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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO TIAGO BRASIL PITA A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JUSLABORAIS MESTRADO EM DIREITO FUNDAMENTAIS CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS LISBOA 2017

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO

TIAGO BRASIL PITA

A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES JUSLABORAIS

MESTRADO EM DIREITO FUNDAMENTAIS CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS

LISBOA 2017

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TIAGO BRASIL PITA

A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

RELAÇÕES JUSLABORAIS

Dissertação de mestrado apresentada ao Gabinete de Estudos Pós-Graduados da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais ORIENTADOR: Professor Doutor Alexandre Sousa Pinheiro.

LISBOA

2017

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TIAGO BRASIL PITA

A EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

RELAÇÕES JUSLABORAIS

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

Orientador: ____________________________________ Prof. Dr. Alexandre Sousa Pinheiro

Banca Examinadora:

Prof. Dr. ____________________________________________

Prof. Dr. ____________________________________________

Prof. Dr. ____________________________________________

Coordenador do Gabinete de Estudos Pós-Graduados: Prof. Dr. ___________________________________

Lisboa, ___________________________________.

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Aos amores de minha de vida: minha esposa Taciana, com quem costumo brincar (mas com um fundo de verdade devido à sua capacidade intelectual invejável) que as colunas da Faculdade de Direito tremem quando ela adentra; e a minha filha Bebella, simplesmente por me fazer a pessoa mais feliz do mundo. Aos meus pais, pelo apoio logístico e financeiro desde a primeira aula da Faculdade de Direito.

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Em tempos de dificuldades, você pode sentir que os seus problemas parecem que nunca encontrarão um fim. Mas isso absolutamente não é verdade. Toda montanha tem um topo. Todo problema tem uma duração limitada. A questão é: Quem é que vai desistir primeiro, você ou o problema?

Robert Schuller

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AGRADECIMENTOS

A Deus: onipresente, onisciente e onipotente. Ao professor Doutor Alexandre Sousa Pinheiro, meus mais sinceros agradecimentos.

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RESUMO

O Estado liberal baseado na igualdade de todos os cidadãos mostrou-se, no plano fático, completamente inadequado, transmudando-se para o Estado Social de Direito. Com a evolução da sociedade, deu-se a necessidade da proteção de direitos fundamentais nas relações privadas, inclusive nas relações juslaborais. Contudo, a forma e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não podem ser análogas às do Estado, uma vez que cidadãos são igualmente titulares de direitos fundamentais. O exercício dos direitos fundamentais dos empregados está supraditado e limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato fruto do exercício do direito à autonomia. As teorias da inaplicabilidade dos direitos fundamentais, a teoria da eficácia imediata, a teoria da eficácia mediata e a teoria dos deveres de proteção surgiram para conceber cientificidade ao estudo desses direitos nas relações privadas. A doutrina brasileira inclina-se, quase que à unanimidade, pela possibilidade da aplicação da teoria da eficácia direta ou imediata no Brasil, com fulcro no artigo 5o, parágrafo primeiro, da Constituição Federal brasileira de 1988. Por outro lado, os juristas portugueses defendem a teoria da eficácia mediata com alguns dissidentes abraçando a teoria dos deveres de proteção. É do Parlamento e não do Judiciário, que atua somente supletivamente, o protagonismo da defesa dos direitos da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder, como sói acontecer, regra geral, com as relações de emprego. As decisões do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior do Trabalho e dos demais órgãos do Poder Judiciário trabalhista brasileiro inclinam-se pela aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações de emprego, pois já condicionadas a adotar uma posição favorável ao empregado. O objeto de estudo do presente trabalho é a análise das teorias dos direitos fundamentais nas relações privadas com a consequente conclusão de qual trará maior eficácia a esses direitos das relações juslaborais. Palavras-chave: Direito Fundamental; Teoria da Inaplicabilidade; Teoria da Eficácia Mediata; Teoria da Eficácia Imediata; Teoria dos Deveres de Proteção; Relações Juslaborais.

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ABSTRACT

The liberal State based on equality of all citizens demonstrated, in phatic plan, completely inadequate transforming into Social State Right. With the society evolution, it emerged a need for the protection of fundamental rights in private relations, including labor relations. Nevertheless, the form and intensity of the attachment of individuals to fundamental rights cannot be analogous to those of the State, since citizens also holds fundamental rights. The exercise of the fundamental rights of employees is stated and limited by the employment contract, being a justified limitation, since the contract is the result of the exercise of the right to autonomy. Theories such as the state action, horizontal direct effect, horizontal indirect effect, and the state duties of protection arose to conceive scientificity in the study of these rights in private relations. In the one hand, Brazilian doctrine is inclined, almost unanimously, to the possibility of applying the direct or immediate efficacy theory, grounded on fifth article, paragraph one, of 1988 Brazilian Federal Constitution. On the other hand, Portuguese jurists defend the theory of mediate efficacy with some dissenters embracing the theory of protective duties. It is Parliament and not the Judiciary, which only acts in a supplementary way, that the defense of the rights of the weaker party when private power relations are involved, as is usually the case with employment relations. The decisions of the Federal Supreme Court, the Superior Labor Court, and other Brazilian Labor Judiciary structures are based on the direct application of fundamental rights in employment relations, since they are already conditioned to adopt a position favorable to the employee. The object of study of this work is the analysis of theories of fundamental rights in private relations with the following conclusion of which will bring greater effectiveness to these rights of labor relations.

Keywords: Fundamental Rights; State Action Doctrine; Horizontal direct effect theory; Horizontal indirect effect theory; State duties of protection theory; Labor relations.

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Lista de Abreviaturas e Siglas

Constituição Federal brasileira (CFb) Tribunal Superior do Trabalho (TST) Constituição da República de Portugal (CRP) Estados Unidos da América (EUA) Organização Internacional do Trabalho (OIT) Ley Orgánica del Tribunal Constitucional (LOTC) Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) Lei Fundamental (LF)

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................... 16

3 AMEAÇA "HORIZONTAL" A DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................. 25

4 TEORIAS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS –

VINCULAÇÃO DAS ENTIDADES PRIVADAS .......................................................... 46

5 TEORIA DA INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

RELAÇÕES PRIVADAS E A DOUTRINA DA “STATE ACTION” ............................ 52

6 EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

PRIVADAS ................................................................................................................... 61

7 A EFICÁCIA INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

JUSPRIVATÍSTICAS ................................................................................................... 71

8 TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA E DEVER DE PROTEÇÃO ............................. 80

9 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO PRIVADO NO BRASIL,

PORTUGAL E ESPANHA ......................................................................................... 103

10 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

JUSTRABALHISTAS ................................................................................................ 115

11 CASOS APRECIADOS PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS DE APLICAÇÃO DA

EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE

EMPREGO.................................................................................................................. 124

12 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 142

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 146

ANEXO ....................................................................................................................... 154

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1 INTRODUÇÃO

Representa uma tentação sedutora para um juslaborista ultrapassar a

fronteira do Direito Privado para penetrar no âmbito dos direitos fundamentais. Isso

porque a interligação do Direito Privado, em especial do Direito do Trabalho, com os

direitos fundamentais é íntima, máxime quando várias Constituições trazem em seus

bojos direitos trabalhistas como fundamentais.

O intuito de explorar a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares

nas relações juslaborais é procurar oferecer elementos para a instalação de uma

dogmática onde a doutrina brasileira leve os direitos fundamentais a sério, ou seja,

como garantias jurídicas fortes, tão importantes para a teoria geral dos direitos

fundamentais e para as relações de emprego como um todo.

No Brasil, todavia, o estudo da eficácia dos direitos fundamentais nas relações

privadas, em especial nas relações de emprego, ainda não obteve, das cortes

superiores, seja do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e até mesmo do Supremo

Tribunal Federal (STF), nem da doutrina constitucional, a devida atenção. A doutrina,

de maneira incipiente, com destaque para o Professor Ingo Sarlet, vem se debruçando

sobre o tema, trazendo contribuições para o seu desenvolvimento. Esse fato foi objeto

da atenção do Professor Virgílio Afonso da Silva, segundo o qual, “No Brasil, contudo,

ao contrário do que ocorre em países como Alemanha, Espanha, Itália, Israel, África

do Sul e Portugal, entre outros, a doutrina constitucional ainda não tem dado a devida

atenção aos efeitos dos direitos fundamentais para além da relação cidadão-Estado.”1

Para entender a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas

relações de emprego ou, genericamente, da eficácia dos direitos fundamentais nas

relações inter privatos, se faz imperioso tecer algumas considerações sobre a

conjuntura histórica que culminou no Estado Social, o qual superou o individualismo

apresentado pelo Estado Liberal, cujos dogmas foram modelados pelos ideais da

Revolução Gloriosa inglesa, da Bill of Rights inglesa, da independência das colônias

inglesas da América do Norte, da Constituição dos Estados Unidos da América, da Bill

1 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 18.

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of Rights norte-americana e, finalmente, da Revolução Francesa e a com a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Outro ponto importante para a concretização deste trabalho é a relação entre

os direitos fundamentais e a possibilidade da vinculação de particulares a esses

direitos, máxime quando o artigo 5o, parágrafo 1o, da Constituição Federal brasileira

(CFb), ao prever a aplicação imediata dos direitos fundamentais (“as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” 2), sem

mencionar quem seriam seus destinatários, nos coloca frente à problemática que a

doutrina constitucional denominou de Drittwirkung der Grundrechte.

Sobre o assunto, importante indagar se é possível a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações interprivados ou somente nas relações indivíduo-Estado.3

Isso porque os efeitos dos direitos fundamentais, num primeiro momento, somente

podem existir nas relações verticais, pois as próprias características dos direitos

fundamentais, como a inalienabilidade e inegociabilidade, impedem, a priori, que os

direitos fundamentais sejam invocados nas relações indivíduo-indivíduo, já que essas

relações pressupõem negociabilidade sobre esses mesmos direitos fundamentais.

Contudo, é imprescindível reconhecer que as agressões aos direitos fundamentais,

não raras vezes, são originárias de particulares que, ao exercerem sua autonomia,

malferem direitos garantidos constitucionalmente. Assim, delineia-se a problemática

acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, buscando tecer

breves explicações sobre as principais teorias existentes, utilizando-se das

experiências do direito comparado, pois é impossível ignorar a multiplicidade de

situações com as quais nos deparamos no dia-a-dia em que ocorrem vulnerações de

direitos fundamentais.

O problema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas,

inclusive as relações decorrentes da relação empregatícia, passa pelo estudo de

quatro correntes doutrinárias – teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais;

teoria da eficácia imediata; teoria da eficácia mediata; e a teoria dos deveres de

proteção – que se degladiam com um único objetivo: qual teoria traz maior efetividade

2 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 3 O tema ainda mantém seu interesse teórico e prático apesar de Constituições nacionais estarem perdendo gradativamente centralidade com o fenômeno da internacionalização do Direito, em especial na Europa, e os Estados a capacidade prestacional.

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aos direitos fundamentais mantendo a lógica do sistema, isso é, tratando esse mesmo

direito como garantias jurídica fortes. E, com isso, construir uma base teórica capaz

de auxiliar juízes, tribunais e aplicadores do Direito em geral na árdua tarefa de tomar

a sério a influência que os direitos fundamentais exercem na relações entre privados.

Com o estudo da teorias, destacaremos os pontos de contato entre uma e as

outras teorias, bem como as divergências entre uma e as demais teorias, enfatizando

os efeitos de cada uma quando há ou não lei regulamentando a situação concreta e

quando as cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados conferem ou não

solução à situação posta.

A teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas,

resumidamente, assevera que não há possibilidade de conceber eficácia aos direitos

fundamentais nas relações privadas. O fundamento principal dessa posição é o de

que os direitos fundamentais surgiram para escudar os particulares contra os abusos

do Estado e que, ao permitir a eficácia dos direitos fundamentais nas relações

privadas, se estaria atacando excessivamente a esfera da autonomia privada dos

cidadãos. É a teoria que sobressai no Direito Constitucional norte-americano.

A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas

defende que os direitos fundamentais podem ser invocados na díade indivíduo-

indivíduo com a mesma projeção da relação indivíduo-Estado, sem a necessidade da

intermediação do legislador por meio de atos específicos ou por meio de inserção de

cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

A eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do

pressuposto que esses direitos somente podem ser aplicados através da

intermediação do legislador infraconstitucional. Assim, os valores constitucionais

seriam garantidos por normas imperativas ou através de cláusulas gerais ou conceitos

jurídicos e, quando ausente ou insuficiente a norma de direito privado, buscariam a

Constituição como fonte de interpretação.

A teoria dos deveres de proteção, que parte da ideia de que o Estado tem

deveres de garantia e proteção contra agressões aos direitos fundamentais provindas

quer do Poder Público como dos próprios particulares, afirma-se como postulado

superador e complementar das demais teorias apresentadas.

O trabalho ainda propõe o estudo da doutrina e jurisprudência do Brasil,

Portugal e Espanha, destacando que a CFb supostamente traz em seu artigo 5o (“As

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normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”4)

um verdadeiro mandamento em favor de uma inequívoca aplicação imediata dos

direitos fundamentais na relações privadas; que a Constituição da República de

Portugal supostamente consagra numa interpretação literal à aplicabilidade direta dos

direitos fundamentais na relações privadas, pois não distingue, em seu artigo 18.1 a

vinculação das entidades públicas da vinculação das entidades privadas (“os preceitos

constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente

aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” 5 ); e que a doutrina e

jurisprudência da Espanha adotaram a eficácia imediata dos direitos fundamentais,

em sua maioria, com a utilização do recurso de amparo para a defesa desses direitos

inclusive em face dos particulares mesmo sem previsão expressa da Ley Orgánica del

Tribunal Constitucional (LOTC).

No penúltimo capítulo, abordaremos diretamente a eficácia dos direitos

fundamentais nas relações juslaborais, pois, atualmente, os direitos fundamentais

tonaram-se peças-chave nos diversos ramos do Direito e não há como imaginar as

relações de emprego no cenário jurídico sem levar em consideração não somente os

direitos fundamentais trabalhistas, como também os direitos individuais, sociais e

coletivos6. Assim, em qualquer controvérsia, dificilmente pelo menos uma das partes

envolvidas não sustentará a violação ou ameaça a algum direito fundamental,

principalmente porque, no Brasil, adota-se quase que integralmente a Teoria

alexyana7 dos Direitos Fundamentais e, no Direito do Trabalho, não poderia ser

diferente.

Por fim, no apagar das luzes deste trabalho, analisaremos os principais casos

concretos apreciados pelo Poder Judiciário trabalhista brasileiro, enfatizando apenas

os principais direitos postos em discussão pela impossibilidade de apreciação de

todas as hipóteses relacionadas ao tema, que apresentam uma gama superabundante

4 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 5 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 6 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Rev. TST, Brasília, vol. 77, n. 4, p. 60, out./dez. 2011. 7 Teoria desenvolvida por Robert Alexy no seu livro Teoria dos Direitos Fundamentais, que parte da premissa que todos os direitos fundamentais são aplicados prima facie.

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de variáveis. Dessa forma, destacaremos os julgados que tratam dos direitos de

igualdade, de proibição de conduta discriminatória, relativos à dignidade da pessoa

humana, à intimidade e à inviolabilidade de comunicações com comentários sobre os

direitos em discussão em cada caso concreto.

Portanto, respondendo a essas indagações acima propostas, poderemos ter

real compreensão do tema e descobriremos que nem sempre o que parece fornecer

maior eficácia realmente será, uma vez que, na conclusão, decidiremos qual teoria de

eficácia horizontal dos direitos fundamentais adotaremos como a que traz maior

eficácia a esses direitos, mantendo a lógica do sistema de direitos fundamentais como

trunfos e destacando a solução e sua consequência prática dos casos se adotarmos

uma ou outra teorias.

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2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais, da maneira que conhecemos atualmente, tiveram

início somente no Iluminismo como direitos de defesa contra o Estado Absolutista,

mas, já na ordem jurídica romana, os juristas tiveram posição de destaque na defesa

dos direitos fundamentais dos particulares em face do Estado.8 9

O papel dos pretores, magistrados judiciais competentes para a administração

da justiça; dos juristas, pessoas privadas versadas em Direito; e do iudex, juiz do caso

concreto, homem privado, que não era funcionário público nem tinha conhecimento

do Direito, foi fundamental para que a República Romana desenvolvesse as primeiras

previsões de proteção jurídica em um edito, que era publicado pelos pretores

anualmente.10

Portanto, ao lado do legislador popular, os magistrados judiciais,

aconselhados pelos juristas, através de decisões racionais e compreensíveis, criaram

um gigantesco material de regulação do Direito Privado.11 Esses foram os primórdios

do papel do Estado na defesa dos direitos dos privados.

Após a dissolução da sociedade medieval, nasceu o Estado absoluto,

centrado na figura do rei ou príncipe, com características de ilimitação jurídica (legibus

solutus12) e política. O poder do soberano não estava adstrito ao Direito anterior,

tampouco ao próprio Direito que ele mesmo editava.13

O Estado absoluto não mais se sustentou após um surto de consciência

política que culminou com acontecimentos históricos imprescindíveis para o triunfo da

plataforma liberal: a Revolução Gloriosa inglesa (1688), a Bill of Rights inglesa (1689),

a independência das colônias inglesas da América do Norte (1776), a Constituição

8 “…o Estado é compreendido como uma reunião de cidadãos privados que se unem pelo consenso sobre o Direito e o proveito coletivo, então, por meio da conformação das relações entre privados, se fazem também forçosa e implicitamente correguladas, em essência, as questões do Estado…” (CHIUSI, Tiziana. A dimensão abrangente do Direito Privado romano - observações sistemático-teoréticas sobre uma ordem jurídica que não conhecia “Direitos Fundamentais”. In: MONTEIRO; António Pinto; NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs). Direitos Fundamentais e Direito Privado - Uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 14). 9 Ibid., p. 14 e 15. 10 Ibid., p. 14 e 15. 11 Ibid., p. 15. 12 The prince is above the law, i.e. immune from the law's norms. 13 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 66.

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dos Estados Unidos da América (1787), a Bill of Rights norte-americana (1791), a

Revolução Francesa (1789), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

(1789), e a primeira Constituição francesa (1791). Assim, surgiu o Estado Liberal de

Direito, no qual a teoria dos direitos fundamentais e o princípio da separação dos

poderes encontraram solo fértil para se desenvolverem, pois era necessário

estabelecer limites jurídicos e políticos ao poder do Estado.14

As Declarações de Direito das revoluções americanas e francesas no final do

século XVIII são reflexos da concepção liberal dos direitos fundamentais, que é,

primeiramente, uma concepção jusnaturalista, segundo a qual esses direitos são

inerentes ao homem por sua própria natureza, incumbindo ao Direito Positivado

reconhecê-los e agasalhá-los, já que são anteriores ao Direito Positivo e existem

independemente deste.15

O jusnaturalismo é anterior até mesmo à existência do Estado ou qualquer

outra forma de controle ou de dominação e é “constituído por princípios normativos da

conduta social que se impõem como necessárias consequências da natureza humana

e os quais ninguém pode violar sem injustiça”.16 Portanto, o Direito natural, que é,

essencialmente, para o artigo 2o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,

os direitos à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão, cumpre

três funções em razão dessa postura. A primeira é ser fundamento do Direito positivo,

que perde o sentido de obrigatoriedade caso se afaste do Direito natural; a segunda

é inspirar o conteúdo do Direito humano e ser constutuído sobre a base dos direitos

individuais; a terceira é ser levado em conta quando da aplicação do Direito positivo

pelo poder político que o deve respeitar e está estampado no artigo 2o da Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão: “A finalidade de toda associação política é a

conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”.17

14 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 66. 15 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 8. 16 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 8. 17 Declaração dos direitos do homem e do cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em: 12 mai. 2016.

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Os direitos individuais são os intrínsecos à natureza humana e, portanto, são

os mesmos em todos os tempos e lugares. Como consequência da posição natural

desses direitos, decorre a igualdade de todos os homens, como está no artigo 1o da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Os homens nascem e são livres e

iguais em direitos.”18

Nessa sociedade liberal em que a igualdade dos homens era suficiente para

afastar a ameaça que apenas originava-se do Estado, os direitos fundamentais eram

os direitos de defesa contra o Estado, sendo somente destacados nas relações entre

indivíduos e os poderes constituídos.19

Na lógica do Estado Liberal de Direito, o que garante a liberdade dos

indivíduos é a separação entre o Estado e a sociedade. O Estado, pensado como

violador dos direitos dos cidadãos, deve diminuir a sua atuação ao mínimo para que

a sociedade possa desenvolver-se de maneira harmoniosa. Os direitos fundamentais,

no Estado Liberal, funcionam como direitos de defesa da sociedade em face das

agressões do poder estatal, são exclusivos do campo indivíduo-Estado, não fazendo

sentido falar da eficácia desses direitos nas relações interprivados. A tentativa de

aplicar os direitos fundamentais nas relações indivíduo-indivíduo, nas palavras de

Forsthoff (1971), leva à criação de “conceitos bem intencionados, moralmente

louváveis, mas juridicamente nas nuvens.”20

Portanto, no Estado Liberal, os indivíduos estavam preocupados com a

proteção de sua esfera livre e individual, ou seja, a liberdade estaria melhor garantida

quanto menos o Estado intervisse. Não era desejo dos indivíduos, naquele momento

histórico, a intervenção do Estado, mas, sim, a abstenção dos poderes. Esse fato fica

desmonstrado com os direitos proclamados pelas Revoluções Americana e Francesa,

que são essencialmente direitos negativos.21

18 Declaração de direitos do homem e do cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html> Acesso em: 12 mai. 2016. 19 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 10-11. 20 FORSTHOFF apud DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 256-258, abr.-jun. 1987. 21 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 10-11.

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O pensamento liberal desenha o arcabouço de garantir a convivência sadia

das liberdades individuais. O Estado democrático é o “garante e regulador” desses

direitos através da vontade da maioria com os contornos bem definidos na lei.22

Os direitos fundamentais que constavam nas primeiras Constituições e

declarações eram os direitos naturais do homem, anteriores à própria noção de

Estado.23 Os direitos fundamentais funcionavam como limites externos ao poder do

Estado. Já a separação dos poderes estabelece-se como limite interno ao poder do

Estado e apresenta-se como a garantia orgânica dos direitos fundamentais.24

Restou evidenciado, nas declarações de direitos e nas Constituições desse

período, que estes dois institutos – reconhecimento dos direitos fundamentais e a

separação dos poderes – fundavam uma nova fase. Esses institutos foram

normatizados no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789):

“toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada nem a separação

dos poderes determinada não tem Constituição”25.

A sociedade, no Estado Liberal de Direito, pressupunha, como já tido acima,

que o único ente que poderia ameaçar os direitos individuais era o próprio Estado.

Cabe aqui ressaltar que os direitos fundamentais na Europa26, nesse momento da

22 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 14. 23 Artigo 1º da Declaration of Rights de Virginia. Estados Unidos, 1776: “That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety.” Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/virginia_declaration_of_rights.html> Acesso em: 11 mai. 2014. Artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 1789: "A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.” Disponível em: <http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm> Acesso em: 11 mai. 2014. 24 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 68. 25 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 1789. Disponível em: <http://www.eselx.ipl.pt/ciencias-sociais/tratados/1789homem.htm> Acesso em: 11 mai. 2014. 26 Wilson Steinmetz ressalva que: “Nos Estados Unidos da América, ocorreu algo diverso, porque a supremacia da Constituição sobre as demais fontes do direito se afirmou desde o início por meio da judicial review of legislation, mecanismo inaugurado na decisão da Suprema Corte no caso Marbury contra Madison (1803)” (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 70).

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história, não eram aplicados diretamente nas relações indivíduo-Estado. Aliás, houve

a inserção de um terceiro elemento ao lado dos direitos fundamentais e a separação

dos poderes: o princípio da legalidade. Assim, os direitos fundamentais consagrados

nos instrumentos constitucionais não tinham aplicabilidade direta, eram apenas

direitos programáticos que orientavam futura concretização do Poder Legislativo

através da lei. Portanto, se no Estado absolutista o poder soberano centrava-se na

figura do monarca, agora esse poder centra-se no parlamento ou na assembleia27.

Nas palavras de Wilson Steinmetz (2004): “…os direitos fundamentais eram limites ao

poder do Estado definidos pelo próprio Estado por meio de lei e não definidos pela

Constituição…”.28

Vale mencionar, neste ponto, que apenas os Poderes Executivo e Judiciário

estavam limitados pelos direitos fundamentais através de lei. Isso porque o Poder

Legislativo não estava vinculado aos direitos fundamentais, já que, como criador das

leis, somente estava sujeito a si mesmo29 e sujeição a si mesmo não é sujeição, mas,

sim, liberdade.30

Atualmente, para definir-se em qual o modelo constitucional de sociedade

está inserido determinado Estado, são decisivas as normas de direitos fundamentais

sancionadas, as normas que consagram a forma de Estado e as normas que

estabelecem o sistema econômico. Assim, há uma interligação próxima entre os

direitos fundamentais e o Estado de Direito, uma vez que os direitos fundamentais

demandam, para sua concretização, o Estado de Direito, enquanto o Estado de

Direito, para ser assim denominado, há que ser garantidor dos direitos fundamentais.31

Os direitos fundamentais, no Estado de Direito, constitutuem a garantia

principal para os cidadãos de que os sistemas jurídico e político, em seu conjunto, se

orientarão para fazer respeitar e promover a pessoa humana, seja na sua dimensão

27 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 73-74. 28 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:

Editora Malheiros, 2004. p. 7. 29 Ibid., p. 77. 30 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Beatriz Nizza da Silva. Capítulo XXIX. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Estudos Gerais Série Universitária - Clássicos de Filosofia. 31 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 19.

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individual (Estado liberal de Direito), seja conjugado com a exigência de solidariedade,

corolário da componente social e coletiva da vida humana (Estado social de Direito).32

As alterações do Estado Liberal ao Estado Social, motivadas pela ascensão

social na política, levam ao crescente intervencionismo do Estado, visto como meio

de concretização da felicidade individual. O Estado advém não mais apenas como

violador dos direitos da sociedade, mas começa a atuar como conformador da

sociedade, corrigindo e atenuando os seus desequilíbrios.33

Esse viés democrático, como resultado da Revolução Industrial, iria

desenvolver-se até o final do século XIX, em consequência das mudanças sociais e

econômicas desse processo. E é esse processo de transformação que enseja a

evolução dos direitos fundamentais para os direitos positivos no Estado Social de

Direito.

A matéria dos direitos fundamentais liga-se à ideia do Homem e das suas

relações com os seus pares e com o Estado e essa ideia é, portanto, positivada

através da Constituição.34

Com essas transformações, surgem organismos, como partidos políticos,

sindicatos e associações diversas, que se posicionam entre o indivíduo e o Estado e

não se restringem em tomar ou influenciar o poder desse Estado, mas, sim, vão

adquirindo, paulatinamente, um status de poder.35 “O poder deixa de ser privilégio

exclusivo do Estado, para passar a ser repartido e compartilhado pela própria

sociedade”36. O Estado passa de exclusivo detentor de poder para organismo que

coordena e arbitra os variados poderes agora espalhados na sociedade.37

Dessa forma, os direitos fundamentais, que foram concebidos, a priori, para

colocar freios ao Estado, alargaram sua esfera de proteção para também proteger o

32 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 20. 33 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 262, abr.-jun. 1987. 34 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 7. 35 ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o Direito Privado. Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. 2009. p.223-240. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Faculdade de Lisboa, Lisboa, 1962. 36 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987. 37 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987.

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cidadão em face de todas as situações de poder, uma vez que aquele deixou de ter o

previlégio de ser a única fonte de ameaça. “A liberdade do cidadão em face do poder

não pode se restringir, somente, contra o poder do Estado, mas, também, contra o

poder econômico, o poder empresarial, o poder sindical, o poder da Comunicação

Social, etc.”38

Neste ponto, toma relevo a dimensão objetiva dos direitos fundamentais

quando se contextualiza com o problema da vinculação das entidades privadas pelos

direitos fundamentais. Isso porque o reconhecimento da dignidade humana pela

imputação de direitos fundamentais aos indivíduos tem implicações não somente do

ponto de vista individual, mas como da própria ordem poltíco-jurídica vigorante numa

determinada sociedade. Ou seja, a ordem jurídica vigente, ao conferir direitos

fundamentais aos indivíduos como “direitos fortes”, fica obrigada a criar mecanismos

de proteção efetiva desses direitos – seja nas relações daqueles com o Estado, seja

nas relações interindividuais –, já que seria impensável imaginar que o mesmo

indivíduo tivesse seus direitos fundamentais protegidos em face do Estado e esse

mesmo Estado não os garantisse em face da sociedade.39

Portanto, a importância dos direitos fundamentais enquanto princípios da

ordem jurídica há de estabelecer-se a todas as pessoas que, no dia a dia, ficam

forçadas a não os colocar em xeque.

O Estado liberal, baseado na igualdade de todos os cidadãos, mostrou-se, no

plano fático, completamente inadequado à realidade social, pois a igualdade liberal

limitava-se apenas ao gozo dos direitos. Verificou-se que, no mundo dos fatos, existe

desigualdade entre os indivíduos e que o Estado Liberal não forneceu condições

materiais para que a igualdade não se quedasse no plano meramente teórico.40

Na sociedade atual, é indene de dúvidas que as relações entre indivíduos são

desiguais e que há necessidade de garantir, máxime nas relações com “grupos

sociais” de maior poder, “um efetivo exercício das liberdades nas próprias relações

entre particulares”.41 Esses grupos conseguem se sobrepor à igualdade formal do

38 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 263, abr.-jun. 1987. 39 Ibid., p. 264. 40 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p.15. 41 Ibid., p.16.

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Estado Liberal e impor suas vontades ante a vontade dos indivíduos em face do poder

econômico e social. Daí surge o Estado Social de Direito, contra toda a tradição liberal,

delineado pela primeira vez na Constituição alemã de Weimar, como garantia dos

direitos fundamentais dos indivíduos positivados nas Constituições.

José João Nunes Abrantes (1990) menciona que, no Estado Social de Direito,

começam a aparecer novos direitos, “...quer direitos das colectividades (sic) ou

agrupamentos sociais (família, grupos profissionais, etc.), quer direitos a prestações

do Estado (direito ao trabalho, direito à assistência pública, direito à instrução, etc.)...”

e que esse Estado tem “o direito e o dever de intervir nas relações econômicas entre

os cidadões” mesmo se tal intervenção limite as liberdades contratuais e de

propriedade privada.42

Duas influências marcaram a evolução do Estado para o do Social de Direito:

“um processo de democratização política e um processo de socialização”.43

O processo de socialização, em especial, juntamente com o processo de

democratização, levou a uma nova definição de direitos fundamentais, elevando-os à

categoria de princípios (normas de valor)44. Os direitos fundamentais converteram-se

“no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição”45, irradiando sua

eficácia tanto em direção ao Direito Público como também ao Direito Privado. O

Estado passa a ser visto não como apenas inimigo dos indivíduos, mas, sim, como

algo indispensável para a defesa dos direitos fundamentais numa sociedade marcada

pelas desigualdades de poder.46

O Estado Social de Direito tem como diretriz primordial a igualdade social –

diferente da igualdade jurídica proposta pelo Estado Liberal – e traz uma nova

42 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 43 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 44 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 17. 45 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541. 46 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 18.

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categoria de direitos fundamentais que são os direitos positivos ou “direitos a

prestação do Estado”.47

Os direitos fundamentais positivos são direitos não em face do Estado, mas

que têm como sujeito passivo esse mesmo Estado, que implemantará políticas

públicas que “facultem e garantam o gozo efectivo (sic) dos bens constitucionalmente

protegidos”.48

O Estado e os cidadãos curvam-se para a realidade que de pouco servem os

direitos se não houver os meios eficazes de os exercer, ou seja, é mais importante a

faculdade dos indivíduos poderem gozar de seus bens da vida do que o

reconhecimento meramente formal desses direitos.

47 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 19. 48 ABRANTES, José João Nunes. A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Lisboa: Editora Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, p. 19.

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3 AMEAÇA "HORIZONTAL" A DIREITOS FUNDAMENTAIS

É sabido que os direitos fundamentais e suas posteriores positivações nas

Declarações e Constituições a partir do final do século XVIII se alicerçam na ideia de

garantir um âmbito privado imune à interferência estatal. A ideia basilar era de uma

sociedade autorregulada, composta de homens iguais, em que a autonomia da

vontade era a mola propulsora, de maneira que as leis e os Códigos não podiam

restrigir e sim, pelo contrário, deviam criar meios de efetivar essa autonomia. Porém,

essa ideia ficou apenas para recordação, já que o binômio Constituição-Código Civil

visto como uma figura de duas retas paralelas não se apresenta mais como apto para

descrever a estrutura fundamental do ordenamento jurídico porque a ideia subjacente,

isso é, a separação igualmente estrita entre Estado e Sociedade, também deixou de

existir.49

As Constituições atuais de países como Portugal50, Suíça51 e África do Sul52

tratam da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, mas,

49 TORRES, Jesús Garcia; BLANCO, Antonio Jimenez. Derechos fundamentales y relaciones entre particulares. Madrid: Civitas, 1986, p. 11-12. 50 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 51 Art. 35o Execução dos direitos fundamentais 1 Os direitos fundamentais devem ser respeitados em toda a Ordem Jurídica. 2 Aquele que exerce funções estatais está comprometido com os direitos fundamentais e obriga-se a colaborar para a sua concretização. 3 As autoridades cuidam para que os direitos fundamentais, desde que aplicáveis, sejam eficazes também entre pessoas privadas. (SUIÇA. Constituição (1999). Constituição Federal da Confederação Suíça. Disponível em: . <http://www.admin.ch/org/polit/00083/index.html?lang=it&download=NHzLpZeg7t,lnp6I0NTU042l2Z6ln1ah2oZn4Z2qZpnO2Yuq2Z6gpJCDdH9,fmym162epYbg2c_JjKbNoKSn6A--> Acesso em: 4 mar. 2014). 52 8. Application 1. The Bill of Rights applies to all law, and binds the legislature, the executive, the judiciary and all organs of state. 2. A provision of the Bill of Rights binds a natural or a juristic person if, and to the extent that, it is applicable, taking into account the nature of the right and the nature of any duty imposed by the right. When applying a provision of the Bill of Rights to a natural or juristic person in terms of subsection (2), a court- a. in order to give effect to a right in the Bill, must apply, or if necessary develop, the common law to the extent that legislation does not give effect to that right; and b. may develop rules of the common law to limit the right, provided that the limitation is in accordance with section 36 (1).

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durante muito tempo, a discussão somente foi enfrentada pela doutrina e

jurisprudência com alguns dispositivos esparsos como o artigo 9o, número 3, da

Constituição alemã.53 54

O artigo 18.o, no 1, da Constituição da República de Portugal autoriza

expressamente que as normas de direitos fundamentais sejam aplicadas diretamente

aos particulares: "Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e

garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.55

Destaca-se que parte da doutrina portuguesa entende que a eficácia

horizontal dos direitos fundamentais somente ocorre por força desse artigo nas

relações entre empresas privadas, pela expressão "entidades privadas", e os

indivíduos e não às relações cidadão-cidadão. Portanto, para essa corrente

doutrinária, caberia a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações

juslaborais.56

Gomes Canotilho (2003) entende que o direitos fundamentais são aplicados

a todos os entes privados, com base no artigo 18.o, no 2, da Constituição portuguesa,

pois, ao contrário da Constituição alemã, na qual diz somente que os direitos

fundamentais vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no tocante à

aplicação direta dos direitos fundamentais, a Constituição portuguesa consagra a

aplicação dos direitos fundamentais às entidades privadas “sem qualquer restrição ou

4. A juristic person is entitled to the rights in the Bill of Rights to the extent required by the nature of the rights and the nature of that juristic person (grifo nosso). ÁFRICA DO SUL. Constituição (1996). Contituição da República da África do Sul. Disponível em: <http://www.constitutionalcourt.org.za/site/constitution/english-web/ch2.html> Acesso em: 3 mar. 2014. 53 Artigo 9, 3, da Constituição alemã: "E garantido a todas as pessoas e profissões o direito de constituir associações destinadas a defender e melhorar as condições econômicas e de trabalho. Consideram-se nulos os ajustes tendentes a restringir ou a impedir esse direito, bem como ilegais as medidas com esse fim. Segundo os artigos 12a, 35a §2, 35a §3, 87a §4 e artigo 91 não podem ser orientadas contra conflitos de trabalho, levados a cabo por associações no sentido da primeira frase, para a defesa e melhoria das condições econômicas e de trabalho" (ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014). Insta mencionar, mais uma vez, que as relações juslaborais são terreno fértil para a consagração da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas, conforme se depreende do artigo citado. 54 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 60. 55 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 56 Apenas para esclarecer que o empregador também pode ser pessoa física ou individual.

