A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia

97
Quarta edição Edmund Husserl

description

Diagramação e capa: Giovani Domingos

Transcript of A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia

Quarta edição

Edmund Husserl

Conselho Editorial da Série Filosofia

(Editor) Agemir BavarescoCláudio Gonçalves de Almeida

Draiton Gonzaga de SouzaEduardo Luft

Ernildo Jacob SteinFelipe Müller

Nythamar H. F. de Oliveira JuniorReinholdo Aloysio Ullmann

Ricardo Timm de SouzaRoberto Hofmeister Pich

Thadeu WeberUrbano Zilles

ChancelerDom Dadeus Grings

ReitorJoaquim Clotet

Vice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho Editorial

Ana Maria Lisboa de MelloArmando Luiz BortoliniBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy – Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMarília Costa Morosini Nuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom Stein Ruth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe

Série

Filosofia 41

Porto Alegre, 2012

Edmund Husserl

Introdução e tradução de Urbano Zilles

Quarta edição

© 1996 EDIPUCRS

1ª edição: 1996; 2ª edição: 2002; 3ª edição: 2008; 4ª edição: 2012

CAPA Giovani DomingosREVISÃO DE TEXTO Patrícia AragãoEDITORAÇÃO ELETRÔNICA Giovani Domingos e Jardson CorrêaPROJETO GRÁFICO Giovani Domingos e Jardson CorrêaIMPRESSÃO E ACABAMENTO

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS

Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – BrasilFone/fax: (51) 3320 3711e-mail: [email protected] - www.pucrs.br/edipucrs.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

H972c Husserl, EdmundA crise da humanidade europeia e a filosofia / Edmund Husserl; introd. e trad. de Urbano Zilles. – 4. ed. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.

96 p. – (Série Filosofia ; 41)

ISBN 978-85-397-0151-3

1. Filosofia. 2. Fenomenologia. 3. Filosofia Alemã. 4. Filósofos Alemães. I. Zilles, Urbano. II. Título. III. Série.

CDD 193

SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................7

A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA COMO MÉTODO RADICAL ...11

1 DadosbiográficoseobradeHusserl .......................................................12

2 Oquecaracterizaafenomenologiahusserliana? ..................................15

3 Comochegaràsubjetividadetranscendental? ......................................18

3.1Ausênciadepressupostos ..................................................................19

3.2 Caráter a priori ..................................................................................20

3.3Evidênciaapodítica ............................................................................22

4 Aintencionalidadedaconsciência ..........................................................25

5 Redução ou epoqué ...................................................................................32

6 Aintersubjetividadetranscendental ......................................................34

7 Emqueconsisteométodofenomenológico? ...........................................36

8 Acrisedahumanidadeeuropeiaeafenomenologia .............................38

8.1Novaperspectivafenomenológica .....................................................41

8.2Lebensweltou“mundodavida” ........................................................44

8.3 A teleologia .........................................................................................50

8.4Aperspectivafilosófica ......................................................................52

9 Deuscomotélosdouniverso ...................................................................55

Conclusão .....................................................................................................57

Referências ...................................................................................................58

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA

E A FILOSOFIA ...........................................................................................61

7

INTRODUÇÃO

Etimologicamenteapalavrafenomenologia significa“ciên-cia”ou“teoria”dosfenômenos.

Otermofenomenologia, apartirdeseuétimo,tambémfoiusa-doemcontextonãofilosófico.OfilósofopositivistaErnstMach(1838-1916), predecessor do “Círculo de Viena”, postulou uma“fenomenologia física geral”. No século XX Pierre Teilhard deChardin(1881-1955)designadefenomenologia oestudodeumadialéticadanaturezacentradanohomem(Le phénomène humain), estabelecendoemtornodeleumaordemcoerenteentreosdiver-soselementosdouniverso.

Nafilosofia,antesdeHusserl,Lambertutilizouapalavra,noséculoXVIII,naquartapartedoNeuesOrganon(1764),queinti-tulou“fenomenologiaouteoriadaaparênciailusóriaasuasvarie-dades”,parafundamentarosaberempírico.NumacartaaMarcusHertz (25-2-1772),EmmanuelKantanunciaseupropósitodees-creverumaobrasobreoslimitesdarazãoedasensibilidade.Pre-tendia escrever uma “fenomenologia geral” como propedêutica àmetafísica,mostrandooslimitesentreomundosensíveleomundointeligível, propósito que realiza na “estética transcendental” daCríticadarazãopura(1781).

G.W. F. Hegel (1770-1831), na sua obraFenomenologia do espírito (1807), define a fenomenologia como “o saber da ex-periência que faz a consciência”.Mas hoje o sentido vigente é oelaboradoporE.HusserldesdeasLogische Untersuchungen (1900-1901)etrabalhosposteriores.Designafenômeno tudo que in-tencionalmente estápresenteà consciência, sendopara estaumasignificação.Oconjuntodassignificaçõeschamade“mun-do”.Portanto,afenomenologiahusserlianadeveserdistinguidadofenomenismo.

ComoHusserlchegouàfenomenologia?

8

URBANO ZILLES

Buscando na filosofia o fundamento para a matemática e alógica, nas Investigações Lógicas primeiro refuta o psicologis-mo. Desenvolve a fenomenologia como ciência fundamentadora,baseando-se na análise reflexa do conteúdo do ato de pen-sarenquantomanifestaarealidade(fenômeno).Paraencontrarofundamento,segundoele,éprecisocolocar-seacimadameraex-periência prática e despir-se de todos os preconceitos, orien-tando-seapenasporumaevidência apodítica, ouseja,destituídadetodaapossibilidadedoseucontraditório.Paraissodistingueaatitude transcendental da atitude natural. Estaúltimaéaque-laemqueespontaneamentevivemos,acreditandonaexistênciadomundoexterior.Característicadaatividadefilosóficaéaatitude transcendental na qual é evidente omundo enquanto consciente(transcendental).

A influência da fenomenologia de Husserl sobre pensadoresposterioresémarcante.Masseuinfluxoextrapolaocampodafi-losofiaestendendo-seaocampodaética,dapsicologia,dasociolo-gia,dodireito,etc.Entretantorestaumaspectofundamentalnãoesclarecido.Trata-sedofenômenoou“objetointencional”.Nãoexigiráesteneleimplicadastantoarealidadeexistencialdosujeitocognoscentecomoarealidadeexterior?

NestesentidoparecequeHusserldeuumpassoimportan-teemsuasúltimasobrasque,depoisde1930,giramemtornoda “crise dasciênciaseuropeiaseda fenomenologiatranscen-dental”.Nessafasecríticaoobjetivismo ou apretensãodeque“averdadedomundoapenasseencontranaquiloqueéenunciávelnosistemadeproposiçõesdaciênciaobjetiva”.NaKrisis Hus-serl indaga o porquê do fracasso das ciências, perguntando pelaorigemdessacrise,redescrevendoatrajetóriadarazãoocidentaleconstataqueasciênciasseafastaram,pelamatematizaçãodomundodavida,substituindo-opelanaturezaidealizada.Elabo-raumaontologiadomundodavidanoqualtentasuperaroantago-nismoentreoobjetivo-naturalistaeosubjetivo-transcendental

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

9

dopensamentomoderno.Enraízatantoaexplicaçãodasciênciasnaturaiscomoacompreensãodossaberesculturais,lutandocon-traaabsolutizaçãodoparadigmacientífico,queempobreceospro-blemashumanos.

Julgandoqueessafase,naobradeHusserl,éfecundaequeseustextosdessafaseaindanãoforamtraduzidosparaoportu-guês,sendonossosestudantesmuitasvezesprivadosdoacessoaosmesmos,nestetrabalho,depoisdeumaintroduçãogeralàfeno-menologiahusserliana,anexamosatraduçãodotextodesuapales-traproferidaem1935noKulturbund deVienanaversãomaisbrevecomofoipublicadaparPaulRicoeuremediçãobilíngue,em1977.Otextoalemão,noqualnosbaseamos,éoapresentadopeloDr.StephanStrasserdoArquivoHusserldeLovaina.

