrões e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.371
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT, 1958, N.P).
Nessa definição, se apresentam três elementos que devem concorrer para
configurar a discriminação.
370 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057. 371 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção 111 Sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão. 1958. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-oit-111-emprego.html>. Acesso em: 12 fev. 2017.
126
Em primeiro lugar, um ato que estabeleça uma distinção, uma exclusão ou
uma preferência também pode tratar-se de uma restrição, conforme artigo 1o, inciso
1, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial 372 . Em segundo lugar, um motivo determinante de referida
diferença (raça, cor, sexo, religião etc). E, em terceiro lugar, o resultado objetivo dessa
diferença de tratamento, que consistirá na anulação ou na alteração da igualdade de
oportunidades no âmbito laboral.373
O termo discriminação, especialmente no âmbito laboral, pode entender-se
em outro sentido, dotado de maior amplitude. A discriminação tem dois significados
de alcances diversos. Para o primeiro, há discriminação toda vez que se pratique uma
distinção arbitrária, isso é, carente de causa objetiva e razoável. Já para o segundo,
somente há discriminação quando o tratamento se fundar em um motivo proibido pelo
ordenamento jurídico.374
Um exemplo de não discriminação ocorreria no seguinte caso: um
empregador abriu processo seletivo para a disputa de uma vaga de diretor de sua
empresa e vários canditos se canditaram à vaga. Depois da análise dos currículos, o
empregador verificou que, dentre os canditados aptos para função, estaria seu filho e,
mesmo havendo outros com currículos melhores, o empregador resolveu contratá-lo
em detrimento dos demais canditados pelo fato de ser seu filho. No exemplo acima,
verifica-se que não houve discriminação, segundo os critérios adotados, pois houve
causa objetiva e razoável para a contratação do filho e esse tratamento não é proibido
pelo ordenamento jurídico, máxime quando o empregador está escudado por seu
direito fundamental à propriedade privada.
372 Artigo 1o, inciso 1, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial: “Na presente Convenção, a expressão a «discriminação racial» visa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência na origem nacional ou étnica que tenha como objectivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, económico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção 111 sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão. 1958. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-oit-111-emprego.html>. Acesso em: 12 fev. 2017. 373 POTOBSKY, Geraldo von; DE LA CRUZ, Héctor Bartolomei La organización internacional del trabajo. El sistema normativo internacional. Los instrumentos sobre derechos humanos fundamentales. Bueno Aires: Astrea-Depalma, 1990, p. 436. 374 MUJICA, Javier Neves. Introducion al derecho laboral. 2.ed. Lima: Fondo Editorial PUCP, 2003, p. 109.
127
Em geral, a discriminação em matéria laboral aparece quando atinge o
trabalhador em suas características inatas como ser humano ou quando se vulnera a
cláusula de não discriminação prevista nas Constituições.
A prática da discriminação que a CFb protege no artigo 7o, inciso I375 se
projeta sobre a relação de trabalho, operando como um motivo de ilegitimidade radical
da ruptura do vínculo empregatício ou como ato de hostilidade do empregador,
habilitando o empregado a optar pela reintegração com ressarcimento integral de todo
o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas ou pela
percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, bem como
também pelo direito à reparação pelo dano moral.376
O artigo 9o da CLT do Brasil estabelece que serão nulos de pleno direito os
atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos
preceitos contidos na presente Consolidação, ou seja, estabelece, por óbvio, como
causa de nulidade, a despedida ou ato de hostilidade do empregador em razão de
sexo, raça, religião, opnião, idioma ou doença. 377
O artigo 1o da lei 9.029/95 estabeleceu a enumeração legal dos motivos de
discriminação aplicacáveis à despedida arbitrária ou sem justa causa: qualquer prática
discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua
manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar,
deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros.378 A legislação se coaduna
com o texto do artigo 7o, inciso I, da CFb, na medida que estabeleceu a expressão
ampliativa-protetiva entre outros. Isso porque se incluiu na expressão genérica entre
375 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 376 BRASIL. Lei número 9.029, de 13 de abril de 1995. Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 13 abr. 1995. Disponível em: . <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm>. Acesso em: 01 mar. 2017. 377 BRASIL. Decreto-Lei número 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial, Brasília, 1. mai. 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 378 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm BRASIL. Lei número 9.029, de 13 de abril de 1995. Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 13 abr. 1995. Disponível em: . <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm>. Acesso em: 01 mar. 2017.
128
outros a discriminação em razão de condição econômica, bem como a discriminação
em razão do estado de saúde e, sobretudo, a referência a qualquer discriminação de
outra índole. Dessa forma, o artigo 1o, da Lei 9.029/95 opera como cláusula geral do
preceito constitucional estabelecido no artigo 7o, inciso I, o qual possibilita ampliar o
âmbito da tutela antidiscriminatória.
Nesse sentido, em 2011, o Tribunal Superior do Trabalho brasileiro proferiu
duas decisões que, expressamente, abordam a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais nas relações privadas de emprego. Na primeira, exarada nos autos do
processo RR – 105500-32.2008.5.04.0101379 , cuja redação do acórdão coube à
Ministra Rosa Maria Weber, o recurso de revista não foi conhecido, confirmando-se a
ordem de reintegração de empregado dispensado arbitrariamente, por ser portador de
esquizofrenia. Nos termos da fundamentação, o direito potestativo de denúncia vazia
do contrato de trabalho está sujeito a limites impostos pelos princípios da não
discriminação, da função social da propriedade e da proteção da relação de emprego
contra a despedida arbitrária. No concernente ao art. 7º, I, da CFb de 1988, restou
consignado que, embora o referido dispositivo ainda não esteja regulamentado, ele é
dotado de eficácia normativa. A questão também foi analisada sob o prisma das
Convenções ns. 111 e 117 e da Declaração sobre os Princípios e Direitos
Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT; do art. 187 do Código Civil de
2002, que trata do abuso de direito, e da Lei nº 9.029/95, que veda a adoção de
qualquer prática discriminatória tendente a inviabilizar a admissão de um trabalhador
ou a justificar o rompimento arbitrário do seu contrato de emprego em razão de sexo,
origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade ou qualquer outro motivo
infundado.
Nas palavras da Ministra Redatora:
O arcabouço jurídico sedimentado em torno da matéria deve ser considerado, igualmente, sob a ótica da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, como limitação negativa da autonomia privada, sob pena de ter esvaziado seu conteúdo deontológico. (...) o exercício de uma atividade laboral é aspecto relevante no tratamento do paciente portador de doença grave e a
379 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista n° 105500-32.2008.5.04.0101, Relatora: WEBER, Rosa Maria. Diário Oficial, Brasília, 8 ago. 2011.. Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20105500-32.2008.5.04.0101&base=acordao&numProcInt=80773&anoProcInt=2010&dataPublicacao=05/08/2011%2007:00:00&query=>. Acesso em: 19 abr. 2017.
129
manutenção do vínculo empregatício, por parte do empregador, deve ser entendida como expressão da função social da empresa e da propriedade, sendo, até mesmo, prescindível averiguar o animus discriminatório da dispensa.380 (BRASIL, 2011).