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limitação, não sendo, portanto, legítimo limitar essa eficácia apenas aos casos em que

a doutrina estrangeira a admite quando nada nas respectivas legislações a impõe”.57

O que pode fortalecer essa tese é a intepretação literal desse artigo, bem como o

efeito socializante da Constituição, os quais fundamentariam a vinculação das

entidades, sejam públicas ou privadas, pelos direitos fundamentais e a proibição de

discriminações públicas e privadas.58

Todavia, há outra corrente doutrinária que advoga a tese que, tal qual nas

relações indivíduo-Estado, nas quais está presente a assimetria de poderes, os

direitos fundamentais, em especial o princípio da igualdade, somente limitariam

entidades privadas poderosas. Isso porque os direitos fundamentais foram

concebidos, primariamente, como direitos a serem exercidos pelos indivíduos em face

do Estado em relações de desigualdade. Portanto, todas as posteriores relações na

sociedade que não mais tiveram o Estado como único violador de direitos

fundamentais e sim outros organimos centralizadores de poder levam a alargar a

aplicação dos direitos fundamentais a todas essas relações, nas quais essa mesma

desigualdade se verifica.59

O Brasil não possui uma regra explícita sobre a vinculação dos particulares

aos direitos fundamentais em sua Constituição Federal, contudo, alguns autores

defendem que há essa vinculação em decorrência do artigo 5o, parágrafo primeiro, da

CFb, o que, data máxima vênia, não é o que texto sugere. Segue a redação do artigo:

“As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação

imediata”60.

Os direitos fundamentais apresentam-se na normativa constitucional de duas

formas, a subjetiva e a objetiva, “ambas mantendo uma relação de remissão e de

complemento recíproco”61.

57 CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1288. 58 Ibid., p. 268-269. 59 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 269, abr.-jun.1987. 60 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da república Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15 abr. 2017. 61 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paul : Saraiva, 2016, p. 166.

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Na primeira, seriam analisados na sua dimensão subjetiva, isso é, são direitos

subjetivos, dos particulares, constituindo direitos de defesa contra os poderes estatais

e também nas relações entre si.

Portanto, os direitos fundamentais estendem-se a tutelar a liberdade,

autonomia e segurança dos cidadãos não somente nas relações com o Estado, mas

também nas relações frente aos demais membros do corpo social.62 Analisandos-se

a questão pelo viés meramente formal de igualdade entre os indivíduos de uma

mesma sociedade, entendia-se, inicialmente, que os direitos fundamentais foram

concebidos para a defesa do cidadãos frente a todo o poder do Estado, considerando-

se que os direitos fundamentais não teriam razão de ser nas relações entre individuos

do próprio grupo onde se desenvolvem as relações entre particulares. Contudo,

observou-se que, nas relações entre supostamente iguais, na realidade, desenvolvia-

se relações assimétricas, pois, na sociedade neocapitalista da igualdade formal, não

decorre necessariamente a igualdade material. Nessa sociedade, verifica-se que o

pleno desenvolvimento dos direitos fundamentais está impedido nas relações privadas

pelos grandes conglomerados de poder com a mesma força ameaçadora dos órgãos

públicos.

A transição do Estado liberal para o Estado Social de Direito pressupôs a

extensão dos direitos fundamentais a todos os ramos do ordenamento jurídico, o que

também inclui o âmbito privado dessas relações. Antonio E. Perez Luño (1984)

assevera que seria contrassenso o Estado assegurar a livre manifestação de

pensamento aos cidadãos, mas permitir ou tolerar as pressões sobre a liberdade de

pensamento e ideias ou proibição de manifestá-las advindas de um empresário em

relação a seus empregados. É necessária a atuação dos Poderes Públicos na

ampliação da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas para promover

as condições adequadas para que a liberdade e igualdade dos indivíduos sejam reais

e efetivas, bem como retirar obstáculos que atrapalhem ou dificultem a plena eficácia

dos direitos fundamentais.63

Por seu turno, a dimensão objetiva traz os direitos fundamentais como

princípios básicos da órbita constitucional resultante do acordo básico das diferentes

62 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 22. 63 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 23.

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forças sociais de comprometimento dos cidadãos com o dever de obediência ao

Direito. Para Canotilho (2003), “uma norma vincula um sujeito em termos objectivos

(sic) quando fundamenta deveres que não estão em relação com qualquer titular

concreto”.64

Assim, os direitos fundamentais deixaram de ser meros limites ao exercício

do poder político, vistos apenas no seu aspecto de eficácia negativa de interesses

individuais, e passaram a definir um conjunto de valores que direcionam o Poder

Público para ações positivas65. Além disso, influenciam todo o ordenamento jurídico,

servindo de inspiração para atuação de todos os poderes constituídos.66

Paulo Bonavides (2000) realça que, dentre as consequências da atribuição da

dimensão objetiva aos direitos fundamentais, está a extensão dos direitos

fundamentais para as relações jusprivatísticas.67 Nas palavras do autor:

64 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992, p. 544. 65 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. CIdade: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 21. 66 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 165. 67 Paulo Bonavides destaca outras consequências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais: “...a) a irradiação e a propagação dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito Privado; em rigor, a todas as províncias do Direito, sejam jusprivatistas, sejam juspublicísticas; b) a elevação de tais direitos à categoria de princípios, de tal sorte que se convertem no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição; c) a eficácia vinculante, cada vez mais enérgica e extensa, com respeito aos três Poderes, nomeadamente o Legislativo; d) a aplicabilidade direta e a eficácia imediata dos direitos fundamentais com perda do caráter de normas programáticas; e) a dimensão axiológica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo passo servem de inspiração, impulso e diretriz para a legislação, a administração e a jurisdição; f) o desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros (Drittwirkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisição de um "duplo caráter" (Doppelcharakter; Doppelgestalt ou Doppelqualifizierung), ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimensão subjetiva - da qual nunca se podem apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade - e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que é a dimensão objetiva, dotada de conteúdo valorativo-decisório, e de função protetora tão excelentemente assinalada pelos publicistas e juízes constitucionais da Alemanha; h) a elaboração do conceito de concretização, de grau constitucional, de que se têm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construção jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais; i) o emprego do princípio da proporcionalidade vinculado à hermenêutica concretizante, emprego não raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilíbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando de fato e de maneira insólita o papel de legisladores constituintes paralelos, sem todavia possuírem, para tanto, o indeclinável título de legitimidade; e j) a introdução do conceito de pré-compreensão (Vorverständnis), sem o qual

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O desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros (Drittwirkung), com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do Poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram.68 (BONAVIDES, 2000, p. 541-542).

Essa também é a conclusão do ministro Gilmar Mendes quando afirma que a

dimensão objetiva dos direitos fundamentais traz para o Estado o dever de proteção

desses direitos frente a agressões originadas tanto de particulares como de outros

Estados.69

A dimensão objetiva dos direitos fundamentais reclama do Estado

providências materiais e até mesmo jurídicas para a concretização prática desses

direitos, corroborando com a ideia de que a dimensão objetiva e a subjetiva

complementam-se reciprocamente, “neste caso, atribuindo-lhe reforço de

efetividade”.70

Os direitos fundamentais contribuem com maior amplitude e profundidade

para moldar o ordenamento jurídico infraconstitucional por serem expressão do

conjunto de valores ou decisões axiológicas básicas de uma sociedade consagrado

nas normas constitucionais.71

Kant via o Direito Privado partindo do princípio do equilíbrio entre a liberdade

de uns e a liberdade de outros. O Direito comum Prusiano protegia a liberdade natural

do homem de poder buscar e promover seu próprio bem-estar sem prejuízo dos

direitos dos outros. Também em Carl V. Rotteck se defende a pluralidimensionalidade

do problema da liberdade com claridade. Segundo ele, o Estado, enquanto instituição

jurídica e em sua qualidade como tal, tem que reconhecer e proteger a liberdade de

seus membros como um direito que têm simplesmente enquanto cidadãos em todas

as esferas da atividade humana. Se o Estado se afasta do dever de intromissão nos

não há concretização” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541-542). 68 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 541-542. 69 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 166. 70 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 166. 71 LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1984, p. 21-22.

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direitos de liberdade de seus membros, deixa de protegê-los contra as intromissões

de outros, o que poderia levar a desproteger alguns de seus cidadãos.72

Dessa forma, entende-se que o Estado não deveria tolerar servidão nem

permitir nada parecido. Deve, sim, governar seus cidadãos através de leis sábias e de

sua administração pública ante o ameaçante esmagamento da liberdade sempre e

onde se produza o abuso do poder privado.73

As proclamações de Direiros dos Estado europeus respondem ao esforço de

dar uma expressão legislativa às doutrinas antiabsolutista de Direito Natural e do

Direito Racional de limitação do poder estatal e aos inalienáveis direitos à liberdade e

à igualdade do indivíduo. O conceito clássico de direito fundamental contido nessas

proclamações era principalmente o de status negativus sive libertatis do indivíduo, que

se dirigia contra o Poder Público, criando um direito do indivíduo instituído sobre uma

esfera livre do Estado, limitando, assim, as possibilidades de injerência do Estado na

esfera jurídica individual.74

As disposições de direitos fundamentais não deviam estabelecer critérios ou

fixar limites às relações jurídicas concretas dos cidadãos entre si, já que não eram

garantias de liberdade e de igualdade em todas as direções, nem dirigidas ou relativas

em relação a terceiros. Eram, sim, garantias de liberdade e de igualdade dirigidas ou

relativas ao Estado, como se deprende do texto do artigo 1.3 da Lei Fundamental de

Bonn75, que expressa uma vinculação imediata dos direitos fundamentais somente ao

Poder Público.

A Constituição de Weimar também caminhava no mesmo sentido, ou seja, o

de proteção dos direitos fundamentais contra o Estado, porém, com duas importantes

exceções que valem a menção. A primeira garantia a liberdade de expressão no artigo

72 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de

Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 69-70, set./dez. 2002. 73 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 69-70, set./dez. 2002. 74 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 70, set./dez. 2002. 75 Artigo 1.3 da Constituição de Bonn: Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos fundamentais aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, execeutivo e judiciário. (ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2014.)

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11876 e mencionava que esse direito estava protegido contra os poderes sociais não

estatais. Vale destacar, que a liberdade de expressão estava assegurada pela

Constituição de Weimar nas relações de emprego e, por óbvio, em face dos

empregadores, podendo-se concluir que referida Constituição, pelo menos em seu

artigo 118, previu a possibilidade da vinculação imediata dos direitos fundamentais

nas relações laborais. A segunda, por sua vez, assegurava aos indivíduos a liberdade

para a formação de sindicatos, como se depreende do artigo 159 da Constituição de

Weimar77, bem como o direito dos trabalhadores de melhorarem suas condições de

trabalho, sendo qualquer contrato de emprego ilegal se limitar ou obstruir referidos

direitos, podendo os particulares invocarem diretamente à Constituição para

assegurar a observância desses direitos. É a aplicação direta dos direitos

fundamentais nas relações privadas, para alguns autores, e essas duas exceções vêm

confimar a regra geral, a característica de direitos dirigidos em face do Estado dos

direitos fundamentais.78

Ao lado das chamadas normas de Direito Constitucional que já preveem como

destinatários os particulares e que influenciam, portanto, expressamente o Direito

Privado, pode-se, por outro turno, fundamentar a influência do Direito Constitucional

no Direito Privado. Sobre o assunto, há que ter em mente que os direitos fundamentais

formulados na maioria da constituições afetam a relação do indivíduo com o Estado.

Isso porque os direitos fundamentais são a resposta específica do Direito

Constitucional à experiência histórica de que o Poder Público tende a lesionar a

liberdade dos cidadãos.

Não obstante, não somente problemas de liberdade e de igualdade nas

76 Artigo 118 da Constituição de Weimar: “Every German is entitled, within the bounds set by general law, to express his opinion freely in word, writing, print, image or otherwise. No job contract may obstruct him in the exercise of this right; nobody may put him at a disadvantage if he makes use of this right. There is no censorship; in case of the cinema, other regulations may be established by law. Also in order to combat trashy and obscene literature, as well as for the protection of the youth in public exhibitions and performances legal measures are permissible” (ALEMANHA. Constituição de Weimar (1919). Disponível em: <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php> Acesso em: 26 set. 2016.). 77 Artigo 159 da Constituição de Weimar: “The right to form unions and to improve conditions at work as well as in the economy is guaranteed to every individual and to all occupations. All agreements and measures limiting or obstructing this right are illegal” (ALEMANHA. Constituição de Weimar (1919). Disponível em: <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php> Acesso em: 26 set. 2016.). 78 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 71, set./dez. 2002.

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relações entre o cidadão e o Estado, há também dos cidadãos entre si, especialmente

sob o ponto de vista de diferença de sexos e nas relações de desigualdade social,

como ocorre nas relações de emprego. Os constituintes, quando da promulgação da

maioria das Constituições a partir da Consitituição de Weimar, em todo o mundo, já

sabiam da problemática da aplicação dos direitos fundamentais e confiaram ao Direito

Civil já existente e ao futuro legislador civil a resolução da aplicação dos direitos

fundamentais nas relações privadas. Portanto, a decisão de conceber eficácia aos

direitos fundamentais não só nas relações indivíduo-Estado como também nas

relações indivíduo-indivíduo tem que ser levada a sério e colocada na base da

interpretação dos direitos fundamentais.79

Sem querer ultrapassar as constatações acima, o ideal é fundi-las à ideia de

que a Constituição e o Direito Privado não estão situados um ao outro sem se

relacionarem. Inclusive, quando no tráfico jurídico entre particulares, devem ser

respeitadas a vida, a saúde, a honra e a propriedade e isso não é uma consequência

de uma vinculação imediata de todos os cidadãos aos direitos fundamentais que foram

concretizados na Constitutição. Na realidade, são regras de convivência social, sobre

as quais também se fundamentam os direitos fundamentais. A imagem do indivíduo

como ser humano propagada nas Constituições não é somente fundamento dos

direitos fundamentais na relação Estado-indivíduo, mas, sim, a base para a

construção do Direito Civil. A garantia da dignidade da pessoa humana expressa na

maioria das constituições ocidentais impõe ao Estado assegurar os meios adequados

para a concretização dessa garantia, inclusive nas relações jurídicas entre

particulares.80 81 82

A pespectiva apresentada anteriormente exclui uma aplicação analógica dos

79 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 73, set./dez. 2002. 80 “Artigo 1.1: A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o Poder Público” (ALEMANHA. . Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Berlim, 1949. Disponível em: <https://www.btgbestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016). 81 “Artigo 10.1. A dignidade, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamento da ordem política e da paz social” (ESPANHA. Constituição (1978). Constituição Espanhola. Madrid: 1978. Disponível em: <http://autodesarrollate.blogspot.com.br/2013/05/constituicao-espanhola-de-1978.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 82 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 74, set./dez. 2002.

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direitos fundamentais que não foram mencionados ao Direito Civil. Assim, o Direito

Civil, no tráfico jurídico, é de sempre e apenas contemplação da imagem do homem

desenhada no âmbito dos direitos fundamentais expressados nas constituições. Isso

é visto ancorado na chamada eficácia jurídica objetiva dos direitos fundamentais

através de decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, em especial, na

decisão do caso Lüth.83

A solução do problema da aplicação dos direitos fundamentais em relação a

terceiros, com a utilização da eficácia jurídica objetiva dos direitos fundamentais, tem

a vantagem de que esses direitos, limitados às relações entre o Estado e o cidadão,

não devem ser manipulados para utilização indiscriminada em face dos particulares.

Além disso, o recurso à imagem do homem estampada nos direitos fundamentais evita

qualquer solução global e forçada. O influxo dos direitos fundamentais sobre o Direito

Privado através do Tribunal Constitucional e dos tribunais ordinários necessita de uma

fundamentação específica além dos deveres concretos de proteção e de igualdade

relacionados ao Direito Civil.84

Por óbvio, as considerações acima, desenhadas para um modelo alemão,

podem e devem ser trazidas para a realidade brasileira, pois os direitos fundamentais,

enquanto parte do Direito Constitucional, gozam de hierarquia superior ao Direito

ordinário e, por consequência, ao Direito Privado. E assim, não é possível impedir a

influência dos direitos fundamentais no Direito Privado.

Com a expressão alemã Drittwirkung der Grundrechte (vinculação dos direitos

fundamentais em relação a terceiros) se denota a incidência dos direitos fundamentais

no Direito Privado e nas relações jurídicas privadas.

Os direitos fundamentais nos Estados Constitucionais, ao longo desses mais

de 200 anos do Estado de Direito, são um sucesso, pois representam garantias

jurídicas, principalmente naqueles Estados que têm o controle de constitucionalidade

fortalecido. E mais, o Direito Constitucional atualmente está centrado na figura dos

direitos fundamentais. Os direitos fundamentais protegem as pessoas, suas

liberdades, suas autonomias, seus estados. Mas em que relações? Quando os direitos

fundamentais surgiram nos Estados de Direito, foram criados sob a ideia de que

83 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 74-75, set./dez. 2002. 84 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 75, set./dez. 2002.

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seriam garantias jurídicas aplicadas em face do Estado. Nos Estados Unidos da

América (EUA), o Judiciário assumiu, já naquele momento histórico, o protagonismo

na análise da constitucionalidade das leis quase da mesma forma que se encontra

atualmente nas democracias constitucionais. Na Europa, ao contrário do que verificou-

se nos EUA, não se constatou a possibilidade de não aplicação da lei com fundamento

de incompatibilidade com o texto constitucional.85 Nas palavras do Professor Jorge

Reis Novais (2012): "Ao invés, depositava-se implicitamente nos Parlamentos

democráticos a competência de garantia e realização política da Constituição”.86

Nos EUA, essas ideias foram logo aplicadas. Assim, restou reconhecido o

protagonismo da Suprema Corte em matéria que envolvesse norma com natureza

constitucional, apesar da visão monocromática do princípio da propriedade privada,

que vigorava naquele momento histórico, embebido das ideias liberais próprias do

século XIX. Porém, houve o amadurecimento dessa Corte Constitucional que, no

século XX, proferiu decisões que albergavam os ideais sociais de defesa dos direitos

fundamentais. Contudo, nas relações entre particulares, os direitos fundamentais não

eram aplicados nos EUA e sim somente nas relações indivíduo-Estado.

A segunda metade do século XX é o marco do novo constitucionalismo. O

mundo deixou de lado o positivismo exacerbado, que fundamentou as mais diversas

barbaridades, vivenciadas, em especial, na Alemanha sob controle do Partido Nazista

para vivenciar a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, não mais

como simples proclamação retórica, porém como mandamento com força normativa.

Em outras palavras, deixou de ser o estudo do Poder Público para se converter em

ordem jurídica fundamental da comunidade.87 Os bens, raças, religiões, sexo ou

convicções deixaram de ser o objeto principal de qualificação do ser humano.

Foi nesse momento que, na Europa, começou-se a discutir como os direitos

fundamentais incidiriam nas relações interprivados, já que houve a mudança da visão

da Constituição como simples papel político para transformá-la em norma jurídica. Nos

85 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa, Jorge Reis Novais, na conferência Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira? realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 86 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 183. 87 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em estado democrático de direito. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 199.

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EUA, a matéria já tinha sido resolvida pela não aplicabilidade dos direitos

fundamentais às relações privadas.

Uma questão importante na discussão da aplicabilidade dos direitos

fundamentais nas relações horizontais é quem são os destinatários desses direitos.

Serão todos e quaisquer indivíduos ou apenas entes coletivos e/ou individuais com

poder?

Os efeitos dos direitos fundamentais, num primeiro momento, somente podem

existir nas relações verticais, ou seja, nas relações entre os cidadãos e o Estado. Isso

porque as próprias características dos direitos fundamentais, como a inalienabilidade

e inegociabilidade, impedem, a priori, que os direitos fundamentais sejam invocados

nas relações indivíduo-indivíduo, já que essas relações pressupõem negociabilidade

sobre esses mesmos direitos fundamentais, como, por exemplo, quando os indivíduos

celebram um contrato de emprego.

A priori, pode-se definir que os direitos fundamentais que têm como

destinatário exclusivo o Estado estariam excluídos da problemática acima, como

ocorre nas garantias do processo penal, no habeas corpus, na extradição, expulsão e

direito de asilo. 88

Não é somente o Estado que pode ameaçar os direitos fundamentais, mas as

grandes corporações detentoras de poder econômico e político, que podem violar os

direitos fundamentais dos indivíduos, assim como as relações indivíduo-indivíduo. Nas

relações entre os indivíduos e as grandes corporações, essa ameaça apresenta-se

patente, apesar de aparentar que ambos detêm autonomia de vontades, pelo

predomínio da força econômica e política dessas últimas, se equiparam ao Estado

como ameaçadoras dos direitos fundamentais dos cidadãos.89

Sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, segue

decisão do Tribunal Federal do Trabalho alemão:

Em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destina-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases essenciais da vida social. Isso significa que disposições relacionadas com os direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre os indivíduos. Assim, os acordos de direito

88 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades

e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr.-jun. 1987. 89 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53.

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privado, os negócios e os atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar de ordem básica ou ordem pública.90 (SILVA, 2011, p.166).

Para alguns autores, a vinculação dos particulares a direitos fundamentais

"será tão maior quanto maior for a assimetria na relação".91 Por isso, destaca-se que,

em todas as relações juslaborais, a vinculação dos particulares a direitos

fundamentais mostra-se presente em grau elevado devido à assimetria que existe

nessa relação e que foi consagrada pelos princípios protetivos das relações de

emprego, em especial o princípio in dubio para o empregado. Quanto maior o poder

do empregador na relação empregatícia, maior a sua responsabilidade no tocante à

responsabilidade pelas lesões sofridas pelos seus empregados em seus direitos

fundamentais em decorrência da relação de emprego.92

Há duas questões que precisam ser ventiladas. A primeira é saber se as

entidades privadas estão vinculadas aos direitos fundamentais com a mesma

intensidade das entidades públicas e, em segundo lugar, saber se a vinculação das

entidades privadas tem ou não siginificados distintos consoante a entidade em causa.

Há quem defenda que os direitos fundamentais aplicam-se também às relações entre

particulares, nos mesmos moldes em que se aplicam às relações entre o particular e

o Estado93.

Por outro turno, Vieira de Andrade (1987) defende que a vinculação das

entidades privadas é menos intensa que a das entidades públicas, todavia o seu grau

de intensidade possa variar, dependendo das entidades em causa.94 As entidades

privadas que dispõem de um poder econômico ou social susceptível de conformar

aspectos relevantes da vida dos indivíduos são destinatárias dos direitos

fundamentais. Porém, as situações de poder social são muitas e diferenciadas e o

grau e a medida da aplicabilidade dos direitos fundamentais têm necessariamente de

90 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 166. 91 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53. 92 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Eficácia horizontal dos direitos fundamentais na relação de emprego. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, n. 17, 33-45, jan./jun. 2011. 93 CANOTILHO, JJ. Gomes . Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1288. 94 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 270-271, abr-jun; 1987.

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variar conforme os tipos de situações e as circunstâncias que só em concreto podem,

em última análise, ser determinadas. Desse modo, não se pode tratar da mesma

maneira a relação de poder que existe dentro da família entre menores e pais e aquela

que liga um empregador a um empregado numa empresa. Um exemplo prático de

violação de direitos fundamentais seria o das closed-shops, em que os empregadores

se obrigam a não admitir e até, por vezes, a despedir trabalhadores não inscritos num

determinado sindicato. Essa era uma prática frequente na Grã-Bretanha, várias vezes

condenada no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.95

É preciso ter em mente que se trata de uma intensidade menor do que a em

face das entidades públicas, pela necessidade de coordenar a vinculação dos direitos

fundamentais com os princípios básicos do Direito Privado. Contudo, um aspecto que

não oferece dúvidas é quando há uma relação de poder, como nos casos das relações

de emprego. Quando, no caso concreto, está em causa uma relação de desigualdade,

a doutrina é unânime em afirmar que, relativamente a essas entidades privadas, se

verifica uma vinculação quase similar à do Estado.96

Importante frisar que, em alguns casos, será fundamental distinguir relações

típicas entre particulares (entre iguais) e relações em que os privados envolvidos

estão em níveis substancialmente distintos, de modo que um deles possa, em

consequência de uma preeminência de partida, afetar substancialmente as condições

de liberdade e autonomia.97

Concluindo, ao falar da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais,

englobam-se, na mesma expressão, duas modalidades de vinculação distintas. A

primeira vinculação, a título principal, cabe às entidades privadas dotadas de poder e

pela qual estas se encontram obrigadas a um dever ativo de cooperação com os

particulares que, em face delas, podem fazer valer de direitos fundamentais. A

segunda vinculação, a título secundário, que cabe a todo e qualquer indivíduo, é a de

respeitar um direito fundamental reconhecido a um terceiro em face do poder e cujo

reflexo, nas relações interprivadas, é esse dever geral de respeito.98 No primeiro caso,

95 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 263-264. 96 DA SILVA, Vasco, Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 271, abr.-jun.1987. 97 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105-106. 98 O Professor Vasco Pereira da Silva menciona que a vinculação das entidades privadas pelos direitos fundamentais pode assumir a forma de uma eficácia horizontal, quando são

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a vinculação obriga a um dever ativo de cooperação; no segundo caso, a vinculação

apenas obriga a um dever geral de respeito.99

Vale ainda mencionar que, diferentemente das relações entre o Estado e os

cidadãos, em que aquele somente é sujeito passivo dos direitos fundamentais, nas

relações entre particulares, mesmo que grandes corporações, ambos são titulares de

direitos fundamentais.100 Por isso, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações

privadas não pode ter a mesma eficácia da aplicação dos direitos fundamentais que

nas relações entre os particulares e o Estado e, deve, portanto, ser aplicada cum

grano salis.

É corriqueira a afirmação de que certos direitos fundamentais somente são

dirigidos ao Estado enquanto outros seriam somente dirigidos aos particulares. A

resposta à afirmação acima, com o mínimo de cientificidade, conforme será

demonstrado no decorrer deste trabalho, só é possível se considerar os direitos

fundamentais de forma geral, pois, de outro modo, deixará sempre ao critério do

intérprete o tipo de direito fundamental, se dirigido ao Estado ou ao particular, e da

seleção da teoria a aplicar ao caso, “justificando, dessa forma, uma resposta que,

afinal, já estava encontrada”.101

A dificuldade de saber se os direitos fundamentais produzem efeitos somente

nas relações entre os cidadãos e o Estado ou também nas relações indivíduo-

indivíduo foi apresentada e, durante muito tempo, quase que só debatida na esfera da

doutrina alemã. 102

A questão se os direitos fundamentais exercem influência nas relações

jurídicas entre particulares na Alemanha é tratada pelo nome de Drittwirkung der

Grundrechte e, ao que parece, foi Ipsen quem batizou o problema, conferindo-lhe o

entidades privadas poderosas destinatárias dos direitos fundamentais, ou pode assumir a forma de uma eficácia externa quando sujeitos privados apenas se encontram obrigados a um dever geral de respeito dum direito fundamental, constituído numa relação, relativamente, à qual são terceiros. (DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 272, abr-jun. 1987.). 99 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 272-273, abr-jun 1987. 100 Id. 101 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Coimbra Editora 2006, p. 70. 102 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun. 1987

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nome de eficácia externa dos direitos fundamentais.103 Apesar de haver, de modo

geral, consenso em relação aos efeitos dos direitos fundamentais nas relações de

Direito Privado, a terminologia usada para descrever esse fenômeno legal é um tanto

heterogênea. Os termos mais comuns pela Europa são: eficácia horizontal e eficácia

contra terceiro. Além disso, variações terminológicas são encontradas, como, por

exemplo, efeito reflexo (França e Países Baixos).104

A ideia de efeito externo dos direitos fundamentais inspira-se no Direito Civil,

especificamente no Direito das Obrigações. O conceito de que os direitos de crédito

continham uma eficácia simplesmente inter partes foi dando lugar à afirmação de que

esses direitos possuíam um duplo efeito. Um efeito interno apontado ao devedor e

fixando-lhe uma determinada prestação e um efeito externo, que consiste no dever

atribuído a todos os outros indivíduos de respeitar o direito do credor. Dessa forma,

enquanto o primeiro efeito constititui o cerne da própria relação obrigacional, o

segundo aparece como seu acessório, pois vincula terceiros a uma atitude negativa

de deferência ao direito estabelecido pelos titulares primários da relação creditícia.105

Adaptada essa ideia do efeito externo das obrigações para a esfera dos

direitos fundamentais, tem-se que os direitos fundamentais sujeitam, primacialmente,

o Estado, enquanto as entidades privadas se encontram na posição secundária de

não poder pôr em causa esses direitos.106

Ocorre que essa construção, para muitos autores, tem sido assinalada como

equivocada. Defendem que “não se trata de um efeito externo107 de uma relação

constituída entre o particular e o Estado, mas de saber se as normas de direitos

103 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun.1987. 104 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 11. 105 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 260, abr.-jun.1987. 106 VASCO, Pereira da Silva. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 259, abr.-jun.1987. 107 Segundo Vital Moreira e Gomes Canotinho, a denominação seria incorreta, uma vez que pressupõe o paradigma liberal assente na ideia das relações indivíduo-Estado. À face da Constituição da República Portuguesa, os particulares não são terceiros, nem constituem uma componente externa da eficácia direta dos direitos, liberdades e garantias. Nesse sentido, Vieira de Andrade defende que nas sociedades de massas não se justifica a concepção que “os direitos fundamentais não valem contra os sujeitos privados, são direitos que os indivíduos apenas podem opôr aos Estados, aos Poderes Públicos”.

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fundamentais, válidas nas relações individuo-Estado, podem ou não também valer nas

relações interindividuais.”108

Embora soubesse-se que os direitos fundamentais foram originariamente

concebidos na perspectiva vertical como direitos dos cidadãos contra o Estado, hoje,

a ideia que direitos fundamentais influenciam as relações horizontais entre partes

privadas tonou-se componente, inclusive, da “acquis commun”109 compartilhada pelos

ordenamentos jurídicos dos Estado-Membros da União Europeia. Contudo, a

aplicação dos direitos fundamentais em ações judiciais na esfera cível tem sido objeto

de críticas. De fato, a partir da visão estritamente “privatística”, alguém argumentaria

que importar as fundamentações dos direitos fundamentais para o Direito Privado

poderia solapar o rigor metodológico dos tradicionais métodos de aplicação e

interpretação das leis por conceitos vagos e temas filosóficos deduzidos das fontes

constitucionais. Além disso, há um argumento, a partir de uma pespectiva institucional,

de que a constitucionalização do Direito Privado gera o risco da criação do “governo

dos juízes”, o qual poderia minar a atuação do Parlamento eleito democraticamente.

Na mesma linha de pensamento, escolas doutrinárias na Alemanha têm

criticado a interferência da Corte Constitucional na esfera do Direito Civil,

reinvidicando que, dessa forma, haveria usurpação de competência que pertenceria

às cortes ordinárias. Apesar dessas vozes críticas, a análise empírica das leis por toda

União Europeia claramente mostra que os catálogos de direitos fundamentais

conservados nos Estados-Membros da União Europeia ou na Corte Europeia de

Direitos Humanos não definem somente direitos subjetivos individuais em face dos

Estados. Eles também constituem um objetivo sistema de valores permeando todo o

sistema legal, incluindo, especialmente, o Direito Privado. Noutras palavras, a questão

não é se os direitos fundamentais assumem ou não papel nos processos judiciais

cíveis, mas por que e como eles influenciam relações entre privados.110

O professor Mota Pinto (2005) advoga a possibilidade de que as normas

constitucionais, em especial as que consagram direitos fundamentais, têm eficácia

108 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 260, abr.-jun.de 1987. 109 Acervo comunitário que constitui a base comum de direitos e obrigações que vinculam todos os Estados-Membros que fazem parte da União Europeia. 110 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 10.

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não somente no domínio das relações indivíduo-Estado, mas também nas relações

entre particulares (relações jurídico-privadas), sobrepondo-se, por exemplo, à vontade

dos sujeitos privados nos seus acordos.111

Dessa forma, são agasalhados, nas relações entre privados, sobrepondo-se

às suas vontades, os princípios, exemplificativamente, a seguir: liberdade de

consciência, religião e culto; liberdade de expressão e informação; direito de escolha

de profissão ou gênero de trabalho; direito à vida; direito à integridade pessoal, moral

e física; direito à identidade pessoal; direito à liberdade e à segurança; direito a uma

correta utilização dos meios de informática; princípio da igualdade dos cidadãos, com

proibição de privilégio, benefício ou prejuízo em razão de ascendência, sexo, raça,

língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,

situação econômica ou condição social; direito de constituir família e contrair

casamento; e o reconhecimento da constituição e garantia da proteção familiar.112

Com a expressão eficácia horizontal dos direitos fundamentais, preferida na

Europa, pretendem seus defensores exprimir que os direitos fundamentais incidem

não somente na relações ditas verticais, indivíduo-Estado, como também nas relações

interprivadas. Uma crítica que recai sobre essa expressão e que também é dirigida à

expressão “eficácia externa” é que ao direcionar somente aos efeitos horizontais dos

direitos fundamentais, deixa de falar quanto à intensidade desses efeitos, bem como

quanto aos seus destinatários. Contudo, o emprego da expressão, sem granus salis,

poderia distorcer sua inteligência, desviando-se para um entendimento totalitário dos

direitos fundamentais. Isso porque “somar mais uma eficácia horizontal dos direitos

de liberdade à eficácia vertical antiga seria construir o instrumento para crucificar os

direitos fundamentais ao absolutismo ético, que é, afinal, o seu pior inimigo”.113

O professor Vasco Pereira da Silva (1987) faz uma distinção entre duas

modalidades de vinculação das entidades privadas: das entidades dotadas de poder

e a da eficácia externa. Utiliza essa expressão entidades privadas, pois, no seu

entender, seria a mais adequada para abarcar toda a vasta gama de intensidade de

efeitos dos direitos fundamentais em face dos sujeitos privados.

111 PINTO, Carlos Alberto da Mota.Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 74. 112 PINTO, Carlos Alberto da Mota.Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 74. 113 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun.1987.

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A vinculação das entidades privadas dotadas de poder

face às quais o particular poder fazer valer os seus direitos fundamentais, encontrando-se a entidade privada poderosa obrigada, não apenas respeitar, mas a colaborar com o particular para a plena realização desses direitos –

trata-se duma ‘eficácia horizontal’ dos direitos fundamentais114 (DA SILVA,

1987, p. 261).

A vinculação da eficácia externa dos direitos fundamentais, na qual todos os

indivíduos são meros terceiros, sujeitos a um dever geral de respeito, que ocorre na

relação interprivados em que não é possível estabelecer relações de poder, ou seja,

não podem estabelecer relações de direitos fundamentais, pois essas apenas valem

nas relações verticais, indivíduo-Estado ou, mais amplamente, nas relações indivíduo-

poder.115

O problema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas

passa também em saber qual a eficácia que essas normas constitucionais terão nessa

seara. Porém, uma primeira advertência que se deve ter em conta é a de que o

problema se dirige a todos os direitos fundamentais, incluindo os direitos fundamentais

que, presentes na Constituição, regulam, aparentemente e de forma quase exclusiva,

relações entre particulares, como, por exemplo, os relacionados à família, ao trabalho,

casamento, propriedade, educação. Isso porque há inclinação dos exegetas de

esquivarem-se às dificuldades por meio de diferenciação de soluções conforme o tipo

de direito fundamental em análise.116

Ora, se o Estado e os particulares são destinatários dos direitos fundamentais

e se os particulares não são destinatários desses direitos com a mesma intensidade

forte que é o Estado, já que tudo precisa de ponderação a ser realizada pelo Poder

Judiciário (teoria da eficácia imediata), há, bem da verdade, um risco da idêntica

fraqueza contagiar a força vinculativa da Constituição, isso é, sua força normativa.117

114 Ibid., p. 261. 115 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun.1987. 116 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70. 117 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora, 2006, p. 114.

