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www.ts.ucr.ac.cr 1 A descentralização como instrumento de ação política: O caso da Assistência Social Rosa Helena Stein 1 As recomendações da Constituição Federal Brasileira de 1988 somadas às expressivas mudanças estruturais e político-ideológicas indicaram, para a década de 90, alterações profundas na forma de relação entre o Estado, a sociedade e o mercado. Tomamos como referência a situação brasileira identificada, por um lado, com conquistas de direitos inscritos na referida Constituição (apontando para o que poderíamos chamar de a "década da cidadania") e, por outro, com uma realidade sócio-econômica nacional, cujos dados estatísticos disponíveis apontam para o que ficou conhecido como a "década perdida" ou a "década da exclusão". O Brasil, segundo o Informe sobre desarollo humano (1993, p.19) tem uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo: "el 20% más rico de la población recibe 26 veces más ingresos que el 20% más pobre". Em compensação, em muito se avançou no campo da distensão política. Vivemos o paradoxo de uma sociedade que tem esperança em seu horizonte, mas também tem pesadelos, por não ter conseguido ainda dar respostas às demandas crescentes da população por eqüidade e justiça. Vivemos o desafio da cidadania, o desafio de "construir um sentido de pertencimento, sem o qual homens e mulheres não podem se reconhecer como cidadãos" (Telles, 1994, p. 44). Este paradoxo, de desmantelamento, de um lado, e de novas exigências de direitos, de outro, não constitui especificidade da realidade brasileira mas, inscreve-se num contexto de transformação político-econômica do capitalismo contemporâneo caracterizado principalmente pelo colapso do socialismo real e, pela chamada "crise" do Estado de Bem- Estar. O capítulo II, da Constituição Federal, referente à Seguridade Social, estabelece como um dos objetivos na sua organização, o "caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados" (Art.194, inciso VII). Este objetivo é reiterado, como diretriz, nas ações da Saúde (Art.198 e seus incisos) e da Assistência Social (Art. 204 e seus incisos). Na Educação, também o princípio da gestão democrática está garantido (Art. 207, inciso VI), 1 Assistente Social, Mestre em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB), Professora Assistente do Departamento de Serviço

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A descentralização como instrumento de ação política: O caso da Assistência

Social

Rosa Helena Stein1

As recomendações da Constituição Federal Brasileira de 1988 somadas às

expressivas mudanças estruturais e político-ideológicas indicaram, para a década de 90,

alterações profundas na forma de relação entre o Estado, a sociedade e o mercado.

Tomamos como referência a situação brasileira identificada, por um lado, com conquistas de

direitos inscritos na referida Constituição (apontando para o que poderíamos chamar de a

"década da cidadania") e, por outro, com uma realidade sócio-econômica nacional, cujos

dados estatísticos disponíveis apontam para o que ficou conhecido como a "década perdida"

ou a "década da exclusão". O Brasil, segundo o Informe sobre desarollo humano (1993, p.19)

tem uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo: "el 20% más rico de la

población recibe 26 veces más ingresos que el 20% más pobre". Em compensação, em

muito se avançou no campo da distensão política.

Vivemos o paradoxo de uma sociedade que tem esperança em seu horizonte, mas

também tem pesadelos, por não ter conseguido ainda dar respostas às demandas

crescentes da população por eqüidade e justiça. Vivemos o desafio da cidadania, o desafio

de "construir um sentido de pertencimento, sem o qual homens e mulheres não podem se

reconhecer como cidadãos" (Telles, 1994, p. 44).

Este paradoxo, de desmantelamento, de um lado, e de novas exigências de direitos,

de outro, não constitui especificidade da realidade brasileira mas, inscreve-se num contexto

de transformação político-econômica do capitalismo contemporâneo caracterizado

principalmente pelo colapso do socialismo real e, pela chamada "crise" do Estado de Bem-

Estar.

O capítulo II, da Constituição Federal, referente à Seguridade Social, estabelece

como um dos objetivos na sua organização, o "caráter democrático e descentralizado da

gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores,

empresários e aposentados" (Art.194, inciso VII). Este objetivo é reiterado, como diretriz, nas

ações da Saúde (Art.198 e seus incisos) e da Assistência Social (Art. 204 e seus incisos).

Na Educação, também o princípio da gestão democrática está garantido (Art. 207, inciso VI),

1 Assistente Social, Mestre em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB), Professora Assistente do Departamento de Serviço

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repetindo-se na Cultura (Art. 216 § 1º) e, no Capítulo VII - Da Família, da Criança, do

Adolescente e do Idoso, é admitida a participação de entidades não governamentais nos

programas de assistência promovidos pelo Estado.

A Constituição, portanto, como já foi salientado, além de indicar o caminho da

descentralização e da municipalização, garante a participação da população.

Garante também a participação da comunidade em decisões de interesse geral, ao

estabelecer instrumentos de soberania popular, além do sufrágio universal, como o plebiscito,

o referendo e a iniciativa popular (Art. 14), tanto no âmbito nacional, quanto no estadual e no

municipal. A vigência desses institutos configura o que autores europeus chamam de

"democracia semi-direta".

Em síntese, na análise da Constituição, constatamos a presença de termos como

autonomia, competência comum, cooperação, participação da comunidade, plebiscito,

referendo e iniciativa popular, tornando-se visível que o sentido da descentralização está

contido e difundido em todo o texto da Carta Magna.

É inegável que em termos de garantia constitucional poderíamos falar de uma

década que aponta para a "cidadania", entendida esta como "cidadania ativa", na qual os

cidadãos se articulam e participam da vida pública, visando ao interesse coletivo, conforme

argumenta Benevides (1994, p.13)2. Há, segundo a autora "um grande salto qualitativo entre

o cidadão meramente eleitor, contribuinte e obediente às leis, e o cidadão que exige a

igualdade através da participação, da criação de novos direitos, novos espaços e da

possibilidade de novos sujeitos políticos, novos cidadãos".