A Constituição Federal brasileira, em seu artigo primeiro, proclama que a
República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana,
ou seja, a pessoa humana é o fim supremo da sociedade e do Estado.381 Todos têm
a obrigação de respeitá-la e protegê-la. Acerca da dignidade da pessoa humana,
destaca Ingo Wolfgang Sarlet:
Constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a discriminação racial, perseguição em virtude de motivos religiosos, etc. (...). O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças.382 (SARLET, 2011, p. 110-111).
A Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha e a Constituição
espanhola prestigiam o princípio da dignidade da pessoa humana. A primeira
assevera que a dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação
de todo Poder Público383; a segunda, em seu artigo 10 do título I, estabelece que a
dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre
380 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista n° 105500-32.2008.5.04.0101, Relatora: WEBER, Rosa Maria. Diário Oficial, Brasília, 8 ago. 2011.. Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20105500-32.2008.5.04.0101&base=acordao&numProcInt=80773&anoProcInt=2010&dataPublicacao=05/08/2011%2007:00:00&query=>. Acesso em: 19 abr. 2017. 381 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. de 2017. 382 SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed., rev., atual. e ampl., 3. tiragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 110-111. 383 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar.2014
130
desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos de terceiros são
fundamentos da ordem política e da paz social.384
A doutrina alemã destaca que o princípio da dignidade da pessoa humana não
se trata de uma mera declaração ética; se trata também de uma norma de direito
objetivo.385
Se considerará um atentado contra a dignidade da pessoa humana toda
conduta que suponha desconhecer a superioridade do ser humano na natureza e que
lhe dispense um tratamento degradante, através do qual equipare o homem a um
objeto ou a outros seres de nível inferior. Em suma, que se ignore a igualdade
essencial de todas as pessoas enquanto seres dotados de dignidade.386
Importante destacar que há duas diretivas que o princípio da dignidade da
pessoa humana impõe às pessoas em suas relações com as demais. De um lado,
assinala uma diretiva positiva com a qual o homem deve procurar respeitar ao máximo
a dignidade das demais pessoas, bem como, ao exercitar seus direitos ou cumprir
suas obrigações, não esquecer a dignidade de que está investida toda pessoa. De
outro lado, destaca-se a diretiva negativa, que assevera que a dignidade dos demais
funcionará como limite ao exercício de seus direitos fundamentais.387
Portanto, como se depreende das decisões abaixo, que observaram o
princípio da dignidade da pessoa humana, o Tribunal Superior do Trabalho destacou
a diretiva negativa do princípio da dignidade, na medida que o referido princípio
funcionou como limite ao princípio da atividade econômica pelos privados, que
também é um direito fundamental.
Na decisão proferida pela mais alta Corte Trabalhista, cujo relator foi o Ministro
Vieira de Mello Filho, não conhecido o recurso de revista, manteve-se a condenação
do empregador ao pagamento de indenização por danos morais em favor de
empregado que, na qualidade de motorista de caminhão de lixo, era obrigado a
384 ESPANHA. Constituição. (1978) Constituição da Espanha. IMPRENTA NACiONAL DEL BOLETIN OfiCIAL DEL ESTADO, 29 dez. 1978. Diponível em: http://www.boe.es/boe/dias/1978/12/29/pdfs/A29313-29424.pdf. Acesso em: 1 mar. 2017. 385 BENDA, Ernesto. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et al. Manual de derecho constitucional. 2.ed. cap. 10. Madrid: Marcial Pons, 2001. 386 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 305. 387 JESÚS, González Pérez. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986, p. 91.
131
usufruir de seu intervalo intrajornada próximo ao veículo de trabalho e não dispunha
de sanitário para sua higiene pessoal e necessidades fisiológicas.
Para o ministro-relator:
(...) a preservação da saúde obreira deve ser garantida (por meio de todas as medidas que tornem o seu local de trabalho isento de riscos à integridade física e psicológica do laborante), sob pena de se tornar ineficaz (e, portanto, carente de força normativa) o postulado previsto no primeiro artigo da Carta Republicana, o que não se coaduna com a eficácia horizontal dos direitos fundamentais reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência majoritárias de nosso País.388 (BRASIL, 2003).
Na decisão seguinte, o Tribunal Superior do Trabalho referiu-se
expressamente sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mas não se
referindo espeficificamente e expressamente sobre qual das teorias da eficácia
interprivados estava aplicando ao caso concreto.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECURSO DE REVISTA - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - NÃO CONFIGURAÇÃO - EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS (ECT) - EMPREGADA PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS - DESPEDIDA - MOTIVO VÁLIDO - NECESSIDADE - DEVER DE IMPLEMENTAR ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS A PROPICIAR MANUTENÇÃO NO EMPREGO - DIREITOS HUMANOS - NORMAS INTERNACIONAIS, CONSTITUCIONAIS E LEGAIS 1 - Hipótese em que o TRT nega provimento ao recurso ordinário da Reclamada (ECT), mantendo a determinação de reintegração da Reclamante, pessoa portadora de necessidades especiais, despedida antes do término do período de experiência, com base em parecer de equipe avaliadora. Apelo fundado em alegações de nulidade por negativa de prestação jurisdicional, ausência de necessidade de motivação do ato, inexistência de estabilidade e ausência do dever de adaptação do local de trabalho. 2 - Se o TRT reputou inválida a despedida da Reclamante, porquanto a própria Agravante limitou seu poder diretivo ao criar normas em Edital de concurso que asseguram a aplicação da legislação protetiva ao portador de necessidades especiais, não há como reconhecer a ausência de jurisdição em relação à aplicabilidade, ou não, da Súmula n.º 390, I, do TST ao caso. Não violados os arts. 93, IX, da Constituição da República e 832 da CLT. 3 - A validade do ato de despedida da Reclamante pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) estava condicionada à explicitação de motivo válido, expondo de maneira circunstanciada as causas e as particularidades que ensejaram a decisão. Não se dispensava parecer de equipe multiprofissional, a ser formada de acordo com o que determina o art. 43 do Decreto n.º 3.298/99 (que regulamenta a Lei n.º 7.853/89, que, por sua vez, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências). Precedentes do STF e inteligência da Orientação Jurisprudencial n.º 247, II,
388 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Primeira Turma. Recurso de Revista 458400-06.2003.5.09.0019, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Diário Oficial, Brasília, 18 mar. 2011.