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Insta, por fim, ressaltar que os direitos fundamentais nos países periféricos

como o Brasil são constantemente ameaçados e violados no âmbito das relações

privadas ante contextos sociais caracterizados por grave desigualdade social e

assimetria de poder. Assim, qualquer dúvida acerca da possibilidade de aplicação das

normas de direitos fundamentais nas relações jusprivatisticas é afastada, a priori,

principalmente quando se tem em mente que a eficácia horizontal dos direitos

fundamentais não se resume à vinculação dos particulares, abarcando a influência da

Constituição sobre as normas infraconstitucionais e sua aplicação pelos tribunais.118

119 Na realidade atual brasileira, “excluir as relações privadas do raio de incidência dos

direitos fundamentais importa em mutilar seriamente estes direitos, reduzindo a sua

capacidade de proteger e promover a dignidade da pessoa humana”.120

Assim, quando em certas situações em que haja ameaça ao indivíduo

proveniente de certas pessoas coletivas, grupos ou indivíduos (sindicatos,

associações partidos, relações de trabalho, situações de monopólio), faz-se

necessário proteger o indivíduo, não apenas em face do Estado, mas também em face

de entidades que detenham uma posição de domínio econômico ou social.

Necessário, contudo, que o indivíduo esteja diante de um poder de fato inequívoco.

Não será suficiente uma dependência subjetiva ou momentânea, salvo se essa

dependência determinar um vício de vontade para celebrar um negócio jurídico. 121

Assim, quando se está diante de situações de desequilíbrio negocial, a

intensidade com que o princípio da igualdade deve atuar varia em função de

118 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 122. 119 Não poderia deixar de mencionar que a doutrina brasileira, por todos, Ingo Sarlet, utiliza normas com sentidos extremamente largos para fundamentar a possibilidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, tais como dignidade da pessoa humana, concepções liberais de justiça social, comprometimento da ordem constitucional brasileira com os direitos sociais e princípio informador da ordem econômica brasileira. (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 123). Talvez os autores utilizem desse estratagema, pois a Constituição brasileira não possui regra expressa, diferentemente da Constituição portuguesa, que preveja a possibilidade de expandir a eficácia das normas de direitos fundamentais aos atores privados. 120 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 61, 2011. 121 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 269, 2011.

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elementos materiais fornecidos pelo caso concreto, de maneira que, quanto maior for

o desequilíbrio, tanto maior será a intensidade de aplicação daquele princípio. A

autonomia real da partes também deverá ser um critério a ser observado. Ao nível das

relações de emprego, por exemplo, a aplicação do princípio da igualdade deverá

variar consoante a dimensão da entidade contratante, o grau de necessidade, as

qualificações e habilitações do trabalhador. Num segundo momento, é a própria

conjuntura econômico-social subjacente à celebração do contrato que poderá

determinar uma maior ou menor necessidade de aplicação do princípio da

igualdade.122

122 MAC CRORIE, Benedita da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra: Edições Almedina, S.A. 2005, p. 57.

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4 TEORIAS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS –

VINCULAÇÃO DAS ENTIDADES PRIVADAS

Realça-se, prontamente, a divisão da doutrina por quatro teorias quanto à

eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivados: a tese da negativa da

eficácia com sua coirmã, a doutrina da state action norte-americana; a teoria da

eficácia imediata ou direta; a tese da eficácia mediata ou indireta; e a tese dos deveres

de proteção.

Por vários anos, o debate sobre a influência dos direitos fundamentais no

Direito Privado tem sido dominado pela dicotomia entre eficácia horizontal direta e

eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, isso é, tem lugar uma vexata

controvérsia, a de saber se a aplicação dos direitos fundamentais ocorre de maneira

imediata ou mediata.

A eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais defende que a

aplicação desses direitos dar-se-á por construções típicas do privado. Aconteceria

como que uma “recepção” dos direitos fundamentais pelo Direito Privado, seja pelas

leis de Direito Privado concretizadoras de direitos fundamentais, seja pelas cláusulas

gerais e conceitos jurídicos indeterminados, cujo conteúdo seria preenchido com as

normas constitucionais.123

A eficácia horizontal direta dos direitos fundamentais implica que a parte em

ação judicial cível poderia invocar diretamente um direito fundamental como

fundamento de um direito privado contra um terceiro privado. A partir dessa

pespectiva, direitos fundamentais são usados como fonte de obrigações através das

quais outras partes privadas estão diretamente limitadas. Em contrapartida, de acordo

com a doutrina do efeito horizontal indireto, direitos fundamentais não são utilizados

como fontes de obrigações, mas somente como fonte de inspiração para das regras

de Direito Privado. Consequentemente, eles influenciam as relações entre privados

apenas indiretamente, através da interpretação das cláusulas gerais e dos conceitos

jurídicos indeterminados, como vetores de orientação.124

123 MAC CRORIE, Benedita da Silva. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Coimbra: Edições Almedina, S.A. 2005, p. 266. 124 REDING, Viviane; ZOLL, Andrezej. Fundamental Rights and Private Law A Practical Tool for Judges. Zoll. Editado por Christoph Busch e Hans Schulte-Nölke. Osnabrück: European Legal Studies Institute. University of Osnabrück. 2012, p. 11.

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As diversas teorias da incidência dos direitos fundamentais nas relações

jurídicas privadas tentam fundamentar uma vinculação mais ou menos forte aos

direitos fundamentais por parte dos sujeitos de Direito Privado. O ponto de conexão

das considerações das teorias se funda não somente nas relações dos particulares

entre si, mas também na posição do legislador e do juiz cível. As doutrinas sobre a

eficácia dos direitos fundamentais frente a terceiros produzem sempre como resultado

determinar a medida da vinculação aos direitos fundamentais entre os particulares por

meio de uma legislação de Direito Privado que seja conforme aos direitos

fundamentais ou por meio de sentenças de jurisdição cível que sejam igualmente

conforme esses direitos.125

Ao se deparar com as diversas teorias que buscam explicar a eficácia

horizontal dos direitos fundamentais, surge a problemática sobre a denominação que

foi concebida a essas teorias. Para Christian Starck (2002), a eficácia horizontal dos

direitos fundamentais tem que “sofrer” as consequências das poucos adequadas

expressões – imediatas – e – mediatas – utlizadas para diferenciar seus efeitos.126

Parte da doutrina e o Tribunal Federal do Trabalho alemão aceitam a eficácia

imediata de certos direitos fundamentais concretos. Essa vinculação deriva da

característica dos direitos fundamentais como princípios jurídicos objetivos para todo

o ordenamento jurídico. Outra parte da doutrina dos direitos fundamentais sustenta

esse efeito no dever do Estado de garantir a autonomia privada dos indivíduos. Dessa

forma, o Estado tem que respeitar os direitos fundamentais por meio da regulação

jurídica, das sentenças judiciais e do cumprimento dessas sentenças quando no

âmbito do Direito Privado, isso é, de maneira mais ampla, seria a eficácia dos direitos

fundamentais interprivados sobre a legislação do Estado e sobre a jurisdição na seara

cível.127

A controvérsia acerca do princípio da igualdade evita a teoria da eficácia

imediata dos direitos fundamentais, pois o princípio geral da igualdade constitucional

normalmente não tem vigência no Direito Privado, uma vez que é um dever de

125 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 65-66, set./dez. 2002. 126 Ibid., p. 66. 127 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 66, set./dez. 2002.

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igualdade de trato dotado de validez geral no âmbito do Direito Privado. A autonomia

privada põe-se geralmente sobre o princípio da igualdade.

A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações

interprivados utiliza conceitos jurídicos abertos, que necessitam ser preenchidos, para

assim introduzir à interpretação das normas de Direito Privado os valores dos direitos

fundamentais. Dessa forma, se respeita o princípio da autonomia privada igualmente

protegido pela Constituição e que não pode ser sacrificado por outros direitos

fundamentais, especialmente pelo princípio da igualdade. A teoria exibida, a qual

aderiu o Tribunal Constitucional Federal alemão desde os anos 1950, se funda na

premissa de que o Direito Privado e a Constituição não estão lado a lado sem

relacionarem-se, mas, sim, que os direitos fundamentais, enquanto ordem objetiva de

valores, têm vigência em todos os âmbitos do ordenamento jurídico. Essa doutrina

não trata da questão de como os direitos fundamentais influem no Direito Civil, se não

há cláusulas gerais adequadas.128

As duas teorias não estão tão afastadas como parece num primeiro momento.

O fundador da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, Nipperdey,

discorria, acertadamente, de uma mudança de paradigma do significado dos direitos

fundamentais que a Alemanha havia experimentado com a nova Constituição de

Weimar. A Constituição não mais somente pronunciaria o estabelecimento da

organização do Estado. Nipperdey defendia que essa mudança de paradigma trouxe,

para os direitos fundamentais, a importante função de princípio imediatamente vigente

para o conjunto do ordenamento jurídico e, por consequência, também do Direito

Privado. Assim, há, nitidamente, uma especial influência dos direitos fundamentais na

legislação e na interpretação das cláusulas gerais do Direito Privado. Nipperdey

apregoou com transparência que a questão da eficácia dos direitos fundamentais não

se pode responder com um preceito de caráter geral, em direção a nenhuma das

teorias formuladas. E continua o doutrinador alemão: ao contrário, deve partir-se do

conteúdo específico, da essência e da função do direito fundamental concreto, mais

especificamente das proposições jurídicas particulares derivadas do direito

fundamental na sociedade atual. Essa visão do problema possibilita, mesmo como

128 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 67, set./dez. 2002.

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toda a insegurança dogmática, alcançar uma solução razoável para cada caso

concreto.129

O Tribunal Federal do Trabalho alemão não desistiu formalmente da adoção

da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Contudo, em

suas decisões, apreende-se a visão dos direitos fundamentais como expressão de

uma ordem geral de valores que têm validade no Direito Privado e que influem nas

cláusulas gerais deste. Essa visão se expressa na seguinte argumentação: o Tribunal

controla a situação jurídica num primeiro momento, nos moldes do Código Civil, e

pondera depois se a solução encontrada, conforme esse mesmo Código, está em

consonância com a ordem de valores dos direitos fundamentais. A doutrina da eficácia

mediata, que tem como seu maior exponente Dürig, não adota qualquer posição sobre

a influência dos direitos fundamentais na legislação. Advoga que existe, sim, uma

influência dos direitos fundamentais na interpretação da lei. Dürig defende a

autonomia do Direito Privado, que constitui em si mesmo uma expressão dos direitos

fundamentais. Portanto, se o Direito Privado codificado representa como tal uma

essencial garantia de igualdade e liberdade, ele não tem por que ser correto apenas

se estiver sob o manto dos direitos fundamentais.130

Não seria exagero afirmar que o constitucionalismo do Direito Privado no

mundo, em especial na Europa, alcançou o seu ápice na Alemanha através das

decisões do Tribunal Constitucional daquele país.131

Com maior ou menor consonância, a doutrina mundial tem dividido a eficácia

horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas em basicamente eficácia

direta e indireta. Porém, além desses dois modelos, a doutrina acrescentou outros

dois: o da negação da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privados

e o da "imputação das ações dos particulares ao Estado ou da equiparação dessas

ações a ações estatais”.132

129 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 68-69, set./dez. 2002. 130 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 66, set./dez. 2002. 131 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? v. 3, n. 2. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 132 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 53.

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Desde o famoso caso Lüth, que será analisado pormenorizadamente abaixo,

decidido pelo Tribunal Constitucional alemão há mais de 60 anos, os direitos

fundamentais consagrados na Constituição alemã não são considerados apenas nas

relações indivíduo-Estado, mas também como um "sistema objetivo de valores", que

orienta todo o ordenamento jurídico, direciona o legislador, os atos da administração

e as decisões judiciais.133

A consequência lógica é que os direitos fundamentais têm efeitos no Direito

Privado e a mais controvertida questão, que será analisada abaixo, é como esses

efeitos incidirão. Pode-se discutir como ocorre a aplicação, ou seja, a sua intensidade

e os termos da coordenação dos direitos fundamentais com os princípios de direito

privado. Há autores que defendem que, com pressupostos diversos e operando por

vias distintas, chega-se ao mesmo resultado prático, isso é, “falar de aplicação

mediata ou imediata é, bem dizer, questão de palavras ou de formulação”134. Existe a

necessidade de conjugação, a depender das especificidades do caso concreto, com

outros princípios constitucionais, principalmente o princípio da liberdade contratual.135

Impõe-se uma consideração diferenciadora para aplicar os direitos fundamentais entre

particulares, como, por exemplo, ocorre na existência de um poder privado de fato,

social ou econômico, (na maioria das relações de emprego em que há uma situação

de desigualdade).136

Contudo, o problema da aplicação dos direitos fundamentais de maneira

direta ou indireta passa por outra discussão. Isso porque o que se pretende realmente

questionar é a questão da conciliação dos preceitos de direito privado no âmbito do

Direito Constitucional e no âmbito do Direito Privado, como também,

simultaneamente, em ambos.137 É o que pretende explicar o professor Vasco Pereira

da Silva quando trata da matéria e a disposto no artigo 18o da CRP:

133 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? v. 3, n. 2. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 134 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 79. 135 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 79. 136 CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1293. 137 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr-jun. 1987.

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A expressão do artigo 18.o n.1 da Constituição, aplicabilidade <directa> dos preceitos constitucionais referentes aos direitos, liberdades e garantias, só pode querer significar que esses preceitos não são um mero <flatus vocis>, mas que visam regular as concretas situações da vida, quer essa regulação se verifique através da mediação de normas ordinárias, quer se verifique imediatamente (na ausência de normas concretizadoras ou de conceitos gerais e indeterminados, ou quando estes, existindo, têm um âmbito de aplicação menor que o das normas constitucionais).138 (DA SILVA, 1987, p. 268).

A teoria dos deveres de proteção que mantém, pelos motivos consagrados

nos capítulos abaixo, a lógica do sistema, ou seja, preserva os direitos fundamentais

como garantia jurídica forte, transmite a ideia de uma especial vinculação do Estado

na direção de promover, através de um conjunto diverso de meios, que o gozo ou

exercício dos direitos fundamentais seja protegido de quaisquer ameaças, inclusive

ações de terceiros (entidades públicas ou privadas).139

138 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 268, abr-jun. 1987 139 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 100.

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5 TEORIA DA INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

RELAÇÕES PRIVADAS E A DOUTRINA DA “STATE ACTION”

A teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas,

resumidamente, assevera que não há possibilidade de conceber eficácia aos direitos

fundamentais nas relações privadas. O fundamento principal dessa posição é o de

que os direitos fundamentais surgiram para escudar os particulares contra os abusos

do Estado140 e que, ao permitir a eficácia dos direitos fundamentais nas relações

privadas, se estaria atacando excessivamente a esfera da autonomia privada dos

cidadãos. É a teoria que sobressai no Direito Constitucional norte-americano.

Os Estados Unidos e a doutrina majoritária desse país têm se mantido firmes

na tese liberal de que a Constituição é um limite à atuação dos Poderes Públicos. É

uma norma que tem como única finalidade a regulação das relações entre os

indivíduos e o Estado. Em consequência, os direitos reconhecidos nas sucessivas

emendas à Constituição original estadunidense somente vinculam o Estado e apenas

podem ser invocados na presença de uma ação estatal (state action).141

Contudo, o simples fato da existência de uma discussão que se prolonga por

mais de 50 anos não permitiria outra conclusão que não fosse a de que os direitos

fundamentais teriam alguma eficácia nas relações privadas, pois parece inaceitável a

recusa de qualquer eficácia dos direitos fundamentais nessas relações.142

A teoria da state action parte da premissa de que os direitos fundamentais,

elencados no Bill of Rights da Constituição daquele país, impõem limitações somente

para os Poderes Públicos e não nas relações entre particulares. A única exceção é da

13ª Emenda que proibiu a escravidão.143

140 ALEXANDRINO, José de Melo. O discurso dos direitos. José de Melo Alexandrino. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 357-378. 141 UBILLOS, Juan María Bilbao. Los derechos fundamentales en la frontera entre o público y lo privado (la noción de state action en la jurisprudência norteamericana). Madrid: McGraw-Hill, 1997, p. 15. 142 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 72. 143 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 63, 2011.

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Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime

whereof the party shall have been duly convicted, shall exist within the United States,

or any place subject to their jurisdiction.144 145

Para a defesa dessa teoria, que é tratada como um axioma pela doutrina e

jurisprudência norte-americana, as justificativas são a aplicação literal da Bill of Rights,

já que a redação de seu texto refere-se aos Poderes Públicos na maioria das cláusulas

definidoras de direitos fundamentais. Porém, a doutrina sustenta outros argumentos

na defesa dessa tese, dentre os principais, destacam-se a preocupação com a

autonomia privada e o reforço dos dois vetores principais da divisão organizacional da

estrutura de governo que a Constituição criou: o federalismo e a separação de

poderes.146

Laurence H. Tribe leciona a preocupação com a autonomia privada quando

menciona que:

...by exempting private action from the reach of the Constitution’s prohibitions, it stops the Constitution short of preempting individual liberty-of denying to individuals the freedom to make certain choices, such as choices of the persons with whom they will associate. Such freedom is basic under any conception of liberty, but it would be lost if individuals had to conform their conduct to the Constitution’s demands.147 148 (TRIBE, 1988, p. 1691).

144 Constitution of the United States – Amendment XIII, section 1. “Note: A portion of Article IV, section 2, of the Constitution was superseded by the 13th amendment” (ESTADOS UNIDOS. Constituição (1787). Constituição dos Estados Unidos da América. Disponível em: <http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution_amendments_11-27.html>. Acesso em: 09 set. 2016) 145 Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado. (tradução nossa). 146 Há vozes que discordam desse suposto axioma. Professor Charles Black’s assertion from over four decades ago still carries much weight: “[T]he ‘state action’ problem is the most importante problem in American law” (DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.1251, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016). 147 TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2. ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 1691. 148 Imunizando a ação privada do alcance das proibições constitucionais, impede-se que a Constituição atinja a liberdade individual – denegando aos indivíduos a liberdade de fazer certas escolhas, como as de com que pessoas se associar. Essa liberdade é básica dentro de qualquer concepção de liberdade, mas ela seria perdida se os indivíduos tivessem de conformar sua conduta às exigências constitucionais (tradução nossa).

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Em relação ao reforço do federalismo e da separação de poderes, a doutrina

afirma que, nos Estados Unidos, compete aos estados e não à União legislar sobre

Direito Privado, exceto quando o tema englobe o comércio interestadual ou

internacional. Portanto, a doutrina sustenta que a state action preserva a autonomia

dos estados, uma vez que inibe o Judiciário Federal, sob o suposto argumento de

aplicar a Constituição, de intrometer-se no âmbito das relações privadas.149

Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes fazem um passeio histórico pelo

nascimento da state action doctrine mencionando que esta inicia-se com os Civil

Rights Cases, julgados pela Suprema Corte norte-americana em 1883:

Em 1875, o Congresso Nacional norte-americano aprovara o Civil Rights Act, prevendo uma série de punições civis e penais contra a discriminação racial em locais e serviços acessíveis ao público, com fundamento na competência conferida pela 14ª Emenda à Constituição daquele país, a qual, logo após o fim da escravidão, obrigara os Estados a respeitarem os princípios da igualdade e do devido processo legal.150 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 64).

Porém, julgados da Suprema Corte norte-americana, apreciando cinco casos

de pessoas indiciadas por terem impedido o acesso de negros em hotéis, teatros e

trens, invalidaram o Civil Rights Act na raiz sob o argumento de que o Congresso não

tinha autoridade para promulgar legislação, regulamentando a discriminação racial

entre privados com força na 14ª Emenda à Constituição norte-americana.151 A União

somente tinha competência para editar normas proibindo as discriminações praticadas

pelos próprios estados, segundo a Constituição. As palavras do Juiz Bradley, da

Suprema Corte norte-americana no julgamento The Civil Rights Cases, 109 U.S. at 17

resume o entendimento dos oito juízes daquela corte que aderiram a esse

149 “By limint the scope of the rights which the Constitucion guarantees, the state action requirement limits the range of wrongs which the federal judiciary may right in the absence of congressional action, and thus creates a zone of action which, in the absence of valid congressional legislation, is reserved to the states unencumbered by the constraints of federal supremacy” (TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2. ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 1691). 150 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 64, 2011. 151 DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.. 1256, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016.

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entendimento: “civil rights, such as are guaranteed by the Constitution against State

aggression, cannot be impaired by the wrongful acts of individuals.”152 153

Duas premissas ficaram ajustadas nesses julgamentos. A primeira é que os

direitos fundamentais da Constituição norte-americana vinculam apenas o Estado e

não os privados. A segunda é a de que a seção 5 da 14ª Emenda à Constituição norte-

americana não confere ao Congresso poderes para regulamentar as condutas

individuais dos particulares, uma vez que essa competência é específica do legislador

estadual, conforme palavras do Juiz Bradley no julgamento The Civil Rights Cases,

109 U.S. at 13: “proceeded in deductive fashion to the conclusion that section 5 of the

Fourteenth Amendment confers no authority on Congress to regulate individual

conduct”154. A primeira das premissas conserva-se até hoje imexível, apesar da public

function theory ter amenizado essa inclinação. A segunda premissa, por sua vez:

Já foi revista pela jurisprudência, que admite atualmente a competência da União para legislar sobre direitos humanos mesmo quando nenhum ator estatal esteja envolvido, o que ocorreu com a promulgação de diversos diplomas na década de 60, na fase áurea do movimento em prol dos direitos civis nos EUA, dentre os quais se destaca o Civil Rights Act de 1964”.155 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 64).

A public function theory veio suavizar essa tendência, pois defende que uma

ação privada constitui uma ação do Estado se o privado atuar em funções tipicamente

reservadas ao Estado. A public function doctrine requer que o ator privado exercite

um poder reservado exclusivamente ao Estado. Assim, se pessoas privadas estão

envolvidas no exercício de funções do Estado, essas atividades estão sujeitas ao

mesmo tratamento de restrição constitucional que esse mesmo Estado. O Estado não

pode se eximir das limitações constitucionais nas operações de suas funções

governamentais apenas delegando certas atividades para o lado dos atores

152 DEVELOPMENTS In The Law State Action And The Public/Private Distinction. Harvard Law Review. Massachusetts, v. 123:148, p.. 1257, 2010. Disponível em: <http://www.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/pdfs/DEVO_10.pdf>. Acesso em: 3 mai. 2016 153 Os direitos civis, como os que são garantidos pela Constituição contra a agressão do Estado, não podem ser prejudicados pelos atos ilícitos dos indivíduos (tradução nossa). 154 Procedeu de forma dedutiva à conclusão de que a seção 5 da Décima Quarta Emenda não confere autoridade ao Congresso para regular a conduta individual (tradução nossa). 155 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 64, 2011.

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individuais. Ora, se os agentes privados assumem o papel do Estado se envolvendo

nessas atribuições governamentais, então estarão sujeitos à mesma limitação na suas

liberdades de ação que poderiam ser impostas ao próprio Estado.156

Porém, enquanto essa teoria é facilmente justificada, é muito difícil determinar

quais atividades devam ser definidas como funções públicas e submetidas às

limitações constitucionais.

É também verdade que, se uma pessoa privada desenvolver atividades que

poderiam ser desenvolvidas pelo Estado, não estará submetida às limitações que o

próprio Estado estaria. Isso porque, em teoria, o Estado poderia desenvolver qualquer

atividade. Assim, somente aquelas atividades ou funções que são tradicionalmente

associadas com o próprio Estado nacional e que são operacionalizas quase que

exclusivamente por entidades governamentais podem ser denominadas public

functions. Todavia, a operação do sistema de eleições, o controle de uma cidade ou

território e mesmo a operação do que é apararemente público, como, por exemplo,

um parque, são considerados public functions reguladas pela Constituição. Entretanto,

a mera operação de um negócio que poderia ser operado pelo Estado não pode ser

interpretado como public function por si só porque isso iria envolver uma determinação

com base na importância prática da atividade e não na sua relação como função do

Estado. Portanto, o poder do negócio desenvolvido, mesmo sendo de utilidade

pública, não é uma public function.157

O conceito de função pública teve origem na série de decisões relativas à

aplicabilidade das 14ª e 15ª Emendas à Constituição norte-americana nas eleições

primárias no Texas que excluíam a raça negra do escrutíneo.

Contudo, a utilização mais expressiva da aplicação da public function doutrine

foi a decisão do caso Marsh v. Alabama em 1946:

Discutia-se se uma empresa privada, que possuía terras no interior das quais se localizavam ruas, residências, estabelecimentos comerciais, etc., podia ou não proibir Testemunhas de Jeová de pregarem no interior da sua propriedade. A Suprema Corte declarou inválida tal proibição, pois ao manter uma “cidade privada” (private owned town), a empresa se equiparava ao

156 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul, 1992, p. 533. 157 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul, 1992, p. 534.

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Estado e se sujeitava à 1ª Emenda da Constituição norte-americana, que assegura a liberdade de culto.158 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 65).

O Direito Laboral também deu seu contributo nessa série de primeiras

decisões iniciais da public function doutrine. Trata-se do caso entre um sindicato e um

centro comercial em que a maioria dos membros da Suprema Corte norte-americana

garantiu que trabalhadores em greve tinham o direito de entrar na área do centro

comercial para realizar um piquete numa loja em face da qual tinham uma disputa

judicial. Esses juízes decidiram que o centro comercial tinha função equivalente à da

companhia que privatizou a cidade no caso Marsh (caso logo acima mencionado).

Assim, não havia necessidade de um contato mais próximo entre o centro comercial

e o Estado para estabelecer a aplicabilidade da Constituição naquele caso

concreto.159

Há, outrossim, outras possibilidades de vinculação horizontal dos direitos

fundamentais permitidas no Direito norte-americano, por exemplo, quando a ação

estatal é determinada na relação entre o Estado e o agente privado que afetou os

direitos fundamentais. Porém, vale ressaltar que não existe uma fórmula pré-

concebida para afirmar em qual medida a ligação entre o Estado e o agente privado

violador dos direitos fundamentais é suficiente para determinar que esse agente

estará sujeito às restrições da Constituição. A Suprema Corte vem destacando que

essa ligação somente pode ser aferível caso a caso para determinar se há ação do

Estado apta a justificar a aplicação da Constituição naquela relação privada: “sifting

facts and weighing circumstances”.160

O caso Shelley v. Kraemer constitui um relevante precedente nesta linha. Na hipótese, existia uma convenção privada vinculando os proprietários de vários imóveis de uma região, que os proibia de aliená-los a pessoas integrantes de minorais raciais. Apesar disso, o dono de um dos imóveis resolveu vendê-lo a um negro, contra o que se opuseram alguns dos demais coobrigados pela convenção, através do ajuizamento de uma ação. A questão chegou à Suprema Corte, que disse que se o Judiciário tutelasse o suposto direito dos autores com base na convenção, ele estaria emprestando a sua força e autoridade a uma discriminação contrária à Constituição. Por este artifício,

158 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 65, 2011. 159 ROTUNDA, Ronald D; NOWAK, John E. Treatise on Constitucional Law: substance and procedure. 2. ed. Minn: St. Paul,1992, p. 537. 160 Burton v. Wilmington Parking Authority, 365 U.S. 715, 722, 81 S.Ct. 856, 860, 6 L.Ed.2d 45 (1961).

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reconheceu-se a presença de state action no caso, para rejeitar a ação.161 (SARMENTO;GOMES, 2011, p. 65).

Insta mencionar que a própria doutrina norte-americana tece algumas críticas

à state action doctrine, pois defende que aplicar os direitos fundamentais nas condutas

privadas não significa dizer que toda conduta deva ter a mesma eficácia de aplicação

desses direitos que é exigida nas relações indivídio-Estado. Alega que o Judiciário

poderia aplicar os tradicionais direitos fundamentais para determinar se justificativas

razoáveis existem para validar a conduta do particular supostamente violadora de

direitos fundamentais. E, por fim, essencialmente, o Tribunal deveria sopesar os

direitos do suposto agressor e da suposta vítima e decidir adequadamente. Assim,

todas perguntas necessárias para a teoria da state action seriam desnecessárias,

restando como única pergunta se os direitos fundamentais da pessoa foram

injustificadamente atingidos.162

Os favoráveis à doutrina da state action trazem como argumentos principais

da sua manutenção, os seguintes: (a) advogam que se os pré-requisitos dessa

doutrina não existissem, quase todo crime ou delito seriam aparentemente uma

discussão de direitos fundamentais, ou seja, qualquer negativa de direito à vida,

liberdade ou propriedade seria, indiscutivelmente, ajuizavél com uma reclamação

constitucional, aumentando o custo do aparelho judicial para resolução desses

conflitos; (b) traria um indesejável aumento do poder do Judiciário se aos tribunais

fosse concebido o poder de reparar toda violação de direitos fundamentais, havendo

controle demasiado da sociedade norte-americana; (c) eliminar a doutrina da state

action não teria o impacto desejado porque os direitos podem ser rapidamente

eliminados pelos contratos privados. Assim, os direitos individuais podem ser

ajustados através de contratos, possibilitando que as pessoas renunciem o recente

ganho de proteção com aplicação direta dos direitos fundamentais.163 164

161 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 65, 2011. 162 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 551, 1985. Disponível em: <http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016. 163 Porém, a doutrina ressalta que essa renúnica aos direitos fundamentais é inteiramente voluntária e que tenha um ganho de outro direito com esta renúncia. 164 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 553-554, 1985. Disponível em:

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Os direitos fundamentais de livre manifestação, privacidade e igualdade são

direitos individuais que devem ser protegidos de injusticáveis interferências. Porém,

isso não significa necessariamente que essa proteção deva vir da Constituição ou do

Judiciário. O Legislativo, seja o estadual ou o federal, pode proteger os direitos

fundamentais da interferência privada editando normas, como fez o Congresso norte-

americano no âmbito dos direitos civis (civil rights). O próprio Judiciário pode proteger

os direitos fundamentais pelo desenvolvimento de suas decisões na lógica da

common law. Portanto, quando a proteção trilha esse caminho, a aplicação direta da

Constituição é desnecessária e poderia ser descartada, não porque será aplicada a

state action doctrine, mas porque não haveria interferência nos direitos pela

sedimentação natural das decisões judiciais ou pelo próprio dever de obediência às

leis ordinárias.165

A aplicação (in)direta da Constituição é necessária somente se verificado que

as outras fontes de proteção não estão agindo adequadamente na proteção dos

direitos fundamentais.

Todavia, a proteção aos direitos fundamentais deve ser ampliada porque

reflete valores fundamentais que devem ser protegidos de interferências injustificáveis

de qualquer fonte, seja pública ou privada, independentemente de eventual aumento

do custo da movimentação da maquina judiciária. Pois, se o Estado foi criado para

proteger os direitos da pessoas, em consequência, é obrigação desse mesmo Estado

investir o que for necessário para permitir que essas pessoas reinvindiquem seus

direitos. Limitar a proteção constitucional para somente as ações estatais é prejudicial

porque permite privações dos direitos fundamentais e é completamente

desnecessária a manutenção da teoria da state action porque nada de valor será

perdido sem ela. Na realidade, o efeito do discarte dessa teoria é que a Constituição

seria vista como um código social moral, não apenas de condução do governo,

estabelecendo que nenhuma entidade, pública ou privada, poderia infrigir esses

direitos sem uma justificativa razoável.

<http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016. 165 CHEREMINKSY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review. Chicago, v. 80, nº 03, p. 550, 1995. Disponível em: <http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1709&context=faculty_scholarship>. Acesso em: 05 mai. 2016.

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Por fim, em que pesem as atenuações da jurisprudência norte-americana em

relação à aplicação da doutrina da state action, esta não confere uma proteção

minimamente suficiente aos direitos fundamentais, pois é inegável que as ameaças a

esses direitos não advêm somente do Estado, mas também de grupos, pessoas e

organizações privadas. A state action permanece sólida na jurisprudência norte-

americana, pois é consequência evidente dos ideais liberalistas que acompanharam

o nascimento dos Estados Unidos da América e permanecem no “radical

individualismo que caracteriza a Constituição e a cultura jurídica e social daquele

país".166 167

166 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66, 2011. 167 “Não obstante, pelo grande prestígio e influência do Direito Constitucional norte-americano, ela acabou sendo também adotada em outros países, como o Canadá. No Canadá, tal posição foi afirmada no precedente conhecido como Dolphin Delivery, julgado pela Suprema Corte do país em 1986” (SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66, 2011).

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6 EFICÁCIA IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

PRIVADAS

A teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas

defende que os direitos fundamentais podem ser invocados na díade indivíduo-

indivíduo com a mesma projeção da relação indivíduo-Estado, sem a necessidade da

intermediação do legislador por meio de atos específicos ou por meio de inserção de

cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

Essa teoria parte da premissa que o sistema de garantias deveria atuar frente

ao poder, seja público ou privado, o que reclamaria o “prolongamento da lógica própria

do Estado de Direito (a submissão do poder a regras e limites jurídicos para preservar

a liberdade) no âmbito das relações entre indivíduos e poderes privados” e, portanto,

aplicação dos direitos fundamentais como direitos subjetivos oponíveis a

particulares.168

Aceita a teoria da eficácia direta a muldimensionalidade das ameaças que

recaem sobre a liberdade e a autonomia individuais e enxerga a necessidade de

defendê-las em face de ameaças advindas de quem quer que seja, do público ao

privado.169

Nipperdey, Presidente do Tribunal do Trabalho alemão, defendia a tese que

os direitos fundamentais seriam aplicados não somente contra o Estado, mas

poderiam também ser aplicados nas relações entre privados, pelo menos quando os

casos envolvessem os mais importantes direitos fundamentais.170 Essa teoria também

está associada a Walter Leisner.171

Defendem os autores dessa corrente doutrinária que a aplicação dos direitos

fundamentais deverá ocorrer de forma imediata, com fundamento na unidade da

168 UBILLOS, Juan María Bilbao. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares. .Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, p. 250-266. 169 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra 2006, p. 80. 170 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? p. 5. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 171 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 166. A obra que Leisner retrata o assunto é Grundrechte und Privatrecht (1960).

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ordem jurídica e na força normativa da Constituição, que não permitem que o Direito

Privado possa constituir uma ilha à margem da Constituição.172

Quadra-Salcedo explica que:

(...) la obligacion de respectar los derechos fundamentales por los ciudadanos surge y emana directamente de la Constitucion y no solo de las normas de desarrollo de esta, no es por lo tanto un mero reflejo del ordenamiento que puede sufrir las alteraciones, modificaciones e supresiones que el legislador decida, sino que hay un nucleo esencial que se deduce directamente de la Constitucion y que se impone a todos los ciudadanos. 173 174 (QUADRA-SALCEDO, 1981, p.70).

A implicação dessa concepção é que certos direitos fundamentais poderiam

vincular os indivíduos ou grupos privados na mesma, ou quase mesma, maneira e

com a mesma extensão que vinculariam o Estado.

O artigo 5o, parágrafo primeiro, da CFb175 e o artigo 18o, número 1, da CRP176,

ao pronunciarem sobre aplicabilidade direta/imediata dos preceitos de direitos

fundamentais, parecem consagrar legislativamente a questão da aplicabilidade

imediata.

Um exemplo simplificará o entendimento dessa teoria. Suponha-se que um

grupo de trabalhadores resolva exercer seu direito fundamental de reunião e que o

empregador resolva perturbar ilegitimamente o exercício desse direito. Assim, caso

fosse o Estado que estivesse impedindo o exercício do direito de reunião, o grupo de

trabalhadores poderia invocar o direito fundamental de reunião em face do Estado.

Essa corrente doutrinária defende que esses trabalhadores podem invocar o direito

fundamental de reunião em face do empregador. Isso, é óbvio, se admitissem que não

existe dispositivo legal que proibisse a perturbação do direito à reunião.177

172 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 266, abr-jun.1987. 173 A obrigação de respeitar os direitos fundamentais pelos cidadãos surge e decorre directamente da Constituição e não apenas das normas decorrentes desta, portanto, não é apenas um reflexo do ordenamento que pode sofrer alterações, modificações e supressões que o legislador decidir, mas há um núcleo essencial que decorre diretamente da Constituição e imposta a todos os cidadãos. (tradução nossa). 174 QUADRA-SALCEDO, Tomás. El recurso de amparo y los derechos fundamentales en las relaciones entre particulares. Madrid: Civitas, 1981, p. 70. 175 § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 176 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 177 Exemplo modificado das páginas 86 e 87, tendo vista o objeto deste relatório, do livro SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.