Mas, como o caráter democrático, descentralizador e participativo se revela nas

relações entre diferentes atores políticos na formulação de políticas e no controle de suas

ações? - de forma residual, ou institucional?3

A perspectiva da política social, ao nível internacional tem "convergido cada vez mais

para um padrão de proteção social que fortalece a dualização da prática do bem-estar"

(Pereira,1994, p.13). Essa dualização, esclarece Pereira, significa que, de um lado, "o

Social da UnB. 2 Ver também da mesma autora A Cidadania Ativa. Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. São Paulo: Ática,1991. 3 Termo utilizado por Pereira (1994:7), baseada na categorização de MISHRA, R. In: "The welfare state in capitalist society". London. Harvest/Wheatsheat.1990, sobre o bem-estar pluralista. Para Pereira "a descentralização residual privilegia o mercado, restringe ou extingue direitos e resgata as velhas práticas sociais seletivas e estigmatizantes de proteção social e a institucional, guia-se pelo princípio da universalização, valoriza a participação da sociedade e do mercado sem minimizar a presença do Estado no processo de regulação e provisão social". (grifo nosso)

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mercado de trabalho ou o bem-estar ocupacional cuida dos trabalhadores empregados", e

de outro, "o Estado (que tende a se retrair) e instituições privadas filantrópicas cuidam dos

marginalizados ou excluídos das oportunidades de emprego e dos benefícios decorrentes da

inserção no mercado de trabalho". Para isso, a política social pauta-se pelo princípio da

menor elegibilidade e da seletividade no atendimento, o que se identifica com um pluralismo

residual.

Em nome da divisão de responsabilidades entre os setores público e privado pode

não ocorrer a descentralização e a partilha de poder, à medida em que encargos antes

assumidos pelo Estado são devolvidos à sociedade implicando retração de direitos já

conquistados.

No Brasil, após a Constituição de 88, vários Conselhos de representação

descentralizada e paritária foram criados, cobrindo diferentes setores da política social e

outros, já vigentes, sofreram atualizações, assumindo caráter deliberativo.

I Sistema descentralizado e participativo na Assistência Social

A possibilidade de avançarmos no cumprimento do que estabelece a Constituição em

seus artigos 203 e 204, regulamentados pela Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS

pode estar contida na forma de organização de suas ações em sistema descentralizado e

participativo. Conforme previsto na LOAS, “as ações na área da assistência social são

organizadas em sistema descentralizado e participativo, constituído pelas entidades e

organizações de assistência social [...] que articule meios, esforços e recursos, e por um

conjunto de instâncias deliberativas compostas pelos diversos setores envolvidos na área”

(art. 6º ).

Constituem, portanto, instâncias deliberativas do sistema descentralizado da

assistência social, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade

civil, o Conselho Nacional, os Conselhos Estaduais, o Conselho do Distrito Federal e os

Conselhos Municipais.

Paralelos às instâncias deliberativas, existem os órgãos gestores em cada esfera de

governo - Secretaria Nacional, Secretarias Estaduais, do Distrito Federal e Municipais; os

instrumentos de gestão - plano nacional, planos estaduais, do Distrito Federal e planos

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municipais - e, as estruturas financeiras - fundo nacional, fundos estaduais, do Distrito

Federal e fundos municipais.

Contudo, a implementação desse sistema descentralizado vem se constituindo um

sério desafio, não só pelo seu caráter altamente inovador em relação ao padrão institucional

do passado, mas também, e principalmente, pelas adversidades criadas pelas conjunturas

política, econômica e social nas quais se dão os intentos de se operar a descentralização

político-administrativa no Brasil.

Assim, se, por um lado, o recente processo de redemocratização sinaliza para uma

nova ordem social, que poderá redirecionar as tradicionais relações entre Estado e

sociedade, a partir da institucionalização de canais de participação política, por outro lado, o

país convive com uma forte crise fiscal que tem servido de justificativa para a adoção de

medidas drásticas de contenção dos gastos e investimentos públicos. Diante de tais

adversidades, torna-se de fundamental importância que analisemos o significado das

determinações da LOAS e a sua possibilidade de efetivação.

I.1 A implantação do Sistema descentralizado

O processo de implantação do sistema descentralizado na assistência social, não

difere das mudanças ocorridas na administração pública brasileira nos últimos anos que,

segundo Afonso & Affonso, “não resultaram de uma operação planejada, negociada e

ordenada de reestruturação. No seu lugar, ocorreu uma espécie de operação desmanche...”.

Ou seja, “no âmbito federal, órgãos desapareceram ou perderam de tamanho e importância à

medida que, na arena política, seus defensores não conseguiam reunir força suficiente junto

ao Executivo e ao Congresso” (1995, p.65). Nesse processo, foi exacerbado o clima de

disputa entre órgãos e autoridades, não havendo um rearranjo nas relações administrativas

entre os três níveis de governo.

No caso específico da assistência social, vários estudos4 fazem referência aos

conflitos vivenciados por ocasião do “reordenamento institucional”, marcado pela lentidão e

pelo descumprimento de prazos, que dificultaram a ação dos conselhos municipais; pelo

adiamento de prazos legais para concessão de benefícios destinados aos idosos e

portadores de deficiências e, ainda, pela frágil entrosamento entre o então Ministério de

4 Ver FERREIRA (1993), FARIAS (1995), PAIVA (1993), STEIN (1997), entre outros.

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Bem-Estar Social e o Conselho Nacional de Assistência Social, recentemente criado em

substituição ao antigo e problemático Conselho Nacional de Serviço Social5. Destaca-se,

também, neste contexto, a Medida Provisória (MP) n.813 de 1º de janeiro de 1995, mediante

a qual o Governo Federal criou Programas, transformou Ministérios, transferiu competências

e extinguiu órgãos. Tal MP tinha como um de seus objetivos “... a abolição de práticas

clientelistas, corporativas, fisiológicas e corruptas dos órgãos de Governo...” vinculando, para

tal, o combate à pobreza à Presidência da República, na contramão da estrutura, da

organização e das formas de controle social previstos na LOAS.