132
da SBDI-1 do TST. 4 - Também constitui dever da Reclamada a implementação razoável de meio eficaz que propicie a manutenção da Reclamante no emprego. Em realidade, é dever de todos os órgãos e entidades da Administração direta e indireta tratamento prioritário e adequado aos assuntos objetos desta Lei n.º 7.853/89, tendente a viabilizar medidas de promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores público e privado, de pessoas portadoras de deficiência (art. 2.º, parágrafo único e III, “c”, da Lei n.º 7.853/89). Mas não é só: trata-se também de respeitar direitos humanos, protegidos constitucionalmente nas regras e princípios que emanam dos arts. 1.º, III e IV, 3.º, IV, 24, XIV, 203, IV, 227, § 2.º, e 244 da Constituição da República. Nas relações privadas de emprego, há de se observar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, considerando que os direitos fundamentais refletem o norte axiológico da sociedade, então sua observância, respeito e efetividade não devem se restringir ao Estado, mas a toda e qualquer relação jurídica, seja ela de direito público ou de direito privado. No plano internacional, há de se recordar que o Brasil é signatário, desde 30/3/2007, da Convenção da Organização das Nações Unidas - ONU sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência. Este é, em realidade, o primeiro - e até agora o único - tratado internacional com estatura de norma constitucional da história do nosso País, por força de sua aprovação, pelo rito de emenda à Constituição (art. 5.º, § 3.º), resultante no Decreto n.º 6.949, de 26/8/2009. Não custa recordar, ainda, que “negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho” constitui tipo penal descrito no art. 8.º, III, da Lei n.º 7.853/89. Agravo de instrumento a que se nega provimento. 389 TST-AIRR 142140-04.2004.5.03.0036, j. 02 de dezembro de 2009, Rel. Juiz Conv. Douglas Alencar Rodrigues, 6ª T., DEJT 11 de dezembro de 2009. (BRASIL, 2009).
O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, no julgamento do RO nº
0101200-02.2009.5.15.0096, manteve a condenação solidária das reclamadas ao
pagamento de indenização por danos morais, porquanto a deliberação empresária de
esconder trabalhadores ‘terceirizados’ quando a empresa tomadora de serviços era
visitada por representantes de outras unidades, inclusive internacionais, ultrapassa os
limites do poder diretivo e importa em tratamento discriminatório e degradante em face
de trabalhadores que laboravam em condições idênticas às dos empregados efetivos
da empresa cliente. A par disso, a aludida conduta assemelhou pessoas a coisas
indesejadas, passíveis de ocultação, como se fossem os trabalhadores que
estivessem sujando a imagem do contratante.
Já a sentença proferida pelo juízo da Vara do Trabalho de Ubá/MG, nos autos
do processo nº 0001002.10.2010.5.03.0078, revela evidente violação aos direitos
fundamentais de trabalhadoras que foram obrigadas a abaixar as suas roupas íntimas
389 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Sexta Turma. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista 142140-04.2004.5.03.0036, Relator: Juiz Conv. Douglas Alencar Rodrigues. Diário Oficial, Brasília, 11 dez. 2009.
133
sob o argumento empresarial de que era imprescindível descobrir quem estava em
período de regras e era responsável pelo fato de o vaso sanitário do banheiro feminino
estar sujo de sangue.
Realmente, nos dizeres do Juiz do Trabalho Breno Ortiz Tavares Costa, a
“conduta dos proprietários da reclamada foi horrenda, demonstrando um enorme
atraso gerencial e, inclusive, moral”, sobretudo porque o procedimento adotado, além
de ser abusivo e invadir a intimidade das empregadas, em elevado grau, é
completamente inadequado, desnecessário e desproporcional ao fim colimado.
Para reforçar o caráter pedagógico da condenação, o julgador impôs à
reclamada a obrigação de publicar o inteiro teor da sentença no site da empresa, a
fim de que o julgamento ganhasse ampla divulgação e a sociedade em geral se
conscientizasse do abuso cometido pela reclamada, que deveria agir com
responsabilidade social.
Importante mencionar que nem todos os direitos fundamentais da pessoa têm
aplicação ou resultam relevantes dentro da relação laboral; contudo, muitos desses
direitos têm importância para afirmar sua eficácia no seio dessa relação.
O artigo 5o, X, da CFb reconhece o direito de toda pessoa à inviolabidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito
à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O direito à intimidade penetra também na relação de trabalho, erigindo-se num
importante limite ao direito potestativo do empregador de dirigir sua empresa. Seu
reconhecimento implica a superação da divergência entre o status genérico do
cidadão e do trabalhador subordinado, que, pela posição de sujeição, vê reduzida sua
liberdade.390
Contudo, quando o empregado executa suas atividades, pode ser visto e
ouvido por quem exercer a faculdade de controle e vigilância na empresa, razão pela
qual o poder de controle e vigilância pressupõe respeito ao direito à intimidade. Assim,
não é viável, no seio da relação laboral, invocar o direito da pessoa à conservação
absoluta e incondicionada da intimidade.391
390 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 21. 391 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 26.
134
Outra modalidade de controle usualmente utilizada com objetivo de proteger
o patrimônio empresarial e de terceiros, assim como, em outros casos, a segurança
de pessoas e instalações, é a revista do trabalhador e/ou de seus bens que porte
consigo e, também, os armários que tenha no ambiente de trabalho para guardar seus
pertences ou ferramentas de trabalho.
Não há dúvidas que essa prática afeta direitos fundamentais do trabalhador,
uma vez que se materializa no cuidadoso exame fiscalizador e detido da pessoa (na
parte de seu corpo que permanece oculta), do espaço físico reservado à sua própria
intimidade e das coisas que nele se guardam.392
Em que situações a jurisprudência brasileira tem admitido que o empregador
afete o direito fundamental do emprego à intimidade sob o manto de seu também
direito fundamental à livre iniciativa empresarial refletido no direito à proteção de seu
patrimônio?
O fato de outra pessoa, ainda que do mesmo sexo, reviste corporalmente o
trabalhador, submetendo-a ao contragimento de revistar a roupa que veste é, sem
dúvida, um ato de ingerência em sua vida privada no aspecto mais íntimo da
pessoa.393
A jurisprudência brasileira, no caso das revistas, tem separado duas
situações.
A primeira seria aquela em que o empregador faria a revista nas bolsas dos
empregados. Nessa situação, a jurisprudência entende que não há violação aos
direitos fundamentais do empregado à vida privada, à honra, à imagem e à intimidade
do indivíduo, desde que feita sem práticas abusivas, conforme decisão da instância
máxima em matéria trabalhista no Brasil, o TST.
TST - RR 724/2008-678-09-00-0 - Publ. em 29-10-2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNCAO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. A revista nos pertences dos empregados, quando feita sem práticas abusivas, não constitui, por si só, motivo a denotar constrangimento nem violação da intimidade. Retrata, na realidade, o exercício pela empresa de legítimo exercício regular do direito à proteção de seu patrimônio, ausente abuso desse direito quando procedida a revista moderadamente, como no caso em exame, não havendo de se falar em constrangimento ou em revista íntima e vexatória, a atacar a imagem ou
392 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 167. 393 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 177.
135
a dignidade do empregado.394 (BRASIL, 2009).
Portanto, nesse caso concreto, posto à decisão da mais alta corte brasileira
em matéria trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho, o Judiciário sopesou e decidiu
que, sob aquelas condições, o direito fundamental à propriedade deve preponderar
sobre o direito fundamental à intimidade do empregado. Assim, houve uma restrição
do direito fundamental à intimidade, que prima facie é ilimitado.