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Portanto, o grupo de trabalhadores, para essa teoria, resolveria a violação da

mesma forma, caso a violação fosse perpetrada pelo Estado, ou seja, se socorrendo

do Poder Judiciário, alegando que o direito fundamental à reunião restou violado.178

Dessa forma, constata-se que, no âmbito da eficácia direta dos direitos

fundamentais nas relações privadas, a aplicação efetiva desses direitos passa pela

implementação por meio de um agente estatal, que, nesse caso, é o Poder Judiciário,

a quem cabe a solução da querela.179

Há um ponto de convergência entre as teorias da eficácia mediata ou indireta

dos direitos fundamentais e a da eficácia imediata ou direta: é o fato de ambas

atribuírem aos direitos fundamentais "eficácia operante em todo o ordenamento

jurídico” 180 e concederem aos direitos fundamentais uma dimensão subjetiva e

também uma objetiva.181

Por outro lado, a principal diferença entre o modelo adotado por Dürig – o da

eficácia indireta dos direitos fundamentais – e o modelo adotado por Nipperdey – o

da eficácia direta dos direitos fundamentais – é a necessidade ou desnecessidade da

intermediação legislativa para que o particular invoque aquele direito como se

subjetivo fosse.

Assim, para Dürig, necessitaria de uma porta de entrada para que um direito

fundamental fosse exercido, por exemplo, o artigo 9º da Consolidação das Leis do

Trabalho brasileira – "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo

de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente

Consolidação"182 – ou o artigo 51, inciso XV, do Código de Defesa do Consumidor

178 STERN, Klaus apud SILVA, Virgílio Afonso da., Das Staatsrecht der BundesrepublikDeutschland, III/1, §76, II, 1, p. 1.538, doutrina que: "...esse efeito absoluto dos direitos fundamentais faz com que sejam também desnecessárias 'artimanhas interpretativas' para aplicá-los em relações que não incluam o Estado como ator"'. (SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 87). Efeito absoluto dos direitos fundamentais quer dizer, na ótica de Nipperdey, o mesmo que aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às relações privadas e não que os direitos fundamentais são absolutos, ou seja, que não podem sofrer restrições. 179 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 126. 180 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 167. 181 Id. 182 BRASIL. Decreto-Lei n. 5452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, DF, 9 ago. 1943. Secção 1, p. 11937-11984.

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brasileiro – "são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas

ao fornecimento de produtos e serviços que: estejam em desacordo com o sistema de

proteção ao consumidor”183.

Por outro turno, a ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, da

forma defendida por Nipperdey, implica que o indivíduo tem o exercício do direito de

ação contra outro privado, para alcançar ou defender um direito, diretamente baseado

num direito fundamental que substitui uma regra aplicável de direito privado.

Portanto, Nipperdey tenta brotar uma nova análise da irradiação dos efeitos

dos direitos fundamentais, quebrando com a tese majoritária da eficácia indireta,

celebrizada no caso Lüth.184

O ponto primordial da diferença entre a teoria da eficácia horizontal mediata

dos direitos fundamentais e a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais

nas relações privadas reside na intermediação legislativa para que os direitos

fundamentais se irradiem nas relações jusprivatísticas. Explica-se: a eficácia indireta

dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do pressuposto que esses

direitos somente podem ser aplicados através da intermediação do legislador

infraconstitucional; enquanto que a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais

nas relações privadas defende que os direitos fundamentais podem ser invocados

sem a necessidade da intermediação do legislador por meio de atos específicos ou

por meio de inserção de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

Defende-se:

Uma eficácia não condicionada à mediação concretizadora dos Poderes Públicos, isto é, o conteúdo, a forma, e o alcance da eficácia jurídica não dependem de regulações legislativas específicas nem de interpretação e de aplicações judiciais, conforme aos direitos fundamentais, de textos de normas

183 BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /Leis/L8078.htm>. Aceeso em: 16 abr. 2017. 184 Nas palavras de Nipperday: "Na verdade, o ordenamento jurídico é uma unidade; todo o direito somente é válido com base na constituição e dentro dos limites por ela impostos. Também o direito civil, sobretudo o código civil, somente é válido (...) desde que não contrarie a constituição. Para a validade dos direitos fundamentais como normas objetivas aplicáveis ao direito privado não é necessária nenhuma 'mediação', nenhum 'ponto de rompimento', que seriam, na opinião de Dürig, as cláusulas gerais (§§ 138, 826 e 242 do Código Civil alemão) (...). O efeito jurídico [dos direitos fundamentais no direito privado] é na verdade direto e normativo e modifica as normas de direito privado existentes (...)" (SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 90).

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imperativas de direito privado, de modo especial, daqueles portadores de cláusulas gerais”.185 (STEINMETZ, 2004, p. 167).

E mais, a tese da eficácia horizontal direta ou imediata dos direitos

fundamentais vai além daquela preconizada na teoria da eficácia mediata na sua

versão que admite a eficácia horizontal dos direitos fundamentais quando há

desigualdade fática ou “relação desigual de poder”186, pois defende que os direitos

fundamentais são posições jurídicas fundadas na Constituição também nas relações

interprivados.

A jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho acolheu a tese da eficácia

da teoria imediata, provavelmente, influenciada pelas ideias de Nipperday, seu

Presidente, quando decidiu um conflito laboral trazido ao Tribunal referido. O caso

retratava o direito à igualdade salarial entre homens e mulheres na Alemanha, uma

vez que não havia normatização específica na legislação laboral.187 Ao decidir pela

eficácia direta do direito fundamental à de igualdade preconizado no art. 3º da Lei

Fundamental, influenciou de modo determinante a jurisprudencia que aquela Corte

por um certo período adotaria.188

Parte da doutrina alemã – e aqui destaca-se Christian Starck – advoga a tese

que alguns direitos fundamentais da Lei Fundamental da República Federal da

Alemanha excepcionam e comprovam a regra geral de aplicação direita dos direitos

fundamentais somente frente ao Estado. Portanto, para referido autor, alguns direitos

fundamentais da Lei Fundamental (LF) alemã garantem ou concedem não somente

direitos de defesa frente ao Estado, mas também em face dos particulares através,

por exemplo, da proteção de filiação a sindicatos (art. 9.3, alínea 3, da LF):189

É garantido a todas as pessoas e profissões o direito de constituir associações destinadas a defender e melhorar as condições econômicas e de trabalho. Consideram-se nulos os ajustes tendentes a restringir ou a impedir esse direito, bem como ilegais as medidas com esse fim. Medidas segundo os artigos 12a, 35 §2, 35 §3, 87a §4 e artigo 91 não podem ser orientadas contra conflitos de trabalho, levados a cabo por associações no

185 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 167. 186 Ibid., 150. 187 A Constituição Federal brasileira consagra a matéria no art. 7º, XXX. 188 ALEMANHA BAG (Bundesarbeitsgericht – Tribunal Federal do Trabalho) 1, 185. Disponível em:<http://www.bundesarbeitsgericht.de/>. Acesso em: 23 jul. 20015. 189 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 71, set./dez. 2002.

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sentido da primeira frase, para a defesa e melhoria das condições econômicas e de trabalho. (art. 9.3, alínea 3, da LF)190

A teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais possui três

variações 191 : a) uma que admite que os direitos fundamentais operam eficácia

absoluta nas relações interprivados. É a posição de Nipperdey; b) outra que defende

que os direitos fundamentais somente operam sua eficácia irradiante aos particulares

quando de um dos lados das relações está um particular com nítido poder de

ascensão, seja econômico ou social, colocando o outro em posição de sujeição; c)

finalmente, a última variação da eficácia imediata horizontal dos direitos fundamentais

advoga a tese que os direitos fundamentais têm aplicação imediata nas relações

jusprivatísticas, então o problema é de colisão de direitos fundamentais e, dessa

forma, deve ser resolvido através do princípio da proporcionalidade em sentido estrito

(ponderação). A própria natureza jurídica das normas de direitos fundamentais

apresenta a ponderação como forma de solução dos conflitos normativos que os

envolve.192

Essa última variante é a adotada por um dos expoentes em matéria de direitos

fundamentais no Brasil, o Professor Ingo Sarlet (2007), que, em linhas gerais, defende

uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais nas relações jusprivatísticas,

ou seja, podem e devem, em princípio, ser retirados efeitos jurídicos diretamente das

normas de direitos fundamentais também nas relações entre privados, mesmo que

não exista ou seja insuficiente a legislação infraconstitucional.

Nas palavras do autor:

Que somente as circunstâncias de cada caso concreto, as peculiaridades de cada direito fundamental e do âmbito de proteção, as disposições legais

190 ALEMANHA. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949. Principal instrumento normativo da Alemanha. Berlim, 2011. Disponível em: <https://www.btgbestellservice.de/pdf/80208000.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016. 191 Insta mencionar, que o autor alemão Jörg Neuner advoga a tese alternativa que o conteúdo da dignidade da pessoa humana ou seu núcleo essencial vinculam diretamente os particulares tendo como fulcro o artigo 1º, III, da Lei Fundamental alemã. (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.).Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comprado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 132). 192 FRAGOSO, Andréa Barroso Silva de. A norma da proporcionalidade: algumas controvérsias doutrinárias. In: DUARTE, David; SARLET, Ingo; BRANDÃO, Paulo de Tarso. (Orgs.). Ponderação e Proporcionalidade no Estado Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, p. 261-306.

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vigentes e a observância dos métodos de interpretação e solução de conflitos entre direitos fundamentais (como é o caso da proporcionalidade e da concordância prática) podem assegurar uma solução constitucionalmente adequada...193 (SARLET, 2007, p. 132-133)

Na seara laboral, levando-se em conta a natural projeção do empregador

sobre o agir profissional do empregado, bem como a correspondente obediência do

empregado ao poder de mando do empregador não somente durante a execução de

suas atividades, como também (e principalmente) no momento de admissão quando,

via de regra, o indivíduo está ansioso por conquistar uma vaga no mercado de trabalho

na tentativa de sobreviver dignamente, tem levado parte da doutrina a defender a tese

da eficácia imediata dos direitos fundamentais nessas relações.194

Nas relações privadas de poder pode-se validar um tratamento distinto

daquele em que os privados estão em pé de igualdade, no sentido de uma aplicação

imediata de certos preceitos constitucionais.195

Todavia, a tese da eficácia imediata não fortalece os direitos fundamentais,

pelo contrário, enfraquece-os. Por quê?

Na Alemanha, os constitucionalistas defendiam que a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações privadas ocorreria de forma mediata, de forma indireta,

através da lei, diferentemente da relações indivíduo-Estado, em que os direitos

fundamentais eram aplicados de forma imediata. Por que os constitucionalistas agiam

dessa forma? Não era por causa da desconfiança nos direitos fundamentais, mas um

problema de efetividade, ou seja, se se quer levar os direitos fundamentais a sério,

eles têm quer ser garantias jurídicas fortes que podem limitar o Estado, por isso, eram

aplicados de forma imediata na relação indivíduo-Estado. Assim, para o Estado limitar

um direito fundamental, deve possuir uma justificação forte e, mesmo quando tem

essa justificativa forte, é preciso respeitar os princípios auxiliares da igualdade,

proporcionalidade e segurança jurídica. E por que os direitos fundamentais não podem

ser aplicados às relações jusprivatísticas da mesma forma que ao Estado? Simples,

193 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.).Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comprado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p.132-133. 194 WOLFGANG, Ingo. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 13-16. 195 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 106.

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porque nos dois lados da relação entre particulares, há direitos fundamentais

escudando cada um dos lados, o que não ocorre na relação indivíduo-Estado, em que

somente um dos lados da relação é sujeito ativo dos direitos fundamentais enquanto

o outro é destinatário desses mesmos direitos.196

Portanto, nas relações privadas, ou levamos o direito fundamental de um lado

a sério ou levamos o direito fundamental do outro a sério, como garantia jurídica forte.

Senão os direitos fundamentais transmudariam a uma referência fraca, meramente

retórica.197

A teoria da eficácia direta começa a fraquejar no âmbito da relações de

emprego quando da aplicação do princípio da igualdade, pois os particulares e os

poderes privados impendem sobre a liberdade individual, ameaça ou lesão a direitos

que são decorrência daquele princípio, como as discriminações, o tratamento

inigualitário, o desfavorecimento arbitrário, os prinvilégios injustificados, a perseguição

ou o assédio em função de raça, sexo, orientação sexual, território de origem,

ideologia ou religião. O princípio da igualdade é um princípio estruturante nos Estados

de Direito e está na gênese de toda a racionalidade e estruturação do Estado

constitucional.198

Um exemplo trará claridade do porquê da inconsistência prática da teoria da

eficácia imediata dos direitos fundamentais. Num concurso público, um canditado não

é admitido pelo simples fato de sua orientação sexual. Ora, aqui, o Estado violou o

princípio da igualdade, cometendo uma inconstitucionalidade por violação do princípio

da igualdade ou do direito a tratamento não discriminatório. Ao contrário do que

querem fazer crer os defensores da teoria direta, não violou “somente um pouquinho”

o princípio da igualdade, conforme a distinção dworkiniana ou alexiana entre normas-

regras e normas princípios.199

196 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 197 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 198 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 95. 199 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-97.

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Se fosse-se aplicar os direitos fundamentais de forma imediata como direitos

subjetivos da forma propagada pela teoria da eficácia direta, ter-se-iam mais

problemas que soluções quando da aplicação dos direitos fundamentais. Suponha-

se, na mesma linha de raciocínio acima, que um particular fizesse uma festa privada

e, por razões quaisquer, não admitisse a entrada de pessoas com orientação sexual

diversa da sua. Por que motivo não haveria violação do princípio da igualdade, já que

a teoria da eficácia imediata propugna a aplicação dos direitos fundamentais nas

relações privadas com a mesma força que nas relações indivíduo-Estado? A resposta

é simples, mas a teoria da eficácia imediata não consegue responder: somente não

há violação do princípio da igualdade, pois este tem com destinatário o Estado, que

deve garantir a aplicação desse princípio quando houve déficit; e não os particulares

são os destinatários.200

Ora, se a razão para justificar uma discriminação fosse o princípio da

autonomia privada “então a mesma razão valeria igualmente para diferenciar entre

Estado e particulares em termos de oponibilidade subjetiva dos direitos

fundamentais”201. Se o Estado admite alguém baseado na cor de sua pele ou por não

ser torcedor do time de futebol brasileiro Ceará Sporting Club, comete uma

inconstitucionalidade; porém, se uma família não contrata determinada pessoa sob as

mesmas condições, “a discriminação não é menos arbitrária, mas já não há qualquer

problema jurídico.”202

Então o princípio da igualdade não produziria quaisquer efeitos nas relações

entre particulares? O princípio da igualdade vale nas relações interprivados, porém

não enquanto imposição constitucional que lhes seja diretamente dirigida, como

queriam os adeptos da teoria da eficácia imediata. O princípio da igualdade, a igual

dignidade humana, o direito a um tratamento igual, a proibição de discriminação ou

diferenciações arbitrárias são princípios que vinculam estritamente o Estado. Assim,

cabe aos órgãos do Estado, o Legislativo num primeiro momento, a configuração

jurídica das relações interprivados em conformidade com aqueles princípios,

“prevenindo, impondo e reprimindo correspondente comportamento dos

200 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 97-98. 201 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-100. 202 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 96-100.

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particulares”203. Contudo, enquanto o Estado não agir no plano da legislação, os

particulares são livres, pois o princípio da igualdade não os limita direta e

juridicamente, mesmo sendo um dever geral de respeito.204

203 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 98. 204 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 98.

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7 A EFICÁCIA INDIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

JUSPRIVATÍSTICAS

A teoria da eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais foi criada e

desenvolvida na Alemanha, tendo como seu precursor Günther Dürig205, e é a teoria

melhor aceita pela doutrina e jurisprudência na Europa. Caracteriza-se com posição

mediadora entre a que meramente denega a vinculação dos particulares aos direitos

fundamentais e aquela que ampara a incidência direta desses direitos no âmbito

privado.

A eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas parte do

pressuposto que esses direitos somente podem ser aplicados através da

intermediação do legislador infraconstitucional. Assim, os valores constitucionais

seriam garantidos por normas imperativas ou através de cláusulas gerais ou conceitos

jurídicos e, quando ausente ou insuficiente a norma de direito privado, buscariam a

Constituição como fonte de interpretação.206 O legislador aqui terá a árdua tarefa de

delimitar o alcance das normas de direitos fundamentais que serão traduzidas em

normas de direito privado que acomodarão as relações entre particulares.207

Importante neste momento destacar que há variações da teoria da eficácia

mediata dos direitos fundamentais que, na realidade, se aproximam das teorias da

eficácia imediata e da teoria dos deveres de proteção.

A primeira variação, restritiva, tendo como seguidores García Torres e Cruz

Villalón, defende a ideia de que a eficácia das normas de direitos fundamentais estaria

condicionada a concretização legislativa.208 Assim, se o legislador não concretizou a

norma de direito fundamental no âmbito do Direito Privado, não há que se falar em

vinculação dos particulares.

A segunda variação, que se pode considerar moderada, advoga a tese de que

cabe ao legislador, preferencialmente, estabelecer os limites da eficácia dos direitos

fundamentais nas relações privadas, mas que, na ausência de concretização

205 DE LA CRUZ, Rafael Naranjo. Los limites de los derechos y fundamentales em las relaciones entre particulares: labuenafe. Madrid: CEPC, 2002. p. 169. 206 ABRANTES, José João Nunes. A Vinculacao das Entidades Privadas aos Direitos Fundamentais. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990. p. 38. 207 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros. 2004, p. 138. 208 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 149.

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legislativa, caberia ao juiz, utilizando-se de cláusulas gerais, preencher o conteúdo

com a força irradiante dos direitos fundamentais. Se isso não fosse possível, ou seja,

preencher o conteúdo das cláusulas gerais com o conteúdo irradiante dos direitos

fundamentais, mantendo-se a lógica do sistema, os direitos fundamentais não

vinculariam os particulares.209

A terceira variação, progressista, teria a mesma sequência lógica da segunda,

isso é, cabe ao legislador, preferencialmente, estabelecer os limites da eficácia dos

direitos fundamentais nas relações privadas, mas que, na ausência de concretização

legislativa, caberia ao juiz, utilizando-se de cláusulas gerais, preencher o conteúdo

com a força irradiante dos direitos fundamentais. Se isso não fosse possível,

excepcionalmente, seria admitida a eficácia direta ou imediata dos direitos

fundamentais nas relações em que houvesse evidente relação de desigualdade fática

ou “relação desigual de poder”210.

Na quarta e última variação, a quase imediata, quando não houver atividade

legislativa, tampouco a possibilidade de utilizar as cláusulas gerais,

independentemente da evidente relação fática de poder, as normas de direitos

fundamentais seriam aplicadas diretamente nas relações jusprivatísticas.211

Os direitos fundamentais, para a teoria da eficácia mediata, não podem ser

invocados pelos particulares como direitos subjetivos, “que possam ser invocados a

partir da Constituição”212, mas, sim, como normas objetivas de princípios.213

Essa corrente doutrinária também parte do princípio que, aos particulares, é

conferido o direito de liberdade geral para contratar, consagrado na maioria das

Constituições democráticas, e é esse mesmo direito que permite desviar a

aplicabilidade dos direitos fundamentais nessas relações.214 E mais, conforme Durig,

citado por Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes (2011), “a proteção

constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos

209 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p.149. 210 Ibid., p.150. 211 Id. 212 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 66-67, 2011. 213 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:Editora Malheiros, 2004, p. 138. 214 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 75.

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renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas que mantêm, o

que seria inadmissível nas relações travadas com o Poder Público”.215

Diferentemente do binômio indivíduo-Estado, em que as normas de direitos

fundamentais são aplicadas diretamente, no âmbito da relação indivíduo-indivíduo, o

princípio da liberdade geral de autodeterminação incide de maneira a frear o instinto

protetor dos direitos fundamentais. Se assim não fosse, cláusulas contratuais de

nosso cotidiano seriam consideradas nulas, a partida, pois violariam os direitos

fundamentais. É o que ocorreria com a cláusula que prevê a possibilidade do

proprietário de um imóvel (senhorio) de inspecioná-lo na constância do contrato de

locação (arredamento). Isso porque, em análise superficial, afronta o direito de

fundamental do inquilino à inviolabilidade de domicílio.

Há quem entenda que, nas relações entre iguais, e somente nestas, ou seja,

entre entes privados sem supremacia de poder de um sobre o outro, funcionará

plenamente a teoria da eficácia mediata, regendo, com toda sua plenitude, os

princípios da autonomia e da liberdade, que não devem ser afastados pela aplicação

direta dos direitos fundamentais. Eventuais colisões normativas devem ser resolvidas

por meio da aplicação das regras de direito privado e, na ausência, através de

cláusulas gerais.216

Contudo, os direitos de liberdade e de autonomia não são absolutos, pois, se

assim fossem, o Direito Privado e os direitos fundamentais estariam separados

totalmente.217 E mais, o papel dos Tribunais Constitucionais (Supremos Tribunais)

estaria esvaziado, já que não ocorreria violação a direito no âmbito dos direitos

fundamentais e sim no âmbito do Direito Privado, que seria solucionado pelos

Tribunais comuns e não pelo Tribunal mais afeto a decidir questões de natureza

constitucional.

Assim, para harmonizar os direitos fundamentais com o Direito Privado, a

doutrina que propugna a eficácia horizontal mediata dos direitos fundamentais propõe

215 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 67, 2011. 216 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed.Cascais: Princípia, 2011, p. 106. 217 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76.

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que o Direito Privado seja irradiado por um sistema de valores218 através de cláusulas

gerais.219 220

Portanto, através de cláusulas gerais221, o idealizador da teoria da eficácia

mediata dos direitos fundamentais nas relações jusprivatísticas, Dürig, fundamenta

que os direitos fundamentais se irradiam no Direito Privado, mantendo a

independência dos sistemas, mas correlacionando-os.222 Dar-se-ia a “recepção” dos

direitos fundamentais pelo Direito Privado, que é justificada pela necessidade de

interligação daqueles direitos com os direitos subjetivos privados, peocupando-se com

as especificidades das relações interprivadas.223 Isso porque a aplicação direta dos

direitos fundamentais, como se direitos subjetivos fossem, poderia sufocar a vida

jurídica privada, pois poderia ocorrer uma sobreposição, por exemplo, do princípio da

igualdade à liberdade contratual, dificultando o comércio jurídico. Poderia acontecer,

ainda, que a liberdade de expressão preponderasse sobre o dever de segredo,

imposto pelo dever de cooperação, seja nas relações típicas de direito civil como

também nas relações de emprego em que há contratos de confidencialidade, ou seja,

218 Explica Virgílio Afonso da Silva que os direitos fundamentais deixaram de ser apenas direitos exigíveis em face do Estado, seja negativamente ou positivamnete, para expressar um sistema de valores para todo o ordenamento jurídico. (SILVA, Virgilio Afonso da.A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76). 219 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 76. 220 São exemplos de cláusulas gerais no direito laboral brasileiro os artigos 425 e 483, “a", da CLT. Art. 425 - Os empregadores de menores de 18 (dezoito) anos são obrigados a velar pela observância, nos seus estabelecimentos ou empresas, dos bons costumes e da decência pública, bem como das regras da segurança e da medicina do trabalho. Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato... (BRASIL. Decreto-Lei n. 5452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [dos] Estados Unidos do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, DF, 9 ago. 1943. Secção 1, p. 11937-11984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.) 221“…as cláusulas gerais são havidas como recurso interpretativo-aplicativo, que o legislador põe à disposição do juiz, para a restrição, in concreto, da autonomia privada e do exercício de direitos ou interesses subjetivos legais” (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo:Editora Malheiros, 2004, p. 147). 222 Um exemplo de aplicação de cláusulas gerais seria aquela que o Judiciário entendesse que há abuso de direito no caso de um empregador que deixasse de contratar um particular por motivo de orientação sexual. 223 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 261, abr.-jun. 1987.

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durante o contrato de trabalho e mesmo após o empregado não pode divulgar dados

confidenciais obtidos em seu emprego.224 Busca-se, com isso, com a atenuação,

evitar a rigidez, inautenticidade e o irrealismo da vida jurídica privada caso

aplicassem-se os direitos fundamentais de maneira não coordenada com as normas

de direito privado.225

Além das vantagens já expostas acima, de preservação da autonomia privada

e de assegurar a autonomia do Direito Privado, a eficácia mediata ou indireta dos

direitos fundamentais é a teoria que melhor traduz o postulado da certeza jurídica,

pois as normas de direito privado apresentam um grau maior de especificidade do que

as normas de direitos fundamentais que apresentam, geralmente, conteúdo vago. E

mais, essa teoria evita que tudo se transforme em problema de direitos fundamentais,

ou seja, evita a "panconstitucionalização" do ordenamento jurídico, com a

consequente sobrecarga da Jurisdição Constitucional.226

O chamado caso Lüth, 1950, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, foi

pioneiro na aplicação da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações

privadas.

Erich Lüth, presidente de uma associação de imprensa de Hamburgo, na Alemanha, em uma conferência na presença de diversos produtores e distribuidores de filmes para cinema, defendeu um boicote ao filme UnsterblicheGeliebte (Amantes imortais), do diretor VeitHarlan, que, na época do regime nazista, havia dirigido filmes anti-semitas e de cunho propagandístico para o regime em vigor. Diante disso, o produtor do filme ajuizou ação, considerada procedente pelas instâncias inferiores, contra Lüth no intuito de exigir indenização e proibi-lo de continuar defendendo tal boicote, com base no § 826 do Código Civil Alemão, segundo o qual "aquele que, de forma contrária aos bons costumes, causa prejuízo a outrem, fica obrigado a indenizá-lo". Em face do resultado, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional, que anulou as decisões inferiores, sustentando que elas feriam a livre manifestação do pensamento de Lüth. Mas a decisão não se fundou em uma aplicabilidade direta do direito à manifestação do pensamento ao caso concreto, mas em uma exigência de interpretação do próprio § 826 do Código Civil alemão, especialmente do conceito de bons costumes, pois, segundo o Tribunal, “toda [disposição de direito privado] deve ser interpretada sob a luz dos direitos fundamentais”227 (SILVA, 2011, p. 80

224 DA SILVA, Vasco Pereira. A vinculação das entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias. Revista de Direito e de Estudos Sociais, Coimbra, n. 2, p. 266, abr.-jun. 1987. 225 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 76. 226 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 138. 227 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 80.

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O ponto de partida da decisão do caso Lüth foi que a Constituição contém um

"sistema objetivo de valores" para todo ordenamento jurídico, o que inclui, por óbvio,

o Direito Privado, influenciado por esses mesmos valores. Para a doutrina da eficácia

mediata dos direitos fundamentais interprivados, as regras de direito privado não

podem chocar-se com o "sistema objetivo de valores" que irradiam da própria

Constituição e, portanto, todas as regras de direito privado devem ser construídas

para dar efetividade a esse sistema. Os valores consagrados na Constituição são os

mesmos para todo ordenamento jurídico e, dessa forma, devem ser prestigiados tanto

nas relações indivíduo-Estado como também nas relações jusprivatísticas. Esse

sistema de valores permeia o Estado e a sociedade, o público e o privado, seja lá

onde a linha que divide os dois esteja.228

Essa decisão foi o ponto de partida para pelo menos duas mudanças de

pensamento constitucional após a Segunda Guerra Mundial. Primeiro, com a

admissão de aplicar horizontalmente os direitos fundamentais, afastando a ideia,

vigente à época, que os direitos fundamentais somente tinham protagonismo da díade

indivíduo-Estado. A segunda, não menos importante, foi a possibilidade dos juízes

utilizarem o sistema de judicial balancing – sopesamento de interesses – para

fundamentar suas decisões.229

228 CHEREDNYCHENKO, Olha O. Fundamental rights and private law: A relationship of subordination or complementarity? p. 4. Disponível em: <http://www.utrechtlawreview.org/>. Acesso em: 17 mar. 2014. 229The Lüth decision can be seen as a foundational moment for at least two transformative Post-War developments in constitutional thinking that continue to influence legal systems around the world. The judgment, first of all, stands at the origin of the phenomenal spread in the acceptance of doctrines on the ‘horizontal effect’ of constitutional norms. With its principled and affirmative answer to “the fundamental question of whether Constitutional norms affect private law”, the FCC set in motion an expansion of the sphere of influence of rights that has rippled through countries as diverse as South Africa and Canada, and that has arguably culminated in last year’s decision of the Court of Justice of the European Communities on the ‘horizontal effect’ of Community rules on freedom of movement. Secondly, and, if possible, even more importantly, the Lüth decision can be regarded as the foundation of what has come to be called the ‘Postwar Paradigm’ of constitutional rights adjudication. With Lüth – and with the Apotheken decision of a few months later – a movement began on the part of increasing numbers of courts around the world to adopt the language of judicial balancing to justify their decisions on constitutional rights.(BOMHOFF, Jacco. Luth’s 50th Anniversary: Some Comparative Observations on the German Foundations of Judicial Balancing. Revista GERMAN LAW JOURNAL, v. 9, n. 2, p. 121-124. Disponível em: <http://www.germanlawjournal.com/pdfs/Vol09No02/PDF_Vol_09_No_02_121-124_Articles_Bomhoff.pdf> Acesso em: 14 mar. 2014).

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Destaca-se, outrossim, que a importância da decisão do Tribunal

Constitucional alemão é primordial, pois, caso a matéria não tivesse sido apreciada à

luz dos direitos fundamentais, admitida pelo pioneirismo da aplicação dos direitos

fundamentais nas relações privadas, o resultado seria totalmente diverso, para não

dizer equivocado. Isso porque os tribunais inferiores decidiram que o Sr. Lüth não

poderia tentar boicotar o filme e que teria que pagar indenização a Veit Harlan (diretor

do filme) por esse fato. Assim, o direito fundamental do senhor Lüth de liberdade de

expressão estaria violado, o que, em última análise, violaria a própria Constituição, se

não fosse a mão firme do Tribunal Constitucional alemão em premiar a efetivação dos

direitos fundamentais, colocando-os em lugar de destaque no âmbito das decisões

judiciais.

Portanto, a decisão do Tribunal Constitucional alemão determinou que o § 836

do Código Civil alemão seria uma fonte por onde os direitos fundamentais se

irradiariam nas relações jusprivatísticas. E mais, as decisões judiciais e relações

jurídicas entre privados que não observassem os direitos fundamentais e/ou não

interpretassem os bons costumes à luz desses mesmos direitos seriam fulminadas

por nulidade.230

Insta frisar, por fim, que teoria da eficácia mediata conserva a lógica que os

direitos fundamentais devem manter sua característica de proteção de todos os

cidadãos, pois, caso assim não fosse, os cidadãos viriam os direitos fundamentais e,

em última analise, a Constituição, como seus inimigos e não como trunfos que

poderiam dispor. Esse pensamento vai ao encontro do que Korand Hesse (1995)

pensa sobre a teoria da eficácia mediata: “…em um conflito jurídico entre privados

todos os interessados gozam da proteção dos direitos fundamentais, enquanto que

na relação do cidadão com o Estado tal tutela não corresponde ao Poder Público”.231

Portanto, se os direitos fundamentais incidissem nas relações privadas com a

mesma intensidade que incidem nas relações indivíduo-Estado, os indivíduos

começariam a vislumbrar os direitos fundamentais não mais com a finalidade precípua

de proteção, mas, sim, como uma ameaça constante. “Os direitos fundamentais

transformavam-se, assim, de direitos contra o Estado em deveres de todos contra

230 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 80-81. 231 HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Traduzido por Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Civitas, 1995, p. 60. Título original: VerfassungsrechtundPrivatrecht, 1988.

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todos e os particulares, de titulares de direitos, em titulares de deveres

fundamentais”.232

Há um ponto em que as teorias da eficácia mediata e a teoria da eficácia

imediata são diametralmente opostas. Seria o caso em que não há lei que

especificamente regule a situação e a interpretação conforme a Constituição seja

improdutiva ou insuficiente. Nesse caso, a tese da eficácia mediata rejeitará qualquer

efeito adicional produzido pelos direitos fundamentais com base nas normas

constitucionais; enquanto que a teoria da eficácia direita ou imediata empregará “o

direito fundamental constitucional consagrado na sua dimensão de vinculatividade

jurídica mais ambiciosa, isso é, na qualidade de direito subjetivo oponível a outros

particulares.” 233

Uma crítica que recai sobre a teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos

fundamentais é aquela que afirma que as cláusulas gerais, como a boa-fé, não

suportarão dar refúgio a todas as situações entre particulares que necessitem a

irradiação dos direitos fundamentais.234

Outra crítica, que é talvez a que tenha reflexo mais visível no aspecto prático,

afastando-se de questões com viés apenas teórico ou, na sua essência, apenas

teórico, seria a perda da autonomia do Direito Privado. Explica-se: com a irradiação

dos direitos fundamentais no Direito Privado e com a infiltração desses mesmos

através das cláusulas gerais e conceito jurídico indeterminados nas relações

jusprivatísticas, ter-se-ia a sobreposição do Direito Constitucional sobre o Direito

Privado. Porém, o aspecto mais importante dessa análise, até este ponto, apenas

teórica, é admitir, com essa sobreposição, que o Tribunal Constitucional transforme-

se em “superinstância revisora de toda a jurisdição ordinária", pois essa irradiação dos

direitos fundamentais teria o dom de metamorfosear todas as questões de direito

privado em casos de direito constitucional.235

A tese da eficácia mediata não apresenta uma resposta satisfatória para os

casos em que não há lei que especificamente regule a situação e a interpretação

232 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 74. 233 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75. 234 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 222. 235 SILVA, Virgilio Afonso da. A Constitucionalizacão do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Editora Malheiros, 2011, p. 86.

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conforme é improdutiva ou insuficiente, uma vez que não fornece solução para os

casos em que a lacuna do legislador deixa a liberdade individual completamente

desamparada ante eventuais e graves agressões oriundas de outros particulares.

O juiz com competência constitucional para decidir o caso concreto posto não

pode fundamentar a decisão com fulcro no valor da autonomia do Direito Privado

quando pelo menos uma das partes invoca a proteção conferida por uma norma

constitucional. O juiz pode até decidir ao cabo que a invocação não se justifica, mas

não pode desobrigar-se da aplicação do Direito Constitucional dando prevalência ao

princípio da autonomia do Direito Civil.

Se o princípio da autonomia da privada fosse justificativa suficiente para recusar a aplicação das normas constitucionais, permaneceria sem fundamento a própria instituição da jurisdição constitucional, pois a recusa da intervenção do poder judicial numa situação de omissão legislativa teria, em rigor, de ser acompanhada de análoga recusa da possibilidade de controlo de constitucionalide da legislação civil por parte do juiz constitucional. 236 (NOVAIS, 2006. p. 76).

No caso português, essa tese seria teoricamente indefensável, uma vez que

a própria CRP expressa literalmente a aplicação dos preceitos constitucionais sobre

direitos fundamentais às entidades privadas: “Os preceitos constitucionais

respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e

vinculam as entidades públicas e privadas”.237

A tese da eficácia mediata cumpriu bem sua função na garantia da efetividade

dos direitos fundamentais na primeira fase do “ressurgimento constitucional do

segundo pós-guerra”, contudo, franqueja na tentativa de conceber plenitude de tutela

judicial aos direitos fundamentais, o que abriu espaço para os críticos dessa teoria a

atacarem e defenderem a teoria da eficácia direta em situações mais necessitadas de

proteção jusfundamental e de efetividade da Constituição.238

236 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 76. 237 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 238 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora

Coimbra, 2006, p. 76-77.

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8 TEORIA DA EFICÁCIA MEDIATA E DEVER DE PROTEÇÃO

Na Alemanha, fortemente influenciada pela teoria da eficácia mediata, surgiu

a teoria dos deveres de proteção, tendo como seu maior propulsor Claus-Wilhelm

Canaris. Em 10 de junho de 1998, Canaris proferiu palestra na conferência da

Sociedade Jurídica de Berlim. Essa palestra, depois ampliada e atualizada, serviu de

base para seu livro Direitos Fundamentais e Direito Privado.

A teoria da eficácia mediata e a teoria dos deveres de proteção têm raiz

comum, porém diferem em alguns pontos cruciais.