Foramascategoriasdomundo da vida e de horizonte que,ree-laboradas,aoqueparece,constituemaraizdafenomenologiadoDasein emM.Heidegger,nafenomenologiadapercepçãodeM.Merleau-Ponty,nopensamentodeH.G.Gadamer,J.HabermaseK.O.AppelenahermenêuticadeP.Ricoeur.Dessamaneirajul-gamoscontribuirparaquenossosestudantestenhamacessoaoquehádemaisricoevivonosvárioscaminhosdafilosofiacontemporânea.

Porto Alegre, 15 de março de 1996.

Urbano Zilles

11

A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA COMO MÉTODO RADICAL

Em 1938 faleceu Edmund Husserl (1859-1938), pai domovimentofenomenológicocontemporâneo.Afenomenologiahus-serlianaé,emprimeirolugar,umaatitude ou postura filosóficae, em segundo, ummovimento de ideias commétodo próprio,visandosempreorigorradicaldoconhecimento.

EdmundHusserlfoi,semdúvida,umdosfilósofosmaisfecun-dosdenossoséculo.Estafecundidademede-seporumaduplarazão.Primeiropelasuagigantescaproduçãofilosóficaepelaqua-lidadedegrandenúmerodepensadoresquetevecomodiscípulos.Emsegundolugar,destacou-secomoocriadordafenomenologia,sendoreconhecidocomoumdosgrandesclássicosdopensamentoocidental.

Husserl procurou descrever acuradamente o mundo comoaparece na consciência, em todos os seus aspectos, buscando in-saciavelmenterigorabsoluto,apaixonadopelaideiacartesianadafundamentaçãoradicaldafilosofiae,comela,detodasasciências.Perseguiuumarenovaçãoradicaldafilosofia,noseuconjunto.

URBANO ZILLES

12

URBANO ZILLES

1 DADOS BIOGRÁFICOS E OBRA DE HUSSERL

EdmundHusserlnasceuem1859emProsnitz (Moravia),defamília judia,mas indiferenteno campo religioso.Noperíodode1868-1876estudouemVienaeOlmutz.De1876-1878estudouMa-temática,FísicaeAstronomianaUniversidadedeLeipzig.Nope-ríodo de 1878-1881 prosseguiu seus estudos naUniversidadedeBerlim.Durante 1881 estudou naUniversidade deViena,períodonoqualtambémsededicouaoNovoTestamento.Em1883doutorou-seemVienacomateseSobre o cálculo das varia-ções. Aseguir, foinomeadoprofessorauxiliardeWeierstrass,emBerlim,tendoquesuspendersuasatividadespormotivosdesaúde.

Depoisderealizadooserviçomilitar,dedicou-seà leituradeAristóteleseàFenomenologia do Espírito deHegel.Noperíodode1884-1886frequentoucursosdeF.Brentano,emViena.Em1886batizou-senaIgrejaLuterana.Durante1886-1887,porreco-mendaçõesdeBrentano,preparousualivre-docênciacomC.Stum-pf,emHalle.

Noperíodode 1887a 1901 foi professornaUniversidadedeHalle,anosdodescobrimentodafenomenologia(Investigações ló-gicas). Em1901foinomeadoprofessornaUniversidadedeGottin-gen.Nesteperíodoamadureceuaelaboraçãodafenomenolo-gia (Ideias relativas a uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica). Em1916 foinomeadoprofessoremFreiburg,funçãoqueexerceuaté1929.Em1935fezsuapalestrasobre“afilosofianacrisedahumanidadeeuropeia”emViena;emno-vembrodomesmoanofalounaUniversidadedePragasobre“acrisedasciênciaseuropeiaseafenomenologia”.Morreuem27 de abril de 1938.

Os intérpretes costumam distinguir três etapas no pensa-mentodeHusserl,relacionadasatrêsdassuasprincipaisobras.Fala-se do Husserl das Investigações lógicas caracterizadasporum

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

13

logicismoessencialista;dasIdeias comooidealismotranscenden-tal;daCrise comovitalismohistoricista.

Em1938,comaameaçadestruidoradonazismo,ofranciscanoHermannLeo vanBreda transportou clandestinamente cercade40.000páginasdemanuscritosestenografados(emsuamaiorianataquigrafiadeGabelsberg)einéditosdeHusserlparaaUniversi-dadeCatólica de Lovaina (Bélgica), onde foi fundado oArquivo--Husserl,quepublicasuasobrasnacoleçãochamadaHusserliana eestudossobreafenomenologianacoleçãoPhaenomenologica. Atéfinsde1992forampublicadasasseguintesobrasnaHusserliana pelaeditoraMartinusNijhoff,Haia(Holanda)eemDordrecht:

1. Meditações cartesianas e Conferências de Paris;

2. A ideia da fenomenologia;

3. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica I;

4. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura II (1913);

5. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura III;

6. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental;

7. Filosofia primeira I (1923-1924);

8. Filosofia primeira II (1923-1924);

9. Psicologia fenomenológica (1925);

10. Por uma fenomenologia da consciência do tempo ima-nente (1893-1917);

11. Análise de uma síntese passiva (1918-1926);

14

URBANO ZILLES

12. Filosofia da aritmética (1890-1901);

13. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade I (textos de 1905-1920);

14. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade II (1921-1928);

15. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade III (1929-1935);

16. Coisa e espaço (1907);

17. Lógica formal e transcendental;

18. Investigações lógicas I;

19. Investigações lógicas II;

20. Investigações lógicas (volume complementar);

21. Estudos sobre aritmética e geometria (1886-1901);

22. Ensaios e recensões (1890-1910);

23. Fantasia, consciência imaginativa e recordação (1898-1925);

24. Introdução à lógica e à teoria do conhecimento (1906-1907);

25. Ensaios e conferências (1911-1921);

26. Lições sobre teoria da significação (1908);

27. Ensaios e conferências (1922-1937);

28. Lições sobre ética e teoria dos valores (1908-1914);

29. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (volume complementar) (1934-1937).

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

15

Husserlnuncafoinemseráumfilósofopopular.Suaobraédemuidifícilinterpretação.Entretantosuaatitudeeseumétodofenomenológicoimpuseram-seemamplasesferasdoconhecimen-to.Exerceu influêncianão só sobre as filosofias da existência(Heidegger, Sartre), mas também sobre o neotomismo e sobreafilosofiaemgeral,sobreodireito,asciênciasdalinguagem,comosobreaestática,asociologiaeapsicologia.Suacontribui-çãomaisimportanteconsistenaelaboraçãorigorosaesistemá-ticadométodo fenomenológico enadescriçãorigorosadaatitude fenomenológica.

2 O QUE CARACTERIZA A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA?

Apalavra“fenômeno”éantiganahistóriadafilosofiaoci-dental.Apalavra“fenomenologia”agrupaaspalavras“fenômeno”e“logos”,significandoetimologicamenteoestudoouaessênciado fenômeno.Por fenômeno,no sentido originário emaisamplo,entende-setudooqueaparece,quesemanifestaouserevela.Origi-nariamenteapalavra“fenômeno”refere-seaoqueexisteexterior-mente,ouseja,fenômenosfísicos.Primeiroosgregosusaramotermoparaamanifestaçãodosernumaíntimaunidadeentreosereoaparecer.Comotempopassouaentender-seporfenôme-no aaparênciaenganosa,opostaarealidade.AssimPlatãousao termoparadesignar omundo sensível, emoposição aomundointeligível.Nestaperspectiva,Protágorasjáafirmaquepodemosconheceroqueaparece,ofenômeno,masnãooqueestáatrásdele,oqueseoculta.EmborataldissociaçãoentreaparênciaesernãotenhasidoaceitaporAristóteles,nemporTomásdeAqui-no,passouavigorarnafilosofiamoderna,sobretudonofenome-nismodeD.Hume,paraquemofenômeno,únicoobjetodenossoconhecimento,estáseparadodacoisaemsi.