Outro caso, e que gera maiores divergências, é o caso do empregador que
faz revista íntima em seus empregados em fábricas de roupas íntimas e em fábricas
de diamantes, por exemplo.
A jurisprudência, nesse caso, tem decidido que o princípio à intimidade do
empregado deve prevalecer em detrimento do direito de propriedade, pois o direito do
indivíduo a excluir intromissões de terceiros e manter uma esfera absoluta de segredo,
em parte coincidente com a esfera de recato, é o bem jurídico primordialmente
lesionado nos casos de revista íntima sobre a pessoa do trabalhador.
Segue decisão nesse sentido:
TST - RR 1069/2006-071-09-00.2 - Publ. em 14-8-2009. DANO MORAL - REVISTA INTIMA - EMPRESA DE CONFECCAO. Como expressão do poder diretivo reconhecido ao empregador e ainda com o propósito de compatibilizar os comandos constitucionais de proteção à propriedade e à honra e dignidade do trabalhador, a jurisprudência majoritária tem admitido a possibilidade de o empregador promover, consideradas as características e peculiaridades da atividade comercial explorada, a revista visual de objetos pessoais de seus empregados, ao final do expediente, desde que não ocorram excessos e exposições vexatórias que comprometem a honra e a imagem desses trabalhadores. Nesse cenário, ao realizar revistas íntimas que consistiam em determinar a exposição do sutiã, da calcinha e da meia de suas empregadas, para verificar a eventual ocorrência de furtos dessas peças no interior do estabelecimento, atua o empregador à margem dos parâmetros razoáveis, invadindo esfera indevassável de intimidade e incidindo em abuso que deve ser reparado.395 (BRASIL, 2009).
Vale observar que, se as condições fáticas forem alteradas, ou seja, se a
revista, mesmo que íntima, for feita com moderação (por exemplo, feita por pessoas
394 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 724/2008-678-09-00-0. Publicado de 29 de outubro de 2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNÇÃO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. Diário Oficial, Brasília, 29 out. 2009. 395 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 724/2008-678-09-00-0. Publicado de 29 de outubro de 2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNÇÃO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. Diário Oficial, Brasília, 29 out. 2009.
136
do mesmo sexo), não haverá violação ao direito fundamental à intimidade.
Como assinala Plá Rodrigues (1995), em estudo de Direito Comparado, essa
prática em geral é aceita, debaixo de certas condições, tanto nos países que contam
com regulamentação, como naqueles que não a possuem. Apesar do potencial lesivo
do direito à intimidade, alguns países admitem, em nome de outros bens jurídicos que
se deseja proteger, como o patrimônio empresarial ou de terceiros – inclusive dos
próprios trabalhadores – ou a segurança das pessoas e das instalações. Prevalece o
ponto de vista que as revistas do empregador são permitidas se este tem um motivo
para realizá-la e a conduz de maneira razoável.396 Dentre esses motivos, se encontra
o de proteger os bens do empregador frente ao risco de subtração dos bens da
empresa. Há autores que justificam a realização de revistas íntimas quando
concorrem circunstâncias relacionadas à segurança das pessoas ou de objetos
naquelas empresas dedicadas à fabricação, por exemplo, de material explosivo,
armamento ou substâncias altamente tóxicas para a saúde pública.397
As revistas sobre o trabalhador somente podem realizar-se quando resultem
absolutamente necessárias, ou seja, quando não exista outra alternativa, e na forma
que resulte compatível com o menor sacrifício dos direitos fundamentais invioláveis
da pessoa. 398 Isso porque já existem tecnologias mais adequadas para fazer o
controle do patrimônio empresarial sem vulnerar a dignidade e intimidade do
trabalhador, que as revistas sobre pessoas e bens.
Outro direito igualmente importante na relação juslaboral é o direito
fundamental à inviolabilidade de comunicações que pode ser afetado quando os
procedimentos de controle conduzam a algum grau de interceptação das
comunicações do trabalhador ou permitam conhecer, a posteriori, seu conteúdo.399
A evolução das tecnologias da informação possibilita modos de controle
qualitativamente diferentes dos conhecidos até então e de temperamento mais
396 PLÁ RODRÍGUEZ, Américo. Protección de la intimidad del trabajador: la situación en las Américas. Revista Internacional del Trabajo, La Rioja, 114(3), p. 346-348, 1995. 397 GOÑI SEIN, José Luis.El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 187. 398 GOÑI SEIN, José Luis.El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 167. 399 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 271.
137
intrusivo na relação laboral entre trabalhador e empregador.400
A introdução dos computadores com a capacidade para receber, transmitir e
cruzar informações de natureza diversa despertou a atenção do legislador
jusfundamental a necessidade de impor limites para combater os abusos que
pudessem se provocados pelos poderes público ou privado.401
A simples possibilidade de controle das consultas informáticas do trabalhador
permite uma vantagem de conhecimento que se concretiza em “poder” na relação
laboral.402
Em Portugal, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), entidade
administrativa independente com poderes de autoridade, que funciona junto à
Assembleia da República, emitiu orientações nomeadas “Princípios sobre a
privacidade no local de trabalho. Tratamento de dados em centrais telefónicas, o
controlo do e-mail e do acesso à Internet (2002)”. Nas orientações, constam a forma
de utilização dos meios da empresa, bem como a necessidade de aprovação de
regulamentos internos com a delimitação das condições de tratamento e a
especificação das formas de controle adotadas.403
O grau de utilização dos meios da empresa para fins privados, a delimitação
das condições de tratamento e a especificação das formas de controle adoptadas
devem constar de Regulamento Interno, o qual, nos termos legais, deverá ser
submetido a parecer da Comissão de Trabalhadores e aprovado pelo IDICT.
Os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais devem fazer a respectiva
notificação junto da CNPD (artigo 27o da lei 67/98), a qual será formulada em impresso
próprio.
Como bem observado pelo Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Alexandre Sousa Pinheiro (2015), a estratégia de recurso a
400 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728. 401 PINHEIRO, Alexandre Souza. A Privacy nos Estados-Unidos: uma viagem entre o direito e a política. In: Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda. v. 1. Direito Constitucional e Justiça Constitucional. Edição da Faculdade de Direito de Lisboa. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 139-164. 402 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728. 403 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728.
138
regulamento interno tem o intuito de garantir o respeito ao princípio da transparência,
bem como impedir o frágil consentimento individual dos trabalhadores estampado em
cláusula pré-estabelecida em contratos de trabalho padrão.404
Na relação laboral, têm lugar comunicações privadas que os trabalhadores
fazem entre si ou com pessoas alheias ao seio do trabalho, como familiares e amigos.