Fundamentalmente, a teoria da eficácia mediata considera que os efeitos dos

direitos fundamentais nas relações privadas se esgotam através das seguintes vias:

intervenção concretizadora do legislador ordinário, a interpretação das normas

ordinárias em conformidade à Constituição, aplicação dos conceitos jurídicos

indeterminados e das cláusulas gerais oriundas do Direito Civil, “considerados, por

excelência, como verdadeiros pontos de irrupção dos direitos fundamentais num

mundo regido primariamente pelo Direito Privado.”239

Por seu turno, a teoria dos deveres de proteção, sem se olvidar da importância

concretizadora da eficácia da teoria mediata através da vias acima mencionadas,

parte do pressuposto da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, somando-se

com a dimensão subjetiva, em que os direitos fundamentais têm substância jurídico-

objetivos resultantes da sua ascensão a valores ou princípios constitucionais objetivos

e cujos efeitos se expandem em vários sentidos.240

O professor Jorge Reis Novais (2006) destaca que a principal consequência

do conteúdo jurídico-objetivo dos direitos fundamentais é a que se exprime na

obrigação jurídica de proteção dos direitos fundamentais que recai sobre todos os

órgãos do Estado, incluindo o Poder Judiciário.241

Porém, vale mencionar, e essa observação serve não somente para a teoria

dos deveres de proteção como também para as teorias da eficácia imediata e da

mediata, que o legislador tem papel fundamental, pois, a priori, lhe cabe acomodar o

239 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 72-73. 240 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73. 241 Novais, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73.

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convívio entre as esferas de autonomia e liberdade dos cidadãos, sopesando o

princípio da liberdade com o princípio da autonomia privada na seara de relações entre

iguais que livremente se autodeterminam. Esse papel cabe ao legislador, uma vez que

possui legitimidade decorrente do poder conferido pelos cidadãos por meio do sufrágio

para avaliar quais medidas são as que garantem a maior eficácia dos preceitos

constitucionais, já que há discricionariedade na opção normativa, salvo se

frontalmente inconstitucionais.242

Assim, vale mencionar que não compete ao Judiciário verificar se as medidas

legislativas de promoção dos direitos fundamentais são as que garantem a maior

eficácia dos preceitos constitucionais, já que há discricionariedade na opção

normativa, “mas apenas se as decisões do legislador ofendem, ou não, o disposto

nesses preceitos, respeitando o espaço de livre conformação política que a mesma

Constituição garante ao poder legislativo democraticamente legitimado pela via

eleitoral.”243

O papel primário da intervenção do Estado nas relações entre privados é

mesmo do legislador democrático, nos termos das garantias gerais de Estado de

Direito, em especial do princípio da reserva legal (art 5o, inciso II, da CFb/88: “ninguém

será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). Esse

protagonismo é reconhecido pela tese dos deveres de proteção enquanto que a tese

da eficácia imediata desloca-o para o Judiciário quando entende o conflito entre

particulares a partir da “pretensa existência de um direito subjetivo fundamental que

um dos particulares tem contra o outro, e fazendo assentar esse direito subjectivo (sic)

directamente (sic) na norma constitucional”244, considerando a intervenção do juiz

como necessária, imediata e independetemente da prévia regulação do caso por parte

do legislador mesmo que decorra de silêncio tácito.245

242 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora

Coimbra, 2006, p. 74. 243 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Parecer solicitado pelo Governo de Portugal em relação a alguns aspectos da Lei no 66-B/2012, de 31 de dezembro. Disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/media/1175315/Parecer%20Jose%20Carlos%20Vieira%20de%20Andrade%20OE%202013.pdf.> Acesso em: 13 fev. 2014. 244 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 105 245 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 105.

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O legislador, mais cedo ou mais tarde, na atuação de sua função primordial,

faz surgir a devida legislação que abarque situações de ameaça aos direitos

fundamentais perpetrada por particulares. Se ainda não o fez, ante abusos manifestos,

as cláusulas gerais ou, ao cabo, o princípio da dignidade da pessoa humana, permitem

resolver o problema.246

O juiz somente deve intervir, fazendo valer o dever de proteção, em casos

extremos ou de visível déficit de proteção da liberdade individual. E, nessa atuação,

deverá ponderar esse dever de proteção com outros princípios que casualmente

indiquem em sentido inverso, como o princípio da autonomia privada e dos direitos

fundamentais a ele ligados.

As três teorias – mediata, imediata e deveres de proteção – direcionam-se

quanto ao modelo de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas no

sentido de que se deve utilizar a lei ordinária, a interpretação conforme à Constituição

e a densificação das claúsulas gerais. Concordam, ainda, com a ideia de que cabe ao

Poder Judiciário verificar se decisões do legislador ofendem ou não o disposto nos

preceitos constitucionais, ou seja, se a opção feita pelo legislador é

constitucionalmente aceitável.247

A teoria dos deveres de proteção recusará a aplicação direta dos direitos

fundamentais em face de outros particulares como se direitos subjetivos fossem, tal

qual a teoria da eficácia mediata, quando não há lei que regule especificadamente a

situação e a interpretação conforme é improdutiva.

Contudo, diferentemente da teoria da eficácia mediata e aproximando-se um

pouco da teoria da eficácia imediata, a teoria dos deveres de proteção defende algum

outro tipo de eficácia nos casos em que não há lei ou clásula geral aplicável. A teoria

dos deveres de proteção considera, nesse caso, que os direitos fundamentais

projetam efeitos jurídicos nas relações interprivados, porém não enquanto direitos

subjetivos (como sustenta a teoria da eficácia imediata) oponíveis a outros particulares.

Nas palavras de Jorge Reis Novais:

Mediatamente através do reconhecimento de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais de onde decorrem, para todos os poderes do Estado,

246 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 106. 247 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75.

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incluindo o poder judicial, especiais deveres de proteção dos direitos fundamentais que permitem excepcionalmente ao juiz, sempre que a proteção dos direitos fundamentais o exija e o legislador (ainda) não tenha cumprido adequadamente esses deveres, o recurso directo à norma constitucional na resolução de conflitos entre particulares.248 (NOVAIS, 2006, p. 75).

O ponto de partida para a doutrina dos deveres de proteção foi a teoria dos

direitos fundamentais como princípios objetivos que obrigam o Estado a assegurar os

meios necessários para torná-los efetivos. Assim, “dos direitos fundamentais pode

resultar diretamente uma obrigação estatal de preservar um bem jurídico protegido

mediante os direitos fundamentais contra lesões e ameaças provenientes de terceiros,

sobretudo de caráter privado” 249, como também por outros Estados – pessoas e

poderes que não são destinatários de direitos fundamentais.

Sustenta Canaris que, na Alemanha, os Poderes Públicos estão diretamente

vinculados aos direitos fundamentais, o que importa dizer que eles limitam tanto a

atividade legislativa como a administração pública. Porém, se estes não tiverem como

norte a Constituição, ao juiz cabe o dever de proteger os direitos fundamentais dos

cidadãos. Assim, tanto o legislador, a Administração Pública e os juízes estão

obrigados a se absterem de violá-los, contudo, devem também protegê-los frente às

ameaças e às agressões provenientes de particulares. Porém, se o juiz também não

observar os direitos fundamentais, caberá recurso ao Tribunal Constitucional.

Assim, a teoria dos deveres de proteção traz, além dos efeitos jurídicos

objetivos já mencionados acima, o encargo principal que compete ao legislador o

cumprimento dos deveres de proteção dos direitos fundamentais. E mais:

Complementa aqueles efeitos e estes deveres por meio de novas possibilidades de intervenção reconhecidas ao Poder Judiciário e que se somam às que este já possuía no plano da interpretação da legislação ordinária em conformidade aos direitos fundamentais e no plano do preenchimento e densificação jusfundamentalmente orientados de conceitos indeterminados e cláusulas gerais do Direito privado.250 (NOVAIS, 2006, p. 73).

248 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 75. 249 HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56. 250 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 73.

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O juiz está, portanto, compelido pelos deveres de proteção dos direitos

fundamentais, na falta da lei ou de claúsula geral aplicável e até mesmo em

circunstâncias extraordinárias contra a lei, a intervir no sentido de proteção dos

direitos fundamentais nas situações de nítido déficit de proteção e de premente

necessidade de o suprir.

É sabido que há direitos fundamentais na Constituição que, aparentemente,

têm como objeto primário ou até exclusivo a regulação de relações jurídicas

interprivados, como as passagens que tratam do direito de greve ou das liberdades

sindicais na empresa. Contudo, a partir do instante em que um direito fundamental foi

colocado no corpo da Constituição, independentemente da causa que o elevou a essa

condição, surgem o mesmo tipo de perguntas como a qualquer direito fundamental.

Os sujeitos passivos da proibição, imposição ou permissão são os particulares ou é o

Estado? Verificaremos que, ao Estado, serão impostos “especiais deveres de

proteção e especiais deveres de conformação das relações privadas e indicar, desde

logo, o sentido material dessa conformação e proteção”.251

O dever de proteção (Schutzpflicht) pretende transmitir a ideia de uma

especial vinculação do Estado na direção de promover, por meio de um conjunto

diverso de meios, que o gozo ou exercício dos direitos fundamentais seja protegido

de quaisquer ameaças, inclusive ações de terceiros (entidades públicas ou

privadas).252

O modelo dos deveres de proteção assevera que os preceitos de direitos

fundamentais se empregam, a priori, aos Poderes Públicos253, no entanto, estes,

“para além do dever de os respeitaram (designadamente de se absterem de os violar)

e de criarem as condições necessárias para a sua realização, teriam ainda o dever de

os proteger contra quaisquer ameaças, incluindo as que resultam da atuação de

outros particulares”.254

O legislador, que se beneficia de uma reserva do politicamente adequado,

deve ativar o dever de proteção no sentido de proteger, com maior ênfase, a situação

251 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70-71. 252 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 100. 253 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 101-102. 254 ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 251.

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da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder em que há

supremacia de uma parte sobre a outra, como sói acontecer, regra geral, com as

relações de emprego. Só excepcionalmente o juiz deverá lançar mão das soluções às

quais lhe seja permitido recorrer dentro da moldura da ordem jurídica como um todo,

sem se olvidar da possibilidade de recurso último à norma da dignidade da pessoa

humana (funcionando aqui como regra) ou ao que constitua o standart mínimo de

proteção da pessoa humana universalmente reconhecido.255

Daniel Sarmento (2006) sustenta que o Tribunal Constitucional alemão, em

importante decisão proferida em 1990 (BverfGE 81, 242), defendeu explicitamente a

teoria dos deveres estatais de proteção para tutelar direitos fundamentais numa

relação jusprivatística, especificamente numa relação de trabalho lato sensu256.

Nas palavras de Barroso:

No caso, uma empresa vinícola havia rescindido contrato celebrado com um seu representante comercial, sem pagamento de qualquer indenização, em razão de suposta falta grave cometida por ele. No Código Comercial alemão, estava prevista a possibilidade de as partes no contrato de representação comercial aventarem a proibição do ex-representante de exercer negócio no mesmo ramo, por até dois anos, sem qualquer indenização, caso seu afastamento decorresse de motivo relevante. Esta cláusula fora pactuada, mas o antigo representante comercial insurgiu-se contra ela, alegando violação ao seu direito fundamental ao livre exercício de profissão ou ofício. Em seu julgamento, o Tribunal Constitucional germânico reconheceu, em primeiro lugar, que pelo princípio da autonomia privada, as pessoas podem engajar-se em negócios jurídicos envolvendo restrição ou renúncia ao exercício de direitos fundamentais. Todavia, a validade destes acordos pressupõe a liberdade no consentimento da parte prejudicada, o que exige que se verifique se esta se encontrava, ao celebrar o contrato, numa situação de desequilíbrio de forças em relação à sua contraparte. Afirmou o Tribunal que o 'o artigo 12, parágrafo primeiro da Lei Fundamental, ordena ao legislador privado o estabelecimento de medidas de proteção do livre exercício de uma profissão ou ofício frente a restrições contratuais, especialmente quando não exista um equilíbrio aproximado de forças entre as partes'. Assim, para a Corte Constitucional alemã, o legislador não havia tomado em consideração este elemento ao estabelecer a norma do Código Comercial acima mencionado, e portanto violar o seu dever de proteção à liberdade de profissão. Com base neste argumento, a Corte, afastando o dispositivo do Código Comercial em questão, deu ganho de causa ao antigo representante comercial.257 (BARROSO, 2006, p. 238).

255 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 106. 256 Relação de trabalho corresponde a qualquer vinculo jurídico por meio do qual uma pessoa natural executa obras ou serviços para outrem, mediante o pagamento de uma contraprestação. (SARAIVA, R. Direito do Trabalho para concursos públicos. 4. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 34). 257 BARROSO, Luís Roberto (Org.). A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 238.

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Assim, ainda que não se possa cogitar de vinculação direta do cidadão aos

direitos fundamentais, podem esses direitos legitimar limitações à autonomia privada,

seja no plano da legislação, seja no plano da interpretação.258

A teoria dos deveres de proteção parte da premissa que os direitos

fundamentais são eminentemente direitos em face do Estado e somente

excepcionalmente o Estado intervém nas relações interprivados para a defesa desses

direitos fundamentais.

Nesse sentido, Christian Starck (2002) menciona que, em dois direitos

fundamentais (art. 3.2, linha 1 da Lei Fundamental (LF) alemã259 combinado com o

artigo 117.1260 e também no caso do artigo 6.5 da LF 261), o Estado, no caso a

Alemanha, está obrigado a realizar a igualdade. Esses deveres de proteção da

igualdade exercem sua influência de modo direto no Direito Civil. Assim, não se trata

aqui somente de clássicos direitos de defesa, mas, sim, de direitos de igualdade cuja

a realização reclama a devida regulação do Direito Civil. Essas considerações

permitem solucionar alguns dos problemas da chamada eficácia dos direitos

fundamentais frente a terceiros, sem que os direitos fundamentais se expandam de

modo global no âmbito do Direito Privado e sem que tenham que ser delimitados pelo

Estado-Juiz quando já foram pelo legislador democraticamente eleito.262

Os direitos fundamentais na Constituição espanhola estão dirigidos à defesa

frente às ingerências do Estado, contudo, de forma mais acentuada que na Lei

Fudamental de Bonn. Igualmente se apresentam na Constuição espanhola deveres

de garantia e encargos de igualdade ao legislador que influenciam no Direito Privado.

258 Citação retirada do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do Supremo Tribunal Federal brasileiro: Disponível em: <http://www.gilmarmendes.org.br/index.php?option=com_phocadownload&view=category&download=286:re-201819-&id=21:as-garantias-processuais-fundamentais-e-os-principios-do-contraditorio-e-da-ampla-defesa&Itemid=76.> Acesso em: 20 abr. 2014. 259 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 260 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 261 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar. 2014. 262 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 72, set./dez. 2002.

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Dessa forma, se reconhecem e protegem os direitos enumerados no artigo 20 da

Constituição espanhola263. O artigo 24 estabelece o direito de obter uma tutela efetiva

dos juízes e tribunais264. Os artigos 28265 e 37 devem ser entedidos de modo que o

direito de filiação a sindicato deva ser reconhecido também aos trabalhadores

empregados do setor privado.266

O dever do Estado vai além da mera proibição de intervenção na esfera da

liberdade do cidadão, ou seja, consiste na necessidade de amparo estatal a prejuízos

ou ameaças à liberdade das pessoas por poderes alheios ao Estado267 na medida em

que também deve defender os particulares da intervenção ilegítima de outros

particulares (proibição de intervenção).

Para fornecer cientificidade à sua teoria, Canaris desenvolveu duas funções

dos direitos fundamentais em relação ao Estado. A primeira seria a de proibição de

intervenção (uma vinculação negativa), no que concerne aos deveres de não violar

tais direitos; e a segunda seria a de imperativo ou mandamento de tutela (uma

vinculação positiva), no que respeita ao dever de protegê-los.

A teoria dos deveres de proteção detém um argumento que é insuperável (ou

quase) para a defesa de sua tese que é a questão de que os direitos fundamentais

263 Art. 20 Direito à liberdade de expressão e informação. Direito à produção e criação literária, artística, científica e técnica. Direito à liberdade de cátedra. O exercício destes direitos não pode ser restringido mediante censura prévia. Estas liberdades têm seu limite no respeito aos direitos reconhecidos neste título. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 264 Art. 24 Direito ao livre acesso à justiça. Constituição espanhola de 1978. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016) 265 Art. 28 Direito de sindicación e de greve. Constituição espanhola de 1978. (ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016) Art. 37 Direito à negociação coletiva trabalhista. Constituição espanhola de 1978.(ESPANHA. Constituição (1978) Constituição da República Espanhola. Madrid, 1978. Disponível em:<http://classroom.orange.com/pt/constituicao-espanhola-de-1978_14.html>. Acesso em: 28 set. 2016). 266 STARCK, Christian. Derechos fundamentales y Derecho privado. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, n. 66, ano 22, p. 72, set./dez. 2002. 267 HESSE, Konrad. Temas fundamentais de direito constitucional Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 56.

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são considerados pelos cidadãos como “amigos" com os quais eles podem contar nos

momentos mais difíceis. Ocorre que, se um particular olhar para os direitos

fundamentais com receio que esses mesmos direitos possam ser utilizados contra

seus interesses, a própria lógica de defesa dos direitos fundamentais estará

esvaziada.268

Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes asseveram:

Na verdade, não seria correto simplesmente transplantar o particular para a posição de sujeito passivo do direito fundamental, equiparando o seu regime jurídico ao dos Poderes Públicos, pois o indivíduo, diversamente do Estado, é titular de direitos fundamentais, e está investido pela própria Constituição em um poder de autodeterminação dos seus interesses. Uma equiparação do particular ao Estado, para fins de sujeição aos direitos fundamentais, tenderia a revelar-se autoritária, ao restringir em demasia a sua liberdade de fazer escolhas e agir de acordo com elas.269 (SARMENTO; GOMES, 2011, p. 61).

Idêntica orientação é adotada por Konrad Hesse, citado no voto-vista do

Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do

Supremo Tribunal Federal brasileiro, que destaca serem as relações entre pessoas

privadas marcadas, fundamentalmente, pela ideia de igualdade. A vinculação direta

dos entes privados aos direitos fundamentais não poderia jamais ser tão profunda,

pois, ao contrário da relação Estado-cidadão, os direitos fundamentais operariam a

favor e contra os dois partícipes da relação de Direito Privado.270

268 Ingo Sarlet defende a tese da eficácia direta dos direitos fundamentais e também que não há grandes diferenças práticas entre aquela e a teoria dos deveres de proteção, já que ao Poder Judiciário caberá a última palavra para a solução da controvérsia: "mesmo que se possa concordar com a tese de que são os órgãos estatais os destinatários diretos dos deveres de proteção estatais, isto, no nosso sentir, não conduz inexoravelmente à correção da tese acima exposta, designadamente naquilo em que se refuta uma eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre atores privados..." (SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 126). 269 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 61, 2011. 270 Citação retirada do voto-vista do Ministro Gilmar Mendes quando da decisão do Recurso Extraordinário 201819 do Supremo Tribunal Federal brasileiro: Disponível em: <http://www.gilmarmendes.org.br/index.php?option=com_phocadownload&view=category&download=286:re-201819-&id=21:as-garantias-processuais-fundamentais-e-os-principios-do-contraditorio-e-da-ampla-defesa&Itemid=76>. Acesso em: 20 abr. 2014.

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Mesmo os autores que defendem a aplicação de outra teoria (mediata neste

caso271) que não a teoria dos deveres de proteção na aplicabilidade dos direitos

fundamentais nas relações interprivados parecem se curvar à cientificidade

conseguida por essa teoria. Discorrendo sobre a aplicação dos direitos fundamentais,

também às entidades privadas quando em jogo os artigos 27o, no 2, 34o, no 3, primeira

parte, 37o, no 4, 50o,no 2, todos da CRP, José de Melo Alexandrino, admitindo a

aplicação direta desses direitos fundamentais nas relações privadas, sugere a

aplicação da teoria dos deveres de proteção: “Estas são situações em que há um

adoçamento da regra, mas não excepção (sic), porque em todas é possível configurar

pelo menos um dever de proteção (Schutzpflicht) dirigido ao Estado como conteúdo

principal da correspondente garantia constitucional.”272

Surge uma indagação. Poder-se-ia conceber tratamento diferenciado à

eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas em razão da origem da

agressão que sofre uma determinada liberdade, como, por exemplo, das relações

juslaborais em que há, na maioria dos casos, uma relação de superioridade jurídica e

econômica evidente?

Acredita-se que não, pois, para conceber cientificidade à teoria da eficácia

horizontal dos direitos fundamentais, há que tratá-la de modo uniforme, ou seja, não

pode-se-ia aplicar a teoria a eficácia direta dos direitos fundamentais para as relações

juslaborais, como fica tentado o exegeta, e empregar a teoria do dever de proteção

para aquelas relações em que há paridade de forças. Os direitos fundamentais devem

proteger, portanto, frente ao poder, sem adjetivos; e o sistema de garantias, para ser

coerente e eficaz, deve ser polivalente e operar em todas as direções. Não há

nenhuma razão para pensar que o problema de fundo transforma-se em função de

qual seja a origem da agressão que sofre uma determinada liberdade. O tratamento

há de ser, na essência, o mesmo.273

271 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105-106. 272 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 105. 273 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 170.

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Apesar de parte da doutrina brasileira274 fundamentar a aplicação da eficácia

direta dos direitos fundamentais nas relações horizontais na assimetria da relação

gerada pela presença de um ator social forte, o maior ou menor desequilíbrio dessa

relação serve para justificar a necessidade do Estado de efetivar, de forma mais ou

menos intensa, o seu dever de proteção, autorizando eventual restrição do direito

fundamental da parte poderosa. Logo vêm à mente os casos da relação de trabalho

strictu sensu. Porém, se a matéria for analisada com cientificidade, a conclusão obtida

é que nem sempre as relações de emprego geram a assimetria que querem defender

os autores que propugnam pela aplicação direta dos direitos fundamentais nessas

relações. Um exemplo ilustrará a afirmação: (a) um jogador de futebol, sem grande

expressão mundial, esteja a tratar de seu contrato com o Real Madrid, um dos mais

poderosos clubes de futebol do mundo, e esse clube queira inserir uma cláusula

contratual que viole algum dos direitos fundamentais daquele jogador. Em princípio,

os defensores da teoria da eficácia imedita dos direitos fundamentais entre privados

advogariam a tese da aplicação da Constituição como se direito subjetivo fosse ante

a assimetria da relação entre o jogador e o clube de futebol; (b) por outra volta, se o

jogador que estivesse a tratar com o Real Madrid fosse o Cristiano Ronaldo, com o

clube querendo estabelecer uma cláusula que violasse um dos direitos fundamentais

daquele jogador ou mesmo se Cristiano Ronaldo quisesse impor uma cláusula que

violasse, em tese, um direito fundamental do clube madrilenho. Aqui, a relação de

assimetria escancara uma de suas facetas até então não imaginadas pela exegeta

que defende a aplicação direta dos direitos fundamentais nesses casos: há relações

em que o empregado não é o hipossuficiente da relação de trabalho strictu sensu e

sim o empregador. O poder de estabelecer condições que violem os direitos

fundamentais da empresa é muito maior do lado do Cristiano Ronaldo que o do próprio

Real Madrid. Nesse exemplo, é provável que os apoiadores da tese da aplicação

direta dos direitos fundamentais não defendessem que esses direitos fossem

aplicados diretamente em face do jogador português e em prol do clube espanhol.

Portanto, ou se mantém a lógica da teoria, ou seja, a aplicação direta dos

direitos fundamentais em todas as relações de assimetria trabalhista, seja do lado do

empregado seja do lado do empregador, ou a teoria não se sustenta com a

274 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p.77

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cientificidade almejada neste trabalho, já que não pode se justificar a defesa irrestrita

dos empregados baseado em coitadismos.

Porém, insta mencionar que o maior expoente na defesa da teoria dos deveres

de proteção, Claus-Canaris (2013), em palestra ministrada na Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul, mitigou ou excepcionou seu entendimento para admitir

a aplicação direta dos direitos fundamentais na relações jusprivatísticas.275

Defendeu o referido autor que a proibição de discriminação, quando vise a

proteção da dignidade da pessoa humana, deve ter proteção direta dos direitos

fundamentais devido à supremacia absoluta desse princípio. E, portanto, ao Judiciário,

cabe sempre a proteção da não discriminação.276

O autor alemão fornece, como contemporâneo daquele momento histórico, o

seguinte exemplo em que a eficácia do direitos fundamentais deveria incidir de

maneira direta, ou seja, com proteção direta do Judiciário: seria o caso da

discriminação vivenciada pelos judeus na Alemanha de Hitler.277

Contudo, a discriminação na Alemanha sob império do partido Nazista

originava-se do próprio Estado numa relação Estado-indivíduo, o que, por óbvio,

enseja a proteção direta dos direitos fundamentais, já que, no outro lado da relação,

o do Estado, há apenas obrigação de garantir esses direitos, ou seja, é apenas sujeito

passivo da relação.278 Portanto, a matéria não seria regida pelo Direito Privado,

diferentemente do entendimento de Canaris279, e sim pelo Direito Público.

Vale mencionar que Canaris continua a defender que se a discriminação tiver

por objeto a consecução de fins de natureza profissional, social ou política, a

prerrogativa da conformação encontra-se nas mãos do Poder Legislativo. Assim, o

275 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p.15-20, jan./mar. 2013 276 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013. 277 Id. 278 Canaris faz uma distinção entre Direito Público e Direito Privado para dar sustentáculo lógico ao seu exemplo de discriminação dos judeus na Alemanha nazista. 279 Transcrevo no anexo deste trabalho, para a ciência da comunidade científica, a palestra ministrada por Canaris e que se encontra transcrita na revista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, devido à dificuldade de aquisição da referida obra em outras regiões do Brasil quiçá em Portugal.

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Poder Judiciário não poderá valer-se do instrumental da eficácia direta das proibições

de discriminação na esfera das relações privadas.280

As diversas teorias que tratam da matéria – a da negação da aplicação dos

direitos fundamentais às relações privadas, a teoria da eficácia mediata, a da eficácia

imediata e dos deveres de proteção – trazem um equívoco interpretativo que importa

ressaltar.

O primeiro equívoco interpretativo seria admitir, sem uma análise mais detida

da questão, que a teoria da eficácia imediata traria maior eficácia aos direitos

fundamentais, baseada em uma primeira concepção ultrapassada de que, no Estado

Liberal, os direitos fundamentais eram tidos como direitos em face do Estado e

atualmente sabe-se que as ameaças aos direitos fundamentais são perpetradas tanto

pelo Estado quanto também pelos particulares.281

Daí surge uma pergunta. Por que reservar os direitos fundamentais à relação

indivíduo-Estado? Por que não aplicá-los nas relações interprivados que seriam sua

consequência natural através da teoria da eficácia imediata, já que é a que mais

corresponde a essa necessidade?282

Ocorre que, numa análise mais apurada, todos esses pressupostos

fraquejam. 283 Na realidade, a tese da eficácia imediata enfraquece os direitos

fundamentais.284

Na Alemanha, quando surgiu a tese da eficácia imediata, nomeadamente no

âmbito do Direito Laboral, os constitucionalistas não apoiaram a ideia. E por que razão

os constitucionalistas não apoiaram essa posição?285

Na Alemanha, os constitucionalistas defendiam que a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações privadas ocorreria de forma mediata, de forma indireta,

através da lei, diferentemente da relação indivíduo-Estado em que os direitos

fundamentais eram aplicados de forma imediata. Não era por causa da desconfiança

280 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013. 281 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 282 Id. 283 Id. 284 Id. 285 Id.

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nos direitos fundamentais, mas era um problema de efetividade, ou seja, se se quer

levar os direitos fundamentais a sério, eles têm quer ser garantias jurídicas fortes que

possam limitar o Estado, por isso, eram aplicados de forma imediata na relação

indivíduo-Estado. Assim, para o Estado limitar um direito fundamental, deve possuir

uma justificação forte e, mesmo quando tem essa justificativa forte, deve respeitar os

princípios auxiliares da igualdade, proporcionalidade e segurança jurídica. E por que

os direitos fundamentais não podem ser aplicados às relações jusprivatísticas da

mesma forma que ao Estado? Simples, porque nos dois lados da relação entre

particulares há direitos fundamentais escudando cada um dos lados, o que não ocorre

na relação indivíduo-Estado em que somente um dos lados da relação é sujeito ativo

dos direitos fundamentais enquanto o outro é destinatário desses mesmos direitos.286

As hipóteses de aplicação da teoria dos deveres de proteção serão abordadas

abaixo.

Segue a primeira hipótese. Se há lei que decide o caso, deve ser aplicada na

resolução do conflito concreto. Enquanto as teses mediata e dos deveres de proteção

só questionam a aplicação em caso de inconstitucionalidade da lei ordinária ou em

caso da eventual necessidade de uma interpretação em conformidade à Constituição,

a teoria da eficácia imediata, para manter sua unidade lógica, defende que o

hermeneuta poderia se valer da Constituição, invocando seu direito subjetivo

fundamental, utilizando-a para resolução do caso concreto.287

A hipótese seguinte parte da premissa de que não há lei que dirima

diretamente o conflito jusprivatístico ou, se houver, apenas fornece soluções fulcradas

em fórmulas vagas ou conceitos indeterminados. A teoria da eficácia imediata socorre-

se dos direitos fundamentais modelados na Constituição. Por outro lado, as teorias

mediata e deveres de proteção apresentam solução diversa. Propõem, como forma

de resolução do conflito, uma densificação e concretização dessas cláusulas gerais e

286 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 287 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 227-291. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014.

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conceito jurídicos indeterminados conforme aos direitos fundamentais e à

Constituição.288

O problema surge quando se está diante da terceira hipótese, ou seja, quando

não há lei que apresenta solução para lide jusprivatística tampouco cláusula geral ou

conceito indeterminado objetivamente susceptíveis de aplicação ao caso concreto. A

teoria da eficácia imediata invoca norma da Constituição como se direito subjetivo

fosse para a solução do caso posto. A tese mediata resolve a problemática de maneira

simplista, pois transfere:

Exclusivamente a solução do problema para o foro tradicional da autonomia privada, uma vez que, para essa concepção, as únicas modalidades admissíveis através das quais os direitos fundamentais se aplicam nas relações entre particulares são a mediação do legislador e, excepcionalmente, a densificação judicial dos conceitos indeterminados e cláusulas gerais do Direito Civil.289 (NOVAIS, 2014, p. 54).

A teoria dos deveres de proteção resolverá o caso de outra forma,

dogmaticamente sólida, consentânea com a história e a teoria dos direitos

fundamentais e apta a fundamentar uma proteção adequada nas relações entre

particulares.

A teoria dos deveres de proteção baseia-se, desde logo, na premissa de que

os direitos fundamentais sempre foram admitidos como direitos contra o Estado, não

sendo, portanto, possível sua invocação nas lides jusprivatísticas diretamente.

Portanto, esta tese rejeita a possibilidade de aplicação direta e imediata dos direitos

fundamentais às relações entre privados. Assim, a teoria dos deveres de proteção

apresenta-se associada à teoria da eficácia mediata, como desenvolvimento desta.290

A tese da aplicabilidade mediata dos direitos fundamentais nas relações

privadas e a teoria dos deveres de proteção têm como ponto comum o

reconhecimento da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ou seja,

reconhecimento dos direitos fundamentais como princípios básicos de uma ordem

constitucional. A dimensão objetiva faz ligação ao caráter vinculativo dos direitos

288 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 51-52. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 289 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 52. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 290 Id.

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fundamentais ao Estado. Isso é, refere-se ao dever de respeito e compromisso do

Estado com os direitos fundamentais. Independente do que se possa extrair do caráter

subjetivo de um direito, o Poder Público deve guiar sua atuação sempre de maneira a

satisfazer e concretizar os direitos fundamentais.291

É a partir do reconhecimento da dimensão objetiva e da força irradiante dos

direitos fundamentais sobre o Estado que surge o dever de proteção da liberdade,

autonomia individual e dos bens jusfundamentalmente protegidos. Esse dever de

proteção é escudo protetor tanto das ameaças ou agressões provenientes das

entidades públicas como também das entidades privadas. Isso porque os particulares

não dispõem de meios de autotutela desses direitos e também pelo fato de o Estado

ter o monopólio, de usar a força coercitiva, própria do Estado de Direito, resultando

daí que a defesa plena e efetiva só pode ser prestada legitimamente pelo Estado.292

É momento para colocar frente a frente a teoria dos deveres de proteção e a

teoria da eficácia imediata defendida arduamente pela quase totalidade da doutrina

brasileira como a que traz a maior defesa da efetividade dos direitos fundamentais e

da força normativa da Constituição. No âmbito trabalhista, toda a doutrina brasileira

defende a tese da eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações de

emprego, fundamentando na superioridade da empresa em detrimento do empregado

e também no princípio da proteção tão festejado no âmbito dessa seara do Direito.

Será mesmo a teoria da eficácia imediata a que trará a plenitude de defesa dos direitos

fundamentais do empregado? E mais, onde fica a posição do empregador como

sujeito ativo dos direitos fundamentais? Por que o direito fundamental do empregado

deverá prevalecer sobre o direito fundamental do empregador que também é detentor

de direitos fundamentais?

Essas perguntas precisam ser respondidas, sob pena do interpréte, já

condicionado a adotar uma posição favorável ao empregado, supostamente sujeito

mais “fraco” da relação justrabalhista, escolher a teoria da eficácia direta dos direitos

fundamentais, utilizando o princípio da proporcionalidade apenas para justificar a

conclusão que já era sabida anteriormente, numa adesão quase emocional por parte

291 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 53. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 292 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados., Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 53-54. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014.

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de quem, abordando pela primeira vez o problema, o faz a partir de uma preocupação

ou perspectiva garantista de proteção.

Os defensores da teoria da eficácia imediata utilizam argumentos com forte

hipósteses de sucesso para justificar a utilização da teoria: a) por que os direitos

fundamentais só deveriam valer nas relações indivíduo-Estado quando há, em

especial na seara trabalhista, ameaças à liberdade dos indivíduos nas relações

privadas?; b) por que e para quê circunscrever o potencial de eficácia dos direitos

fundamentais às relações do indivíduo com o Estado se a dignidade da pessoa

humana é una e indivisível e se pode ser seriamente ameaçada por outros

particulares?293

Responderiam os alvoroçados em defender a tese da eficácia imediata que o

motivo seria dar prevalência à autonomia negocial, à liberdade contratual, fazendo

prevalecer os direitos patrimoniais e o direito de propriedade sobre os direitos de

liberdade pessoal. “Seria sacrificar os direitos fundamentais no altar de uma

sacralização da livre iniciativa privada numa hierarquização de prioridades que,

objetivamente, oculta o domínio dos economicamente mais poderosos”.294

Poder-se-ia colocar em dois lados distintos os que são supostamente mais

favoráveis aos direitos fundamentais ao encontro da teoria da eficácia imediata e os

que são supostamente favoráveis à autonomia privada ao encontro das outras teses.

Ou seja, quem supostamente é favorável à correção das diferenças socias, de

limitação dos poderes privados, quem tem preocupações igualitárias, sustentando a

teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais; e, do outro lado, quem deseja

conservar a posição inigualitária mantendo os direitos fundamentais apenas nas

relações com o Estado, protegendo a esfera privada dos transtornos da aplicação dos

direitos fundamentais de forma direta.295

Se a questão é posta dessa forma, constitui forte apelo a favor da teoria da

eficácia imediata dos direitos fundamentais. Não é à toa que a Constituição

portuguesa inclinou-se literalmente para a tese da eficácia direta: “Os preceitos

constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente

293 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 77. 294 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 77-78. 295 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 78.

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aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”296; assim como a doutrina do

Brasil e de toda América Latina.

Uma crítica que recai sobre a teoria dos deveres de proteção é a que os

resultados obtidos seriam os mesmos obtidos pela teoria da eficácia imediata.

Contudo, se realmente fosse verdadeira a afirmação, o que não é, caberia a teoria da

eficácia direta explicar o motivo pelo qual introduziu um fator de perturbação no plano

relativamente estabilizado da fundamentação tradicional. Explica-se: é uníssona a

afirmação que os direitos fundamentais têm sua origem como direitos de defesa

primariamente em face do Estado e a teoria da eficácia direta dos direitos

fundamentais pretende conceber aos direitos fundamentais um alcance

substancialmente diferente com a aplicação direta dos direitos fundamentais nas

relações interprivados.