Nesse quadro de adversidades é que foi iniciado o processo de instalação do

Sistema Descentralizado e Participativo na Assistência Social. Mas, passada esta fase, é

possível identificar que tendência de descentralização tem sido predominante?

I.2 Possibilidades e limites da descentralização

Para situarmos a tendência predominante, é importante assinalarmos as diretrizes

estabelecidas no Art. 5º da LOAS, quanto à organização da assistência social:

“I- descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios, e comando único das ações em cada esferas de governo;

II- participação da população, por meio de organizações representativas, na

formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; e

III- primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência

social em cada esfera de governo.”

Tais diretrizes refletem uma concepção de partilha de poder, a qual supõe mudanças

nas relações de poder entre Estado e sociedade, voltadas para a construção de um espaço

público de decisão e definição de ações a partir do confronto de interesses em presença.

Neste sentido, a descentralização representa não só um rearranjo político, mas a

possibilidade de aprofundamento da democracia e da participação.

Entretanto, o termo descentralização não tem sido utilizado numa única acepção, mas

sim relacionado à visões de mundo com preocupações e prioridades diferentes. Em sua

maioria o termo descentralização é relacionado a algo positivo, como mais autonomia e

5 CNSS foi criado pelo Dec. Lei n.º 525/38 como parte de uma estratégia do Estado perante a sociedade civil e, em aliança com a filantropia. O referido Decreto sugere uma conduta democrática de uma política social no campo do Serviço Social. Em 1943, através do Dec. Lei n.º 5697/43 é refundado o CNSS que passa a ter característica centralizadora e fiscalizadora das obras sociais públicas e

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menos burocracia; ou mais participação e ampliação da democracia, implicando no controle

das políticas, ou num “movimento de reação a uma tendência centralizadora em favor do

fortalecimento da esfera local” (Stein, 1997, p.6). Desta forma, a organização do sistema

descentralizado dar-se-ia em duas direções: da esfera federal para a estadual e municipal,

comumente chamada de municipalização e do Estado para a sociedade.

A primeira direção, identificada por descentralização vertical (Lobo, 1989; PNUD,

1993) ou territorial (Guait apud Teixeira, 1992), refere-se ao deslocamento do poder entre

distintos níveis de governo, isto é, à transferência do poder federal aos governos estaduais e

municipais. Este tipo de descentralização desdobra-se em duas dimensões: uma, na qual

ocorre a redistribuição das receitas públicas - a financeira - e, outra, na qual ocorrem novos

arranjos no sistema de competências governamentais - a político-institucional.

A segunda direção, refere-se à transferência de funções executadas pelo setor público

ao setor privado, tanto lucrativo (instituições econômicas), como não lucrativo (organizações

civis, sejam de classe ou comunitárias). Esta direção contempla defensores com visões

distintas: a privatista que defende a privatização de atividades até então desenvolvidas pelo

Estado, e a comunitarista que defende maior articulação entre a sociedade civil e o Estado

mediante a cooperação mútua entre estas duas instâncias na prestação de determinados

serviços públicos.

A perspectiva de novos arranjos colocada na primeira direção, coaduna-se com a

segunda direção que visa maior articulação entre Estado e sociedade civil, as quais, por sua

vez, relacionam-se diretamente com as diretrizes a serem seguidas na organização da

assistência social. É importante destacar que, na defesa de maior proximidade entre Estado

e sociedade, tem-se utilizado a municipalização como sinônimo de descentralização.

Entretanto, Lobo (1989) alerta para as nuanças adquiridas na municipalização dos

serviços. Conforme a autora, “municipalizar, para alguns, significa uma articulação das forças

do município como um todo para a prestação dos serviços”, ou seja, a prefeitura municipal e

as organizações da sociedade civil seriam co-responsáveis por essa prestação. Para outros,

continua a autora, “municipalizar pode querer dizer ”prefeiturizar”, processo assumido com

exclusividade pela administração municipal. Paralelo à defesa da municipalização como

instrumento para a descentralização, há também a defesa da estadualização.

privadas. Nesta reformulação é abandonado o caráter democrático previsto em 1938 (Stein, 1997, p. 98).

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Na mesma linha, Sato admite que, “dependendo da perspectiva de cada ator social, a

descentralização pode ser o problema a ser resolvido, o objetivo que se busca ou o meio

para resolver algum outro problema” (1993, p. 15), isto é, os conceitos e idéias sobre

descentralização podem ser identificados como problema, fim ou meio, dependendo de

como ela está presente nas preocupações dos analistas.

Levantadas estas preocupações há que se considerar que a descentralização deve ter

como objetivos a “democratização do Estado e a busca de maior justiça social” , mesmo

reconhecendo que tais objetivos “não podem ser vistos como de exclusiva responsabilidade

da descentralização” (Lobo, 1989, p.488). Sendo assim, concordo com a autora quando

sugere que sejam encarados os limites do processo de descentralização, não lhe atribuindo

tamanha onipotência.