Porém, também são cada vez mais intensas as comunicações que os trabalhadores
realizam em nome da empresa, como parte de sua atividade laboral e, em muitas
ocasiões, estas consistem na principal ou exclusiva atividade do obreiro, a de realizar
comunicações.405
O CNPD, através dessas orientações, derivadas do deveres de proteção do
Estado, visa equacionar os direitos fundamentais do trabalhador expressos numa
sociedade complexa, com múltiplas necessidades de comunicação através dos meios
tecnológicos próprios da sociedade de informação com os interesses do empregador
que suporta as despesas de comunicação:406
O fato de o empregador ser o proprietário dos equipamento e pagar as conexões não justifica que possa fazer um controlo absoluto. Tendo a capacidade e operacionalidade dos sistemas implicações importantes na eficácia e na produtividade das empresas, entedemos que o controlo se deve direcionar para a forma como os bens da empresa são utilizados e não para
a pessoa do trabalhador.407 (GUERRA, 2004, p. 333).
E importante distinguir as comunicações pessoais ou privadas e as
comunicações comerciais. As primeiras são aquelas que, por seu conteúdo, são
estranhas à prestação laboral do trabalhador; as segundas são aquelas que se
tenham que realizar para cumprir sua prestação laboral.
Atualmente, essa circunstância é especialmente complexa ante o grande
desenvolvimento da informática e, por consequência, da grande parte dos
404 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 729. 405 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 271. 406 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 729. 407 (GUERRA, 2004 apud PINHEIRO, 2015). PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015.
139
trabalhadores que utilizam computadores pessoais que permitem acesso a um correio
eletrônico (e-mail).
No tocante ao controle de correio eletrônico, cabe distinguir se se realiza o
acesso via internet ou intranet. No primeiro caso, somente o servidor de conexão é de
propriedade do empregador, mas o correio eletrônico pertence ao trabalhador e está
livremente configurada por este para suas comunicações pessoais. Nesse caso, está
vedado ao empregador qualquer ingerência na comunicação, pois esta se encontra
protegida pelo direito fundamental à privacidade.408
Quando se acessa o correio eletrônico mediante intranet, não só o servidor
como também o correio eletrônico em si são de propriedade empresarial; se trata de
uma ferramenta de trabalho posta à disposição do trabalhador para que realize sua
prestação, tendo com consequência que é facultado ao empregador o direito de
controlar seu uso. 409 Esse controle é considerado legítimo quando se centra
exclusivamente sobre a atividade de trabalho, ou seja, um controle destinado
unicamente a verificar o cumprimento pelo trabalhador de suas obrigações e deveres
laborais.410
Portanto, é o correio eletrônico propriedade da empresa enquanto esta estiver
na condição de emissora ou receptora das mensagens que se transmitem por meio
eletrônico e que formam parte de sua própria atividade. E inegável que a empresa tem
a faculdade de controlar o uso do correio e o conteúdo das mensagens sem que isso
suponha afronta alguma à intimidade do trabalhador. Assim, se o trabalhador faz uso
do correio eletrônico para efetuar comunicações pessoais, tais mensagens ficam
expostas ao controle empresarial porque o trabalhador conscientemente está
renunciando a sua intimidade, posto que utiliza para fins privados um instrumento de
propriedade empresarial afeto ao uso laboral, sem que se possa ser considerada a
atuação do empresário como uma violação de direitos fundamentais da pessoa
408 SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Variaciones sobre el poder de control a distancia: el espejo de la madastra. In: RODRIGUEZ, Ricardo Escudero (Coords.). El poder de dirección del empresário: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 97. 409 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed.Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 275. 410 PACHÉS, Fernando de Vicente. El derecho del trabajador al respeto de su intimidad. Madrid: Consejo Económico y Social, 1998, p. 323.
140
humana.411
Nesse sentido, importa observar a ponderação do emérito relator do acórdão
da 1ª turma do Tribunal Superior do Trabalho nos autos do processo número
613/2000-013-10-00.7:
De outra parte, se é certo que a Carta Magna tutela a intimidade e a privacidade do cidadão -- valores que, insisto, não estão sequer em jogo em se cuidando de e-mail corporativo, dada a sua finalidade -- não menos certo que também tutela no mesmo preceito constitucional (art. 5o, inciso X) o direito do empregador à imagem. Ora, ocioso repisar quão comprometedora e danosa pode revelar-se ao direito do empregador à imagem a atuação do empregado na utilização da Internet e do correio eletrônico da empresa. Ademais, se se cuida de "e-mail" corporativo, está em xeque também, e talvez principalmente, o exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de acessar à internet e sobre o próprio provedor, direito esse igualmente merecedor de tutela constitucional.412(BRASIL, 2005).
Por outro lado, restou caracterizada a violação ao direito fundamental do
empregado no caso de violação do e-mail particular e não corporativo, conforme
decisão do colendo Tribunal Superior do Trabalho.
INDENIZACAO - DANO MORAL - CARACTERIZACAO - VIOLACAO À INTIMIDADE - ARROMBAMENTO DE ARMARIO PRIVATIVO E VIOLACAO DE CORRESPONDÊNCIA PESSOAL (CORREIO ELETRÔNICO E DADOS PESSOAIS) (por violação ao artigo 5º, V e X, da Constituição Federal). O Tribunal Regional, embasado nas provas dos autos, na forma preconizada pela Súmula nº 126 desta Corte, constatou presentes os elementos caracterizados da responsabilidade civil, quais sejam, o dano, o nexo de causalidade e a conduta ilícita do agente ofensor. Observe-se que o Colegiado constatou que, in casu, a prova testemunhal produzida confirma o fato alegado na inicial como ensejador da reparação pretendida, no sentido de que houve arrombamento do armário privativo do reclamante bem como violação de sua correspondência pessoal, inclusive correio eletrônico e dados pessoais. Dessa forma, houve, de fato, efetivo prejuízo de ordem moral ao reclamante. Recurso de revista não conhecido. TST – RR 183240-61.2003.5.05.0021, 2ª Turma, Relator Renato de Lacerda Paiva, Publicação 26 de outubro de 2012. 413 (BRASIL, 2012).
Portanto, aqui houve restrição ao direito de propriedade do empregador, já que
411. SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Variaciones sobre el poder de control a distancia: el espejo de la madastra. In: RODRIGUEZ, Ricardo Escudero (Coord.). El poder de dirección del empresário: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 98-99. 412 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR613002320005100013 61300-23.2000.5.10.0013. 1ª Turma. Diário Oficial, Brasília, 10 jun. 2005. Relator João Oreste Dalazen. 413 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 183240-61.2003.5.05.0021, 2ª Turma, Relator Renato de Lacerda Paiva. Diário Oficial, Brasília, 26 out. 2012.
141
a empresa não pode violar o armário do empregador utilizado pelo empregado para
obter dados de sua conduta. Vale ressaltar que o computador era de propriedade da
empresa e, mesmo assim, nesse caso concreto, o juiz decidiu restringir o direito
fundamental de propriedade, dando prevalência ao direito fundamental da intimidade
do empregado.
O mais importante na análise do tema não é saber qual direito fundamental
preponderará no conflito entre dois princípios de direito fundamental, mas, sim,
respeitar o princípio da segurança jurídica e evitar o "decisionismo", definir na análise
dos casos postos à apreciação do Judiciário qual será a regra para aqueles casos.
Como já dito acima, o confronto entre dois princípios sob certas condições, quando
da análise pelo juiz, resulta numa sentença com natureza jurídica de regra, na
perspectiva da diferenciação entre princípios e regras.