Os defensores da teoria da eficácia direta concordam com a ideia de que os

direitos fundamentais até hoje são dirigidos contra o Estado. E essa teoria argumenta

que a eficácia direta seria a evolução dos direitos fundamentais, já que ameaças

também provêm dos particulares, não havendo razão para limitar a eficácia às

relações indivíduo-Estado.

Contudo, esse argumento é falacioso porque as ameaças à liberdade

individual oriundas dos particulares já são conhecidas do Estado desde outrora. O

Estado Liberal de Direito, consagrado na tríade liberdade/segurança/propriedade, não

tinha por outro objetivo senão garantir aos particulares o direito de propriedade através

de mecanismos de segurança interna e externa. A dimensão interna é resumidamente

a consciência da existência de ameaças sociais pela classe dominante na época

advindas de particulares em face do direito de propriedade.297

Assim, o Estado assumia o dever de proteção da liberdade individual através

da proteção do direito de propriedade contra ameaças a essa liberdade provindas de

outros particulares. Esse posicionamento era levado tão a sério que o direito de voto

somente era exercido pelos proprietários de terra.298

296 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002.

297 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 84-85. 298 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 95.

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Com a evolução do Estado de Direito liberal para o Estado Social de Direito,

as Constituições incluíram em seus bojos os chamados direitos sociais, que não são

direitos que têm como destinatários principais entidades privadas – como querem

fazer crer os aficionados da tese da teoria da eficácia imediata – e sim direitos que

consagram especiais deveres de proteção que competem ao Estado na preservação

da liberdade nas relações privadas.

O professor Jorge Reis Novais explica o mencionado no parágrafo anterior

utilizando-se de direitos do empregado, o que se alinha com o objetivo deste trabalho:

Assim, quando algumas constituições, por exemplo, regulam especificamente os direitos sindicais na empresa, o direito à greve ou os direitos dos jornalistas, não fazem mais que impor determinadas orientações de conformação do Direito privado por parte do legislador, reduzindo, por vezes totalmente, a margem de discricionariedade de que este, à partida, disporia no âmbito do cumprimento dos seus deveres de protecção (sic) dos direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido, na medida em que reduz a discricionariedade legislativa, as normas constitucionais em questão abrem novas possibilidades de intervenção ao juiz, mas, no fundo, pesem embora as aparências, os destinatários dessas normas constitucionais continuam a ser o Estado e as entidades públicas. (NOVAIS, 2006, p. 84-85).299

A corrente doutrinária que propugna pela eficácia imediata dos direitos

fundamentais tem uma subvertente que defende a aplicação direta dos direitos

fundamentais quando, em um dos polos da relação interprivados, estiverem os

chamados poderes privados, ou seja, situação em que uma entidade privada, sem

características de state action, é dotada de poder social de natureza econômica,

cultural, religiosa ou circunstancial que permita se sobrepor a outra parte,

caracterizando situação de sujeição objetiva.300

E verdade que essa situação é bastante comum nas sociedades atuais e mais

especialmente na seara trabalhista onde quase a totalidade das relações são

caraterizadas pela sujeição do empregado ao empregador (geralmente entidades de

grande força econômica) 301, contudo, não haveria qualquer razão que autorizasse

299 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 84-85. 300 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88. 301 O professor Jorge Reis Novais tem posição, que pouco ou não leva em consideração as peculiaridades da relação de emprego, que os desequilíbrios são próprios de uma sociedade plural: “...de facto relações deste género, cuja assimetria carece de ser devidamente tida em conta, não é esta a situação comum na ordem jurídica privada, onde os desequilíbrios existente são próprios de uma sociedade plural e são susceptíveis de ser adequadamente

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renovar artificialmente para que as relações interprivados dotadas de desigualdade

de poderes tivessem o mesmo tratamento das relações jurídicas entre Estado e

indivíduo e tratamento diverso de todas as outras relações em que intervenham

entidades privadas. 302

Porém, a razão maior para que os direitos fundamentais nas relações

interprivados não sejam delineados pela teoria da eficácia imediata é a de que um

sujeito privado não pode olhar para um direito fundamental como inimigo.

Os direitos fundamentais nos últimos 200 anos são vistos como garantias

jurídicas fortes em que o Estado democrático, à maioria, só pode neles penetrar para

garantir um outro bem igualmente digno de proteção jurídica e que, nas circunstâncias

do caso concreto, apresente peso superior ao meu trunfo. E essa abrangência dos

direito fundamentais que faz com que sejam garantias jurídicas fortes contra os

Poderes Públicos.303

Para os defensores da teoria da eficácia imediata, o mesmo ocorreria quando

estivessem em conflito dois direitos fundamentais nas relações interprivados, ou seja,

um direito fundamental cederia perante outros bens que apresentem um maior peso.

A ponderação entre direitos fundamentais conflitantes somente é valorativamente

enquadrada de maneira adequada se observado for o princípio parametrizador da

dignidade humana.304

Ocorre que, diferentemente da relação indivíduo-Estado – em que um direito

fundamental somente cede se o Estado encontrar uma justificação de peso

essencialmente irrefutável, pois a simples vontade da maioria democrática não é

suficiente para justificar a restrição –, nas relações entre privados, quando um deles

utiliza do trunfo, invarialmente a outra parte apresenta o trunfo de mesmo peso ou até

o mesmo trunfo. Qual deveria prevalecer?

O professor Jorge Reis Novais responde:

absorvidos e tidos em conta na legislação ordinária que regula o estabelecimento de relações privadas.” (NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88). 302 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 88-89. 303 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 304 COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Sobre a justificação das restrições aos Direitos Fundamentais. In: MIRANDA, Jorge (Coord.). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia. v. 1. Coimbra: Editora Coimbra, 2010, p. 557-574.

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...toda a argumentação a favor de uma posição jusfundamental pode ser replicada com os mesmos ou idênticos argumentos a favor da outra posição jusfundamental em confronto, donde que o pretendido acréscimo de proteção visado com esta teoria305 seria imediatamente neutralizado pela recíproca invocação dos mesmos argumentos a favor da outra parte.306 (NOVAIS, 2006, p. 90).

Dessa forma, logo no primeiro momento de aplicação de direito fundamental

como se subjetivo fosse contra outros particulares, a força desse direito é

desvitalizada ou neutralizada por meio da invocação mútua por parte do oponente.307

Observem, para não cair na armadilha dos aplicadores da teoria da eficácia

imediata, que a relação indivíduo-Estado é qualitativamente diferente da relação

indivíduo-indivíduo. Isso porque, naquela, o Estado não é titular de direitos

fundamentais, “ele dificilmente pode invocar razões jusfundamentais a favor do

interesse que pretende prosseguir” 308 . Por outro lado, nas relações interprivados,

ambas as partes da relação são sujeitos ativos dos direitos fundamentais, quedando-

se a ponderação sem critérios jusfundamentais de solução. E mais, aquilo que a teoria

da eficácia imediata prometera, ou seja, maior proteção decorrente do

reconhecimento de um direito subjetivo jusfundamental, é esvaecida precisamente

“pela mesma via por onde entrara: a neutralização implicada na existência de um

direito subjetivo de idêntico peso do lado contrário”.

A teoria do dever de proteção, verificada a assimetria da relação, como a

maioria das relações empregatícias, a dimensão do poder privado, obriga o Estado a

adotar uma posição de preservar os direitos fundamentais ante ameaças e

compressões que padeçam em decorrência da própria multifacetada dinâmica das

relações entre particulares.309

Assim, o Estado deve proteger quem se encontre numa posição de

necessidade que impeça o livre exercício dos direitos fundamentais e deve proteger

quem se encontre numa situação de fragilidade perante poderes privados

305 Teoria da eficácia direta ou imediata. 306 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 307 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 90. 308 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 92-93. 309. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 93.

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demasiadamente fortes, colocando em igualdade de condições em relações

assimétricas.310

Por fim, qualquer conflito entre direitos fundamentais entre particulares, quando

levado a cabo, transmuda-se em relações de colisão entre esses direitos e, na

ausência de qualquer hierarquia constitucional pré-definida, terá que ser decidida pelo

juiz. O resultado dessa decisão irremediavelmente trará como consequência a

cedência de um direito fundamental, isso é, a restrição de direito fundamental através

da decisão judicial. Na realidade, ao cabo, o que ocorre é uma relação vertical

jusfundamental entre o Estado e o indivíduo que origina-se na intervenção restritiva

dicidida pelo juiz. A tese da eficácia imediata que procurava afastar-se da mediação

do Estado, que nada mais é do que o dever de proteção do Estado, termina a remeter

a questão para o plano das relações Estado-indivíduo.

Questão importante e que precisa estar clara para melhor compreensão do

tema pelo intérprete é que os deveres de proteção recaem sobre todos os órgãos do

Estado e, primariamente, sobre o legislador e que os direitos fundamentais se

realizam nas relações interprivados através desses deveres e não através da

titularidades desses direitos por parte de particulares em face de outros particulares.

Um exemplo da seara trabalhista elucidará o acima mencionado. Se não fosse

dessa forma, ou seja, se os direitos fundamentais não se materializassem através do

Estado, um empregador não poderia admitir um filho de um amigo na sua empresa,

tendo ciência que há outro canditado melhor preparado para assumir a vaga, pois

bastaria esse canditado invocar o direito fundamental à igualdade para conquistar a

referida vaga. E justamente por não se realizarem nas relações privadas através da

titularidade por parte dos privados que os direitos fundamentais não podem ser

invocados no exemplo acima diretamente pelo particular. O professor Jorge Reis

Novais (2006) indaga se o empregador poderia manter o filho do amigo no emprego

em detrimento de outro empregado, mesmo esse passando por dificuldades

financeiras e com maior produtividade na empresa. Pode sim, salvo “se o legislador,

no exercício de seu direito constitucional de proteger o direito ao trabalho, a família ou

310 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 94.

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a própria igualdade, tenha estabelecido restrições (não ilegítimas ou inconstitucionais)

àquela minha liberdade geral de acção (sic).”311

A liberdade individual, para a tese dos deveres de proteção, pode e deve ser

limitada pela obrigação do Estado de resguardar e fomentar a igualdade enquanto

preceito constitucional. Contudo, se a atividade estatal, sob o pretenso argumento de

igualar, implicar restrição de direitos fundamentais, estará submetida ao

correspondente controle de constitucionalidade.312

Se o Estado legisla impondo determinados deveres de comportamento aos

particulares nas relações interprivados, com fulcro no princípio da igualdade e o

mesmo vale para os demais direitos fundamentais, nesse caso brotam direitos

subjetivos invocáveis nessas relações.313

A tese da eficácia direta dos direitos fundamentais não se sustenta

empiricamente com exemplos da vida cotidiana e, em verdade, desloca os direitos

fundamentais à fase historicamente superada em que os direitos fundamentais valiam

como meras proclamações pregramáticas, ou seja, volta a remetê-los para o âmbito

das boas intenções. Levando a sério o predicado de direitos subjetivos oponíveis a

outros particulares, os direitos fundamentais levariam o hermeneuta a situações

esdrúxulas em que os particulares destinatários de direitos fundamentais estariam

obrigados a observâncias desses princípios. Se a teoria que defende que os direitos

fundamentais deveriam ser aplicados diretamente nas relação privadas fosse

adotada, um homem poderia exigir judicialmente que o deixasse jogar em um

determinado time de futebol pelo simples fato de ter sido preterido por alguém que

demonstrasse simpatia por esse time nas redes sociais. Ou de um condômino poder

impugnar a realização de uma festa num apartamento, pelo simples fato de não ter

sido convidado por razões meramente ideológicas de simpatia à ditadura militar.314

311 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 99. 312 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 99-100. 313 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 100. 314 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 100.

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9 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO PRIVADO NO BRASIL, PORTUGAL E ESPANHA

Neste capítulo será empregada uma análise mais descritiva do que a

analítica-reflexiva da posição da doutrina e jurisprudência no Brasil, Portugal e

Espanha sobre o papel dos direitos fundamentais no Direito Privado.

A eficácia da Constituição no Direito Privado passa pelo olhar de duas

perspectivas. A interpretação das normas de direito privado conforme a Constituição

e também da incidência da Constituição no âmbito das relações jusprivatísticas.315

Insta mencionar, para evitar confusões terminológicas, que quando se utilizam

as expressões "eficácia horizontal" ou a expressão alemã Drittwirkung (eficácia em

relação a terceiros) não se quer limitar a eficácia das normas de direitos fundamentais

às relações jusprivatísticas, mas também reconhecer que essas normas irradiam suas

influências para atos dos agentes estatais, como se depreende da teoria dos deveres

de proteção.316

A doutrina brasileira, capitaneada pelo professor Ingo Sarlet, maior expoente

brasileiro em matéria de direitos fundamentais, segue a teoria da eficácia imediata dos

direitos fundamentais às relações privadas.

Dessa forma, enquanto que praticamente todos os autores brasileiros que

recentemente têm se debruçado sobre o tema anuem, com distinções de minudência,

à tese da eficácia imediata, por outro lado, parte substancial da doutrina portuguesa

apresenta-se em caminho contrário.

O principal fundamento da doutrina majoritária é que a Constituição brasileira

de 1988 expressamente dispôs que as normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, parágrafo 1º, da CFb: “As normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” 317 ).

Defende essa corrente doutrinária que esse artigo seria um verdadeiro mandamento

315 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 120. 316 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 125. 317 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.

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em favor de uma inequívoca eficácia direta das normas de direitos fundamentais "no

sentido de que todos os órgãos estatais estão obrigados a assegurar a maior

efetividade e proteção possível aos direitos fundamentais".318

Seria compreensível entender que o artigo 5º, parágrafo 1º, da CFb realmente

quis conceber aos direitos fundamentais eficácia direta em relação aos órgãos

estatais, porém, a doutrina brasileira foi mais adiante para admitir a eficácia imediata

aos direitos fundamentais também às relações privadas, pois, se assim não fosse,

estar-se-ia instaurando uma espécie de dupla ética social.

Porém, se o constituinte quisesse conceber eficácia imediata aos direitos

fundamentais às relações privadas, teria utilizado a redação do artigo 18 da

Constituição portuguesa que prevê expressamente a inclusão das entidades privadas

no rol dos destinatários dos direitos, liberdades e garantias. Isso porque a Constituição

portuguesa é anterior à Constituição brasileira, que é de 1988, e sofreu grande

influência daquela, mantendo o intercâmbio, já que o controle de constitucionalidade

difuso português sofrera forte influência do mecanismo já adotado no Brasil.319

Na realidade, andou bem o legislador constituinte brasileiro quando não

incluiu expressamente a incidência imediata dos direitos fundamentais também às

relações privadas, pois essas relações têm peculiaridades que as distinguem

sobremaneira das relações indivíduo-Estado.

Daí, surge uma primeira indagação. A Constituição brasileira não tem

nenhuma norma clara sobre forma de aplicação dos direitos fundamentais às relações

jusprivatísticas, todavia, a doutrina brasileira converge na afirmação da aplicabilidade

318 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: MONTEIRO; António Pinto, NEUNER; Jörg; SARLET; Wolfgang (Orgs.). Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 128. 319Mas foi dos portugueses que o constituinte transportou a sequência inicial de organização sistemática do texto. Comparando o Diploma Supremo de Portugal de 1976 com a Lei Maior dos brasileiros de 1988, iremos detectar a mesma ordem na distribuição das matérias, a saber: preâmbulo, princípios fundamentais e direitos fundamentais. A explicação para esse fato prende-se às ‘tradicionais afinidades histórico-culturais entre os dois países, mas também pela vivência contemporânea de processos de transição democrática, não obstante os seus traços diferenciadores. Deu-se, pois, continuidade a um intercâmbio jurídico que conheceu breves intervalos, como no caso do afastamento dos textos portugueses, logo após a independência, qualificado de ‘freudiano’ por Gilberto Freyre. Evoquem-se, por exemplo, a repercussão da Constituição portuguesa de 1820 na imperial brasileira de 1824, na portuguesa de 1826; a nossa republicana de 1891, na deles de 1911; a deles de 1933, na Constituição do Estado Novo de Getúlio Vargas, de 1937’[...] (BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 63).

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direta dos direitos fundamentais; a Constituição portuguesa, por seu turno, consagra

a aplicabilidade direta de forma aparentemente inequívoca, se utilizada a

interpretação literal, pelo menos no sentido em que não distingue a vinculação dos

entes públicos da vinculação dos privados (“os preceitos constitucionais respeitantes

aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as

entidades públicas e privadas”320) e os portugueses demonstram evidentes cautelas

em abraçar tal posição.321

Assim, é indispensável a análise do Direito Comparado quando em análise a

experiência brasileira. Mesmo em Portugal, onde há previsão expressa pelo menos

em uma interpretação literal do texto constitucional, a questão da possibilidade de

eficácia imediata dos direitos fundamentais às relações privadas não foi solucionada

pela doutrina:

Dado que a leitura da Constituição não permite, por si só, retirar qualquer conclusão segura, parece preferível não nos centramos acirradamente na exegese do texto constitucional – donde é sempre possível retirar mais ou menos do que ele efeticvamente diz – e considerar preferencialmente o problema no plano geral da controvérsia que tem ocupado a doutrina e jurisprudência dos Estados de Direito há mais de meio século.322 (NOVAIS, 2006, p. 70).

O professor José de Melo Alexandrino (2011), trantando da aplicação dos

direitos fundamentais nas relações privadas em Portugal, defende a tese que os

direitos fundamentais não são aplicáveis diretamente nas relações entre particulares,

pois existe uma diferença de fundo entre a vinculação do Estado e a vinculação da

sociedade. Os Poderes Públicos estão total, direta e imediatamente vinculados aos

direitos fundamentais, enquanto os particulares gozam de autonomia e de liberdade,

“no quadro do sistema de direitos e liberdades fundamentais” 323 . E continua o

professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa acastelando a tese da

eficácia mediata de aplicação dos direitos fundamentais na relação interprivados, não

é direta porque, na compreensão dos direitos fundamentais da CRP, na série de

320 PORTUGAL. Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2002. 321 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 69-70. 322 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70. 323 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 102.

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valores, bens e interesses constitucionais importantes, a liberdade negativa desfruta

ao cabo de uma precedência sobre outras referências (como a solidariedade) e outros

princípios constitucionais, “a isso correspondendo a vincada reafirmação da primazia

dos direitos fundamentais de liberdade na sua função dominante”.324

O exemplo dado pelo referido professor para explicar o porquê da prevalência

da teoria do eficácia mediata do direitos fundamentais, mesmo sem olvidar da

importância da teoria dos deveres de proteção com o reforço que lhe é dado pelo

modelo dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria, em detrimento da

teoria da eficácia imediata, é na seara trabalhista. Segue o exemplo:

Saber se é ou não lícito a uma entidade patronal exigir aos candidatos a um lugar que se submetam a determinados exames médicos não deve ser resolvido por força da aplicação directa do direito à reserva da intimidade da vida privada (26o, no 1), mas sim por recurso às soluções desenhadas pelo legislador (no caso, o artigo 19o do Código do Trabalho) ou, na sua ausência, por recurso aos princípios gerais do Direito privado.325 326 (ALEXANDRINO, 2011, p. 102).

Na Alemanha, a redação do artigo 1º, 3, da Constituição deste país (“Os

direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente

aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário” 327 ) orienta o

intérprete, em interpretação literal a contrario sensu, que o constituinte adotou a teoria

da eficácia mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Isso porque há

a adoção da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais em relação aos

324 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 102. 325 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 103-104. 326 O professor José de Melo Alexandrino traz interessante exemplo, na seara trabalhista, para justificar que um direito fundamental não tem como destinatário exclusivo um particular. “Poderá o direito à greve (do artigo 57o da CRP) ter como destinatário principal ou exclusivo as entidades patronais privadas? ...o conteúdo da garantia fundamental do direito à greve analisa-se numa relação entre o sujeito activo (o trabalhador), o sujeito passivo (o Estado) e o objeto do direito (o conjunto de poderes necessários para decidir, aderir a, e conduzir a greve), onde de modo algum figuram entidades patronais.” (ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos Fundamentais: Introdução Geral. 2. ed. Cascais: Princípia, 2011, p. 104). 327 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: <https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar.2 014.

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órgãos estatais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, conforme redação

literal do artigo, e não há inserção dos particulares na redação do referido artigo.328

O Supremo Tribunal Federal brasileiro em três ocasiões inclinou-se a favor da

teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais.

Seguem as decisões:

A primeira (Recurso Extraordinário 158215-4/RS) debateu sobre a aplicação

da ampla defesa e do contraditório em caso de exclusão de sócio de cooperativa sem

adentrar com profundidade na temática da distinção entre eficácia imediata e

mediata.329Contudo, a decisão prestigiou a tese da eficácia imediata dos direitos

fundamentais.

DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLACAO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais.

328 SARLET, Ingo. A influência dos direitos fundamentais no direito privado: o caso brasileiro. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 129. 329 Paulo Gustavo Gonet Branco analisa essa decisão: “A segunda turma do Supremo Tribunal enxergou controvérsia constitucional apta a ensejar o conhecimento e provimento de recurso extraordinário em causa em que se discutia a legitimidade formal da expulsão de sócios de uma cooperativa, sem a observância dos preceitos estatutários relativos à defesa dos excluídos. O relator, Ministro Marco Aurélio, dirigiu toda a apreciação do caso para o ângulo da garantia constitucional da ampla defesa. Argumentou que ‘a exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. (...) Incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-los sumariamente do quadro de associados(...), sem a abertura de prazo para produção de defesa e feitura de prova’. O acórdão não se deteve em considerações acadêmicas sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, o que o torna ainda mais sugestivo. A decisão tomou como indiscutível que há normas de direitos fundamentais que incidem diretamente sobre relações entre pessoas privadas. Deixou para os comentadores os adornos doutrinários” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associacoes, Expulsao de Socios e Direitos Fundamentais, Direito Publico. v. 1, n. 2. Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2003, p. 170-174).

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COOPERATIVA - EXCLUSAO DE ASSOCIADO – CARATER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa. RE n° 158.215-RS, Rel. Min. Marco Aurélio., DJ de 07 de junho de 1996. (BRASIL, 1996)330

A segunda decisão (Recurso Extraordinário 161.243-6/DF) que versava sobre

a aplicação do princípio da igualdade às relações trabalhistas no caso de empresa

que diferenciava empregados brasileiros e estrangeiros também não enfrentou o

espinhoso tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas suas diversas

teses. Porém, sinalizou pela adoção da teoria da eficácia imediata.

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCIPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. CF, 1967, art. 153, § 1o; CF, 1988, art. 5o, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: CF, 1967, art. 153, § 1o; CF, 1988, art. 5o, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: AI 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.331 RE n° 161.243-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 19 de dezembro de 1997. (BRASIL, 1997).

A terceira decisão (Recurso Extraordinário 201819), que teve o voto-vista do

Ministro Gilmar Ferreira Mendes e a sua defesa em prol da eficácia direta dos direitos

fundamentais nas relações privadas, foi a que melhor enfrentou a temática da eficácia

horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no âmbito do Supremo

Tribunal Federal. Contudo, vale ressaltar que a decisão ocorreu no âmbito de controle

330 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 158.215-RS. Relator: AURÉLIO, Marco. Diário Oficial, Brasília, 7. mai. 1996, p. 19830. 331 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057.

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difuso e incidental de constitucionalidade. Assim sendo, tal decisão não gera efeitos

erga omnes nem tampouco eficácia vinculante.

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os Poderes Públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. Recurso extraordinário

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desprovido.STF – RE 201819 / RJ – 2ª Turma – Relª. Minª. Ellen Gracie – DJ 27 de outubro de 2006.. (BRASIL, 2006).332

Todavia, a decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal traz uma

importante questão. Na decisão, restou evidenciado que somente pelo caráter público

e geral do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais se

legitimaria a aplicação da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas

relações privadas: "Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui

para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido

processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) ao processo

de exclusão de sócio de entidade"333.

Ora, a contrario sensu, o Ministro Gilmar Mendes parece não admitir a teoria

da eficácia horizontal dos direitos fundamentais de forma direta quando a relação

privada não tiver carácter público e geral, aproximando-se da public function theory.

Dessa forma, conclui-se que, mesmo sem entrar nas discussões sobre as

mais diferentes teorias acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o

Supremo Tribunal Federal brasileiro está inclinado a adotar a teoria da eficácia

imediata, ou seja, vem aplicando diretamente os direitos individuais consagrados na

Constituição na resolução de litígios privados.

A Constituição portuguesa, embebida por ideias de conceber maior

efetividade aos direitos fundamentais e por receio de que os juízes aplicassem as leis

de direito privado sem observar os princípios objetivos da Constituição, normatizou

em seu texto a ideia da eficácia imediata dos direitos fundamentais. Isso porque o

constituinte já sabia, naquela altura, que os alemães já discutiam as teorias da eficácia

horizontal dos direitos fundamentais há 20 anos. A Constituição espanhola da mesma

época, de maneira oposta, não previu nada a respeito da eficácia dos direitos

fundamentais nas relações privadas.334

332 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11 out. 2005. Diário Oficial, Brasília, 27 out. 2006, p. 00064. 333 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11 out. 2005. Diário Oficial, Brasília, 27 out. 2006, p. 00064. 334 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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Assim, surge uma indagação: onde os direitos fundamentais nas relações

privadas são melhor protegidos, em Portugal ou na Espanha?

Por mais incrível que pareça, não há jurisprudência do Tribunal Constitucional

português sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, salvo casos de direito

laboral em matéria de direito coletivo, diferente do Tribunal Constitucional espanhol

que julgou centenas de casos.335

Portanto, verifica-se que a adoção da teoria da eficácia imediata dos direitos

fundamentais, como, por exemplo, o caso português, nem sempre é a que traz maior

eficácia aos direitos fundamentais e isso ocorre porque a dimensão material e a

dimensão processual devem seguir juntas, pois senão há um vazio, não há proteção

aos direitos fundamentais.336

A eficácia jurídica dos direitos fundamentais no Direito Privado não é apenas

um problema jurídico-material, mas que tem consequências processuais e

institucionais consideráveis. A mais simples é a situação nos Estados em que não há

Tribunais Constitucionais específicos. Os direitos fundamentais garantidos na

Constituição são acolá protegidos através dos tribunais ordinários e, em última

instância, pelo Tribunal Supremo, que exerce, ao mesmo tempo, as funções de

tribunal de revisão e de tribunal constitucional (jurisdição constitucional), aplicando a

primazia dos direitos fundamentais constitucionais sobre o Direito Privado ao

interpretar a lei.

A CRP previu expressamente a eficácia imediata dos direitos fundamentais

nas relações interprivados (esfera material) e nenhuma violação de direito

fundamental perpetrada por privados chega à Corte mais afeta para decidir violações

a direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional português. Ora, a ideia do

constituinte era justamente retirar do juiz comum a apreciação dessas violações

quando inseriu o artigo 18 da CRP para levá-las ao Tribunal Constitucional, mas, no

sistema de fiscalização da constitucionalidade português, essas questões não

chegam ao Tribunal Constitucional para apreciação.

E por que isso acontece? Por que a matéria da eficácia horizontal dos direitos

fundamentais não chega para apreciação do Tribunal Constitucional no sistema de

335 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 336 Id.

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fiscalização da constitucionalidade? Simples, porque o sistema de constitucionalidade

português somente previu a fiscalização de constitucionalidade de normas e os

particulares não fazem norma, exceto convenções coletivas de trabalho. Assim, a

mais grave violação em matéria de direitos fundamentais na relação jusprivatística é

resolvida pelo juiz comum e não pelo Tribunal naturalmente afeto a decidir essas

questões.337

E mais, se um juiz comum, quando decide um conflito de direito privado, não

atende, ou até viola, um direito fundamental de uma das partes afetadas por ação de

outro particular, o cidadão português lesado pode invocar essa violação perante o

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas já não o pode fazer perante o seu

Tribunal Constitucional.338

Na Espanha, onde a doutrina e jurisprudência adotaram a teoria da eficácia

imediata dos direitos fundamentais e há possibilidade de manejar o recurso de

amparo, estaria o Tribunal Constitucional espanhol realmente dando efetividade aos

direitos fundamentais das relações interprivados?

A Ley Orgánica del Tribunal Constitucional (LOTC), no seu artigo 41.2, exclui

do âmbito objetivo do procedimento constitucional do amparo as pretensões que não

se dirijam contra atos dos Poderes Públicos. Portanto, as condutas dos particulares

que se considerem lesivas de um direito fundamental serão apreciadas

exclusivamente por juízes e tribunais ordinários e não pelo Tribunal mais afeto às

questões que envolvam direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional.

Felizmente, a tendência inicial a mesclar ou confundir os planos material e

processual em matéria de eficácia horizontal dos direitos fundamentais parece

superada. Para decidir qual teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações

interprivados o hermeneuta estará mais afeto, é irrelevante a configuração legal do

procedimento extraordinário do amparo como garantia que feche o sistema339, mas é

337 Conteúdo apreendido do debate do Professor da Universidade de Lisboa Jorge Reis Novais na conferência "Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas: Uma Via Brasileira?" realizada no dia 14 de maio de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 338 NOVAIS, Jorge Reis. A intervencao do provedor de justica nas relacoes entre privados. Lisboa: Novos Estudos, 2008, p. 21. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/268-124.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2014. 339 UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 170.

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relevante para determinar qual sistema e teoria trarão maior efetividade aos direitos

fundamentais.

Estranhamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol admite

dizer a última palavra nos casos em que a violação que se aprecia tenha sido causada

extrajudicialmente por um particular. Isso porque o artigo 44 da LOTC admite o recurso

de amparo contra violações causadas por órgãos judiciais.

Portanto, ao encontro do quanto determinado na teoria dos deveres de

proteção, o Tribunal Constitucional ultrapassa o obstáculo do 41.2 da LOTC, que

admite o recurso de amparo em face de violações dos Poderes Públicos, e abre a

possibilidade, de maneira reflexa, de apreciar, via recurso de amparo, controvérsias

entre particulares. Porém, há que se reconhecer que a admissão de uma demanda

como essa implica necessariamente a transformação de uma pretensão originária em

outra que se dirigirá agora contra um Poder Público (o Poder Judiciário).340

E mais, o artigo 44.1 LOCT estabelece que a violação apta a ensejar o manejo

do recurso de amparo tenha sua origem imediata e direta em um ato ou órgão judicial.

E é óbvio que a violação não surgiu imediata e diretamente do órgão judicial e sim do

ato causado em primeiro plano por um sujeito privado.

Mas por que o Tribunal Constitucional espanhol faz esse malabarismo?341

Simples, para dar maior efetividade aos direitos fundamentais. Contudo, se o

ordenamento jurídico espanhol tivesse adotado o recurso de amparo nos moldes do

adotado no Chile, inclusive em face de atos dos particulares, não teria o Tribunal

Constitucional todo esse trabalho argumentativo e talvez não gerasse eventual

rachadura no princípio da separação dos poderes, já que o legislador espanhol,

diferentemente do chileno que previu o super amparo, inclusive quando, em conflito

Ubillos afirma: “Lo que cruenta, lo que resulta determinante es la extensión de la tutela general de los derechos a cargo de la jurisdicción ordinaria. Es en este terreno en el que se juega realmente la partida”. (UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 171.) 340 Ibid. 172. 341 Ibid. 173. O próprio Ubillos bem caracteriza o procedimento do Tribunal Constitucional espanhol quando admite o recuso de amparo nestes casos: “Se acude en estos casos a un expediente técnico ingenioso, que consiste en laimputación al órgano judicial de la violación cometida originariamente en el seno de una relación jurídico-privada”. (UBILLOS, Juan María Bilbao. La Eficacia frente a terceros de los derechos fundamentares en el ordenamiento español. In: Direitos Fundamentais e Direito Privado uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Editora Almedina, 2007, p. 173.)

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direitos fundamentais dos particulares, não previu a possibilidade de recurso de

amparo para apreciar a questão entre particulares.

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10 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

JUSTRABALHISTAS

Atualmente, os direitos fundamentais tornaram-se peças-chave nos diversos

ramos do Direito. Assim, em qualquer controvérsia, dificilmente pelo menos uma das

partes envolvidas não sustentará a violação ou ameaça a algum direito fundamental,

principalmente porque, no Brasil, adota-se quase que integralmente a teoria

alexyana342 dos Direitos Fundamentais e, no Direito do Trabalho, não poderia ser

diferente. Não há como imaginar as relações de trabalho no cenário jurídico sem levar

em consideração não somente os direitos fundamentais trabalhistas, como também

os direitos individuais, sociais e coletivos.343

Não há discussão na seara doutrinária e jurisprudencial brasileira sobre a

aplicação dos direitos fundamentais nas relações justrabalhistas, mas o que ainda não

restou consolidada nem mesmo pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro tampouco

pelo Tribunal Superior do Trabalho brasileiro foi como se dá a aplicação dos direitos

fundamentais nas relações no âmbito do Direito do Trabalho, ou seja, qual teoria dos

direiros fundamentais entre privados trará maior eficácia dos direitos fundamentais

aos particípes daquela relação, seja o empregado seja o empregador. Isso para dar

cientificidade à discussão e não aplicar indistintamente a teoria imediata dos direitos

fundamentais nas relações jusprivatísticas sob a ótica exclusiva do trabalhador,

olvidando que, do outro lado da relação, há uma parte (pessoa jurídica/coletiva privada

ou física/individual) também detendora de direitos fundamentais.344

342 Teoria desenvolvida por Robert Alexy no seu livro Teoria dos Direitos Fundamentais, que parte da premissa que todos os direitos fundamentais são aplicados prima facie. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Título original: Theorie der Grundrechte). 343 SARMENTO, Daniel; GOMES, Fábio Rodrigues. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: o caso das relações de trabalho. Revista TST, Brasília, v. 77, n. 4, p. 60, 2011. 344 Não há, em princípio, impedimento insuperável a que pessoas jurídicas venham, também, a ser consideradas titulares de direitos fundamentais, não obstante estes, originalmente, terem por referência a pessoa física. Acha-se superada a doutrina de que os direitos fundamentais se dirigem apenas às pessoas humanas. Os direitos fundamentais suscetíveis, por sua natureza, de serem exercidos por pessoas jurídicas podem tê-las por titular. (…) Garantias, porém, que dizem respeito à prisão (e.g., art. 5.º, LXI) têm as pessoas físicas como destinatárias exclusivas. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 271).

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Não há dúvida de que, num ordenamento que reconhece as liberdade

econômicas – e, especialmente, a da empresa – como um direito fundamental as

faculdades do empregador/empresário de criar, organizar e dirigir sua empresa,

pressupõe-se, necessariamente, a liberdade de dispor sobre todos os fatores que

intervém no processo produtivo ou na atividade econômica daquela, entre estes,

naturalmente, está o fator trabalho.345

A liberdade da empresa compreende vários aspectos. O primeiro deles supõe

a liberdade de empreender atividades econômicas, no sentido de livre fundação de

empresas e de livre acesso ao mercado de bens e serviços. Também como parte

essencial desse direito estão a liberdade de organização, de eleição de formas, nome

ou identidade da empresa, constituição interna etc e, finalmente, a liberdade de

exercício da atividade empresarial, liberdade de tomar decisões e de competir num

mercado livre.346

A Constituição brasileira reconhece a liberdade da empresa como um direito

fundamental, ao prever, nos incisos III e IV do art. 1º, que elencam como fundamentos

da República Federativa do Brasil, sob o regime político do Estado Social

Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho

e a livre iniciativa.

Esses postulados são também fundamentos da ordem constitucional

econômica, que se encontra prevista e regulamentada no art. 170 da CFb: “A ordem

econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por

fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”347. Esse

novo tratamento conferido à ordem econômica demonstrou a preocupação com o

equilíbrio entre a exploração da atividade econômica e a proteção dos direitos e

garantias constitucionalmente assegurados.

345 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 126. 346 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 126-127. 347 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017.

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Portanto, a livre iniciativa compreende a liberdade de organização, que, por

sua vez, inclui a contratação de pessoal, a política de pessoal e, em geral, a

administração das relações laborais.