I.Kantcanonizoutalseparaçãoentreofenômeno e a coisa em si sem,todavia,indicarcomoéa“coisaemsi”queproduzofenôme-no.Esteéoqueaparececomoobjetodenossaexperiênciaemopo-

16

URBANO ZILLES

siçãoàcoisaemsi(noúmenon). AssimafenomenologiadeKantconcebeosercomoolimitedapretensãodofenômeno,permanecen-doopróprioserforadoalcancedarazãopura.Distinguindoentre“objetosdaexperiência”(fenômenos)e“coisasemsi”,transcenden-tes à experiência e incognoscíveis, contudoadmiteumpostuladometafísico,fazendocoincidirocampo-limitedoconhecimentocomoslimitesdaexperiêncianotempoenoespaço.Comopostuladoda“coisaemsi”quermostrarumarealidadeindependentedenossamente.Hegel,emsuaFenomenologia do Espírito, reabsorveofenô-menonoconhecimentosistemáticodoser.

ParecequefoiJ.H.Lambertquemusoupelaprimeiravezotermo“fenomenologia”emseuNovo Organon (1764)paradesignarateoriadailusãosobsuasdiferentesformas.Kantusaotermo“phaenonzenologiageneralis”numacartaaMarcusHertz (1772)paradesignaradisciplinapropedêuticaque,segundoele,deveprecederametafísica.ComHegel,atravésdaFenomenologia do Espírito (1807)otermoentroudefinitivamentenatradiçãofilo-sófica,tornando-sedeusocorrente.

KanteHegel, todavia,concebemdemaneiradiferenteasre-lações entre o fenômeno e o ser ou o absoluto. Como, paraHegel,é cognoscíveloabsoluto,estepodeserqualificadocomoEspíritoeafenomenologiaé,então,umafilosofiadoabsolutooudoEspírito.Cabeàfilosofiamostrarcomoesteestápresenteemcadamomentodaexperiênciahumana,sejaelareligiosa,estética,jurídica,políticaouprática.

Edmund Husserl considera inaceitável o postulado de queaquiloqueaparecenaexperiênciaatualnãoéaverdadeiracoisa.Deunovosignificadoà fenomenologia,encerrandoo fenômenono campo imanente da consciência.Husserl não nega a rela-ção do fenômeno com omundo exterior,mas prescinde dessarelação.Propõea “voltaàs coisasmesmas”, interessando-se pelopurofenômenotalcomosetornapresenteesemostraaconsciência.Sobesteaspecto,deuumsentidomaissubjetivoà

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

17

palavra fenômeno, elaborando uma fenomenologia que façaelamesmaasvezesdeontologia.Segundoele,ossentidosdoseredofenômenosãoinseparáveis.Afenomenologiahusserlianapre-tendeestudar,pois,nãopuramenteoser,nempuramentearepre-sentaçãoouaparênciadoser,masosertalcomoseapresentanopróprio fenômeno.E fenômenoé tudoaquilodequepodemosterconsciência,dequalquermodoqueseja.Fenomenologia,nosentidohusserliano, será, pois, o estudodos fenômenospuros, ou seja,umafenomenologiapura.

SegundoHusserl,fenomenologianãoésinônimodefenomenis-monosentidodequetudoqueexistesejaapenasumfenômenodaconsciência.Areflexãosobreosfenômenosdaconsciênciaé,entre-tanto, o ponto de partida para examinar os diferentes sentidosousignificadosdoseredoexistenteàluzdasfunçõesdacons-ciência.Atravésdestemétodopretendechegaraum fundamen-to certo e evidente do ser e de suas aparições. A tarefa dafenomenologiaé,pois,estudarasignificaçãodasvivências da consciência.

Husserlcolocou-secomotarefadetodaasuavida,aomenosapartirde1908,afundamentaçãoúltimadafilosofia,decisivaparaofuturo,naformadeumaciênciaderigor.Aparticularida-dedafilosofia,segundoele,estánofatodenãoserumadisciplinaespecífica entre outras, mas abrange “os problemas funda-mentaisemetódicosdetodasasciênciaspositivas”comociênciadosfundamentos.Portanto,arenovaçãodafilosofiatambémsignifica-ráumareorientaçãodetodasasciências.Essas,porsuavez,nãosão simples teorias logicamente estruturadas,mas desembocamemtécnicasepossuemumarelevânciadevidaaomenosindi-retanamedidaemquesãodestinadasacontribuiraobem-estareàfelicidadedohomematravésdamelhoriadaqualidadedevida.

Comofilósofos,segundoHusserl,devemosnosorientarparaomundointerior,quechamadetranscendental enquantochamaomundoexteriordetranscendente. Destemodoosertranscendente

18

URBANO ZILLES

éoserrealouempíricoenquantootranscendentaléoirrealouideal,masnãofictício.Propõe-seexplorarasriquezasdaconsciên-ciatranscendental,pois,segundoele,ofilósofonãoprecisarecorreraomundotranscendente.Cabe-lhebuscaraevidênciaapodíticaouindubitávelnasubjetividadetranscendentalatravésdadescriçãodos fenômenospuros.Sónavolta “àscoisasmesmas”ofilósofoencontraráarealidadedemaneiraplenamenteorigináriaecomevidênciaplena.Portanto,a fenomenologianãosepropõeestu-darpuramenteoser,nempuramentearepresentaçãodoser,masosertalcomoeenquantoseapresentaaconsciênciacomo“fenô-meno”.

A fenomenologia tempor vocação serprima philosophia e,porisso,aradicalidadedopensamentocartesiano.Ocaminhogenuíno da atividade filosófica é a reflexão. Parte do cogito e de suas cogitata, do eu, dasvivênciasdoego. Porissoométodofeno-menológico consiste no acesso ao campo da consciência parasubmetê-loàanálise.Ego cogito cogitatum é oesquemadoâmbitoda análise fenomenológica. Como todo cogitare se orienta paraalgo – intentio – na fenomenologia fala-sedeanálise intencionalcomoseumétodoprópriodeinvestigação.

3 COMO CHEGAR À SUBJETIVIDADE TRANSCENDENTAL?

Já nas investigações lógicas (Tomo 2, 1ª parte) Husserldizia: “Significações quenão fossemvivificadas senãopor in-tuições longínquas e imprecisas, inautênticas – se é que istoaconteceatravésdeintuiçõesquaisquer–nãonospuderamsatis-fazer.Nósqueremosvoltaràscoisasmesmas”.SegundoHusserl,odiscursofilosóficosempredevemantercontatocomaintuição. Do contrário redunda em conversa vazia.O retorno à intui-çãoorigináriaéafontedeverdadeiroconhecimento.Porissonãoconvémqueaimpulsãofilosóficapartadasfilosofiasfeitas,dasopiniõesdegrandespensadores,masdascoisasedosproblemas,tendoumpontodepartidaimediato.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

19

SegundoHusserl,quandoumfatosenosapresentaàconsci-ência,juntamentecomelecaptamosumaessência(Wesen, ei-dos). Se,porexemplo,ouvimosdiferentessons,nelesreconhecemosalgodecomum,umaessência comum. Nofato,portanto,captamossempreumaessência.Asessênciassãoasmaneirascaracterísticasdoaparecerdosfenômenos.Nãosãoresultadosdeumaabstraçãooucomparaçãodeváriosfatos.Parapodercompararváriosfa-tossingulares, jáépreciso tercaptadoumaessência, ou seja,umaspecto pelo qual eles são semelhantes.O conhecimentodasessênciaséintuição, umaintuiçãodiferentedaquelaquenospermitecaptarfatossingulares.Asessênciassãoconceitos,istoé,objetosideaisquenospermitemdistinguireclassificarosfatos.

Afenomenologiapretendeserciênciadasessênciasenãodosfatos.Éciênciadeexperiência,quedescreveosuniversaisqueaconsciênciaintuiquandoselheapresentamosfenômenos.Ases-sênciasnãoexistemapenasnointeriordomundoperceptivo.Re-cordaçõesedesejostambémtêmasuaessência,apresentando-sedemodotípicoàconsciência.Assimasproposiçõeslógicasemate-máticassãojuízosuniversaisenecessáriosporquesãorelativosen-treessências.Pelareferênciaàsessênciasideais,afenomenologiapossibilitaoqueHusserlchamaas“ontologiasregionais”.Regiõessão anatureza, a sociedade, amoral e a religião.Estudar essasontologiasregionaisentãosignificacaptaredescreverasessênciasoumodalidades típicas comque os fenômenos sociais,morais oureligiososaparecemàconsciência.Husserlcontrapõeaessasonto-logiasregionaisaontologiaformaloualógica.

