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AS EXPERIÊNCIAS COM VOOS CATAPULTADOS NO PORTO DA HORTA EM 1936 RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA Costa, R. M. M. da, (2011), As experiências com voos catapultados no Porto da Horta em 1936. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 289-295. Sumário: O porto da Horta foi palco de alguns feitos pioneiros na história da aviação transatlântica desde 1919, ano da realização do primeiro voo a efectuar a travessia do Atlântico Norte. Entre as várias tentativas que se seguiram com aviões escalando aquele porto, contam-se os voos experimentais da Deutsche Lufthansa, catapultados de navios estacionados naquele porto. Completam-se neste ano 75 anos sobre as primeiras experiências realizadas em 1936 e que esta nota evoca. Costa, R. M. M. da, (2011), Experimental catapult flights in Horta harbour in 1936. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 289-295. Summary: The harbour of Horta has seen some made pioneers in the history of transatlantic aviation since 1919, year of completion of the first plane to cross the North Atlantic. Among the various attempts that followed aircraft calling that port, mention should be made to the experimental flights of Deutsche Lufthansa, catapulted from ships stationed in that port. 75 years after the first experiments in 1936 this brief note evokes the event. Ricardo Manuel Madruga da Costa – Núcleo Cultural da Horta – [email protected] Palavras-chave: Voos catapultados, Deutsche Lufthansa, Porto da Horta, Schwabenland, Ae- olus, Zephir. Key-words: Catapult flights, Deutsche Lufthansa, Horta harbour, “Schwabenland”, “Aeolus”, “Zephir”. Com a presente nota nada de novo será trazido a público no que toca às experiências realizadas na baía faia- lense com os aviões catapultados da Deutsche Lufthansa cujo início ocor- reu no ano de 1936. Como se depreen- derá, é apenas a ocorrência do septua- gésimo quinto aniversário sobre o

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as ExpEriêNcias com voos catapultados

No porto da Horta Em 1936

ricardo maNuEl madruga da costa

Costa, R. M. M. da, (2011), As experiências com voos catapultados no Porto da Horta em 1936. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 289-295.

Sumário: o porto da Horta foi palco de alguns feitos pioneiros na história da aviação transatlântica desde 1919, ano da realização do primeiro voo a efectuar a travessia do Atlântico Norte. Entre as várias tentativas que se seguiram com aviões escalando aquele porto, contam-se os voos experimentais da Deutsche Lufthansa, catapultados de navios estacionados naquele porto. Completam-se neste ano 75 anos sobre as primeiras experiências realizadas em 1936 e que esta nota evoca.

Costa, R. M. M. da, (2011), Experimental catapult flights in Horta harbour in 1936. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 289-295.

Summary: the harbour of Horta has seen some made pioneers in the history of transatlantic aviation since 1919, year of completion of the first plane to cross the North Atlantic. Among the various attempts that followed aircraft calling that port, mention should be made to the experimental flights of Deutsche Lufthansa, catapulted from ships stationed in that port. 75 years after the first experiments in 1936 this brief note evokes the event.

Ricardo Manuel Madruga da Costa – Núcleo Cultural da Horta – [email protected]

Palavras-chave: Voos catapultados, Deutsche Lufthansa, Porto da Horta, Schwabenland, Ae-olus, Zephir.

Key-words: Catapult flights, Deutsche Lufthansa, Horta harbour, “Schwabenland”, “Aeolus”, “Zephir”.

Com a presente nota nada de novo será trazido a público no que toca às experiências realizadas na baía faia-lense com os aviões catapultados da

Deutsche Lufthansa cujo início ocor-reu no ano de 1936. Como se depreen- derá, é apenas a ocorrência do septua- gésimo quinto aniversário sobre o