Para tanto, enumera quatro princípios que, embora não sejam os únicos, merecem

destaque:

1) a flexibilidade, que implica considerar “as diferenças econômico-financeiras,

políticas, técnico-administrativas e sociais, que fazem com que os governos estaduais e

municipais tenham distintas capacidades de resposta às demandas que se lhes apresentam”

(p. 490). Por conseguinte, a eficácia da descentralização depende da sua adequação a um

determinado complexo de tempo/espaço, não acreditando em descentralização vinda por

decreto;

2) o gradualismo, entendido como princípio que “assegura a consolidação do

movimento, não devendo, portanto, significar risco de estancamento ou diminuição do ritmo

de mudanças”;

3) a transparência no processo decisório. Este princípio tem importância fundamental,

tendo em vista o objetivo de redirecionar núcleos de poder;

4) o controle social, considerado como premissa básica do processo de

descentralização, o qual deve criar mecanismos político-institucionais de articulação, canais

orgânicos de comunicação constante, bem como a aceitação às pressões e ao controle

advindos do referido processo. O controle social só ganha eficácia com a garantia efetiva da

participação da população organizada.

A enumeração de princípios, não deve obscurecer a realidade difícil a ser enfrentada.

Mas o conhecimento dessa mesma realidade, possibilita a previsão dos entraves que

poderão estar presentes no processo, tais como:

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* correlação de forças, tendo em vista tratar-se de distribuição de poder e,

consequentemente, resistências políticas;

* despreparo estrutural da máquina burocrática e de seus corpos técnicos;

* visão de curto prazo em detrimento de uma perspectiva de médio e longo alcance, o

que acarreta uma visão de descentralização cujos resultados devem se configurar com a

mesma rapidez com que se prometeu mudanças imediatas;

* sistema político-partidário que, por meio dos partidos políticos e sua representação

legislativa, ainda padecem historicamente de um conhecimento inadequado sobre a

realidade onde atuam, apesar da defesa intransigente da descentralização;

* exacerbação do municipalismo, perdendo-se a visão do papel do governo estadual;

* sentimento regionalista que, nessa luta, pode exercer pressão para que as mudanças

político-institucionais ocorram na direção de benefícios para suas regiões específicas.

Assim, conforme Lobo, “não adianta ter objetivos bem traçados, princípios acordados,

se não houver uma consciência nítida dos entraves a enfrentar e um plano de ação para

ultrapassá-los” (p.493).

Considerando os objetivos da descentralização em democratizar o Estado e buscar

mais justiça social, assim como o reconhecimento de suas possibilidades e de seus limites,

passaremos a caracterizar o estágio atual da descentralização na área da assistência social.

I.3 Estágio atual da descentralização na área da assistência social

A política de assistência social prevista na LOAS6, deve realizar-se “de forma

integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia de mínimos

sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização

dos direitos sociais” (parágrafo único, art. 2º).

Para que tais intentos sejam atingidos, a LOAS contempla, além do aspecto inovador

quanto ao modelo de organização e gestão, ”benefícios” (de prestação continuada e

eventuais), “serviços”, ”programas de assistência social”, e “projetos de enfrentamento à

pobreza”. Mas, estaria esta rede de proteção social possibilitando à garantia de acesso a

6 Na LOAS, esta política tem como objetivo: de proteger à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; amparar às crianças e adolescentes carentes; promover a integração ao mercado de trabalho; habilitar e reabilitar pessoas portadoras de deficiências e promover sua integração à vida comunitária; garantir um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (art. 2º).

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mínimos sociais? O modelo de organização e gestão estaria sendo implementado conforme

previsto na Lei?

O que podemos concluir, em princípio, é que o sistema descentralizado e participativo

na assistência social estará efetivamente implantado quando a estrutura prevista estiver em

perfeito funcionamento, viabilizando-a como direito do cidadão e dever do Estado.

O parâmetro que utilizamos para caracterizar o estágio atual, leva em consideração

estudos já realizados (Stein, 1997), bem como o processo ocorrido nos Estados e Municípios

em atendimento aos preceitos da LOAS, no que se refere à realização de Conferências

Municipais, que se somaram às Estaduais as quais, por sua vez, se consolidaram na

Conferência Nacional, cuja atribuição consiste em ”avaliar a situação da assistência social e

propor diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema” (art. 18, inciso VI). Para tanto, utilizamo-

nos do Balanço das Conferências Estaduais de Assistência Social elaborado pela equipe de

analistas (por solicitação do Conselho Nacional de Assistência Social) composta pelas

Professoras Beatriz Paiva, Rachel Raichelis e Maria Carmelita Yazbek, e apresentado por

esta última, na II Conferência Nacional de Assistência Social. A referida comissão partiu dos

relatórios elaborados pelas Conferências Estaduais, o que lhes possibilitou o destaque e

análise de cinco eixos, a saber:

1) construção da inclusão social;

2) construção do sistema descentralizado e participativo;

3) participação popular na construção da política de assistência social;

4) financiamento e controle na política de assistência social; e

5) abordagem sobre a assistência social como política pública.

O primeiro eixo, procura identificar em que medida a assistência social vem

permitindo ou não a inclusão social. Conforme Yasbek (1997), a maior parte dos relatórios

“apontam uma conjuntura adversa, uma conjuntura de ajustes estruturais”, na qual, de um lado,

agrava-se a situação de pobreza e de exclusão e, de outro, precarizam-se os padrões de

proteção social. Nesta conjuntura, afirma Yazbek, “nós não temos de fato nem de direito, uma

política de assistência social neste país. Não há, consequentemente, o reordenamento

institucional, a rearticulação, o redesenho das três esferas de poder, no campo da política de

assistência social. Nós temos uma reiteração, uma persistência, uma permanência da

assistência social como prática fragmentada, como prática descontínua, que não alcança a

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população a que se destina, que se caracteriza por ações focalizadas em alguns

segmentos...”.