Parafundamentarumafilosofiacomociênciaderigor,SegundoHusserl,exigem-setrêscondições:a)ausência de pressupostos; b) caráter a priori; c)evidência apodítica.

3.1 AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS

Husserltentafilosofarapartirdosproblemasdavivênciadaconsciência,prescindindodomundoexterioroudoqueoutros

20

URBANO ZILLES

grandes pensadores já disseram, pois teorias podem ser nãosó uma ajuda, mas também um obstáculo para chegar “àscoisasmesmas”(fenômenos). Afenomenologiadeveserciênciadosfundamentos e das raízes, ou seja, uma ciência radical, umaciência dos fundamentos originários: “Não é das filoso-fiasquedevepartiroimpulsodeinvestigação,mas,sim,dascoi-sasedosproblemas”(A filosofia como ciência de rigor, p.72).EmAs ideias I escreveque“emnossasafirmaçõesfundamentaisnadapressuporemos,nemsequeroconceitodeFilosofia,eassimqueremos ir fazendo adiante.A epoqué filosófica, que nos pro-pusemospraticar,deveconsistir,formulando-oexpressamente,emnosabstermosporcompletodejulgaracercadasdoutrinasdequalquerfilosofiaanterioreemlevaracabotodasasnossasdescriçõesnoâmbitodestaabstenção”(§18).

Husserl constatouquenos congressos encontram-se os fi-lósofos,masnãoasfilosofias. Incansavelmente tentasubmeterafilosofiaaumarevoluçãocartesianaparalibertá-ladetodoopre-conceitopossívelefazerdelaumaciênciaverdadeiramenteautôno-maeradicalatravésdométodofenomenológico.Aúnicafontedoconhecimento,paraofenomenólogo,éaevidência quecaracterizaosdadosimanentesdaconsciência.

3.2 CARÁTER A PRIORI

Hádoiscamposdeexperiênciaouconhecimentoevidente:aex-periênciaouevidênciaempírica–intuição de fatos individuais –,queservedebaseparaasciênciasempíricasoudosfatos,eaevi-dênciaintelectual–intuição eidética – queservedebaseparaasciênciaseidéticas.Comoaintuiçãoempíricadoindividualéumdar-sedoobjetoindividualoriginariamente,tambémaintuiçãoeidéticaéumdar-sedoeidos ouessência–objetouniversal.

Para tornar a filosofia ciência de rigor, ela não se deve fun-damentar em dados empíricos, ou seja, nos fatos,mas num

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

21

a priori universal.Husserl parte de idealidadesporque só essassãoválidas, independentemente da contingência dos fatos,paraconstituíremaprioridaderadicalparatodasasciências.Par-te das “coisas mesmas” (não dos fatos) como se apresentamem sua pureza a consciência. Segundo ele, a consciência, aoser estudadaemsuaestrutura imanente,mostra-se comoalgoqueultrapassaoplanoempíricoeemergecomocondiçãoa priori depossibilidadedopróprioconhecimento,ouseja,comoconsciên-cia transcendental. Cabe, então, à fenomenologia descrever aestrutura do fenômeno como fluxo imanente de vivências queconstituema consciência (estrutura constituinte).Enquantoa consciência transcendental constituiassignificaçõeséa priori depossibilidadesdeconhecimento.Nestaperspectiva,alógicatemcaráternormativoa priori enãodeveserconfundidacomopsico-logismo,poisaempiriaéincapazdefornecerascondiçõesdaapo-dicidade,condiçõesqueseencontramnumaregiãoa priori da puraidealidadedecaráteruniversal,necessárioenormativoquefundamentatodooverdadeiroconhecimento.Assimafenomenolo-giatorna-seelamesmaoa priori dasciências.

Opostuladoda fenomenologiaéqueo fenômeno sejaaomesmotempologos. Osentidodofenômenolheéimanenteepodeserpercebido.Emoutraspalavras,todofenômenotemumaessência,quenãosereduzaofato.Aintuiçãodaessênciadistin-gue-sedapercepçãodo fato,poiséavisãodosentido idealqueatribuímosaofatomaterialmentepercebidoquenospermiteiden-tificá-lo.Se,porexemplo,umacriançatrabalharsemcompasso,diráqueaformavagamenteoval,quedesenhouemseucaderno,éumcírculo.Aessênciapersistecomopurapossibilidade,comonecessidadequeseopõeaofato.Porissohátantasessênciasquan-tassignificaçõesnossoespíritoécapazdeproduzir.Asessênciasconstituemumaespéciedearmadurainteligíveldoser,tendosuaestruturaesuasleispróprias.Elassãoosentidoa priori no qual deve entrar todo omundo real ou possível. Assim pode-se obter

22

URBANO ZILLES

umacompreensãoa priori doser,independentementeWdaexpe-riênciaefetivaporquea intuiçãodeessênciaséa intuiçãodepossibilidadespuras.

Veremosque,nafasecaracterizadapelacrise, Husserl desen-volveafenomenologianãoapartirdoa priori eidético,nemformal--kantiano,masapartirdeuma priori concretomaterialoriginaria-mentevividoequenosédadopreviamenteatodaintervenção.Éo Lebensumwelt ou Lebenswelt enquantoconjuntoestruturaldaexperiênciaimediataefundamentoorigináriodosentido.

Emsíntese,a fenomenologianãopoderárecorreraqualquerresultadocientíficocomoumdadodisponível.NestesentidoHus-serl criticaKant por partir do fato das ciências positivas paradepoisformularaperguntapelapossibilidadedoconhecimento.Eparanãopressuporaquiloqueestáemquestãoretoma,contraKant, o espírito mais radical do cartesianismo, eliminando orecursoaqualquersaberjádado.EHusserlvaimaislonge,criti-candoDescartesporestabelecerumacontinuidadeentreodiscursofilosóficoeodiscursocientíficonaconcepçãodeumafilosofiaquedeveprocedermore geométrico. Paraquesejapreservadaaautono-miadafenomenologiafrenteàsciênciaséprecisoterconsciênciadequenãofaladosmesmosobjetossobreosquaisfalaaciência,nãoutilizaráseusresultadosnemseumétodo.

3.3 EVIDÊNCIA APODÍTICA

Emgeral entende-se por evidência um saber certo e indu-bitável.Entre osantigos, a evidência costuma ser consideradacomoumfatoobjetivo,comoomanifestar-sedeumobjetoqual-quercomotal.Significaoaparecimentodoqueéverdadeiramen-teeéporissotãomanifestoqueexcluiapossibilidadededúvidae,portanto,deerro.Aevidênciaéumcritériodeverdadeedecerteza.

Descartesafirma“nãoaceitarnuncaalgumacoisacomoverda-deiraanãoserqueelasereconheçaevidentementecomotal,isto

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

23

é,evitardiligentementeaprecipitaçãoeaprevenção;enãocom-preendernosprópriosjuízossenãooqueseapresentatãoclara e distintamente aopróprioespírito,quenãosetenhanenhumaoca-siãodepô-loemdúvida”(Discurso do Método,2ªparte).Descartesreduzaevidênciaàclareza e distinção deideias,vinculando-aàintuição.Paraele,evidênciaéaquilo“queeuperceboclaraedis-tintamente”.

Husserl trata muitas vezes da evidência. Nas investigações descreve-acomo“preenchimentodaintenção”(II,§39).Devolveu--lheocaráterobjetivoenquantodesignaomanifestar-sedeum“objeto”comotalàconsciência.Afirmaqueaevidênciasurgequandoháumaequaçãocompletaentreopensadoeo imediata-mentedado.

Husserladvertequeaevidêncianãopodeserconsiderada“umavozmísticaquenosgritadeummundomelhor:aquiestáaverdade”.Nas Investigações lógicas diz quehá evidência semprequehajaadequaçãocompletaentreointencionadoeodado,quandosedêumpreenchimento da intenção, i.é,aintençãorecebaaabsolutaplenitudedoconteúdo,aplenitudedopróprioobjeto.Estaevidêncianãoésimplesmenteadapercepção.Refe-re-seaalgoimediatamentedado,anterioratodaateoria,cons-truçãoouhipótese,situadoaoníveldavivênciafenomenológica.