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acontecimento que justifica que o Boletim do Núcleo Cultural da Horta recorde estes episódios em que, uma vez mais, o porto da Horta serviu de plataforma à realização de experiên- cias que então visavam alcançar avanços na aviação, desta feita na busca de uma melhoria na eficácia do transporte de correio na rota transa-tlântica com ganhos de tempo na sua realização.A cidade da Horta não era estreante nestas aventuras levadas a cabo na fase pioneira da aviação. A entrada no porto da Horta do hidroavião da Marinha Americana, o NC4, comple-tando o primeiro troço da travessia aérea do Atlântico levada a efeito pela primeira vez no ano de 1919, faria ainda parte das recordações de mui-tos faialenses e a presença de aviões sobrevoando o Faial para nesta ilha se acolherem às águas da sua baía, tor-nar-se-ia familiar nos anos que se se-guiram. Em Maio de 1927 entrava na Horta o “Santa Maria II” do Marquês de Pinedo, rebocado desde as Flores depois de ter deixado trepassey Bay na terra Nova no início do seu voo de regresso à Europa. Após reparações realizadas no Faial, retomaria o voo a partir das Flores, sobrevoando a ilha do Faial a caminho do continente. Aliás, este ano de 1927 seria fértil em acontecimentos de idêntica natureza e em outubro, depois de um longo voo vindo de Lisboa amarou na Horta o

avião Junkers D-1230 cuja intenção, que não seria concretizada, era a de atingir a América. Com semelhantes propósitos chegaria à Horta em outubro o Heinkel D1220. Ambos os aviões, todavia, acabariam por ter o fim inglório de regressar às origens desmantelados e encaixotados. Po-rém, passaria pouco tempo para que o Faial acolhesse de novo, já em Junho de 1928, um Dornier pilotado pelo Cap. Courtney. Detendo-se na Horta durante algum tempo a aguar-dar oportunidade para prosseguir para ocidente, verá ainda a chegada de outro aventureiro, desta vez um fran-cês no avião “La Frégate”, movido igualmente pelo desejo de alcançar o Novo Mundo. Nenhum deles reali- zaria o ambicionado projecto de chegar à América. Entretanto, desde 1924 que os Zeppelins cruzavam os ares das ilhas dos Açores e em 1930 o famoso Graf Zeppelin sobrevoou várias freguesias do Faial e a cidade da Horta. Segue-se na lista dos acon-tecimentos, no ano de 1932, a escala do gigantesco avião Dornier DoX vindo da terra Nova e rumo a Vigo. Esta fase de aventurosos cometimen-tos a preceder as experiências que motivam esta breve memória, ficaria assinalada em 1933 com a chegada ao Faial em Agosto de uma parte das esquadrilhas do Marechal Ítalo Balbo quando regressavam à Itália e, ainda, com a chegada do famoso aviador

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Charles Lindbergh em voo destinado a avaliar condições para a operação futura da Pan American Airways.E é chegado ao ano de 1936, ano em que a Lufthansa decide levar a efei-to experiências que se enquadravam nos objectivos da empresa definidos já em 1926 e que incluíam rotas à escala mundial, nomeadamente com as Américas.os voos catapultados, com o objecti-vo de reduzir globalmente tempos de viagem, em parte efectuados por via marítima, remontam ao ano de 1929. Beneficiando de uma experiência testada ao longo de quase duas cen-tenas de voos, a Lufthansa deu início à operação no Atlântico Norte, com a rota Lisboa-Horta-New York. Para este efeito o navio “Schwabenland” foi posicionado no porto da Horta e os aviões Dornier Do18, baptizados “Aeolus” e “Zephir”, iniciariam em Setembro de 1936 os voos entre a Horta e New York e Bermuda.o primeiro dos voos da Horta para New York foi efectuado no dia 10 de Setembro de 1936 pelo “Zephir” sob o comando do Cap. J. H. Blanken-burg, em 22 horas e 18 minutos. No dia seguinte idêntico voo, agora pelo “Aeolus”, sob o comando do Cap. W. Von Engle, rumou à Bermuda e daqui para New York no dia imediato. os voos de regresso à Horta ocorreram a 22 do mesmo mês depois da chega-da do “Schwabenland” a New York,