O que os relatórios apontam é que a assistência social não vem avançando na

construção da inclusão, que é sua tarefa principal. Destacam como fatores determinantes

para isto, além das adversidades da atual conjuntura, traduzidas na “ausência de recursos

financeiros, na ausência de infra-estrutura organizacional”, a permanência da visão

fragmentadora da população usuária dos serviços da assistência social, conduzindo à

indagação: Quem é a população usuária da assistência social?

Na verdade, afirma Yazbek, “nós pouco conhecemos as necessidades, as

expectativas, as condições concretas de vida daqueles que precisam da assistência social”,

tendo em vista a ausência de diagnósticos sociais sobre a pobreza no Brasil. Os relatórios

das Conferências apontam outros segmentos populacionais que são ou poderiam ser alvo

das ações da assistência social, e não são por estas atendidos, conduzindo assim, à

formação da “consciência de que a assistência social precisa ampliar os seus programas, o

seu alvo, o foco de sua ação”. Apesar dessa consciência, ainda são poucas as ações no

âmbito comunitário, aquelas entendidas como ações de enfrentamento à pobreza.

Acrescenta-se a esses dados, a ausência de organicidade nas ações na área da assistência

social, expressos na indefinição de padrões mínimos de atendimento.

Além da análise dos relatórios realizada por Yazbek, os dados apresentados pela

Secretaria de Assistência Social (SAS) na II Conferência Nacional de Assistência Social,

bem como os expressos no documento da referida Secretaria, “Assistência Social - Gestão

1997”, revelam que, apesar das iniciativas do Governo Federal, as ações da assistência

social mostram-se ainda muito tímidas, considerando a dimensão dos “necessitados”. Tais

iniciativas em atendimento ao previsto no Cap. V da LOAS, são as seguintes:

* Benefício de Prestação Continuada (BPC): consiste na garantia de 1 (um) salário

mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos7 ou

mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida

por sua família, tendo como limite máximo de renda mensal per capita familiar ¼ de salário

mínimo (art.20).

No ano de 1997 o total destes benefícios, distribuídos aos idosos, foi de 92.042

atendimentos e às pessoas portadoras de deficiência, 576.876.

7 Idade reduzida para 67 (sessenta e sete) anos, a partir de jan.1998.

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Se levarmos em consideração que a população idosa, de 70 anos e mais, totalizava

em 1990 (FIBGE, apud Calsing, 1995, p.22) 4.548.642 e, desta, 323.753 (7,11%) possuíam

renda per capita familiar de até ¼ do salário mínimo, veremos que somente 15,64% dos

323.753 de idosos pobres foi atendida com o BPC.

Quanto à pessoa portadora de deficiência, há estimativas mostrando que em 1989

(FIBGE, apud Calsing, 1995, p.16), havia 8.570.250 pessoas deficientes, das quais

1.671.700 (19,5%) possuíam renda per capita familiar de até ¼ do salário mínimo, sendo que

deste percentual, 57,1% ou 954.540 pessoas portavam deficiências severas. Se

compararmos com o número de pessoas portadoras de deficiência que tiveram acesso ao

BPC, veremos que, somente, 22,38% desta população foi atendida.

* Benefícios Eventuais: visam, basicamente8 ao pagamento de auxílios por natalidade

ou morte às famílias cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ de salário mínimo. De

acordo com a LOAS, a concessão e o valor dos benefícios deverão ser regulamentados

pelos Conselhos de Assistência Social dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,

mediante critérios e prazos definidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS

(art.22). Para cumprir tal determinação e, também por pressão dos Estados e Municípios, o

CNAS em reunião plenária realizada em 22/08/97 aprovou a criação de um Grupo de

Trabalho para aprofundar as questões relacionadas ao referido Benefício. Entretanto, após

estudos, bem como análise de pareceres da Consultoria Jurídica do MPAS, concluiu-se pela

manutenção do Grupo de Trabalho, considerando que embora se reconheça a competência

do CNAS, este “não pode impor aos Estados, Distrito Federal ou Municípios prazo mínimo

para pagamento dos benefícios eventuais. Ao CNAS compete apenas sugerir ou propor”

(MPAS/CNAS, 1998, p.3). Desta forma, ainda não foi regulamentado o referido benefício,

gerando, no plano administrativo, a suspensão dos tradicionais “auxílios natalidade e funeral”

(instituídos desde 1954 e prestados desde então, aos segurados da Previdência Social), o

que representa, no plano jurídico, ato lesivo ao Direito, por descumprir preceito legal contrário

à solução de continuidade na prestação desses auxílios (Pereira et alli, 1996)

8 De acordo com § 2º do art. 22 da LOAS “poderão ser estabelecidos outros benefícios eventuais para atender necessidades advindas de situação de vulnerabilidade temporária com prioridade para criança, a família, o idoso, a pessoa portadora de deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública". O § 3º do mesmo artigo, estabelece que o CNAS “ouvidas as respectivas representações de Estados e Municípios dele participantes poderá propor, na medida de disponibilidades orçamentárias das três esferas de governo, a instituição de benefícios subsidiários no valor de até 25% do salário mínimo para cada criança de até 6 (seis) anos de idade nos termos da renda mensal familiar estabelecidas no caput”.

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* Serviços Assistenciais: referem-se às atividades continuadas que visem à melhoria

de vida da população, priorizando-se a atenção à infância e adolescência, aos idosos e às

pessoas portadoras de deficiência (art.23).