E mais, conclui-se que as restrições aos direitos fundamentais podem ocorrer
por meio de uma decisão do Poder Judiciário, nos casos em que não há regra para
disciplinar a colisão entre princípios, ou seja, nos casos em que o legislador ainda não
fez a ponderação.414
414 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 143.
142
12 CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais resumem a concretização dos direitos e garantias
conhecidos como vitais a todos os cidadãos indistintamente. Esses direitos surgiram
como forma de contraposição dos poderes privados ao Poder Público, com a
finalidade de frear o poder do Estado e proteger o indivíduo do abuso e da
arbitrariedade.
O Estado liberal, baseado na igualdade de todos os cidadãos, mostrou-se, no
plano fático, completamente inadequado à realidade social, pois a igualdade liberal
limitava-se ao gozo dos direitos, apenas. O Estado Social de Direito, por seu turno,
tem como diretriz primordial a igualdade social, trazendo uma nova categoria de
direitos fundamentais que são os direitos de prestação do Estado.
A incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas é um imperativo
que poucos rebatem, pois assegura a plena eficácia desses direitos. Contudo, a forma
e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não podem
ser análogas às do Estado, uma vez que cidadãos são igualmente titulares de direitos
fundamentais e se favorecem da proteção atribuída à sua autonomia.
A doutrina brasileira inclina-se, quase que à unanimidade, pela possibilidade
da aplicação da teoria da eficácia direta ou imediata no Brasil, com fulcro no artigo 5o,
parágrafo primeiro, da CFb de 1988.
O exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores está supraditado e
limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato
fruto do exercício do direito à autonomia e a aplicação dos direitos fundamentais de
maneira direta poderia sufocar.
Não há como conceber tratamento diferenciado à eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas em razão da origem da agressão que sofre uma
determinada liberdade, como, por exemplo, das relações juslaborais, pois, se o
propósito é dar cientificidade à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais,
há que tratá-la de modo uniforme.
A tese da negativa da eficácia não se harmoniza com o ideário dos direitos
fundamentais, uma vez que não cabe ao Estado apenas se conter de violar esses
direitos, contudo, deve também, ativar seu dever de proteção ante ameaças e
agressões oriundas dos mais variados atores sociais existentes no mundo moderno,
abrangendo os particulares.
143
As teorias mediata, imediata e dos deveres de proteção concordam que se
devem utilizar a lei ordinária, a interpretação conforme à Constituição e a densificação
das cláusulas gerais e mesmo, ainda, coincidem com a ideia de que cabe ao Poder
Judiciário verificar se as decisões do legislador ofendem ou não o disposto nos
preceitos constitucionais.
A teoria da eficácia mediata e a teoria da eficácia imediata são diametralmente
opostas no caso em que não há lei que especificamente regule a situação e a
interpretação conforme a Constituição seja improdutiva ou insuficiente. Nesse caso, a
tese da eficácia mediata rejeitará qualquer efeito adicional produzido pelos direitos
fundamentais com base nas normas constitucionais; enquanto que a teoria da eficácia
direta ou imediata empregará o direito fundamental como se direito subjetivo fosse.
A teoria dos deveres de proteção recusará a aplicação direta dos direitos
fundamentais em face de outros particulares como se direitos subjetivos fossem, tal
qual a teoria da eficácia mediata.
As teses mediata e dos deveres de proteção só questionam a aplicação da lei
em caso de inconstitucionalidade desta ou em caso da eventual necessidade de uma
interpretação em conformidade à Constituição; a teoria da eficácia imediata defende
que o hermeneuta poderia se valer da Constituição, invocando seu direito subjetivo
fundamental.
Quando não há lei que dirima diretamente o conflito jusprivatístico ou, se
houver, esta apenas fornece soluções fulcradas em fórmulas vagas ou conceitos
indeterminados, a teoria da eficácia imediata socorre-se dos direitos fundamentais
modelados na Constituição. Por outro lado, as teorias mediata e deveres de proteção
apresentam solução diversa. Propõem, como forma de resolução do conflito, uma
densificação e concretização dessas cláusulas gerais e conceito jurídicos
indeterminados conforme aos direitos fundamentais e à Constituição.
Se os direitos fundamentais fossem aplicados de forma imediata como direitos
subjetivos da forma que é propagado pela teoria da eficácia direta, ter-se-ia mais
problemas que soluções quando da aplicação desses direitos, porque, nos dois lados
da relação entre particulares, há direitos fundamentais escudando cada um dos lados.
Portanto, ou se mantém a lógica da teoria, ou seja, a aplicação direta dos direitos
fundamentais, em todas as relações de assimetria trabalhista, já que nem sempre é
empregado o hipossuficiente da relação, ou a teoria não se sustenta com a
cientificidade que a é neste trabalho, já que não pode se justificar a defesa irrestrita
144
dos empregados baseado em coitadismos. O maior ou menor desequilíbrio dessa
relação serve para justificar, sim, a necessidade do Estado de efetivar de forma mais
ou menos intensa o seu dever de proteção.
A teoria da eficácia imediata coloca o intérprete em situações de
inautenticidade e o irrealismo da vida jurídica privada caso os direitos fundamentais
fossem aplicados de maneira não coordenada com as normas de direito privado. A
tese da eficácia direta dos direitos fundamentais não se sustenta empiricamente com
exemplos da vida cotidiana e, em verdade, desloca os direitos fundamentais à fase
historicamente superada em que os direitos fundamentais valiam com meras
proclamações programáticas. Levando a sério o predicado de direitos subjetivos
oponíveis a outros particulares, os direitos fundamentais levariam o hermeneuta a
situações esdrúxulas em que os particulares destinatários de direitos fundamentais
estariam obrigados a observâncias desses princípios.
A tese da eficácia mediata cumpriu bem sua função na garantia da efetividade
dos direitos fundamentais na primeira fase do ressurgimento constitucional do
segundo pós-guerra, contudo, fraqueja na tentativa de conceber plenitude de tutela
judicial aos direitos fundamentais, já que não apresenta uma resposta satisfatória para
os casos em que não há lei que especificamente regule a situação e a interpretação
conforme é improdutiva ou insuficiente, uma vez que não fornece solução para os
casos em que a lacuna do legislador deixa a liberdade individual completamente
desamparada ante eventuais e graves agressões oriundas de outros particulares.
O dever de proteção (Schutzpflicht) pretende transmitir a ideia de uma
especial vinculação do Estado na direção de promover, através dos órgãos de Estado,
que o gozo ou exercício dos direitos fundamentais seja protegido de quaisquer
ameaças, inclusive ações de terceiros (entidades públicas ou privadas).
A teoria dos deveres de proteção parte da premissa que os direitos
fundamentais são eminentemente direitos em face do Estado e somente
excepcionalmente o Estado intervém nas relações interprivados para a defesa desses
direitos fundamentais.
A tese dos deveres de proteção reconhece o protagonismo do Parlamento,
enquanto que a tese da eficácia imediata desloca esse protagonismo para o Judiciário
quando entende o conflito entre particulares a partir de um pretenso direito
fundamental de uma das partes.