Afenomenologiatorna-se“filosofiaprimeira”pelaautor--reflexãoradicale,porisso,universal.Naatitudeplenamen-te reflexa,ofilósofoobservaraas“coisas”nasuapurezaoriginale imediata, deixando-se orientar exclusivamente por elas.Nestaatitudedeevidenciaçãopoderádescreveroimediatamentedadoàconsciência:“Ofundamentalénãopassarporaltoqueaevi-dênciaéestaconsciênciaqueefetivamentevê,queapreende(o seu objeto) direta e adequadamente, que evidêncianadamaissignificaqueoadequadodar-seemsimesmo”(A ideia de fenomeno-logia, p.88).Poucomaisadianteconclui:“Comoempregodocon-ceitodeevidência,podemosagoradizertambém,porqueatemos,

24

URBANO ZILLES

queelanãoimplicaenigmaalgum;portanto,tambémnãooenigmadatranscendência;valeparanóscomoalgode inquestionáveldequenosépermitidodispor.Nãomenostemosevidência douni-versal;objectalidades e estados de coisas universais surgem--nos em autoapresentação e estão dados nomesmosentido,portanto,inquestionavelmente;eestãoautodadosadequadamentenosentidomaisrigoroso”(ibidem, p.90).

Paraconstruir,pois,umafilosofiacomociênciaderigorsópos-soadmitircomoválidosjuízoshauridosdaevidênciaapodítica.Talsópossoobtermediantevivênciasdaconsciênciaemqueascoisassemeapresentamporsimesmas.NasMeditações cartesianas esta-belececomoprimeiroprincípio:“Tomando,comofilósofo,meupontode partida, tenhopara ofimpresumidouma ciência verdadeira.Porisso,eunãopoderiaevidentementenemternemadmitircomoválido juízo algum, se eu não os tomar na evidência, isto é, emex-periênciasondeascoisaseosfatosemquestãomesãopresentes,elesmesmos”(§5º).

Semaevidência,segundoHusserl,nãopodemosfalardefun-damentação radical. Para isso não satisfaz qualquer evidência.Exige-seumaevidênciaapodítica,ouseja,comausênciatotaldedúvida.Ocaminhopara chegaraeste fundamento radicaldafilosofiaedaciênciaé,segundoHusserl,afenomenologiacomométododeevidenciação.

Parachegaraofenômenopuro,Husserlsuspendeojuízoemre-laçãoàexistênciadomundoexterior(transcendente).Descreveapenasomundocomoseapresentanaconsciência,ouseja,redu-zidoàconsciência.Talsuspensãooucolocaçãoentreparênteseschamouepoqué. Portanto,nãoduvidadaexistênciadomundoexterior,massimplesmenteopõe“entreparênteses”ouoidealizaouoreduzaofenômeno:aredução fenomenológica. Nofenômeno,porsuavez,procedeasucessivasreduçõesembuscadaessência:a redução eidética. Assimentendeafenomenologiacomoanálisedescritivadasvivênciasdaconsciênciadepuradasdeseusele-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

25

mentosempíricosparadescobrireapreenderasessênciasdi-retamentenaintuição.

Oefeitodaepoqué éareduçãoàesferatranscendental:asvi-vênciaspuras,aconsciênciapuracomseuscorrelatospuroseseueupuro.Odadoimediatoresultantedareduçãotranscendentaléavivênciapura,cujoselementosnoéticoenoemáticosãoobjetodaanálise intencional fenomenológica.Alcançadaaesferatranscen-dental,pelaepoqué, comodadodeevidênciaapodítica,o fenome-nólogoprocederáemsuatarefaespecífica,queconsistenaanálisedessaesferaedaquiloquenelaefetivamentesedá.

OidealismofenomenológicodeHusserlnãonegaaexistên-ciadomundoreal.Querdeixarclaroqueomundoésempreconteúdodemeusaber,conteúdodeexperiência,conteúdodemeupensar,emsíntese,conteúdodeminhaconsciência.Nestepontoaatitudefenomenológicasedistinguedaatitudenatural.

4 A INTENCIONALIDADE DA CONSCIÊNCIA

Aconsciência,segundoHusserl,éintencionalidade,ouseja,sóexistecomoconsciênciade algo. Aanálisedaconsciênciaabrangeadescriçãodetodososmodospossíveiscomoalguma“coisa”idealourealédadaimediatamenteàconsciência.Nessesentidotornou--secélebreolemahusserlianoda“voltaàscoisasmesmas”(Zu den Sachen selbst!). Entendepor“coisa”(Sache) nãoobjetosfísicos,masofenômenocomooimediatamentedadoàconsciência,istoé,comoseapresentaoumanifestaàconsciência.Trata-sedeprescindirdoempírico,depreconceitosepressupostos,dosingularedoaciden-tal,parachegaràsessênciasdadas,asquaissãooobjetointeligíveldofenômeno,captadonumavisãoimediatadaintuição.

Afenomenologiahusserlianaparte,pois,davivênciaime-diata da consciência: “Toda a vivência intelectiva e toda avivênciaemgeral,aoserlevadaacabo,podefazer-seobjetodeumpuroverecaptare,nestever,éumdadoabsoluto.Estádada

26

URBANO ZILLES

comoumente,comoumisto-aqui(Dies-da), decujaexistêncianãotemsentidoalgumduvidar”(A ideia da fenomenologia, p.55-56).

A fenomenologia propõe partir de uma situação sempressu-postosparaesclarecerascondiçõesdasquaisdependenossoconhe-cimento.Nasciênciasempíricasfazemostodotipodepressuposi-ções.O físico, p. ex., pressupõe a validade damatemática; omatemáticopressupõeavalidadedalógica,etc.Afenomenologianãopretendefazerpressuposiçõesquetenhamqueserjustifica-dasemoutrocampo.

Galileupossibilitouoconhecimentodomundoobjetivo,empre-gandoummétodoquesetornouomodeloderacionalidadenostem-posmodernos.Mas,segundoHusserl,aobjetivaçãodanatureza,obtidaporGalileu,não conduzao serdas coisase,assim,aobjetividades ideais. A natureza idealizada passou a substi-tuiranaturezapré-científica.Amatematizaçãodanaturezavio-lentouosernatural.DeacordocomHusserl,asciênciaspositivassãoingênuasenquantopré-fenomenológicascomoavidacotidianaéingênua.Viverconsisteemcomprometer-secomummundoquenosdáaexperiênciaatravésdopensar.Masviverétambémagirevalorar.Enquantotodaaciênciaé,decertaforma,umaciênciadosernomundo,“doserperdidonomundo”,sóafenomenolo-gia,atravésdaanáliseradicaldaintencionalidade,poderáseraciênciadasciências,justamentepor“perderomundo”atravésda redução fenomenológica para encontrá-lo pela análise daintencionalidadedaconsciência.Para issoéprecisopassardeuma atitude ingênua a uma atitude transcendental na qual aconsciênciaconstituiomundocomofenômenopuro.

NoséculoXIXhouveumaredescobertadadoutrinaclássicadaintencionalidadeporBrentano,HusserleM.Scheler.Esteconceito da escolásticamedieval, tanto da árabe comoda latina,baseia-senumaobservaçãodeAristótelesno livrodaMetafísica. Aodescreveroqueéumarelação,Aristótelesexemplificoucomo

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

27

saber.Todaideia,inclusiveamaissimples,começaporserumarelação entre um objeto enquanto tal e enquantonosso objeto.Masosabertemcomocaracterísticaqueumdeseuselementos,oobjeto,nãonecessariamentetemqueserreal;aideiaenquantonossa ideia,ouseja,porpartedosujeito.