realizando percursos inversos aos de ida. Esta fase experimental prosse-guiu, num total de 8 voos, até 20 de outubro de 1936, sendo considerada da maior utilidade para o prossegui-mento do projecto no ano seguinte. De facto, assim sucedeu, agora com reforço de um navio-catapulta, o “Friesenland”, permitindo deste modo o posicionamento simultâneo dos navios em cada extremo da rota. também os aviões utilizados melho-rariam as suas características, e o “Aeolus” e o “Zephir” dariam lugar ao “Nordwind” e ao “Nordmeer”, cuja operação comprovava a pratica-bilidade dos voos de correio aéreo no Atlântico Norte. A operação prosse-guiu em 1938, realizando-se o último voo entre New York e a Horta no dia 18 de outubro de 1938 num tempo recorde de 11 horas e 53 minutos.os progressos técnicos verificados na construção de aeronaves, nomea-damente quanto à autonomia das aeronaves, e o sucesso dos voos experimentais realizados pela Pan American Airways, explicam certa-mente a interrupção dos voos da Lufthansa. Aproximava-se uma nova era nas ligações entre os Estados Unidos da América e a Europa. No início de 1939, mais uma vez com o porto da Horta a servir de entreposto indispensável na aproximação entre os dois continentes, aquela compa-nhia, utilizando os aviões Boeing

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314, deu início aos voos regulares transatlânticos numa operação que se prolongou até final da II Guerra Mun-dial e à qual a ilha do Faial tem o seu nome ligado de forma inseparável.Como já afirmámos a propósito da relevância do porto da Horta no qua-dro da História do Atlântico, o papel assegurado pela ilha do Faial na via-bilização de um bom número de ini-ciativas pioneiras, como inequivoca-mente pode considerar-se o papel desempenhado no desenvolvimento das comunicações por cabo subma-

rino e os progressos verificados na fase mais precoce da aviação trans-atlântica, credenciam esta pequena ilha do Arquipélago dos Açores como plataforma propiciadora de um rele-vante contributo de alcance civili-zacional.

agradEcimENtos

Pela cedência do material fotográfico incluído nesta nota evocativa, expri-mimos o nosso agradecimento à Se-nhora D. Yolanda Corsépius.

bibliografia

Costa, Ricardo Manuel Madruga da, “A pro-pósito da Horta dos Cabos Submarinos. A relevância da Ilha do Faial na constru-ção da «Civilização Atlântica»”, in Actas do Colóquio O Porto da Horta na His-tória do Atlântico. O Tempo dos Cabos Submarinos, Horta, 2011. (No prelo).

Deutsche Lufthansa, Development & Progress of North Atlantic Flying by Deutsch Lufthansa.

SilvEira, Carlos Ramos; faria, Fernando, Apontamentos para a História da Avia-ção nos Açores, Horta, Direcção Regio-nal de turismo, 1986.

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figura 2: o avião Zephir catapultado pelo navio Schwabenlandem em 1936.

figura 1: Chegada à Horta do Dornier Do18, Zephir em 1936.

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figura 4: o navio catapulta Friesenland na Horta em 1937.

figura 3: Desembarque na Horta do Cap. W. Von Engel do Aeolus em 1936.

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figura 5: o avião Norwind chega à Horta em 1937.Ancorado na baía faialense encontra-se o avião Caledonia da BoAC.

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a Narrativa portuguEsa dE joHN dos passos

vambErto frEitas

Freitas, V. (2011), A narrativa portuguesa de John Dos Passos. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 297-301.

Sumário: o ensaio tem implícita a ligação entre a própria redescoberta de Dos Passos quanto às suas raízes e à sua origem Portuguesa, com as motivações ou a génese da sua narrativa inci-dindo sobre a época das Descobertas. Num sentido mais profundo, poderia afirmar-se que esta narrativa se situa simbolicamente na iniciação do autor e no seu percurso intelectual no mundo ao longo da maior parte do século XX.

Freitas, V. (2011), the portuguese narrative of John Dos Passos, Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 20: 297-301.

Summary: this essay makes an implicit connection between Dos Passos rediscovery of his own roots and Portuguese ancestry with the motivation or genesis of his Portuguese narrative covering the Age of Discoveries. In a deeper sense, one could say that this narrative stands symbolically for the author’s beginnings and his intellectual travels in the world during the most part of the twentieth century.