Durante o ano de 1997, vários convênios foram assinados com as Secretarias

Estaduais, do Distrito Federal e Municipais de Assistência Social para prestação dos

referidos Serviços, os quais significaram:

a) atenção à criança de 0 a 6 anos, prestada em creches e pré-escolas por

instituições de caráter educativo e assistencial, totalizando 5.939 convênios, que atenderam

1.400.357 crianças ou 15,2% sobre o total de crianças de 0 a 6 anos de famílias pobres9

(MPAS/SAS, 1997);

b) apoio à pessoa idosa, caracterizado por ações de assistência social prestadas por

intermédio de organizações governamentais e não-governamentais, na modalidade de

atendimento asilar (destinado ao idoso sem vínculo familiar, abandonado ou carente de

recursos financeiros) e, não asilar. Tal apoio representou, no ano de 1997, 1.918 convênios,

que atenderam 265.759 idosos ou 14,9% sobre o total de idosos de famílias pobres10

((MPAS/SAS, 1997);

c) apoio à pessoa portadora de deficiência: caracterizado por ações empreendidas

por meio de apoio financeiro aos serviços de habilitação, reabilitação e promoção da

integração social desse segmento. De acordo com a SAS, 1.355 convênios foram

assinados, atendendo a 120.787 pessoas ou a 4,0% sobre o total dos portadores de

deficiências de famílias pobres11.

* Programas de Assistência Social: compreendem ações integradas e

complementares objetivando a qualificação, o incentivo e a melhoria dos benefícios e

serviços assistenciais, cuja prioridade é a inserção profissional e social das pessoas

atendidas (art.24). Nesta modalidade de atuação as ações desenvolvidas caracterizaram-se

por programas de proteção integral à crianças e adolescentes de 07 a 14 anos, “tendo como

princípio básico a intercomplementaridade de ações entre a escola, a comunidade e a

família” (MPAS/SAS, 1997, p.25), denominado “Brasil Criança Cidadã”. Este programa,

lançado em 1997, já realizou 2.245 convênios, atendendo a 397.786 crianças e

adolescentes.

9 Crianças e adolescentes de famílias com renda mensal per capita de ½ salário mínimo. 10 Idosos de famílias com renda mensal per capita de ½ salário mínimo. 11 Pessoas Portadoras de Deficiências de famílias com renda mensal per capita de ½ salário mínimo.

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No âmbito do Programa “Brasil Criança Cidadã”, também são desenvolvidos :

a) Programa de erradicação do trabalho infantil. Destinado às famílias da zona rural

cujos filhos, entre 7 e 14 anos, estejam submetidos a trabalhos caracterizados como

insalubres, degradantes e penosos, que os impede de contar com oportunidade de estudos,

de desenvolvimento, de desenvolvimento integral e de exercício da cidadania (MPAS/SAS,

1997). O Programa, conforme a SAS, busca “o reingresso, a permanência e o sucesso

escolar da criança e do adolescente, incentivando um segundo turno de atividades [...] que

assegurem alimentação e orientação para os estudos, os esportes e o lazer” , com a oferta

de recursos da “bolsa Brasil Criança Cidadã”. Constitui objetivo principal a recriação de

condições mínimas para que a família possa prover suas necessidades básicas e

complementar sua renda. Entretando, este Programa restringe-se ainda a poucos Estados

(Pernambuco, Bahia e Mato Grosso do Sul), atingindo 48 municípios (dos 5.514 existentes),

totalizando o atendimento a 37.688 crianças, e a 18.506 famílias, acompanhado da

distribuição de 30.376 bolsas (MPAS/SAS, 1997);

b) Programa de combate à exploração, à violência e ao abuso sexual infanto-juvenil:

De acordo com a SAS, este programa caracteriza-se pela parceria com diversas

organizações governamentais e não-governamentais, cuja estratégia de gestão enfatiza

ações preventivas de caráter educacional. Constitui uma das prioridades do Programa

Nacional dos Direitos Humanos.

• Projetos de enfrentamento da pobreza: consiste no investimento econômico-

social junto aos grupos populares, buscando subsidiar financeira e tecnicamente iniciativas

que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições

gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio

ambiente e sua organização social (art.25). Neste sentido, os investimentos estão sendo

direcionados para o Programa de Lavouras Comunitárias, Projetos de Geração de Renda e

Ações Sociais e Comunitárias, os quais assumiram as seguintes características:

a) Lavouras Comunitárias. De acordo com a SAS, tal programa “objetiva a criação de

oportunidades para que as famílias com prática em atividades rurais, mas que não dispõem

de acesso à terra e a financiamentos, tenham acesso a alternativas de geração de renda,

produzindo alimentos para sustento próprio e, em caso de produção excedente, para serem

disponibilizados para comercialização” (MPAS/SAS, 1997, p.37). Na sua implementação,

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poucos Estados estão sendo contemplados - GO, MT, TO, SE, PR e DF, sendo o Estado de

Goiás aquele com o maior número de municípios (202) atendidos.

b) Projetos de Geração de Renda. Esta modalidade de projeto “constrói e implementa

oficinas de trabalho, dotando-as de equipamentos, materiais e outros instrumentos

necessários; incentiva o trabalho coletivo; oferece capacitação e reciclagem profissional;

incentiva a instalação e a melhoria de oficinas de treinamentos e de empresas comunitárias

e dá apoio técnico e financeiro a microunidades produtivas” (MPAS/SAS, 1997, p.41). Na

sua implementação 1862 municípios foram atendidos, abarcando 112.919 famílias, com a

estimativa de 564.595 pessoas beneficiadas.

c) Ações Sociais e Comunitárias: têm por objetivo “implantar, revitalizar, ampliar e

reaparelhar equipamentos sociais que prestam serviços assistenciais às comunidades

carentes; atender demandas comunitárias, subsidiar as famílias com bens e serviços

destinados a superar situações de vulnerabilidade social” (MPAS/SAS, 1997, p.42). As

referidas ações beneficiaram 1.985 municípios, abarcando 129.662 famílias, com estimativa

de 648.310 pessoas atendidas.