Husserldesenvolveométododemostraçãodasestruturasim-plícitasdaexperiência,definindooconceitodeintencionalidadecomo:a)consciênciadealgo;b)consciênciadesimesmo.Apar-tirdeDescartesexplica-seoconhecimentocomorelaçãoentreduascoisas:acoisaqueestánaconsciência(ideia)eaqueestáfora.Aprimeiraéarepresentaçãodasegunda.Ora,Husserlaban-donaaideiaderepresentação,distinguindo,naconsciência,oatoqueconhece(noese), queaoconfigurarosdadososdotadesentido,eacoisaconhecida(noema). O“objeto”(noema) éintencional,ouseja, estápresentenaconsciênciasemserpartedela.Éesta“coisa”queinteressaàfenomenologia.

Husserl, em Ideias I, expõe um exemplo: “Nosso olhar,suponhamos,volta-secomumsentimentodeprazerparaumamacieira em flornum jardim...” (§88).Naatitude comumounatural,talpercepçãoconsisteemcolocarprimeiroaexistênciadamacieiranojardim,depoisemrelaçãoaessamacieirarealamacieirarepresentadanaconsciênciacorrespondenteàreal.Comoconsequênciahaveriaduasmacieiras:umanojardimeoutranaconsciência.ParaHusserl,ascoisasnãoacontecemassim.Recorrendoàanáliseintencional,nãopartimosdamaciei-ra em si, porquedelanada sabemos, nemdamacieira repre-sentada,porquetambémdelanadasabemos.Éprecisopartirdas“coisasmesmas”,istoé,damacieira-enquanto-percebida, ouseja,doatodepercepçãodamacieiranojardim,poisessaéavivênciaoriginária.Atravésdaepoqué sóatendemosapercepçãocomovivência,prescindindodesuasrelaçõesreais.Aúnica“coisa”quepermaneceéapercepçãoeopercebido,ovistoapartirdeumpontodevistaeidéticona“puraimanência”daconsciência

28

URBANO ZILLES

deminhasvivências.Avivênciadepercepção,fenomenologicamen-tereduzida,tambémépercepçãoda“macieiraemflor”,vivênciaquenelaconservatodososmatizescomqueapareciarealmente.Assima“macieiraemflor”,comoobjetodeminhavivênciadepercepção,éocorrelatointencionaldavivência,seuconteúdonoemático,re-sultante da noese, do ato de consciência, peloqual se reduzàunidadedesentidoamultiplicidadededadosdasensação(hylé). Enquanto a noese e a hylé sãoelementosdaprópriavivência,onoemaéseucorrelatointencionaloucomponenteintencional.

Aradicalidadeeauniversalidadedosaberfenomenológicosi-tua-se, pois, no plano da consciência, da subjetividade trans-cendental.Dadaabipolaridade imamente/intencionaldetodaavivência,distinguem-sedoismodoscorrelativosdainvestigaçãofenomenológica,emborade fatonãohajaseparaçãorealentreosmesmos:a)um,orientadoparaapura subjetividade (fenome-nologianoética)eb)outro,orientadoparaaquiloquepertenceàconstituição da objetividade para a subjetividade (fenomenologianoemática).

ParaHusserl,umacoisaéaindubitávelexistênciarealdomundo e outra coisa é compreender e fundamentar essa exis-tência.Omundoexistepara nós comoprodutointencional.Aúnicatarefaéfunçãodafenomenologiahusserlianaésalvarosentido destemundo,osentidoemqueestemundovaleparaqualquerho-memcomorealmenteexiste.Afenomenologiaé,pois,umatomadaradical da consciência do que é o homem em si mesmo. Des-temodo, o sentidodo oráculodélfico “conhece-tea timesmo”significa, antes de tudo, a penetração do homemdentro de simesmo.Talpenetraçãosóépossívelenquantoecapazdetercons-ciênciadealgo.NestesentidoconcluiasMeditações cartesianas comaideiadeS.Agostinho:“Noli foras ire, in te redi, in interiore hominis habitat veritas”.

Apartirdeumpontodevistaobjetivo,poder-se-iaperguntar seHusserlnãoreduzoseràprópriaconsciência,abrindo-seesta,

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

29

pelaintencionalidade,nãoaooutrocomoeraentendidaaintencio-nalidadenafilosofiamedieval,mas só a simesma.Neste casoa fenomenologia, no fundo, não passaria de autoconhecimento (Selbstauslegung), separandooserintencionaldoreal.Ouvolta, demaneirasutil,àideiadequeoconhecimentoérepresentação?

A intencionalidade husserliana corresponde à correlação consciência-mundo,sujeito-objeto,maisorigináriaqueosujeito ouoobjeto,poisessessósedefinemnessacorrelação.Aintencio-nalidadefenomenológicaévisada de consciência e produção de um sentido quepermiteperceberosfenômenoshumanosemseuteorvivido.

Husserldefiniuafenomenologiacomoateoriadosfenôme-nospuros,dosfenômenosdaconsciênciapura.Masoqueentendepor“consciência”?Dá,sobretudo,trêssentidos:a)aconsci-ênciacomoconjuntodetodasasvivências,ouseja,aconsci-ênciacomounidade;b)aconsciênciacomopercepçãointernadasvivências psíquicas, ou seja, o ser consciente; c) a consciênciacomovivênciaintencional.OúltimoéomaisimportanteeHus-serldedicou-lhelongocapítulojánasInvestigações lógicas. Para ele,aconsciênciaé“umacorrentedeexperiênciasvividas”,numrioheraclitiano,quesecolheasimesma.Porissoointeressamaisapercepçãoimanente,queéadocogito cartesiano,cujoobjetivosãoasexperiênciasvividas(recordar,imaginar,desejar,etc.),ouseja,o cogitatum, poistaisexperiênciassãodadasdiretamenteàcons-ciência,umavezque“apercepçãodaexperiênciavividaéavisãodiretadealgumacoisaquesedáouquepodedar-senapercepçãocomoabsoluta enãomaiscomoidentidadedasaparênciasqueaesfumam”(Ideias I,§44).

Enfim,aestruturadaconsciênciacomointencionalidadeéumadasgrandesdescobertasdeHusserl.Dizerque“aconsciênciaéintencional” significa: “toda a consciência é consciência de algo”.Portanto,aconsciêncianãoéumasubstância(alma),masumaatividadeconstituídaporatos (percepção, imaginação,volição,

30

URBANO ZILLES

paixão,etc.)comosquaisvisaalgo.Husserlvale-sedanoçãodeintencionalidadeparaesclareceranaturezadasexperiênciasvi-vidasdaconsciência.Aintencionalidadeédenaturezalógico-trans-cendental,significandoumapossibilidadequedefineomododeserdaconsciênciacomoumtranscender, comoodirigir-seàoutracoisaquenãoéopróprioatodeconsciência.

Distingueduasespéciesdeintencionalidade:a)umaintencio-nalidade temática, queéosaberdoobjetoesaberdestesabersobreobjeto;b)umaintencionalidade operante, queéavisadadoobjetoemato,aindanãorefletida.Aprimeiratentaalcançarasegunda,que a precede, semnunca consegui-lo.O saber conscientesóse exerce sobre este fundo de irreflexão nessa dimensão de vidaquejáésentidoporqueévisadadeobjeto,massentidoaindanãoformulado.

Eoqueéavivência(Erlebnis) daconsciência?Etudoqueen-contramos na consciência. As vivências intencionais orientamouimpulsionamosujeitoparaseuobjeto.Aintencionalidade“nadamaissignificaqueestaparticularidadequetemacons-ciênciadeserconsciênciadealgo,detrazer,emsuaqualidadede cogito, seu cogitatum emsimesmo”(Meditações cartesianas, §14).A intencionalidade“representaumacaracterísticaessen-cialdaesferadasexperiênciasvividasporquantotodasasexpe-riênciastêm,deumaformaoudeoutra,intencionalidade...Aintencionalidadeéaquiloquecaracterizaaconsciênciaemsentidograveeconcordanteemindicaracorrentedaexperiênciavividacomocorrentedeconsciênciaecomounidadedeconsci-ência”(Ideias § 84).

Por um lado, intencionalidade significa que a consciência sóexistecomoconsciênciadealgo.Poroutro,oobjetosópodeserdefi-nidoemsuarelaçãocomaconsciênciaporsersempreobjeto-para--um-sujeito.O “objeto” só tem sentido parauma consciênciaqueovisa.Assimasessênciasnãoexistemforadoatodeconsciên-cia.Nessesentido,afenomenologiahusserlianabuscaadescrição

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

31

dosatosintencionaisdaconsciênciaedosobjetosporelavisados,ouseja,pelaanálisenoético-noemática.