Vamberto Freitas – Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores.

Palavras-chave: origens, história intelectual, novos mundos, confrontos culturais.

Key-words: Ancestry, intellectual history, new worlds, cultural confrontations.

… Uma animada narrativa dos esforços do Homem para alargar os seus horizontes.

Da contracapa de The Portugal Story

Não será necessariamente para des-cobrir algo de novo na história pátria que se lê The Portugal Story: Three Centuries of Exploration and Dis-covery, de John Dos Passos. Só que

se trata de um livro importante, que creio nunca ter sido traduzido, e ain-da hoje será pouco conhecido entre nós. Em primeiro lugar, importante porque foi escrito por um dos grandes

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escritores norte-americanos do século passado, consciência do modernismo literário do seu país, que teve como berço principal Nova Iorque nos anos 20, envolvendo escritores que lá vi-viam ou simplesmente giravam em volta daquele universo ainda hoje sem igual no mundo. A lista desses nomes é longa, e suspeito que a maioria dos leitores aqui conhece muito bem de quem falamos, pois muitos deles foram, em graus variáveis, traduzidos para a nossa língua. Ainda há bem pouco tempo, foi lançada cá a tradu-ção de Manhattan Transfer, um dos principais e mais conhecidos roman-ces do autor luso-americano, nascido em Chicago em 1896 e falecido em Baltimore em 1970.Nos últimos anos da sua vida, Dos Passos fez questão de resgatar para si próprio a sua ancestralidade paterna de português de raízes madeirenses. Uma vez mais, o autor da trilogia canónica intitulada U.S.A. (ficção) e de outras inúmeras obras de histó-ria e reportagem sobre a sociedade americana que nascia após a Primeira Grande Guerra, receberia orgulhosa-mente a resposta e o reconhecimento das nossas comunidades americanas com uma condecoração especial, “Peter Francisco Medal” da Portu-guese Continental Union. Muito antes disso, Edmund Wilson, o mais conhe- cido e respeitado crítico da sua gera-ção e desde sempre amigo íntimo do

autor, já tinha anotado com alguma surpresa e fascínio em cartas mais tarde publicadas essa atitude de John Dos Passos em valorizar sem com-plexos o seu lado de luso-americano. Dos Passos passaria a visitar tanto Portugal como o Brasil, ao qual já estava ligado desde os anos 40, tendo prestado homenagem a esse ou-tro país-irmão com o livro, também pouco notado entre nós, Brazil On The Move, publicado alguns anos de The Portugal Story.É certo que outros historiadores norte--americanos de renome internacional escreveram também sobre os Desco-brimentos portugueses, mas nenhum deles o poderia ter feito como o fez John Dos Passos, pela perspectiva declaradamente afectiva e creio que correctiva de todo e qualquer anti-portuguesismo surgido na literatura académica e ficcional do seu país, que ele conhecia e reconheceria como poucos no seu tempo.The Portugal Story resultou inequi-vocamente do seu respeito e, uma vez mais, afecto pelas raízes ancestrais, mas só depois de aturadas investiga-ções um pouco por toda parte, espe-cialmente no nosso país e através de contactos e diálogos com seus ami-gos e conhecidos historiadores e inte- lectuais portugueses. Um grande escritor da ficção modernista que se debruça sobre um tema tão abrangen-te e decisivo na história do ocidente

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John Dos Passos, The Portugal Story: Three Centuries of Exploration and Discovery, New York, Doubleday, 1969.