As ações de assistência social previstas na LOAS, apontam para a perspectiva do

atendimento emergencial e focalizado, tendo como referência uma linha de pobreza bastante

rígida (pobreza absoluta), ou seja, ¼ de salário mínimo per capita, na qual situa-se um

significativo contingente populacional “excluído” da garantia de atendimento às necessidades

mínimas de sobrevivência (o que dirá, do atendimento às necessidades sociais básicas...).

Entretanto, as ações de combate à pobreza, se ampliadas, devem extrapolar a linha

de pobreza estabelecida para o atendimento aos benefícios, valendo-se de programas

preventivos, incorporando a concepção da pobreza relativa, possibilitando assim, o acesso

às políticas sociais básicas.

Contudo, os números confirmam o que os relatórios das Conferências Estaduais

revelaram. Com o agravamento da questão social, ocorre o crescimento da fome e da

miséria, fazendo com que as ações no campo social sejam colocadas para essa população

como a “única via pela qual uma parcela da população brasileira consegue chegar às

condições mínimas para sobreviver, para se reproduzir socialmente [...] Para muitos e muitos,

nesse país, o único modo de sobreviver é recorrendo à assistência social” (Yazbek, 1997).

O segundo eixo avalia a construção do sistema descentralizado e participativo da

assistência social, que se revela como um processo em andamento. No ano de 1997, tinha-

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se 3.605 municípios com seus Conselhos Municipais criados, de um total de 5.514, o que

equivale a 65,4%. Ainda no ano de 1997, observa-se que apesar do número de conselhos

criados, apenas 2.585 (46,9%) atendiam às exigências do art. 30 da LOAS – instituição e

funcionamento do Conselho, Fundo e Plano de assistência social – e, dentre este, somente

1.491 (57,7%) estavam habilitados para a gestão municipal, conforme Norma Operacional

Básica (NOB)12.

Portanto, apesar do número significativo de conselhos criados, a implantação do

sistema revela-se cheia de contradições, das quais, muitas delas referem-se aos entraves

destacados por Lobo, no item anterior (correlação de forças; despreparo da máquina

burocrática; visão de curto prazo; conhecimento inadequado sobre a realidade por parte do

sistema político-partidário; exacerbação do municipalismo; sentimento regionalista). Assim,

as Conferências Estaduais registram que a “descentralização não está sendo mais do que

um repasse para a prefeitura de responsabilidades que antes eram dos Estados e da União”

(Yazbek, 1997), descambando para a chamada “prefeiturização”.

Com efeito, aos municípios são cobradas novas responsbilidades sem a devida

contrapartida financeira, e sem a resolução de problemas como a fragilidade ou inexistência

de quadros técnicos, e de estrutura organizacional.

Os relatórios revelam, ainda, conforme Yazbek, grande concentração de poder no

Executivo nas três esferas de Governo; existência de poder paralelo ao “comando único”,

previsto na LOAS, com forte presença e poder das “primeiras damas”; precariedade da rede

de assistência; ausência de fluxos de comunicação de uma esfera de governo para a outra e

entre os Conselhos Nacional, estaduais e municipais; dificuldades na compreensão sobre o

que são mínimos sociais e o que são entidades assistenciais.

Em estreita relação com o eixo supra citado, tem-se o terceiro, referente à

participação popular. Os relatórios expressam a compreensão dos Conselhos como uma

conquista democrática da sociedade civil e como um espaço extremamente rico. Destacam,

também, a importância dos fóruns ampliados de assistência social, cujo papel passa a ser

12 Disciplina o processo de descentralização político-administrativo nas três esferas de governo no campo da Política de Assistência Social, estabelecendo pressupostos; princípios e diretrizes; competências dos órgãos que compõem o sistema; modelo e níveis de gestão. Quanto ao nível de gestão, estão previstos o municipal e o estadual. O primeiro, considera a gestão dos serviços, programas e projetos assistenciais de competência prioritária dos governos municipais, para os municípios que atendam as condições previstas no art. 30 da LOAS. A NOB identifica os casos em que o repasse de recursos do Fundo Nacional de Assistência Social - FNAS é feito diretamente para o Fundo Municipal de Assistência Social - FMAS. O segundo - estadual - estrutura-se pela responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal em apoiar técnica e financeiramente serviços, programas e projetos. Neste nível de gestão o fluxo de financiamento e transferência de recursos far-se-á, do FNAS para o Fundo Estadual de Assistência Social - FEAS e, é pautado por diversos requisitos estabelecidos pela NOB (MPAS/SAS, 1997).

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tão importante quanto os Conselhos, tendo em vista a possibilidade de controle que os

mesmos podem exercer sobre o poder do Estado. Neste eixo, são destacadas diversas

dificuldades, dentre as quais ganha realce a luta pela autonomia e pela garantia de infra-

estrutura para funcionamento, ao mesmo tempo que se registra a vinculação e dependência

dos Conselhos aos órgãos gestores. Acrescenta-se, ainda, a representatividade dos

conselheiros, sobretudo os representantes da sociedade civil, cuja participação, na maioria

das vezes, não consegue ultrapassar a representação de sua própria entidade de origem,

fortalecendo a visão de fragmentação da assistência social.

Outro problema, relaciona-se aos municípios menores, nos quais os conselheiros da

assistência social participam também de outros conselhos na área social, acarretando o

monopólio da representação por uma única pessoa/entidade. A experiência tem

demonstrado que a construção de mecanismos de representação democráticos requer a

ampliação da referida representação de modo a coibir a iniciativa de certas entidades que

não só monopolizam, com também contratam pessoas para representá-las e zelar por seus

interesses.

Na totalidade das Conferências realizadas é destacada a urgência na capacitação

técnica, política e operacional dos conselheiros.