145
O legislador, que se beneficia de uma reserva do politicamente adequado,
deve ativar o dever de proteção no sentido de proteger, com maior ênfase, a situação
da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder em que há
supremacia, à partida, de uma parte sobre a outra, como sói acontecer, regra geral,
com as relações de emprego.
O juiz somente deve intervir, fazendo valer o dever de proteção, em casos
extremos ou de visível déficit de proteção da liberdade individual e esses direitos se
realizam nas relações interprivados através desses deveres e não através da
titularidade desses direitos por parte de particulares em face de outros particulares
como faz crer a teoria da eficácia direta.
A teoria dos deveres de proteção defende algum outro tipo de eficácia nos
casos em que não há lei ou cláusula geral aplicável. A teoria dos deveres de proteção
considera, nesse caso, que os direitos fundamentais projetam efeitos jurídicos nas
relações interprivados, porém não enquanto direitos subjetivos oponíveis a outros
particulares, todavia mediatamente através dos poderes do Estado, incluindo o poder
judicial.
As decisões do STF, TST e demais órgãos do Poder Judiciário trabalhista
brasileiro, esmiuçadas no decorrer deste trabalho, evidenciaram a aplicação direta dos
direitos fundamentais nas relações de emprego, porém, já condicionadas a adotar
uma posição favorável ao empregado, supostamente sujeito mais fraco da relação
justrabalhista, utilizando o princípio da proporcionalidade apenas para justificar a
conclusão que já era sabida anteriormente, numa adesão quase emocional por parte
de quem, abordando pela primeira vez o problema, o faz a partir de uma preocupação
ou perspectiva garantista de proteção.
A teoria dos deveres de proteção é a que traz maior efetividade dos direitos
fundamentais nas relações juslaborais, pois mantém a lógica do sistema. Isso porque
preserva a autonomia privada, consubstanciada pelo contrato de emprego, e os
direitos fundamentais não enquanto direitos subjetivos, mas através dos deveres de
proteção do Estado, incluindo o poder judicial, mesmo quando não há lei ou cláusula
geral aplicável.
146
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154
ANEXO Alta Faculdade, estimados Senhoras e Senhores.
Como agradecimento pela excepcional honra que foi concedida, gostaria de
dedicar esta conferência. O seu objeto foi escolhido de tal sorte a abordar problemas
que considero possam ser também interessantes do ponto de vista brasileiro e que
ainda assim guardem relação com minha pessoal trajetória científica. Além disso, a
ideia foi enfrentar um tema em relação ao qual tenho algo de novo a dizer, de tal sorte
que não estou lhes apresentando uma mera compilação de pensamentos por mim já
externados da mesma forma ou de modo similar. Por tal razão vou discorrer sobre
proibições de discriminação no Direito Privado. Com tal tópico acabei me ocupando
apenas de modo marginal e jamais de forma intensiva, muito embora a temática
guarde, em determinados sentidos, estreita relação com conteúdos que tem ocupado
um lugar central no âmbito de minha atividade científica.
I.
Irei enunciar quatro teses.
Primeiro: a existência de proibições de discriminação que geram efeitos na
esfera das relações entre atores privados constitui evidência de que, em sentido
contrário ao que ainda vem sendo sustentado por amplos setores, o sistema do Direito
Privado não é regido exclusivamente pela justiça comutativa, mas está colocado, em
diversos aspectos, ao serviço da justiça distributiva.
Segundo: proibições de discriminação que dizem respeito às relações entre
particulares assumem, a despeito de seu caráter cogente, a condição de normas
jurídicas de Direito Privado. Isso vale independentemente de qual seja o critério
adotado para estabelecer a distinção entre o Direito Público e o Direito Privado.
Terceiro: existem diversos motivos para o estabelecimento de proibições de
discriminação. O mais importante reside na ameaça e mesmo violação da dignidade
humana. Paradigmáticas são, nesse sentido, discriminações em virtude da raça e da
religião. Outros motivos dizem respeito a– em parte contingenciais – determinações
de finalidades de natureza sociopolítica por parte do legislador “ordinário”. Aqui se
revela referencial o postulado da igualdade de condições entre homens e mulheres
no âmbito do mercado de trabalho e exercício profissional. Resulta evidente que as
fronteiras entre tais tipologias básicas são fluídas, mas elas podem, na sua essência,
155
ser claramente diferenciadas e separadas por razões teleológicas no âmbito da
jurisprudência.
Quarto: as proibições de discriminação fundadas na dignidade humana e na
sua proteção vinculam diretamente (no âmbito de uma eficácia em relação a terceiros
ou eficácia privada) os atores privados. No mais, é reservada ao legislador “ordinário”
a possibilidade de estabelecer proibições de discriminação e formular os respectivos
suportes fáticos e efeitos jurídicos.
II.
Há praticamente dois mil e quinhentos anos, Aristóteles estabeleceu uma
diferenciação entre dois tipos básicos de justiça, que ele denominou de justiça
aritmética e justiça geométrica. Cerca de mil e quinhentos anos depois, Tomás de
Aquino introduziu dois termos diferentes para designar tais modalidades de justiça e
que hoje ainda são amplamente utilizados, seja na jurisprudência europeia
continental, seja no ambiente anglo-saxão: justiça comutativa e justiça distributiva. De
acordo com a concepção ainda amplamente dominante na Alemanha, tais formas de
justiça se distinguem pelo fato de que as exigências da justiça comutativa devem ser
realizadas sem que se leve em conta a pessoa concretamente considerada, ao passo
que os predicados da justiça distributiva exigem sejam consideradas as condições de
cada pessoa.
Diante desse pano de fundo eu devo, antes de mais nada, endereçar um elogio
à justiça comutativa e com isso também ao “Mercado”, na condição de meio para
impedir discriminações na esfera do Direito Privado, ainda que isso venha a soar como
contrário ao espírito contemporâneo (Zeitgeist). Com efeito, pelo fato de as valorações
com base na justiça comutativa ocorrerem sem consideração da pessoa, sequer há
margem para que ocorram discriminações propriamente ditas; estas costumam ser
voltadas expraemissioneàs pessoas, ao passo que na perspectiva do “Mercado” o que
importa é a prestação como tal, que independe da cor da pele, da orientação religiosa
ou da nacionalidade do prestador. A estrutura e o princípio fundamental do “Mercado”
correspondem, portanto, a uma moral de cunho “universal”, no sentido de uma moral
igual para todos os seres humanos, sendo, de tal sorte, extremamente “humanos”, o
que há de ser enaltecido em homenagem às virtudes do “Mercado”. Assim, por
exemplo, um locador que rejeita um locatário em virtude de sua cor da pele, religião
ou motivo similar, age de modo evidentemente contrário aos princípios elementares
da economia de mercado.