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teria forçosamente de se dirigir a um grande público com uma escrita abso- lutamente contrária à suposta cien-tificidade do costume. The Portugal Story lê naturalmente como se um romance fosse, cada etapa da prepa-ração da grande aventura deixando o leitor ansioso pelo que vem nas pá-ginas seguintes, a linguagem fluindo como as cavarelas em ventos favorá-veis, descomprimindo aqui e ali com informação contextualizante nas para- gens de movimento, como que em preparação para novas navegações e encontros.São quase quatrocentas páginas da mais fina e dinâmica prosa, levando o leitor de hoje a imaginar como terá sido para outros de língua inglesa este outro ou inesperado encontro com as figuras da nossa história. Dos Passos escreveu The Portugal Story numa fase da sua vida em que já tinha pas-sado por várias fases políticas e ideo- lógicas, vindo inicialmente da esquer- da mais ou menos nova-iorquina até ao conservadorismo da aula mais direitista do Partido Republicano. Alguns destes factos no seu percurso intelectual, à primeira vista sem im-portância, terão sido cruciais no que mais enforma a sua narrativa lusa: sem apologias ou condenação “impe-rialista”, sem complexos nos confron-tos civilizacionais entre uma Europa quinhentista então liderada por Por-tugal na sua aventura além-mar, em

que venciam nos negócios em novas feitorias aqueles cujas frotas à vista faziam meio mundo fugir de medo e reverência. De resto, no ambiente multicultural em que a América começava já a viver durante a escrita de The Portugal Story, o início da valorização de cada grupo étnico na construção do país americano, não lhe terá sido alheio nem por mero caso a sua descrição da formação mista da nossa nacionalidade lusitana desde os tempos pré-romanos até ao Infante D. Henrique.toda a escrita acaba por ser autobio-gráfica, mesmo uma narrativa histó-rica? Raramente um autor escapa à intromissão da sua “biografia”, real ou imaginada, naquilo que cria ou interpreta. No já mencionado Bra-zil On The Move, Dos Passos, muito antes dos brasilianistas que em breve surgiriam em força nos EUA, dava especial ênfase ao carácter étnico e culturalmente misto do maior país lusófono, convivia pessoal e intelec-tualmente nas suas prolongadas visitas com vários escritores, especialmente com Gilberto Freyre, o autor de Casa Grande e Senzala, significativamente escrito e publicado nos anos em que alguma Europa se autodestruía em violentos espasmos racistas. The Por-tugal Story, pois, oferecia aos seus leitores anglófonos uma grande narra- tiva bem diferente das que porven-tura teriam conhecido vagamente em

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medíocres e tendenciosos programas escolares. os portugueses deixavam agora de ser aquele povo esquecido na Península Ibérica e Ilhas para se tornar no mais corajoso descobridor e pioneiro, na nossa linguagem actual, da globalização. toda a violência nos encontros entre nós e os outros povos no decorrer de cada chegada a portos longínquos e desconhecidos é vista como um inevitável imperativo de cada época, em nada diferente do que o próprio autor, séculos mais tarde, conhecera pessoalmente nas guerras da Europa, inclusive na Espanha re-publicana a saque. Do mesmo modo, Dos Passos realça o outro lado, o diá-logo e a compreensão ante as mais distantes e desconhecidas culturas, escolhe certos episódios e geografias que mais dramatizam esses encontros que para sempre mudariam o mundo conhecido e inventariam outros na modernidade ambígua que se desen-volve a partir do século XVI.Atentemos no próprio título do livro: The Portugal Story, e não A History of Portugal. Uma “estória” e não uma “história”. Sem uma única nota-de-

-rodapé, a sua longa narrativa flui na linguagem a que só um grande escri-tor terá acesso: cada personagem, cada incidente, cada descoberta, cada confronto metaforizados como se entre a arte e a escrita realista não pudesse nunca existir qualquer sepa-ração, a poetização da memória ine-rente a qualquer acto de narração. os factos aqui servem como informação pura, sim, e depois servem sobretudo como contexto ou moldura explica-tiva à imaginação do próprio escritor e dos seus leitores. Na incerteza ou nebulosidade em que todo o passado reside, uma grande narrativa será sempre o que os Antigos já tinham descoberto: uma lição dramática da grandeza dos homens e/ou da sua inevitável ou eventual vilania, da duplicidade da nossa alma e feitos. o livro está ilustrado com algumas gravuras de lugares-chave da narra-tiva, mas também com alusões a figu-ras e obras de arte, toda a sugestão da completude e riqueza de um povo quase esquecido nos séculos que se-guiram à aventura trágico-Marítima.

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