Seaconsciênciaéintencionalidade,sópodeseranalisadaemtermosdesentido.Eaquisentidoé,emprimeiro lugar,ossenti-dos;depoisdireção;enfim,significação.Aconsciêncianãoécoisa,maséaquiloquedásentidoàscoisas.Osentidonãoseconstataàmaneiradeumacoisa,masseinterpreta.Éaconsciênciain-tencionalquefazomundoaparecercomofenômeno,comosigni-ficação,pelofatodeserumcogitatum intencionadopelosujeito.

Podemos dizer que a filosofia grega, como a antiga emedie-val,voltam-separaosprincípiosobjetivosdomundo,numaidea-ção essencialmente eidética. Tais princípios eram concebidoscomoessênciassubsistentesemsieporsi.Ocristianismointroduzaconsciênciacomoinstânciafundamentale,afilosofiamoderna,refugiou-sereflexivamentenelae,apartirdela,vêomundoeseusprincípiosobjetivos.Husserlreassumeatensãoentreaeidé-ticadafilosofiaantigaeaconsciênciacristãnosentidofilosóficomedieval,numaatitudedeequilíbrio.Nafenomenologiaeidéticaassume a filosofia eidética antiga emedieval e, na fenomeno-logia transcendental, assume o idealismomoderno, ou seja, amoderna filosofia da consciência.Assim, a partir deHusserl,renascem, por um lado, o movimento da filosofia dos objetosideaisedosvaloresdafilosofiaantigaemedievale,poroutro,afilosofiadaexistênciadocristianismoedafilosofiamoderna.

A fenomenologiadeHusserlnãopretendeserummétodoousistemafilosóficodefinitivamenteestruturado.ComHeidegger,seualuno,podemosdizerque“compreenderafenomenologiaécaptarsuaspossibilidades”.Porissofecundoueaindafecundanovos domínios do conhecimento humano. A fenomenologiadescreveaessênciadohomemcomoquestãodesentido,comoserpresente,capazdeintegrarciênciaefilosofianomundocon-cretodavida,semdesconhecerqueatomadadeconsciênciacríticadarealidadeépressupostodesuatransformaçãohistórica.

32

URBANO ZILLES

5 REDUÇÃO OU EPOQUÉ

A intencionalidade conduz à redução, ou seja, à colocaçãoentreparêntesesdarealidadecomoaconcebeosensocomum.Husserlchamaaconcepçãodosensocomumdeatitude natural à qualopõeaatitude fenomenológica, segundoaqualomundoénadamaisdoqueoqueeleéparaaconsciência,ouseja,fenô-meno.Nãoéqueofilósofoduvidedascoisasexistentes,masaspõeentreparêntesesnãoasutilizando como fundamentode suafilosofia.Parafazerdafilosofiaumaciênciaderigordeveráfunda-mentar-seemalgoqueéindubitavelmenteevidente.Oproblemada epoqué não é a existência domundo,mas seu significado.Assim, ao contrário deDescartes, a relação fenomenológica deHusserldeixaoego cogito cogitatum, poisaúnica coisaqueéabsolutamenteevidenteéocogito comseuscogitata.

A fenomenologiapropõe-se como tarefaanalisarasvivênciasintencionaisdaconsciênciaparaaíperceberosentidodosfenôme-nos. O próprio da estrutura noético-noemática ou intencionaldaconsciênciaéfazer-medescobrir,naconsciênciaounosujeitoesomenteaí,umobjeto(fenômeno).Nocitadoexemplodamaciei-ra,amacieirarealpermanecenojardim,poisnãoétransplantadaparaosujeito.Naverdadeamacieirapercebidasóexisteenquantopercebida.

Naatitudenatural,aconsciênciaingênuavêoobjetocomoex-teriorereal.Naatitudefenomenológicaoobjetoéconstituídonaconsciência.Eafenomenologiatorna-seoestudodaconstitui-çãodomundona consciência.Constituir significa remontarpelaintuiçãoatéaorigem,naconsciência,dosentidodetudoqueéorigemabsoluta.Nãosóomundoéconstituído,recebeseusenti-donaconsciênciaounosujeito,masoprópriosujeitoseconstituipelareflexãosobresuaprópriavidairrefletida.Areduçãofeno-menológicafaz,assim,omundoaparecercomofenômeno.Emboraagênesedeseusentidosejaperceptívelnavivênciadaconsci-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

33

ência,nemtudoestáditosobreosentidodessavivência.Nafasedafenomenologiatranscendental,quevaidesdeIdeias diretrizes (1913)eculminanasMeditações cartesianas (1929),Husserlcolo-caoacentosobreosujeitoaoqualéprecisoligaraconsciêncianaqualseconstituitodoosentido.Avivênciadaconsciênciaéoúnico irredutível.Mas esta vivência é vividaporumsujeitoaoqualsereferemosobjetosdomundorealouidealedeondeadquiremsignificações.Estesujeitoconstitui-secontinuamenteeafenomenologiatorna-se“exegesedesipróprio”(Selbstaus-legung), ciênciadoeuouegologia. Essesujeitoéoeu transcen-dental, nãooeuempírico.

Paraalcançarasessênciaséprecisopurificaro fenômenodetudoquenãoéessencial,ouseja,éprecisoreduzir(reduçãoeidé-tica). A essência se definirá, segundo Husserl, pela análisemental comouma “consciência da impossibilidade”, ou seja,como aquilo que é impossível à consciência pensar de outromodo. Identifica-seeste invarianteatravésdasdiferenças,defi-nindoa essênciados objetos dessa espécie, ou seja, definindoaquilosemoqueseriaimpensável.EsteprocessoHusserlchamoude variação eidética. Aessênciaé,pois,osentidoidealdo“objeto”produzidopelaatividadedaconsciência.

Parachegaràfenomenologiatranscendentalpura,Husserlin-troduzaredução e a epoqué.Assimcolocaentreparêntesesaexis-tênciadomundo,nãoparaduvidardesuaexistência,massuspen-derapenasojuízoemrelaçãoaestaexistência.Aessasuspensãodejuízodesignou-acomotermoepoqué, jáusadopeloscéticospirônicos gregos para significar a suspensão ou abstençãodequalquer assentimento por não reconhecerem razões suficientesparaeliminaraincerteza.Husserlintroduzaepoqué comoinstru-mentodedepuraçãoparachegaraumradicalismoreflexonapro-curadasevidênciasapodíticas.Portanto,nãopretendeduvidardaexistênciadomundo,nemsuprimi-la.Quer,istosim,encararomundoapenassoboaspectodefenômeno,ouseja,comoseapre-

34

URBANO ZILLES

sentaàconsciência.Éareduçãoàconsciência.Comoaepoqué jásignificaredução, osdoistermossãoempregados,geralmente,pelopróprioHusserlcomoequivalentes.

Ofilósofodevebuscaraevidênciaapodítica:“Seaapreensãoreflexiva se dirige para aminha vivência, apreendo alguma coi-saemsimesmadecaráterabsoluto,cujaexistêncianãopode,emprincípio, sernegada;ouseja,é inteiramente impossívelverqueessacoisanãoé.Muitoemborasejaumaficçãoaquiloqueseapre-senta,aprópriaapresentação,aconsciênciaquefinge,nãopodeserfictícia”(IdeiasI,§46).Portanto,parachegaràevidênciaapodíticaéprecisocolocar“entreparênteses”tudoquemeéexterior:outraspessoaseopróprioDeus.Devemospartirdomundoreduzidoàsvivênciasdaconsciência.Adecisãodepraticaraepoqué resulta de umatolivre,inteiramentedependentedavontade.

Naconsciência,muitasvezes,asvivênciasseapresentamnasingularidadeconcreta.Refletindosobreessesfenômenossingula-res,possosujeitá-losaumasériedevariaçõesarbitráriasembuscadoinvarianteoudaessência.Destaformapraticoareduçãoei-dética.Surge,então,umfenômenonovo,umaessênciapurificada.