156
Todavia, é do conhecimento geral que esse tipo de conduta sempre volta a
ocorrer, pois os seres humanos nem sempre agem como autênticos homo
oeconomicus, mas deixam-se conduzir frequentemente por motivações irracionais ou
não objetivas. Aqui, abrem-se espaços para intervenções corretivas por parte do
Direito, pelo menos quando se cuida de casos crassos. A regulação, em tais casos,
ocorre de modo consequente mediante consideração da pessoa, designadamente por
meio de proibições dirigidas aos atores privados, no sentido de tratar de modo
diferente as pessoas em virtude da cor de sua pele, religião, nacionalidade, etc. Nessa
perspectiva, as proibições de discriminação assumem a função de portas de entrada
para a justiça distributiva na esfera do Direito Privado, aspecto que por mim até o
presente momento não foi suficientemente considerado e que hoje tenho a
oportunidade de pronunciar pela primeira vez com toda a clareza.
III.
Seria possível objetar que proibições de discriminação não têm caráter de
Direito Privado, mas sim, de Direito Público, notadamente pelo fato de assumirem a
condição de direito cogente e pelo fato de que não fosse assim não alcançariam a
necessária eficiência. Tal objeção, contudo, não resiste a um exame mais
aprofundado.
As duas principais explicações para a distinção entre Direito Público e Direito
Privado são atualmente a teoria da sujeição e a teoria do sujeito.
A primeira se baseia na circunstância de se uma das partes afetadas encontra-
se numa esfera hierárquica inferior ou de algum modo está juridicamente subordinada
à outra. Isso com certeza não se verifica no caso de proibições de discriminação na
esfera do Direito Privado, como se dá nas relações entre empregador e empregado,
locador e locatário, vendedor e comprador, fornecedor e tomador do crédito, etc. De
acordo com a teoria dos sujeitos o que importa é se no polo da relação jurídica
encontra-se (ou como tal atua) pelo menos uma pessoa de Direito Público. Para além
do risco de se enveredar por um raciocínio circular, também nessa hipótese as
proibições de discriminação eventualmente incidentes têm caráter indubitavelmente
jurídico-privado, já que ambas as partes agem na condição de sujeitos de Direito
Privado.
Pessoalmente prefiro adotar um critério de distinção algo diverso, que me
parece mais consequente e correto. Eu tenho como preferível examinar se nos dois
polos da relação jurídica é possível identificar um titular de direitos fundamentais, ou
157
não. Apenas no primeiro caso cuida-se, de acordo com meu entendimento, de uma
relação de Direito Privado. Não tenho condições de desenvolver aqui esse aspecto,
mas quero, no entanto, ao ensejo dessa oportunidade para mim tão honrosa, colocar
pela primeira vez em discussão. Quanto ao resultado, é preciso enfatizar, também
nada restaria alterado em se seguindo esse modo de entender, pois nos casos em
que o problema se coloca sempre atuam atores privados em ambos os polos da
relação, de tal sorte que também nessa perspectiva se trata de Direito Privado. Com
isso o resultado, que já havia anunciado, resta claramente ratificado: proibições de
discriminação representam a mais importante porta de ingresso da justiça distributiva,
isto é, de uma justiça voltada à consideração da Pessoa, no Direito Privado, de tal
sorte que tais proibições de discriminação com isso assumem caráter jurídico-privado.
IV.
Na sequência surge naturalmente a indagação acerca das razões pelas quais
o Direito Privado contempla proibições de discriminação. A resposta não me parece
completamente clara: pelo fato de que uma parte especialmente significativa das
discriminações se manifesta no plano das relações entre seres humanos, portanto, no
campo do Direito Privado. Para um alemão de minha geração isso não é uma
convicção de natureza abstrata, mas sim, História vivenciada. Fui profundamente
afetado pelo fato de no ano de 1943, quando contava com seis anos de idade, vi dois
seres humanos trajando longos mantos pretos e que portavam nas suas costas uma
estrela amarela, quando minha mãe, como reação à minha irritada pergunta sobre “o
porquê”, com manifesto constrangimento apenas soube responder que se tratava de
“Judeus”. Precisamente como criança se tem uma especial sensibilidade para
reconhecer que algo de substancialmente errado está ocorrendo. Hoje podemos
formular com clareza: a discriminação é aqui censurável pelo fato de implicar
simultaneamente uma violação da dignidade humana.
Isso, no entanto, nem sempre é o caso, especialmente (embora não sempre)
quando se está em face de uma discriminação do tipo mediato ou indireto. Nesse caso
o que ocorre é que um determinado grupo de pessoas,
em determinadas circunstâncias e em certos ambientes – por exemplo, no
campo das diversas profissões – encontra-se fortemente subrepresentado.
Assim, por exemplo, verifica-se ampla discussão no âmbito da União Europeia
e na Alemanha sobre o fato de que as mulheres são mais raramente representadas
nos círculos dirigentes e conselhos das empresas. Cogita-se, nesse contexto, em
158
corrigir tal estado de coisas mediante recurso a sistemas de cotas mínimas
implantadas por meio da legislação, ou seja, na introdução de uma “discriminação
positiva” em favor das mulheres, uma espécie de ação afirmativa. De acordo com o
meu ponto de vista tal alternativa está essencialmente aberta ao legislador, muito
embora nada tenha a ver com a proteção da dignidade humana das mulheres. Afirmar
o contrário é que implicaria uma desconsideração da dignidade humana daquelas
mulheres que percebem as coisas de modo diverso e que tem outra representação de
suas funções primárias, almejando dedicar-se em primeiro lugar à educação dos filhos
e cuidados domésticos. Aqui está em causa se a sociedade e a Política desejam
favorecer um novo papel da mulher no plano da vida profissional. De acordo com o
exposto, proibições de discriminação podem cumprir funções altamente diferenciadas
e não devem de modo algum reivindicar sem exceção o elevado pathos de servirem
à proteção da dignidade humana.
V.
A partir desse ponto de partida é possível agora responder com facilidade a
última pergunta central, qual seja: as proibições de discriminação no âmbito do Direito
Privado geram efeitos de modo direto ou apenas indireto (mediato), mormente quando
sediadas em camadas hierarquicamente superiores da ordem jurídica, como é o caso
do Direito Europeu ou do Direito Constitucional?
A resposta há, no meu entender, de ser diferenciada. A eficácia imediata
assume seu papel quando uma proibição de discriminação serve à proteção da
dignidade humana, pois esta, em virtude de sua supremacia absoluta, opera sempre
de modo direto. Isso significa acima de tudo que tal proibição de discriminação há de
ser sempre assegurada pelo Poder Judiciário.
Nos casos de proibições de discriminação que tenham por objeto a consecução
de fins de natureza profissional, social ou política, a prerrogativa.
da formatação encontra-se n as mãos do Poder Legislativo. Aqui o Poder
Judiciário não poderá acessar o instrumental da eficácia direta das proibições de
discriminação na esfera das relações privadas.
VI.
Minhas senhoras e meus senhores: eu lhes sou grato pela paciência e pela
concentração com as quais acompanharam meus pensamentos. Elevada Faculdade:
159
eu mais uma vez agradeço pela grande honra que me concederam e pela
extraordinária alegria com a qual me brindaram.415
415 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013.