Nesse sentindo, é inegável que, em um regime que, de forma explícita,

reconhece a liberdade da empresa, assim como o direito de propriedade e, em geral,

a iniciativa privada e a economia de mercado, o empregador, enquanto titular ou

proprietário da empresa, deve gozar das faculdades necessárias para organizá-la,

dirigi-la e administrá-la de acordo com seus interesses e objetivos, o que inclui,

necessariamente, a organização e direção do trabalho.348

O empregador, ao exercer o poder de direção, atua, por conseguinte, como

titular do direito fundamental da livre iniciativa, sendo que este se investe de

legitimidade prima facie de referido poder. Entretanto, não significa que esse poder

não se encontre sujeito aos limites provenientes do dever geral de respeito aos direitos

fundamentais dos empregados.349

O reconhecimento da legitimidade do poder de direção do empregador,

fundada no cruzamento direto com o direito fundamental de livre iniciativa, não

autoriza afirmar que esse direito é absoluto, porque tampouco é absoluto o próprio

direito fundamental de livre iniciativa.

O poder de direção tem a função, dentro do esquema organizativo da

empresa, de conceder ao empregador a autotutela para a realização de seu interesse

econômico. E, nesse sentido, o poder de direção, como todo poder, obedece a uma

necessidade social que, nesse caso, consiste no uso adequado da força de trabalho,

coordenando e dirigindo suas atividades, de modo que este concorra, de maneira mais

eficiente, para obtenção dos resultados e benefícios que todo investidor espera obter

quando funda uma empresa. Fora desse âmbito, referido poder não existe, porque a

relação de trabalho vincula duas pessoas dotadas de liberdades e igualdade jurídica

348 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 128. 349 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 128-129.

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que, como pessoas e cidadãos, se encontram relacionados por vínculos de

coordenação e não de subordinação nem de submissão.350

Portanto, o poder de direção está submetido, em primeiro lugar, aos limites

internos que nascem de sua própria natureza, como a faculdade atribuída ao

empregador para a organização e a administração eficiente do trabalho humano na

empresa. Essa faculdade circunscreve as manifestações concretas deste poder no

âmbito das relações laborais, sem permitir ao empregador extender-se,

indevidamente, em aspectos próprios da vida de cada trabalhador, estranhos à sua

atividade laboral. Na legislação espanhola (artigos 5.c e 20.2 do Estatuto do

Trabalhador de Espanha351), somente é exigível obediência do trabalhador às ordens

e instruções do empregador que esteja no exercício regular de suas faculdades de

direção.352

Os direitos fundamentais dos empregados são limites do poder de direção do

empregador que se funda no reconhecimento da eficácia erga omnes ou de eficácia

entre particulares dos direitos fundamentais. Em princípio, não é difícil reconhecer,

inclusive para os empregadores, a existência desses limites cujo fundamento resulta,

inquestionavelmente, na medida em que se entendam englobados no âmbito dos

direitos fundamentais laborais, os quais, por sua natureza, estão inseridos desde o

primeiro momento no conteúdo do contrato de trabalho, sendo indisponíveis para as

partes que o celebram.353

350BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 130. . 351 Artículo 5. Deberes laborales. Los trabajadores tienen como deberes básicos: c) cumplir las órdenes e instrucciones del empresario en el ejercicio regular de sus facultades directivas; Artículo 20. Dirección y control de la actividad laboral. 2. En el cumplimiento de la obligación de trabajar asumida en el contrato el trabajador debe al empresario la diligencia y la colaboración en el trabajo que marquen las disposiciones legales, los convenios colectivos y las órdenes o instrucciones adoptadas por aquél en el ejercicio regular de sus facultades de dirección y, en su defecto, por los usos y costumbres. En cualquier caso, el trabajador y el empresario se someterán en sus prestaciones recíprocas a las exigencias de la buena fe. 352 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 130-131. 353 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 132.

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Parece óbvio afirmar que o empregador se encontra vinculado aos direitos

fundamentais, tanto os do empregado enquanto cidadão como os vinculados

diretamente à relação de emprego, na mesma medida em que o empregado está

vinculado aos do empregador em cumprimento ao dever geral imposto a todos os

cidadãos brasileiros e portugueses nos artigos 5o, parágrafo primeiro, da CFb354 e o

18.1 da CRP 355 , que determinam a aplicação dos direitos fundamentais, sem

ressalvas, a todos os cidadãos. Isso significa que o empregador tem a obrigação de

respeitar os direitos da pessoa do trabalhador sem interferência ou coações de seu

livre exercício.356

É necessário distinguir as duas formas como os direitos fundamentais

vinculam o empregador. No primeiro caso, a vinculação negativa do empregador aos

direitos fundamentais do trabalhador não suscita nenhum problema, porquanto, como

pessoa e cidadão, o empregado exerce esses direitos fundamentais em face do

Estado, isso é, fora do âmbito da relação de emprego e, portanto, o que não se exige

é que o empregador não intervenha no exercício de referidos direitos. Em tal sentido,

o trabalhador pode processar determinada crença religiosa ou ideológica; pode

exercer ou deixar de exercer o direito de voto, incluído o de ser candidato a um cargo

de eleição popular; pode proteger sua intimidade familiar e sua honra no âmbito social

etc. Dessa forma, nada influencia a relação laboral que vincula o empregado ao

empregador e sem que, portanto, este se veja obrigado a atuar de forma alguma para

que o trabalhador exerça aqueles direitos.357

Contudo, distinta é a situação quando a operatividade de alguns desses

direitos é exercida em face do empregador no âmbito próprio da relação de emprego,

na medida em que o exercício desses direitos se contraponha ao poder diretivo do

empregador. Destaca-se que, dada a forte implicação da pessoa do trabalhador na

execução da prestação laboral, os poderes do empresário (poder de direção e

354 § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 355 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 356 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 135-136. . 357 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 137.

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disciplinar) constituem uma ameaça potencial para os direitos fundamentais dos

trabalhadores.358

O exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores está supraditado e

limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato

fruto do exercício do direito à autonomia negocial que não é outra coisa que a

manifestação do direito de liberdade.359

O objeto do contrato de trabalho constitutui, portanto, o primeiro limite que

encontra o trabalhador para o exercício de seus direitos fundamentais, pois estes

podem estar restringidos ou não exercitáveis na relação de emprego em função do

serviço que o trabalhador está obrigado a prestar e das condições para executá-lo,

ficando satisfeitas ambas as partes do contrato. Como exemplo dessa classe de

limitações estão aquelas afetas à aparência pessoal, tais como a do empregado

ostentar uma barba ou bigode.360

Desse modo, se produz um processo de interiorização da lógica contratual

sobre os direitos fundamentais dos trabalhadores que atuará como barreira natural ou

muro de contenção frente a qualquer tentativa do trabalhador de modificação das

condições de prestação laboral pactuada, tendo como fundamento o respeito a seus

direitos fundamentais. Os direitos fundamentais dos trabalhadores no contrato de

trabalho não podem afetar o restante de seus deveres contratuais.361 Seria o exemplo

caricato do jogador de futebol Cristiano Ronaldo querer exercer seu direito

fundamental ao lazer, saindo da concentração do time em um hotel, na noite anterior

a uma partida final da Champions League. O jogador profissional de futebol, cuja a

vida privada tem inegável influência em seu rendimento, tem limitado seu direito

fundamental à privacidade, pois se reconhece ao empregador – o clube de futebol –

358 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 137. 359 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 139. 360 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141. 361 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141.

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o direito de regular certos aspectos daquela.362 Conduto, apesar da natureza da

prestação laboral do jogador profissional de futebol lhe impor certas exigências

necessárias para garantir seu rendimento, não atribui ao empregador uma faculdade

específica para intervir diretamente em sua vida privada, determinando qual conduta

observar e qual evitar. 363

Essa situação de verdadeira subordinação dos direitos fundamentais às

obrigações nascidas do contrato de trabalho cederá unicamente quando estiver em

jogo a dignidade da pessoa do trabalhador364, quando a prevalência dos interesses

do empregador não suponha lesão aos valores elementares da dignidade da pessoa

que, dessa forma, atua como limite dos limites dos direitos fundamentais do

trabalhador. 365

362 Vicente Pachés assevera que no caso do jogador de futebol não é que este resulte privado do direito de conduzir sua vida pessoal como desejar – mesmo que de forma não condizente com o esporte que pratica – mas que esteja ciente que a causa para uma sanção ou eventual resolução de seu contrato de trabalho consistirá não de referida conduta, mas sim de seu rendimento deficiente como resultado direto de seu comportamento. (VICENTE, Fernando de Pachés. El derecho del trabajador al respeto de su intimidad. Madrid: Consejo Económico y Social, 1998, p. 363). 363 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 270. 364 Como no emblemático caso do arremesso de anões. Em uma cidade francesa chamada Morsang-sur-Orge, a Prefeitura, utilizando seu poder de polícia, resolveu interditar um bar onde era praticado o lançamento de anões, argumentando que aquela atividade violava a ordem pública, pois era contrária à dignidade da pessoa humana. Não se conformando com a decisão do Poder Público, o próprio anão (Sr. Wackenheim) questionou a interdição, argumentando que necessitava daquele trabalho para a sua sobrevivência. O anão argumentou que o direito ao trabalho e à livre iniciativa também seriam valores protegidos pelo direito francês e, portanto, tinha o direito de decidir como ganhar a vida. Em outubro 1995, o Conselho de Estado francês, órgão máximo da jurisdição administrativa daquele país, decidiu, em grau de recurso, que o Poder Público municipal estaria autorizado a interditar o estabelecimento comercial que explorasse o lançamento de anão, pois aquele espetáculo seria atentatório à dignidade da pessoa humana e, ao ferir a dignidade da pessoa humana, violava também a ordem pública, fundamento do poder de polícia municipal. O Sr. Wackenheim, mais uma vez inconformado, recorreu ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, alegando que a decisão seria discriminatória e violava o seu direito ao trabalho. Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos Humanos da ONU confirmou a decisão do Conselho de Estado francês, reconhecendo que o lançamento de anão violaria a dignidade da pessoa humana e, portanto, deveria ser proibido. Disponível em: <https://direitosfundamentais.net/2007/08/14/jurisprudenciando-casos-curiosos-julgamentos-pitorescos/>. Acesso em: 8 abr. 2017. 365. BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016. p. 141.

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Numa relação de emprego, o hermeneuta deve atentar para o parâmetro com

respeito ao qual se coteja o direito fundamental do trabalhador, porque o conflito que

se apresenta não se dá entre esse direito e as obrigações contratuais do trabalhador

e sim com as faculdades organizativas do empregador, isso é, com seu direito,

também fundamental, de livre iniciativa empresarial. Se o conflito ocorresse entre os

direitos fundamentais do empregado e as obrigações contratuais do trabalhador,

sempre (ou quase sempre) penderia a balança em favor do empregado devido ao

conteúdo e significado daqueles que deverão prevalecer sobre estas, depedendo do

direito fundamental implicado e do caso concreto. Acontece que, na realidade, o

conflito que ocorre é entre direitos fundamentais para aqueles que defendem a

aplicação imediata dos direitos fundamentais ou dever do Estado de proteção para os

adeptos da teoria defendida por Canaris.

Se o conflito ocorre entre os direitos fundamentais do empregado e

obrigações contratuais do trabalhador, equivale a privar de sua fundamentalidade

aqueles direitos, pois, ao empregador, pode bastar a simples invocação de uma

norma, inclusive as de categoria inferior, ou de uma claúsula de uma convenção

coletiva de trabalho ou de um contrato individual, que estabeleçam certas obrigações

a cargo do trabalhador ou lhe confiaram determinadas ordens para produzir o efeito

limitativo do direito fundamental do trabalhador. É o que ocorreria com um trabalhador

que invocasse o direito fundamental de liberdade religiosa para rezar durante um

experimento científico instantâneo que, caso demorasse, mataria milhares de células

que combatessem grave doença. Ou seja, empiricamente, pelo que as sociedades

ocidentais acreditam como razoáveis, podemos afirmar que o conflito acima narrado,

com prevalência para as obrigações contratuais do empregado em detrimento de seu

direito fundamental à liberdade religiosa, poria em questão o pacto social fundante

das constituições modernas e, em última análise, o próprio fundamento axiológico da

configuração dos direitos da pessoa humana como direitos fundamentais.

O fato de o empregador também ser sujeito ativo de direitos fundamentais traz

como consequência a situação jurídica do trabalhador ser albergado de duas

maneiras: uma fora e outra dentro da empresa. Desse modo, no interior da empresa,

funciona como pressuposto do exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores

uma certa lógica contratual em que o empregado voluntariamente adere ao quanto

estabelecido no contrato de trabalho e deixa de exercitar seus direitos fundamentais

em plenitude. Assim, os direitos fundamentais que os empregados exercitam fora da

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empresa, e que constituem o sustentáculo e conteúdo de sua condição de cidadão,

deixam de ser exercitados plenamente, pois é submetido a uma lei própria (contrato

de trabalho, regulamento de empresa etc) e específica em que se estabelecem

preceitos obrigatórios de seu comportamento. Isso ocorre pelo simples fato do

cidadão, enquanto fora do ambiente empresarial, na sua relação com Estado, é

somente sujeito ativo de direitos fundamentais em face desse mesmo Estado, que é

somente sujeito passivo desses direitos; enquanto que, na relação empregado-

empregador, ambos são sujeitos ativos e passivos de direitos fundamentais, como já

defendido na apresentação da teoria dos deveres de proteção.

O contrato de trabalho é, no tocante a seu conteúdo laboral, um contrato

“normado”, obrigado, portanto, a respeitar e realizar os direitos fundamentais

específicos do trabalhador e o poder de direção do empregador, por consequência, é

submetido a diversas limitações e controles, dentro de um esforço de regulação e

racionalização destinado a reduzir a possibilidade de seu exercício arbitrário, o que,

por óbvio, não afasta a possibilidade de vínculos de vassalagem.

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11 CASOS APRECIADOS PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS DE APLICAÇÃO DA

EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE

EMPREGO

Ao Poder Judiciário brasileiro, chegam diversos casos concretos nos quais o

debate se circunscreve ao redor da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no

domínio das relações privadas e da licitude ou ilicitude de condutas empresárias –

comissivas ou omissas – que, potencial ou efetivamente, venham a dificultar ou a

embaraçar os direitos fundamentais dos trabalhadores.366

Pelas impossibilidades material, temporal e espacial de explicitar todas as

hipóteses relacionadas ao tema, que apresentam uma gama superabundante de

variáveis, serão apresentados alguns julgamentos que enfrentaram o assunto na

esfera dos tribunais trabalhistas brasileiros.367

O Supremo Tribunal Federal, em 1996, proferiu decisão paradigmática sobre

a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego.

No julgamento do Recurso Extraordinário nº 161.243-6, com fulcro no princípio

da igualdade, determinou a extensão a empregado brasileiro da Compagnie Nationale

Air France dos benefícios previstos em regulamento empresarial, que, até então, eram

privativos dos empregados que tivessem a mesma nacionalidade da empresa.

Segundo o Relator, Ministro Carlos Velloso, “A discriminação que se baseia em

atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a

nacionalidade, o credo religioso etc., é inconstitucional”368. O princípio da igualdade

foi escolhido para análise, pois se trata de um princípio que se manifesta em múltiplas

normas consagradoras de outros direitos fundamentais.369

366 EFICÁCIA horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego: algumas verdades. Brasília: TST Jus, 2011. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/documents/1295387/3482748/Efic%C3%A1cia+horizontal+dos+direitos+fundamentais+nas+rela%C3%A7%C3%B5es+de+emprego+-+algumas+verdades.> Acesso em: 12 fev. 2017. 367 EFICÁCIA horizontal dos direitos fundamentais nas relações de emprego: algumas verdades. Brasília: TST Jus, 2011. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/documents/1295387/3482748/Efic%C3%A1cia+horizontal+dos+direitos+fundamentais+nas+rela%C3%A7%C3%B5es+de+emprego+-+algumas+verdades.> Acesso em: 12 fev. 2017. 368 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057. 369 MORAIS, Carlos Blanco de. Os direitos, liberdades e garantias na jurisprudência constitucional portuguesa: um apontamento. In: O Direito. Ano 132. III-IV (Julho-Dezembro). Editora Internacional. Lisboa: Editora Internacional, 2000, p. 361-380.

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CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.STF – RE 161243/DF – 2ª Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – DJ 19 de dezembro de 1997 (BRASIL, 1997).370

A esfera das relações laborais é uma daquelas em que a tutela

antidiscriminatória resulta mais necessária, tendo em vista a intensidade com que o

fenômeno da discriminação se encontra presente.

A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define,

precisamente em seu artigo 1o, parágrafo primeiro, alínea “a”, no âmbito laboral, a

discriminação:

a) Toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) Toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Estado Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de patrões e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados.371

(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT, 1958, N.P).

Nessa definição, se apresentam três elementos que devem concorrer para

configurar a discriminação.

370 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso extraordinário n° 161.243-DF, Relator: VELLOSO, Carlos. Diário Oficial, Brasília, 19 dez. 1997, p. 00057. 371 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção 111 Sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão. 1958. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-oit-111-emprego.html>. Acesso em: 12 fev. 2017.

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Em primeiro lugar, um ato que estabeleça uma distinção, uma exclusão ou

uma preferência também pode tratar-se de uma restrição, conforme artigo 1o, inciso

1, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial 372 . Em segundo lugar, um motivo determinante de referida

diferença (raça, cor, sexo, religião etc). E, em terceiro lugar, o resultado objetivo dessa

diferença de tratamento, que consistirá na anulação ou na alteração da igualdade de

oportunidades no âmbito laboral.373

O termo discriminação, especialmente no âmbito laboral, pode entender-se

em outro sentido, dotado de maior amplitude. A discriminação tem dois significados

de alcances diversos. Para o primeiro, há discriminação toda vez que se pratique uma

distinção arbitrária, isso é, carente de causa objetiva e razoável. Já para o segundo,

somente há discriminação quando o tratamento se fundar em um motivo proibido pelo

ordenamento jurídico.374

Um exemplo de não discriminação ocorreria no seguinte caso: um

empregador abriu processo seletivo para a disputa de uma vaga de diretor de sua

empresa e vários canditos se canditaram à vaga. Depois da análise dos currículos, o

empregador verificou que, dentre os canditados aptos para função, estaria seu filho e,

mesmo havendo outros com currículos melhores, o empregador resolveu contratá-lo

em detrimento dos demais canditados pelo fato de ser seu filho. No exemplo acima,

verifica-se que não houve discriminação, segundo os critérios adotados, pois houve

causa objetiva e razoável para a contratação do filho e esse tratamento não é proibido

pelo ordenamento jurídico, máxime quando o empregador está escudado por seu

direito fundamental à propriedade privada.

372 Artigo 1o, inciso 1, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial: “Na presente Convenção, a expressão a «discriminação racial» visa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência na origem nacional ou étnica que tenha como objectivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais nos domínios político, económico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública”. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção 111 sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão. 1958. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/pd-conv-oit-111-emprego.html>. Acesso em: 12 fev. 2017. 373 POTOBSKY, Geraldo von; DE LA CRUZ, Héctor Bartolomei La organización internacional del trabajo. El sistema normativo internacional. Los instrumentos sobre derechos humanos fundamentales. Bueno Aires: Astrea-Depalma, 1990, p. 436. 374 MUJICA, Javier Neves. Introducion al derecho laboral. 2.ed. Lima: Fondo Editorial PUCP, 2003, p. 109.

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Em geral, a discriminação em matéria laboral aparece quando atinge o

trabalhador em suas características inatas como ser humano ou quando se vulnera a

cláusula de não discriminação prevista nas Constituições.

A prática da discriminação que a CFb protege no artigo 7o, inciso I375 se

projeta sobre a relação de trabalho, operando como um motivo de ilegitimidade radical

da ruptura do vínculo empregatício ou como ato de hostilidade do empregador,

habilitando o empregado a optar pela reintegração com ressarcimento integral de todo

o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas ou pela

percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, bem como

também pelo direito à reparação pelo dano moral.376

O artigo 9o da CLT do Brasil estabelece que serão nulos de pleno direito os

atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos

preceitos contidos na presente Consolidação, ou seja, estabelece, por óbvio, como

causa de nulidade, a despedida ou ato de hostilidade do empregador em razão de

sexo, raça, religião, opnião, idioma ou doença. 377

O artigo 1o da lei 9.029/95 estabeleceu a enumeração legal dos motivos de

discriminação aplicacáveis à despedida arbitrária ou sem justa causa: qualquer prática

discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua

manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar,

deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros.378 A legislação se coaduna

com o texto do artigo 7o, inciso I, da CFb, na medida que estabeleceu a expressão

ampliativa-protetiva entre outros. Isso porque se incluiu na expressão genérica entre

375 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 376 BRASIL. Lei número 9.029, de 13 de abril de 1995. Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 13 abr. 1995. Disponível em: . <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm>. Acesso em: 01 mar. 2017. 377 BRASIL. Decreto-Lei número 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial, Brasília, 1. mai. 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm> Acesso em: 1 mar. 2017. 378 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm BRASIL. Lei número 9.029, de 13 de abril de 1995. Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 13 abr. 1995. Disponível em: . <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm>. Acesso em: 01 mar. 2017.

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outros a discriminação em razão de condição econômica, bem como a discriminação

em razão do estado de saúde e, sobretudo, a referência a qualquer discriminação de

outra índole. Dessa forma, o artigo 1o, da Lei 9.029/95 opera como cláusula geral do

preceito constitucional estabelecido no artigo 7o, inciso I, o qual possibilita ampliar o

âmbito da tutela antidiscriminatória.

Nesse sentido, em 2011, o Tribunal Superior do Trabalho brasileiro proferiu

duas decisões que, expressamente, abordam a eficácia horizontal dos direitos

fundamentais nas relações privadas de emprego. Na primeira, exarada nos autos do

processo RR – 105500-32.2008.5.04.0101379 , cuja redação do acórdão coube à

Ministra Rosa Maria Weber, o recurso de revista não foi conhecido, confirmando-se a

ordem de reintegração de empregado dispensado arbitrariamente, por ser portador de

esquizofrenia. Nos termos da fundamentação, o direito potestativo de denúncia vazia

do contrato de trabalho está sujeito a limites impostos pelos princípios da não

discriminação, da função social da propriedade e da proteção da relação de emprego

contra a despedida arbitrária. No concernente ao art. 7º, I, da CFb de 1988, restou

consignado que, embora o referido dispositivo ainda não esteja regulamentado, ele é

dotado de eficácia normativa. A questão também foi analisada sob o prisma das

Convenções ns. 111 e 117 e da Declaração sobre os Princípios e Direitos

Fundamentais no Trabalho, de 1998, todas da OIT; do art. 187 do Código Civil de

2002, que trata do abuso de direito, e da Lei nº 9.029/95, que veda a adoção de

qualquer prática discriminatória tendente a inviabilizar a admissão de um trabalhador

ou a justificar o rompimento arbitrário do seu contrato de emprego em razão de sexo,

origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade ou qualquer outro motivo

infundado.

Nas palavras da Ministra Redatora:

O arcabouço jurídico sedimentado em torno da matéria deve ser considerado, igualmente, sob a ótica da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, como limitação negativa da autonomia privada, sob pena de ter esvaziado seu conteúdo deontológico. (...) o exercício de uma atividade laboral é aspecto relevante no tratamento do paciente portador de doença grave e a

379 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista n° 105500-32.2008.5.04.0101, Relatora: WEBER, Rosa Maria. Diário Oficial, Brasília, 8 ago. 2011.. Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20105500-32.2008.5.04.0101&base=acordao&numProcInt=80773&anoProcInt=2010&dataPublicacao=05/08/2011%2007:00:00&query=>. Acesso em: 19 abr. 2017.

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manutenção do vínculo empregatício, por parte do empregador, deve ser entendida como expressão da função social da empresa e da propriedade, sendo, até mesmo, prescindível averiguar o animus discriminatório da dispensa.380 (BRASIL, 2011).

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo primeiro, proclama que a

República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana,

ou seja, a pessoa humana é o fim supremo da sociedade e do Estado.381 Todos têm

a obrigação de respeitá-la e protegê-la. Acerca da dignidade da pessoa humana,

destaca Ingo Wolfgang Sarlet:

Constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a discriminação racial, perseguição em virtude de motivos religiosos, etc. (...). O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças.382 (SARLET, 2011, p. 110-111).

A Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha e a Constituição

espanhola prestigiam o princípio da dignidade da pessoa humana. A primeira

assevera que a dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação

de todo Poder Público383; a segunda, em seu artigo 10 do título I, estabelece que a

dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre

380 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Terceira Turma. Recurso de Revista n° 105500-32.2008.5.04.0101, Relatora: WEBER, Rosa Maria. Diário Oficial, Brasília, 8 ago. 2011.. Disponível em: <http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20105500-32.2008.5.04.0101&base=acordao&numProcInt=80773&anoProcInt=2010&dataPublicacao=05/08/2011%2007:00:00&query=>. Acesso em: 19 abr. 2017. 381 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 1 mar. de 2017. 382 SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed., rev., atual. e ampl., 3. tiragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 110-111. 383 ALEMANHA. Constituição (1949). Constituição da República da Alemanha. Berlim: 1949. Disponível em: < https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf> Acesso em: 3 mar.2014

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desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos de terceiros são

fundamentos da ordem política e da paz social.384

A doutrina alemã destaca que o princípio da dignidade da pessoa humana não

se trata de uma mera declaração ética; se trata também de uma norma de direito

objetivo.385

Se considerará um atentado contra a dignidade da pessoa humana toda

conduta que suponha desconhecer a superioridade do ser humano na natureza e que

lhe dispense um tratamento degradante, através do qual equipare o homem a um

objeto ou a outros seres de nível inferior. Em suma, que se ignore a igualdade

essencial de todas as pessoas enquanto seres dotados de dignidade.386

Importante destacar que há duas diretivas que o princípio da dignidade da

pessoa humana impõe às pessoas em suas relações com as demais. De um lado,

assinala uma diretiva positiva com a qual o homem deve procurar respeitar ao máximo

a dignidade das demais pessoas, bem como, ao exercitar seus direitos ou cumprir

suas obrigações, não esquecer a dignidade de que está investida toda pessoa. De

outro lado, destaca-se a diretiva negativa, que assevera que a dignidade dos demais

funcionará como limite ao exercício de seus direitos fundamentais.387

Portanto, como se depreende das decisões abaixo, que observaram o

princípio da dignidade da pessoa humana, o Tribunal Superior do Trabalho destacou

a diretiva negativa do princípio da dignidade, na medida que o referido princípio

funcionou como limite ao princípio da atividade econômica pelos privados, que

também é um direito fundamental.

Na decisão proferida pela mais alta Corte Trabalhista, cujo relator foi o Ministro

Vieira de Mello Filho, não conhecido o recurso de revista, manteve-se a condenação

do empregador ao pagamento de indenização por danos morais em favor de

empregado que, na qualidade de motorista de caminhão de lixo, era obrigado a

384 ESPANHA. Constituição. (1978) Constituição da Espanha. IMPRENTA NACiONAL DEL BOLETIN OfiCIAL DEL ESTADO, 29 dez. 1978. Diponível em: http://www.boe.es/boe/dias/1978/12/29/pdfs/A29313-29424.pdf. Acesso em: 1 mar. 2017. 385 BENDA, Ernesto. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et al. Manual de derecho constitucional. 2.ed. cap. 10. Madrid: Marcial Pons, 2001. 386 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2. ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 305. 387 JESÚS, González Pérez. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986, p. 91.

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usufruir de seu intervalo intrajornada próximo ao veículo de trabalho e não dispunha

de sanitário para sua higiene pessoal e necessidades fisiológicas.

Para o ministro-relator:

(...) a preservação da saúde obreira deve ser garantida (por meio de todas as medidas que tornem o seu local de trabalho isento de riscos à integridade física e psicológica do laborante), sob pena de se tornar ineficaz (e, portanto, carente de força normativa) o postulado previsto no primeiro artigo da Carta Republicana, o que não se coaduna com a eficácia horizontal dos direitos fundamentais reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência majoritárias de nosso País.388 (BRASIL, 2003).

Na decisão seguinte, o Tribunal Superior do Trabalho referiu-se

expressamente sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mas não se

referindo espeficificamente e expressamente sobre qual das teorias da eficácia

interprivados estava aplicando ao caso concreto.

AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECURSO DE REVISTA - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - NÃO CONFIGURAÇÃO - EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS (ECT) - EMPREGADA PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS - DESPEDIDA - MOTIVO VÁLIDO - NECESSIDADE - DEVER DE IMPLEMENTAR ADAPTAÇÕES RAZOÁVEIS A PROPICIAR MANUTENÇÃO NO EMPREGO - DIREITOS HUMANOS - NORMAS INTERNACIONAIS, CONSTITUCIONAIS E LEGAIS 1 - Hipótese em que o TRT nega provimento ao recurso ordinário da Reclamada (ECT), mantendo a determinação de reintegração da Reclamante, pessoa portadora de necessidades especiais, despedida antes do término do período de experiência, com base em parecer de equipe avaliadora. Apelo fundado em alegações de nulidade por negativa de prestação jurisdicional, ausência de necessidade de motivação do ato, inexistência de estabilidade e ausência do dever de adaptação do local de trabalho. 2 - Se o TRT reputou inválida a despedida da Reclamante, porquanto a própria Agravante limitou seu poder diretivo ao criar normas em Edital de concurso que asseguram a aplicação da legislação protetiva ao portador de necessidades especiais, não há como reconhecer a ausência de jurisdição em relação à aplicabilidade, ou não, da Súmula n.º 390, I, do TST ao caso. Não violados os arts. 93, IX, da Constituição da República e 832 da CLT. 3 - A validade do ato de despedida da Reclamante pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) estava condicionada à explicitação de motivo válido, expondo de maneira circunstanciada as causas e as particularidades que ensejaram a decisão. Não se dispensava parecer de equipe multiprofissional, a ser formada de acordo com o que determina o art. 43 do Decreto n.º 3.298/99 (que regulamenta a Lei n.º 7.853/89, que, por sua vez, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências). Precedentes do STF e inteligência da Orientação Jurisprudencial n.º 247, II,

388 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Primeira Turma. Recurso de Revista 458400-06.2003.5.09.0019, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Diário Oficial, Brasília, 18 mar. 2011.

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da SBDI-1 do TST. 4 - Também constitui dever da Reclamada a implementação razoável de meio eficaz que propicie a manutenção da Reclamante no emprego. Em realidade, é dever de todos os órgãos e entidades da Administração direta e indireta tratamento prioritário e adequado aos assuntos objetos desta Lei n.º 7.853/89, tendente a viabilizar medidas de promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores público e privado, de pessoas portadoras de deficiência (art. 2.º, parágrafo único e III, “c”, da Lei n.º 7.853/89). Mas não é só: trata-se também de respeitar direitos humanos, protegidos constitucionalmente nas regras e princípios que emanam dos arts. 1.º, III e IV, 3.º, IV, 24, XIV, 203, IV, 227, § 2.º, e 244 da Constituição da República. Nas relações privadas de emprego, há de se observar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, considerando que os direitos fundamentais refletem o norte axiológico da sociedade, então sua observância, respeito e efetividade não devem se restringir ao Estado, mas a toda e qualquer relação jurídica, seja ela de direito público ou de direito privado. No plano internacional, há de se recordar que o Brasil é signatário, desde 30/3/2007, da Convenção da Organização das Nações Unidas - ONU sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência. Este é, em realidade, o primeiro - e até agora o único - tratado internacional com estatura de norma constitucional da história do nosso País, por força de sua aprovação, pelo rito de emenda à Constituição (art. 5.º, § 3.º), resultante no Decreto n.º 6.949, de 26/8/2009. Não custa recordar, ainda, que “negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho” constitui tipo penal descrito no art. 8.º, III, da Lei n.º 7.853/89. Agravo de instrumento a que se nega provimento. 389 TST-AIRR 142140-04.2004.5.03.0036, j. 02 de dezembro de 2009, Rel. Juiz Conv. Douglas Alencar Rodrigues, 6ª T., DEJT 11 de dezembro de 2009. (BRASIL, 2009).

O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, no julgamento do RO nº

0101200-02.2009.5.15.0096, manteve a condenação solidária das reclamadas ao

pagamento de indenização por danos morais, porquanto a deliberação empresária de

esconder trabalhadores ‘terceirizados’ quando a empresa tomadora de serviços era

visitada por representantes de outras unidades, inclusive internacionais, ultrapassa os

limites do poder diretivo e importa em tratamento discriminatório e degradante em face

de trabalhadores que laboravam em condições idênticas às dos empregados efetivos

da empresa cliente. A par disso, a aludida conduta assemelhou pessoas a coisas

indesejadas, passíveis de ocultação, como se fossem os trabalhadores que

estivessem sujando a imagem do contratante.

Já a sentença proferida pelo juízo da Vara do Trabalho de Ubá/MG, nos autos

do processo nº 0001002.10.2010.5.03.0078, revela evidente violação aos direitos

fundamentais de trabalhadoras que foram obrigadas a abaixar as suas roupas íntimas

389 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Sexta Turma. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista 142140-04.2004.5.03.0036, Relator: Juiz Conv. Douglas Alencar Rodrigues. Diário Oficial, Brasília, 11 dez. 2009.

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sob o argumento empresarial de que era imprescindível descobrir quem estava em

período de regras e era responsável pelo fato de o vaso sanitário do banheiro feminino

estar sujo de sangue.

Realmente, nos dizeres do Juiz do Trabalho Breno Ortiz Tavares Costa, a

“conduta dos proprietários da reclamada foi horrenda, demonstrando um enorme

atraso gerencial e, inclusive, moral”, sobretudo porque o procedimento adotado, além

de ser abusivo e invadir a intimidade das empregadas, em elevado grau, é

completamente inadequado, desnecessário e desproporcional ao fim colimado.

Para reforçar o caráter pedagógico da condenação, o julgador impôs à

reclamada a obrigação de publicar o inteiro teor da sentença no site da empresa, a

fim de que o julgamento ganhasse ampla divulgação e a sociedade em geral se

conscientizasse do abuso cometido pela reclamada, que deveria agir com

responsabilidade social.

Importante mencionar que nem todos os direitos fundamentais da pessoa têm

aplicação ou resultam relevantes dentro da relação laboral; contudo, muitos desses

direitos têm importância para afirmar sua eficácia no seio dessa relação.

O artigo 5o, X, da CFb reconhece o direito de toda pessoa à inviolabidade da

intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito

à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O direito à intimidade penetra também na relação de trabalho, erigindo-se num

importante limite ao direito potestativo do empregador de dirigir sua empresa. Seu

reconhecimento implica a superação da divergência entre o status genérico do

cidadão e do trabalhador subordinado, que, pela posição de sujeição, vê reduzida sua

liberdade.390

Contudo, quando o empregado executa suas atividades, pode ser visto e

ouvido por quem exercer a faculdade de controle e vigilância na empresa, razão pela

qual o poder de controle e vigilância pressupõe respeito ao direito à intimidade. Assim,

não é viável, no seio da relação laboral, invocar o direito da pessoa à conservação

absoluta e incondicionada da intimidade.391

390 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 21. 391 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 26.

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Outra modalidade de controle usualmente utilizada com objetivo de proteger

o patrimônio empresarial e de terceiros, assim como, em outros casos, a segurança

de pessoas e instalações, é a revista do trabalhador e/ou de seus bens que porte

consigo e, também, os armários que tenha no ambiente de trabalho para guardar seus

pertences ou ferramentas de trabalho.

Não há dúvidas que essa prática afeta direitos fundamentais do trabalhador,

uma vez que se materializa no cuidadoso exame fiscalizador e detido da pessoa (na

parte de seu corpo que permanece oculta), do espaço físico reservado à sua própria

intimidade e das coisas que nele se guardam.392

Em que situações a jurisprudência brasileira tem admitido que o empregador

afete o direito fundamental do emprego à intimidade sob o manto de seu também

direito fundamental à livre iniciativa empresarial refletido no direito à proteção de seu

patrimônio?

O fato de outra pessoa, ainda que do mesmo sexo, reviste corporalmente o

trabalhador, submetendo-a ao contragimento de revistar a roupa que veste é, sem

dúvida, um ato de ingerência em sua vida privada no aspecto mais íntimo da

pessoa.393

A jurisprudência brasileira, no caso das revistas, tem separado duas

situações.

A primeira seria aquela em que o empregador faria a revista nas bolsas dos

empregados. Nessa situação, a jurisprudência entende que não há violação aos

direitos fundamentais do empregado à vida privada, à honra, à imagem e à intimidade

do indivíduo, desde que feita sem práticas abusivas, conforme decisão da instância

máxima em matéria trabalhista no Brasil, o TST.