Ademais, se há problemas na representação da sociedade civil, o mesmo se repete

na representação governamental, tendo em vista que a mesma é, na maioria das vezes, uma

indicação do Executivo sem que os indicados detenham qualquer conhecimento da área de

assistência social, além de não possuírem poder decisório.

O quarto eixo, relativo ao financiamento e controle, destaca-se como um dos pontos

de estrangulamento do sistema, dada a insuficiente contrapartida financeira das diferentes

esferas de governo.

Tomando como referência os recursos financeiros executados no âmbito do Fundo

Nacional de Assistência Social em 1997, totalizados em R$1.248.473.006,00 (um bilhão,

duzentos e quarenta e oito milhões, quatrocentos e setenta e três mil e seis reais),

verificamos que o maior percentual dos recursos foram destinados ao BPC, compreendendo

R$792.503.257,00 (setecentos e noventa e dois milhões, quinhentos e três mil, duzentos e

cinqüenta e sete reais) equivalente a 63,47%, enquanto que os Serviços Assistenciais

somaram R$308.325.187,00 (trezentos e oito milhões, trezentos e vinte e cinco mil, cento e

oitenta e sete reais) equivalente a 24,7% e os Programas de Assistência Social e Projetos

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de Enfrentamento da Pobreza, R$152.054.277,00 (cento e cinqüenta e dois milhões,

cinqüenta e quatro mil, duzentos e setenta e sete reais) equivalente a 11,83%.

Conclui-se, pois, que o percentual de recursos utilizados na implementação da

assistência como política pública, revela-se ainda insuficiente para construir a desejada e

necessária inclusão social, tendo em vista que, ainda são poucas as ações no âmbito

comunitário.

No aspecto relativo ao controle social, este agrava-se pelo pouco ou nenhum

conhecimento, por parte dos conselheiros, sobre a questão orçamentária, o que dificulta o

acompanhamento, elaboração e fiscalização do orçamento nas diferentes instâncias

deliberativas.

Dessa forma, o repasse de recursos financeiros na área da assistência social tem se

revelado um processo que ainda não se configura como descentralização propriamente dita

mas sim como desconcentração, marcado fortemente, num primeiro momento, pela

estadualização.

O quinto eixo, que trata da construção da assistência social como política pública,

apresenta-se com muitas dificuldades, dentre as quais destacam-se:

• inexistência da Política Nacional de Assistência Social, ficando os Estados e

Municípios sem coordenadas para definirem suas respectivas políticas;

• ausência de articulação não só entre as três esferas de governo mas também

dentro de uma mesma esfera;

• prevalência da pulverização e desarticulação das ações;

• escassez de recursos financeiros;

• falta de vontade política dos governantes;

• falta de organicidade entre as necessidades e demandas da população com a

oferta de serviços.

Contudo, em que pese tantas dificuldades, há um reconhecimento por parte de

diferentes segmentos, da assistência social como política que afirma direitos, capaz de

romper com práticas tradicionais do clientelismo, da benevolência e da caridade pública ou

privada. Tal reconhecimento revela a construção de uma nova visão que significa ir ao

encontro da concepção ”lato senso” apresentada por Pereira (1996), em contraposição à

concepção “strito senso”, que identifica a assistência social com práticas isoladas de

amenização da pobreza absoluta.

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Considerações Finais

A recente experiência brasileira de descentralização na área da assistência social

aponta para um processo em andamento que, partindo dos indicadores existentes, bem

como do “Balanço das Conferências Estaduais de Assistência Social”, realizado pela equipe

já citada, permite-nos acenar para a consideração de três dimensões interligadas entre si - a

social, a econômica e a política. A primeira – social – revela que o estágio atual da

descentralização regido pela LOAS, caracteriza-se pela acentuada focalização e

seletividade. A segunda – econômica – indica que ainda prevalece a subordinação da

assistência social à disponibilidade de recursos financeiros, o que reforça a sua feição

restritiva e estigmatizadora. A última – política – revela uma contraditória arena de conflitos

de interesses, no campo da assistência social, onde a ingerência hierárquica do Estado

ainda prepondera. Neste sentido, o que fica evidente é que as medidas até então adotadas,

tem sido feitas objetivando à redução de gastos junto aos pobres, e não à transformação da

assistência em política pública, concretizado na garantia de direitos.

Muitas têm sido as dificuldades enfrentadas no recente processo. No entanto, não

podemos negar os inúmeros avanços institucionais no campo da assistência social,

conforme alerta Pereira (1997), como o embrião organizativo em pauta, guiado pelo princípio

da democracia participativa, do qual os conselhos paritários e deliberativos são exemplos; a

realização periódica de conferências nas três esferas de governo, para avaliar e propor

linhas de política; a constituição de fóruns de defesa da assistência social; e a existência do

Ministério Público como parte legítima na defesa dos direitos individuais e sociais

indisponíveis.

Sem dúvida, muito há que ser feito para que a cidadania social seja ampliada em

direção aos pobres, bem como para que se rompa com as amarras institucionais que, cada

vez mais, conforme Pereira, restringem o espaço político da assistência social.

O modelo de organização e gestão da assistência social, aponta para uma nova

relação da sociedade civil com o Estado, a partir do funcionamento dos Conselhos. Estes, se

revelam como um potencial espaço público capaz de expressar diferentes interesses. Sendo

assim, “os valores circulam, os argumentos se articulam e as opiniões se formam no seu

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interior. Desta forma a construção de ‘espaços públicos’ se coloca como ‘possibilidade que

se descortina’” (Stein, 1997, p.15).

Portanto, a descentralização efetiva, determinada pela LOAS, dependerá, em grande

parte, da organização e participação da sociedade civil desde que supere os particularismos

e o corporativismo. Ao meu ver, o caráter contraditório da descentralização, bem como da

assistência social, constitui a possibilidade de se avançar na direção da utopia.

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