TST - RR 724/2008-678-09-00-0 - Publ. em 29-10-2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNCAO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. A revista nos pertences dos empregados, quando feita sem práticas abusivas, não constitui, por si só, motivo a denotar constrangimento nem violação da intimidade. Retrata, na realidade, o exercício pela empresa de legítimo exercício regular do direito à proteção de seu patrimônio, ausente abuso desse direito quando procedida a revista moderadamente, como no caso em exame, não havendo de se falar em constrangimento ou em revista íntima e vexatória, a atacar a imagem ou

392 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 167. 393 GOÑI SEIN, José Luis. El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 177.

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a dignidade do empregado.394 (BRASIL, 2009).

Portanto, nesse caso concreto, posto à decisão da mais alta corte brasileira

em matéria trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho, o Judiciário sopesou e decidiu

que, sob aquelas condições, o direito fundamental à propriedade deve preponderar

sobre o direito fundamental à intimidade do empregado. Assim, houve uma restrição

do direito fundamental à intimidade, que prima facie é ilimitado.

Outro caso, e que gera maiores divergências, é o caso do empregador que

faz revista íntima em seus empregados em fábricas de roupas íntimas e em fábricas

de diamantes, por exemplo.

A jurisprudência, nesse caso, tem decidido que o princípio à intimidade do

empregado deve prevalecer em detrimento do direito de propriedade, pois o direito do

indivíduo a excluir intromissões de terceiros e manter uma esfera absoluta de segredo,

em parte coincidente com a esfera de recato, é o bem jurídico primordialmente

lesionado nos casos de revista íntima sobre a pessoa do trabalhador.

Segue decisão nesse sentido:

TST - RR 1069/2006-071-09-00.2 - Publ. em 14-8-2009. DANO MORAL - REVISTA INTIMA - EMPRESA DE CONFECCAO. Como expressão do poder diretivo reconhecido ao empregador e ainda com o propósito de compatibilizar os comandos constitucionais de proteção à propriedade e à honra e dignidade do trabalhador, a jurisprudência majoritária tem admitido a possibilidade de o empregador promover, consideradas as características e peculiaridades da atividade comercial explorada, a revista visual de objetos pessoais de seus empregados, ao final do expediente, desde que não ocorram excessos e exposições vexatórias que comprometem a honra e a imagem desses trabalhadores. Nesse cenário, ao realizar revistas íntimas que consistiam em determinar a exposição do sutiã, da calcinha e da meia de suas empregadas, para verificar a eventual ocorrência de furtos dessas peças no interior do estabelecimento, atua o empregador à margem dos parâmetros razoáveis, invadindo esfera indevassável de intimidade e incidindo em abuso que deve ser reparado.395 (BRASIL, 2009).

Vale observar que, se as condições fáticas forem alteradas, ou seja, se a

revista, mesmo que íntima, for feita com moderação (por exemplo, feita por pessoas

394 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 724/2008-678-09-00-0. Publicado de 29 de outubro de 2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNÇÃO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. Diário Oficial, Brasília, 29 out. 2009. 395 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 724/2008-678-09-00-0. Publicado de 29 de outubro de 2009. DANO MORAL - REVISTA NOS PERTENCES DOS EMPREGADOS - PRESUNÇÃO DE CONSTRANGIMENTO – INVIABILIDADE. Diário Oficial, Brasília, 29 out. 2009.

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do mesmo sexo), não haverá violação ao direito fundamental à intimidade.

Como assinala Plá Rodrigues (1995), em estudo de Direito Comparado, essa

prática em geral é aceita, debaixo de certas condições, tanto nos países que contam

com regulamentação, como naqueles que não a possuem. Apesar do potencial lesivo

do direito à intimidade, alguns países admitem, em nome de outros bens jurídicos que

se deseja proteger, como o patrimônio empresarial ou de terceiros – inclusive dos

próprios trabalhadores – ou a segurança das pessoas e das instalações. Prevalece o

ponto de vista que as revistas do empregador são permitidas se este tem um motivo

para realizá-la e a conduz de maneira razoável.396 Dentre esses motivos, se encontra

o de proteger os bens do empregador frente ao risco de subtração dos bens da

empresa. Há autores que justificam a realização de revistas íntimas quando

concorrem circunstâncias relacionadas à segurança das pessoas ou de objetos

naquelas empresas dedicadas à fabricação, por exemplo, de material explosivo,

armamento ou substâncias altamente tóxicas para a saúde pública.397

As revistas sobre o trabalhador somente podem realizar-se quando resultem

absolutamente necessárias, ou seja, quando não exista outra alternativa, e na forma

que resulte compatível com o menor sacrifício dos direitos fundamentais invioláveis

da pessoa. 398 Isso porque já existem tecnologias mais adequadas para fazer o

controle do patrimônio empresarial sem vulnerar a dignidade e intimidade do

trabalhador, que as revistas sobre pessoas e bens.

Outro direito igualmente importante na relação juslaboral é o direito

fundamental à inviolabilidade de comunicações que pode ser afetado quando os

procedimentos de controle conduzam a algum grau de interceptação das

comunicações do trabalhador ou permitam conhecer, a posteriori, seu conteúdo.399

A evolução das tecnologias da informação possibilita modos de controle

qualitativamente diferentes dos conhecidos até então e de temperamento mais

396 PLÁ RODRÍGUEZ, Américo. Protección de la intimidad del trabajador: la situación en las Américas. Revista Internacional del Trabajo, La Rioja, 114(3), p. 346-348, 1995. 397 GOÑI SEIN, José Luis.El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 187. 398 GOÑI SEIN, José Luis.El respect a la esfera privada del trabalhador. Un estúdio sobre los limites del poder de control empresarial. Madrid: Civitas, 1988, p. 167. 399 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 271.

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intrusivo na relação laboral entre trabalhador e empregador.400

A introdução dos computadores com a capacidade para receber, transmitir e

cruzar informações de natureza diversa despertou a atenção do legislador

jusfundamental a necessidade de impor limites para combater os abusos que

pudessem se provocados pelos poderes público ou privado.401

A simples possibilidade de controle das consultas informáticas do trabalhador

permite uma vantagem de conhecimento que se concretiza em “poder” na relação

laboral.402

Em Portugal, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), entidade

administrativa independente com poderes de autoridade, que funciona junto à

Assembleia da República, emitiu orientações nomeadas “Princípios sobre a

privacidade no local de trabalho. Tratamento de dados em centrais telefónicas, o

controlo do e-mail e do acesso à Internet (2002)”. Nas orientações, constam a forma

de utilização dos meios da empresa, bem como a necessidade de aprovação de

regulamentos internos com a delimitação das condições de tratamento e a

especificação das formas de controle adotadas.403

O grau de utilização dos meios da empresa para fins privados, a delimitação

das condições de tratamento e a especificação das formas de controle adoptadas

devem constar de Regulamento Interno, o qual, nos termos legais, deverá ser

submetido a parecer da Comissão de Trabalhadores e aprovado pelo IDICT.

Os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais devem fazer a respectiva

notificação junto da CNPD (artigo 27o da lei 67/98), a qual será formulada em impresso

próprio.

Como bem observado pelo Professor da Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa, Alexandre Sousa Pinheiro (2015), a estratégia de recurso a

400 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728. 401 PINHEIRO, Alexandre Souza. A Privacy nos Estados-Unidos: uma viagem entre o direito e a política. In: Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda. v. 1. Direito Constitucional e Justiça Constitucional. Edição da Faculdade de Direito de Lisboa. Coimbra: Editora Coimbra, 2012, p. 139-164. 402 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728. 403 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 728.

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regulamento interno tem o intuito de garantir o respeito ao princípio da transparência,

bem como impedir o frágil consentimento individual dos trabalhadores estampado em

cláusula pré-estabelecida em contratos de trabalho padrão.404

Na relação laboral, têm lugar comunicações privadas que os trabalhadores

fazem entre si ou com pessoas alheias ao seio do trabalho, como familiares e amigos.

Porém, também são cada vez mais intensas as comunicações que os trabalhadores

realizam em nome da empresa, como parte de sua atividade laboral e, em muitas

ocasiões, estas consistem na principal ou exclusiva atividade do obreiro, a de realizar

comunicações.405

O CNPD, através dessas orientações, derivadas do deveres de proteção do

Estado, visa equacionar os direitos fundamentais do trabalhador expressos numa

sociedade complexa, com múltiplas necessidades de comunicação através dos meios

tecnológicos próprios da sociedade de informação com os interesses do empregador

que suporta as despesas de comunicação:406

O fato de o empregador ser o proprietário dos equipamento e pagar as conexões não justifica que possa fazer um controlo absoluto. Tendo a capacidade e operacionalidade dos sistemas implicações importantes na eficácia e na produtividade das empresas, entedemos que o controlo se deve direcionar para a forma como os bens da empresa são utilizados e não para

a pessoa do trabalhador.407 (GUERRA, 2004, p. 333).

E importante distinguir as comunicações pessoais ou privadas e as

comunicações comerciais. As primeiras são aquelas que, por seu conteúdo, são

estranhas à prestação laboral do trabalhador; as segundas são aquelas que se

tenham que realizar para cumprir sua prestação laboral.

Atualmente, essa circunstância é especialmente complexa ante o grande

desenvolvimento da informática e, por consequência, da grande parte dos

404 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 729. 405 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 271. 406 PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015, p. 729. 407 (GUERRA, 2004 apud PINHEIRO, 2015). PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e Proteção de Dados Pessoais: A Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2015.

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trabalhadores que utilizam computadores pessoais que permitem acesso a um correio

eletrônico (e-mail).

No tocante ao controle de correio eletrônico, cabe distinguir se se realiza o

acesso via internet ou intranet. No primeiro caso, somente o servidor de conexão é de

propriedade do empregador, mas o correio eletrônico pertence ao trabalhador e está

livremente configurada por este para suas comunicações pessoais. Nesse caso, está

vedado ao empregador qualquer ingerência na comunicação, pois esta se encontra

protegida pelo direito fundamental à privacidade.408

Quando se acessa o correio eletrônico mediante intranet, não só o servidor

como também o correio eletrônico em si são de propriedade empresarial; se trata de

uma ferramenta de trabalho posta à disposição do trabalhador para que realize sua

prestação, tendo com consequência que é facultado ao empregador o direito de

controlar seu uso. 409 Esse controle é considerado legítimo quando se centra

exclusivamente sobre a atividade de trabalho, ou seja, um controle destinado

unicamente a verificar o cumprimento pelo trabalhador de suas obrigações e deveres

laborais.410

Portanto, é o correio eletrônico propriedade da empresa enquanto esta estiver

na condição de emissora ou receptora das mensagens que se transmitem por meio

eletrônico e que formam parte de sua própria atividade. E inegável que a empresa tem

a faculdade de controlar o uso do correio e o conteúdo das mensagens sem que isso

suponha afronta alguma à intimidade do trabalhador. Assim, se o trabalhador faz uso

do correio eletrônico para efetuar comunicações pessoais, tais mensagens ficam

expostas ao controle empresarial porque o trabalhador conscientemente está

renunciando a sua intimidade, posto que utiliza para fins privados um instrumento de

propriedade empresarial afeto ao uso laboral, sem que se possa ser considerada a

atuação do empresário como uma violação de direitos fundamentais da pessoa

408 SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Variaciones sobre el poder de control a distancia: el espejo de la madastra. In: RODRIGUEZ, Ricardo Escudero (Coords.). El poder de dirección del empresário: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 97. 409 BUSTAMANTE, Carlos Blancas. Derechos fundamentales de la persona y relación de trabajo. 2.ed.Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2016, p. 275. 410 PACHÉS, Fernando de Vicente. El derecho del trabajador al respeto de su intimidad. Madrid: Consejo Económico y Social, 1998, p. 323.

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humana.411

Nesse sentido, importa observar a ponderação do emérito relator do acórdão

da 1ª turma do Tribunal Superior do Trabalho nos autos do processo número

613/2000-013-10-00.7:

De outra parte, se é certo que a Carta Magna tutela a intimidade e a privacidade do cidadão -- valores que, insisto, não estão sequer em jogo em se cuidando de e-mail corporativo, dada a sua finalidade -- não menos certo que também tutela no mesmo preceito constitucional (art. 5o, inciso X) o direito do empregador à imagem. Ora, ocioso repisar quão comprometedora e danosa pode revelar-se ao direito do empregador à imagem a atuação do empregado na utilização da Internet e do correio eletrônico da empresa. Ademais, se se cuida de "e-mail" corporativo, está em xeque também, e talvez principalmente, o exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de acessar à internet e sobre o próprio provedor, direito esse igualmente merecedor de tutela constitucional.412(BRASIL, 2005).

Por outro lado, restou caracterizada a violação ao direito fundamental do

empregado no caso de violação do e-mail particular e não corporativo, conforme

decisão do colendo Tribunal Superior do Trabalho.

INDENIZACAO - DANO MORAL - CARACTERIZACAO - VIOLACAO À INTIMIDADE - ARROMBAMENTO DE ARMARIO PRIVATIVO E VIOLACAO DE CORRESPONDÊNCIA PESSOAL (CORREIO ELETRÔNICO E DADOS PESSOAIS) (por violação ao artigo 5º, V e X, da Constituição Federal). O Tribunal Regional, embasado nas provas dos autos, na forma preconizada pela Súmula nº 126 desta Corte, constatou presentes os elementos caracterizados da responsabilidade civil, quais sejam, o dano, o nexo de causalidade e a conduta ilícita do agente ofensor. Observe-se que o Colegiado constatou que, in casu, a prova testemunhal produzida confirma o fato alegado na inicial como ensejador da reparação pretendida, no sentido de que houve arrombamento do armário privativo do reclamante bem como violação de sua correspondência pessoal, inclusive correio eletrônico e dados pessoais. Dessa forma, houve, de fato, efetivo prejuízo de ordem moral ao reclamante. Recurso de revista não conhecido. TST – RR 183240-61.2003.5.05.0021, 2ª Turma, Relator Renato de Lacerda Paiva, Publicação 26 de outubro de 2012. 413 (BRASIL, 2012).

Portanto, aqui houve restrição ao direito de propriedade do empregador, já que

411. SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Variaciones sobre el poder de control a distancia: el espejo de la madastra. In: RODRIGUEZ, Ricardo Escudero (Coord.). El poder de dirección del empresário: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 98-99. 412 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR613002320005100013 61300-23.2000.5.10.0013. 1ª Turma. Diário Oficial, Brasília, 10 jun. 2005. Relator João Oreste Dalazen. 413 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 183240-61.2003.5.05.0021, 2ª Turma, Relator Renato de Lacerda Paiva. Diário Oficial, Brasília, 26 out. 2012.

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a empresa não pode violar o armário do empregador utilizado pelo empregado para

obter dados de sua conduta. Vale ressaltar que o computador era de propriedade da

empresa e, mesmo assim, nesse caso concreto, o juiz decidiu restringir o direito

fundamental de propriedade, dando prevalência ao direito fundamental da intimidade

do empregado.

O mais importante na análise do tema não é saber qual direito fundamental

preponderará no conflito entre dois princípios de direito fundamental, mas, sim,

respeitar o princípio da segurança jurídica e evitar o "decisionismo", definir na análise

dos casos postos à apreciação do Judiciário qual será a regra para aqueles casos.

Como já dito acima, o confronto entre dois princípios sob certas condições, quando

da análise pelo juiz, resulta numa sentença com natureza jurídica de regra, na

perspectiva da diferenciação entre princípios e regras.

E mais, conclui-se que as restrições aos direitos fundamentais podem ocorrer

por meio de uma decisão do Poder Judiciário, nos casos em que não há regra para

disciplinar a colisão entre princípios, ou seja, nos casos em que o legislador ainda não

fez a ponderação.414

414 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 143.

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12 CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais resumem a concretização dos direitos e garantias

conhecidos como vitais a todos os cidadãos indistintamente. Esses direitos surgiram

como forma de contraposição dos poderes privados ao Poder Público, com a

finalidade de frear o poder do Estado e proteger o indivíduo do abuso e da

arbitrariedade.

O Estado liberal, baseado na igualdade de todos os cidadãos, mostrou-se, no

plano fático, completamente inadequado à realidade social, pois a igualdade liberal

limitava-se ao gozo dos direitos, apenas. O Estado Social de Direito, por seu turno,

tem como diretriz primordial a igualdade social, trazendo uma nova categoria de

direitos fundamentais que são os direitos de prestação do Estado.

A incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas é um imperativo

que poucos rebatem, pois assegura a plena eficácia desses direitos. Contudo, a forma

e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não podem

ser análogas às do Estado, uma vez que cidadãos são igualmente titulares de direitos

fundamentais e se favorecem da proteção atribuída à sua autonomia.

A doutrina brasileira inclina-se, quase que à unanimidade, pela possibilidade

da aplicação da teoria da eficácia direta ou imediata no Brasil, com fulcro no artigo 5o,

parágrafo primeiro, da CFb de 1988.

O exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores está supraditado e

limitado pelo contrato de trabalho, sendo uma limitação justificada, ao ser o contrato

fruto do exercício do direito à autonomia e a aplicação dos direitos fundamentais de

maneira direta poderia sufocar.

Não há como conceber tratamento diferenciado à eficácia dos direitos

fundamentais nas relações privadas em razão da origem da agressão que sofre uma

determinada liberdade, como, por exemplo, das relações juslaborais, pois, se o

propósito é dar cientificidade à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais,

há que tratá-la de modo uniforme.

A tese da negativa da eficácia não se harmoniza com o ideário dos direitos

fundamentais, uma vez que não cabe ao Estado apenas se conter de violar esses

direitos, contudo, deve também, ativar seu dever de proteção ante ameaças e

agressões oriundas dos mais variados atores sociais existentes no mundo moderno,

abrangendo os particulares.

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As teorias mediata, imediata e dos deveres de proteção concordam que se

devem utilizar a lei ordinária, a interpretação conforme à Constituição e a densificação

das cláusulas gerais e mesmo, ainda, coincidem com a ideia de que cabe ao Poder

Judiciário verificar se as decisões do legislador ofendem ou não o disposto nos

preceitos constitucionais.

A teoria da eficácia mediata e a teoria da eficácia imediata são diametralmente

opostas no caso em que não há lei que especificamente regule a situação e a

interpretação conforme a Constituição seja improdutiva ou insuficiente. Nesse caso, a

tese da eficácia mediata rejeitará qualquer efeito adicional produzido pelos direitos

fundamentais com base nas normas constitucionais; enquanto que a teoria da eficácia

direta ou imediata empregará o direito fundamental como se direito subjetivo fosse.

A teoria dos deveres de proteção recusará a aplicação direta dos direitos

fundamentais em face de outros particulares como se direitos subjetivos fossem, tal

qual a teoria da eficácia mediata.

As teses mediata e dos deveres de proteção só questionam a aplicação da lei

em caso de inconstitucionalidade desta ou em caso da eventual necessidade de uma

interpretação em conformidade à Constituição; a teoria da eficácia imediata defende

que o hermeneuta poderia se valer da Constituição, invocando seu direito subjetivo

fundamental.

Quando não há lei que dirima diretamente o conflito jusprivatístico ou, se

houver, esta apenas fornece soluções fulcradas em fórmulas vagas ou conceitos

indeterminados, a teoria da eficácia imediata socorre-se dos direitos fundamentais

modelados na Constituição. Por outro lado, as teorias mediata e deveres de proteção

apresentam solução diversa. Propõem, como forma de resolução do conflito, uma

densificação e concretização dessas cláusulas gerais e conceito jurídicos

indeterminados conforme aos direitos fundamentais e à Constituição.

Se os direitos fundamentais fossem aplicados de forma imediata como direitos

subjetivos da forma que é propagado pela teoria da eficácia direta, ter-se-ia mais

problemas que soluções quando da aplicação desses direitos, porque, nos dois lados

da relação entre particulares, há direitos fundamentais escudando cada um dos lados.

Portanto, ou se mantém a lógica da teoria, ou seja, a aplicação direta dos direitos

fundamentais, em todas as relações de assimetria trabalhista, já que nem sempre é

empregado o hipossuficiente da relação, ou a teoria não se sustenta com a

cientificidade que a é neste trabalho, já que não pode se justificar a defesa irrestrita

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dos empregados baseado em coitadismos. O maior ou menor desequilíbrio dessa

relação serve para justificar, sim, a necessidade do Estado de efetivar de forma mais

ou menos intensa o seu dever de proteção.

A teoria da eficácia imediata coloca o intérprete em situações de

inautenticidade e o irrealismo da vida jurídica privada caso os direitos fundamentais

fossem aplicados de maneira não coordenada com as normas de direito privado. A

tese da eficácia direta dos direitos fundamentais não se sustenta empiricamente com

exemplos da vida cotidiana e, em verdade, desloca os direitos fundamentais à fase

historicamente superada em que os direitos fundamentais valiam com meras

proclamações programáticas. Levando a sério o predicado de direitos subjetivos

oponíveis a outros particulares, os direitos fundamentais levariam o hermeneuta a

situações esdrúxulas em que os particulares destinatários de direitos fundamentais

estariam obrigados a observâncias desses princípios.

A tese da eficácia mediata cumpriu bem sua função na garantia da efetividade

dos direitos fundamentais na primeira fase do ressurgimento constitucional do

segundo pós-guerra, contudo, fraqueja na tentativa de conceber plenitude de tutela

judicial aos direitos fundamentais, já que não apresenta uma resposta satisfatória para

os casos em que não há lei que especificamente regule a situação e a interpretação

conforme é improdutiva ou insuficiente, uma vez que não fornece solução para os

casos em que a lacuna do legislador deixa a liberdade individual completamente

desamparada ante eventuais e graves agressões oriundas de outros particulares.

O dever de proteção (Schutzpflicht) pretende transmitir a ideia de uma

especial vinculação do Estado na direção de promover, através dos órgãos de Estado,

que o gozo ou exercício dos direitos fundamentais seja protegido de quaisquer

ameaças, inclusive ações de terceiros (entidades públicas ou privadas).

A teoria dos deveres de proteção parte da premissa que os direitos

fundamentais são eminentemente direitos em face do Estado e somente

excepcionalmente o Estado intervém nas relações interprivados para a defesa desses

direitos fundamentais.

A tese dos deveres de proteção reconhece o protagonismo do Parlamento,

enquanto que a tese da eficácia imediata desloca esse protagonismo para o Judiciário

quando entende o conflito entre particulares a partir de um pretenso direito

fundamental de uma das partes.

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O legislador, que se beneficia de uma reserva do politicamente adequado,

deve ativar o dever de proteção no sentido de proteger, com maior ênfase, a situação

da parte mais fraca quando em jogo relações privadas de poder em que há

supremacia, à partida, de uma parte sobre a outra, como sói acontecer, regra geral,

com as relações de emprego.

O juiz somente deve intervir, fazendo valer o dever de proteção, em casos

extremos ou de visível déficit de proteção da liberdade individual e esses direitos se

realizam nas relações interprivados através desses deveres e não através da

titularidade desses direitos por parte de particulares em face de outros particulares

como faz crer a teoria da eficácia direta.

A teoria dos deveres de proteção defende algum outro tipo de eficácia nos

casos em que não há lei ou cláusula geral aplicável. A teoria dos deveres de proteção

considera, nesse caso, que os direitos fundamentais projetam efeitos jurídicos nas

relações interprivados, porém não enquanto direitos subjetivos oponíveis a outros

particulares, todavia mediatamente através dos poderes do Estado, incluindo o poder

judicial.

As decisões do STF, TST e demais órgãos do Poder Judiciário trabalhista

brasileiro, esmiuçadas no decorrer deste trabalho, evidenciaram a aplicação direta dos

direitos fundamentais nas relações de emprego, porém, já condicionadas a adotar

uma posição favorável ao empregado, supostamente sujeito mais fraco da relação

justrabalhista, utilizando o princípio da proporcionalidade apenas para justificar a

conclusão que já era sabida anteriormente, numa adesão quase emocional por parte

de quem, abordando pela primeira vez o problema, o faz a partir de uma preocupação

ou perspectiva garantista de proteção.

A teoria dos deveres de proteção é a que traz maior efetividade dos direitos

fundamentais nas relações juslaborais, pois mantém a lógica do sistema. Isso porque

preserva a autonomia privada, consubstanciada pelo contrato de emprego, e os

direitos fundamentais não enquanto direitos subjetivos, mas através dos deveres de

proteção do Estado, incluindo o poder judicial, mesmo quando não há lei ou cláusula

geral aplicável.

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REFERÊNCIAS

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ANEXO Alta Faculdade, estimados Senhoras e Senhores.

Como agradecimento pela excepcional honra que foi concedida, gostaria de

dedicar esta conferência. O seu objeto foi escolhido de tal sorte a abordar problemas

que considero possam ser também interessantes do ponto de vista brasileiro e que

ainda assim guardem relação com minha pessoal trajetória científica. Além disso, a

ideia foi enfrentar um tema em relação ao qual tenho algo de novo a dizer, de tal sorte

que não estou lhes apresentando uma mera compilação de pensamentos por mim já

externados da mesma forma ou de modo similar. Por tal razão vou discorrer sobre

proibições de discriminação no Direito Privado. Com tal tópico acabei me ocupando

apenas de modo marginal e jamais de forma intensiva, muito embora a temática

guarde, em determinados sentidos, estreita relação com conteúdos que tem ocupado

um lugar central no âmbito de minha atividade científica.

I.

Irei enunciar quatro teses.

Primeiro: a existência de proibições de discriminação que geram efeitos na

esfera das relações entre atores privados constitui evidência de que, em sentido

contrário ao que ainda vem sendo sustentado por amplos setores, o sistema do Direito

Privado não é regido exclusivamente pela justiça comutativa, mas está colocado, em

diversos aspectos, ao serviço da justiça distributiva.

Segundo: proibições de discriminação que dizem respeito às relações entre

particulares assumem, a despeito de seu caráter cogente, a condição de normas

jurídicas de Direito Privado. Isso vale independentemente de qual seja o critério

adotado para estabelecer a distinção entre o Direito Público e o Direito Privado.

Terceiro: existem diversos motivos para o estabelecimento de proibições de

discriminação. O mais importante reside na ameaça e mesmo violação da dignidade

humana. Paradigmáticas são, nesse sentido, discriminações em virtude da raça e da

religião. Outros motivos dizem respeito a– em parte contingenciais – determinações

de finalidades de natureza sociopolítica por parte do legislador “ordinário”. Aqui se

revela referencial o postulado da igualdade de condições entre homens e mulheres

no âmbito do mercado de trabalho e exercício profissional. Resulta evidente que as

fronteiras entre tais tipologias básicas são fluídas, mas elas podem, na sua essência,

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ser claramente diferenciadas e separadas por razões teleológicas no âmbito da

jurisprudência.

Quarto: as proibições de discriminação fundadas na dignidade humana e na

sua proteção vinculam diretamente (no âmbito de uma eficácia em relação a terceiros

ou eficácia privada) os atores privados. No mais, é reservada ao legislador “ordinário”

a possibilidade de estabelecer proibições de discriminação e formular os respectivos

suportes fáticos e efeitos jurídicos.

II.

Há praticamente dois mil e quinhentos anos, Aristóteles estabeleceu uma

diferenciação entre dois tipos básicos de justiça, que ele denominou de justiça

aritmética e justiça geométrica. Cerca de mil e quinhentos anos depois, Tomás de

Aquino introduziu dois termos diferentes para designar tais modalidades de justiça e

que hoje ainda são amplamente utilizados, seja na jurisprudência europeia

continental, seja no ambiente anglo-saxão: justiça comutativa e justiça distributiva. De

acordo com a concepção ainda amplamente dominante na Alemanha, tais formas de

justiça se distinguem pelo fato de que as exigências da justiça comutativa devem ser

realizadas sem que se leve em conta a pessoa concretamente considerada, ao passo

que os predicados da justiça distributiva exigem sejam consideradas as condições de

cada pessoa.

Diante desse pano de fundo eu devo, antes de mais nada, endereçar um elogio

à justiça comutativa e com isso também ao “Mercado”, na condição de meio para

impedir discriminações na esfera do Direito Privado, ainda que isso venha a soar como

contrário ao espírito contemporâneo (Zeitgeist). Com efeito, pelo fato de as valorações

com base na justiça comutativa ocorrerem sem consideração da pessoa, sequer há

margem para que ocorram discriminações propriamente ditas; estas costumam ser

voltadas expraemissioneàs pessoas, ao passo que na perspectiva do “Mercado” o que

importa é a prestação como tal, que independe da cor da pele, da orientação religiosa

ou da nacionalidade do prestador. A estrutura e o princípio fundamental do “Mercado”

correspondem, portanto, a uma moral de cunho “universal”, no sentido de uma moral

igual para todos os seres humanos, sendo, de tal sorte, extremamente “humanos”, o

que há de ser enaltecido em homenagem às virtudes do “Mercado”. Assim, por

exemplo, um locador que rejeita um locatário em virtude de sua cor da pele, religião

ou motivo similar, age de modo evidentemente contrário aos princípios elementares

da economia de mercado.

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Todavia, é do conhecimento geral que esse tipo de conduta sempre volta a

ocorrer, pois os seres humanos nem sempre agem como autênticos homo

oeconomicus, mas deixam-se conduzir frequentemente por motivações irracionais ou

não objetivas. Aqui, abrem-se espaços para intervenções corretivas por parte do

Direito, pelo menos quando se cuida de casos crassos. A regulação, em tais casos,

ocorre de modo consequente mediante consideração da pessoa, designadamente por

meio de proibições dirigidas aos atores privados, no sentido de tratar de modo

diferente as pessoas em virtude da cor de sua pele, religião, nacionalidade, etc. Nessa

perspectiva, as proibições de discriminação assumem a função de portas de entrada

para a justiça distributiva na esfera do Direito Privado, aspecto que por mim até o

presente momento não foi suficientemente considerado e que hoje tenho a

oportunidade de pronunciar pela primeira vez com toda a clareza.

III.

Seria possível objetar que proibições de discriminação não têm caráter de

Direito Privado, mas sim, de Direito Público, notadamente pelo fato de assumirem a

condição de direito cogente e pelo fato de que não fosse assim não alcançariam a

necessária eficiência. Tal objeção, contudo, não resiste a um exame mais

aprofundado.

As duas principais explicações para a distinção entre Direito Público e Direito

Privado são atualmente a teoria da sujeição e a teoria do sujeito.

A primeira se baseia na circunstância de se uma das partes afetadas encontra-

se numa esfera hierárquica inferior ou de algum modo está juridicamente subordinada

à outra. Isso com certeza não se verifica no caso de proibições de discriminação na

esfera do Direito Privado, como se dá nas relações entre empregador e empregado,

locador e locatário, vendedor e comprador, fornecedor e tomador do crédito, etc. De

acordo com a teoria dos sujeitos o que importa é se no polo da relação jurídica

encontra-se (ou como tal atua) pelo menos uma pessoa de Direito Público. Para além

do risco de se enveredar por um raciocínio circular, também nessa hipótese as

proibições de discriminação eventualmente incidentes têm caráter indubitavelmente

jurídico-privado, já que ambas as partes agem na condição de sujeitos de Direito

Privado.

Pessoalmente prefiro adotar um critério de distinção algo diverso, que me

parece mais consequente e correto. Eu tenho como preferível examinar se nos dois

polos da relação jurídica é possível identificar um titular de direitos fundamentais, ou

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não. Apenas no primeiro caso cuida-se, de acordo com meu entendimento, de uma

relação de Direito Privado. Não tenho condições de desenvolver aqui esse aspecto,

mas quero, no entanto, ao ensejo dessa oportunidade para mim tão honrosa, colocar

pela primeira vez em discussão. Quanto ao resultado, é preciso enfatizar, também

nada restaria alterado em se seguindo esse modo de entender, pois nos casos em

que o problema se coloca sempre atuam atores privados em ambos os polos da

relação, de tal sorte que também nessa perspectiva se trata de Direito Privado. Com

isso o resultado, que já havia anunciado, resta claramente ratificado: proibições de

discriminação representam a mais importante porta de ingresso da justiça distributiva,

isto é, de uma justiça voltada à consideração da Pessoa, no Direito Privado, de tal

sorte que tais proibições de discriminação com isso assumem caráter jurídico-privado.

IV.

Na sequência surge naturalmente a indagação acerca das razões pelas quais

o Direito Privado contempla proibições de discriminação. A resposta não me parece

completamente clara: pelo fato de que uma parte especialmente significativa das

discriminações se manifesta no plano das relações entre seres humanos, portanto, no

campo do Direito Privado. Para um alemão de minha geração isso não é uma

convicção de natureza abstrata, mas sim, História vivenciada. Fui profundamente

afetado pelo fato de no ano de 1943, quando contava com seis anos de idade, vi dois

seres humanos trajando longos mantos pretos e que portavam nas suas costas uma

estrela amarela, quando minha mãe, como reação à minha irritada pergunta sobre “o

porquê”, com manifesto constrangimento apenas soube responder que se tratava de

“Judeus”. Precisamente como criança se tem uma especial sensibilidade para

reconhecer que algo de substancialmente errado está ocorrendo. Hoje podemos

formular com clareza: a discriminação é aqui censurável pelo fato de implicar

simultaneamente uma violação da dignidade humana.

Isso, no entanto, nem sempre é o caso, especialmente (embora não sempre)

quando se está em face de uma discriminação do tipo mediato ou indireto. Nesse caso

o que ocorre é que um determinado grupo de pessoas,

em determinadas circunstâncias e em certos ambientes – por exemplo, no

campo das diversas profissões – encontra-se fortemente subrepresentado.

Assim, por exemplo, verifica-se ampla discussão no âmbito da União Europeia

e na Alemanha sobre o fato de que as mulheres são mais raramente representadas

nos círculos dirigentes e conselhos das empresas. Cogita-se, nesse contexto, em

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corrigir tal estado de coisas mediante recurso a sistemas de cotas mínimas

implantadas por meio da legislação, ou seja, na introdução de uma “discriminação

positiva” em favor das mulheres, uma espécie de ação afirmativa. De acordo com o

meu ponto de vista tal alternativa está essencialmente aberta ao legislador, muito

embora nada tenha a ver com a proteção da dignidade humana das mulheres. Afirmar

o contrário é que implicaria uma desconsideração da dignidade humana daquelas

mulheres que percebem as coisas de modo diverso e que tem outra representação de

suas funções primárias, almejando dedicar-se em primeiro lugar à educação dos filhos

e cuidados domésticos. Aqui está em causa se a sociedade e a Política desejam

favorecer um novo papel da mulher no plano da vida profissional. De acordo com o

exposto, proibições de discriminação podem cumprir funções altamente diferenciadas

e não devem de modo algum reivindicar sem exceção o elevado pathos de servirem

à proteção da dignidade humana.

V.

A partir desse ponto de partida é possível agora responder com facilidade a

última pergunta central, qual seja: as proibições de discriminação no âmbito do Direito

Privado geram efeitos de modo direto ou apenas indireto (mediato), mormente quando

sediadas em camadas hierarquicamente superiores da ordem jurídica, como é o caso

do Direito Europeu ou do Direito Constitucional?

A resposta há, no meu entender, de ser diferenciada. A eficácia imediata

assume seu papel quando uma proibição de discriminação serve à proteção da

dignidade humana, pois esta, em virtude de sua supremacia absoluta, opera sempre

de modo direto. Isso significa acima de tudo que tal proibição de discriminação há de

ser sempre assegurada pelo Poder Judiciário.

Nos casos de proibições de discriminação que tenham por objeto a consecução

de fins de natureza profissional, social ou política, a prerrogativa.

da formatação encontra-se n as mãos do Poder Legislativo. Aqui o Poder

Judiciário não poderá acessar o instrumental da eficácia direta das proibições de

discriminação na esfera das relações privadas.

VI.

Minhas senhoras e meus senhores: eu lhes sou grato pela paciência e pela

concentração com as quais acompanharam meus pensamentos. Elevada Faculdade:

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eu mais uma vez agradeço pela grande honra que me concederam e pela

extraordinária alegria com a qual me brindaram.415

415 CANARIS, Claus-Wilhelm. Considerações a respeito da posição de proibições de discriminação no sistema do direito privado. In: Revista: Direitos Fundamentais & Justiça, Porto Alegre, ano 7, n. 22, p. 15-20, jan./mar. 2013.