Seeuquiseratingiroterrenofirmedasevidênciasapodíticasdevoiralémdareduçãoeidética.Tereiquepôr“entreparênteses”aprópriaexistênciadoeuedosseusatos.Sóassimalcançareioeuabsoluto,oeutranscendentalecomeleoâmbitodaexperiênciagenuinamentefilosófica.Estaéareduçãotranscendental.Atravésdelachegamosaocontatoimediatocomas“coisas”quesenosapresentamnasuaevi-dênciaoriginárianaconsciência.Agoranãopossuímossimplesmenteomundo,masapenasaconsciênciadomundo.Ofilósofodeveráredu-zirsuaatençãoparaessenovomundoda“consciênciapura”.

6 A INTERSUBJETIVIDADE TRANSCENDENTAL

Setudooqueeupossoentendercomoverdadeirosernãoéoutracoisaqueumacontecimentointencionaldeminhaprópria

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

35

vidacognoscente,paraHusserl,issonãosignificaqueapercepçãosejaoúnicomododeconhecerarealidade.Existeoutromodoválidodeexperiência:aexperiênciamediata, ouseja,atravésdocorpoanimadoquetenhodooutro.AissochamadeEinfühlung. Oque seme apresenta através do corpo animado (Leib) é outra subjetividadequeéirredutívelameropolointencionaldaminhasubjetividade.Dessarte,oidealismotranscendentalsitua-senoplanodaintersubjetividadetranscendental.Assimareduçãofeno-menológicaconduzaduasestruturasuniversaisdavidareciproca-mentefundadas:aminhavidaeadooutro.

Husserldistingueentreminhaesferaorigináriaouprimordiale uma esfera primordial alheia, assunto que desenvolve na 5ªMeditaçãocartesianaeemmuitosoutrostextos.DizHusserlqueeusouparamim,etodooutroeuoéparamim,sujeitodesuapri-mordialidadeedasintracepções(Einfiihlungen) por elemotivadas.

EmboraHusserldistingaavidaimanentedopróprioeu,nelaencontra-seimplícitaaimanentevidados“outros”,semconfun-dir-secomaprópriaesferaprimordial.Háumarecíprocaaper-cepçãointersubjetivado“euedeseuoposto”(sein Gegenüber). O opostodoeutemqueseroutroeu.Aoego sópodeopor-se,propria-mente,umalter ego. Naexperiênciadomeuprópriocorporadicaaexperiênciaquetenhodecorposalheiose,porsuamediação,te-nhoexperiênciadasubjetividadealheia,deumasegundavidatranscendentaldistintadaminha.

Asíntesedacoexistênciamonadológicadetodososeu emre-cíprocaautoapercepçãoé,porsuavez,umasíntesequeconstituianatureza(omundo)comumparatodos.Eu,comomônadamodal-menteoriginária,tenhocomoválidomeuhorizontedeautoestra-nhamentos,deoutrasmônadas,constituídoeunelecomomônadasingular de um “nós”, como universo de equivalentesmônadasexistentes,queseimplicamrecíprocavalidadeesegundoumtotalsentidoontológico.Este“nós”éaintersubjetividadetranscendentalnaqualseconstituiomundocomvalidade“objetiva”paratodos.

36

URBANO ZILLES

Existe, assim, com fundamento na experiência transcendental,umapluralidadedeseresquesão“emsieparasi”equeparamimsósedãonomodode“outro”,comoalteridade.

Nas Meditações cartesianas Husserlafirma,no§56,aiden-tidadeentreintersubjetividadeecomunidadedemônadas.Par-tindodemimmesmocomomônadaoriginal(Urmonade), chegoaoutrosenquantosujeitospsicofísicos.Masnumacompenetra-çãointelectualdohorizonteoriginaldooutro,descubroqueapercepçãodenossoscorposeavivênciadaalteridadeérecípro-ca.Apartirdestavivênciadehomogêneaalteridaderecíprocaseconstituiacomunidadehumana,apercebendo-me,simultane-amente,deminhaprópriahumanidade.

Acomunidadehumananãoéfechada,masestáabertaàcomu-nidadeuniversalcósmica.Estaintersubjetividadetranscendentaloucomunidadeuniversaldemônadasapresentaasseguintesca-racterísticas: a) Constitui-se puramente emmim, no ego que medita;b)constitui-separamimapartirdeminhapuraintencio-nalidade; c)mas é tal que, ao constituir-se em cadamodifica-ção de outros, éamesma,apenasnummodosubjetivodediferenteapresentação;d) constitui-se,porsuavez,comoportadoraneces-sariamentedomesmomundoobjetivo;e)épropriedadeessencialdestemundotranscendentalconstituídoemmim,pornecessidadeeidética,adesertambémummundohumano;f)estáconstituídacommaioroumenorperfeiçãonainterioridadepsíquicadecadaumdoshomensemvivênciasintencionais,emsistemaspotenciaisdaintencionalidade;g)estesistemapotencialdaintencionalidadeimplicaumhorizonteindefinidamenteaberto.

7 EM QUE CONSISTE O MÉTODO FENOMENOLÓGICO?

Afenomenologiaconsistenatentativadedescreverofun-damentodafilosofianaconsciêncianaqualareflexãoemerge

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

37

davidairrefletidadocomeçoaofim.Podemosresumirosse-guintesaspectosdafenomenologiahusserliana:

a)éummétodo derivadodeumaatitude, quepresumeserabsolutamente sem pressupostos, tendo como objetivoproporcionar ao conhecimento filosófico as bases sólidasdeumaciênciaderigor,comevidênciaapodítica;

b) analisa dados inerentes à consciência enãoespeculaso-brecosmovisões,istoé,funda-senaessênciadosfenôme-nosenasubjetividadetranscendental,poisasessênciassóexistemnaconsciência;

c)édescritivo, conduzindoaresultadosespecíficosecumu-lativos,comonocasodeinvestigaçõescientíficas;nãofazinferênciasnemconduzateoriasmetafísicas;

d)como conhecimento fundado nas essências é um saberabsolutamentenecessário,emoposiçãoaoconhecimentofundadonaexperiênciaempíricadosfatoscontingentes;

e)conduzàcertezae,porconseguinte,éumadisciplinaa priori;

f)éumaatividadecientíficanomelhorsentidodapalavra,semser,aomesmo tempo,esmagadapelaspressuposi-çõesdaciênciaesofrersuaslimitações.Buscaaraizdetodaaatividadefilosóficaecientífica.

Husserldistingueciênciasdaatitude natural eciênciasdaati-tude fenomenológica. Oobjetodafenomenologiaéaconsciênciamesmacomoresíduodaepoqué praticada,aconsciênciapuranosentidoeidéticotranscendentalenãopsicológico,poisapsico-logia,comociênciadosfatos,tambémficaentreparênteses.Asciênciasdaatitudenaturaloudogmáticapartemdeumaobjetivi-

38

URBANO ZILLES

dadedada,semquestioná-la.Afenomenologiapartedoquestiona-mentodequalquerobjetividadedadaeareduzàmeravivênciaemquesedá,paratorná-laobjetodeanálise.Porissoafenomenologiaéaciênciacríticafundamentalesitua-senoplanodaevidênciaapodítica.Oobjetoprópriodafenomenologianãoé,diretamente,ocampodasessências,masdaessênciadavidadaconsciência.

Husserl busca um fundamento sólido para a filosofia e a ci-ência,umaciênciadoradical.Tentaestabeleceruma filosofia pri-meira, criandoumaciênciafundamentaldasubjetividadepura.Aconsciênciaatuanteéestefundamentoprimeirodetodaaobjetivi-dade.Talfilosofiaprimeiraéafenomenologiacomo“aciênciades-critivaeidéticadaconsciênciapuratranscendental”ou“doutrinapuradescritivadas essênciasdas estruturas imanentesda cons-ciência”. A filosofia tornar-se-á ciência de rigor quando nos fizertomar consciênciadequeas construções teóricasdo espíritonãopodemrestringir-seàdescriçãoobjetivistadosfatosindividuaisesubsistentesemsimesmo.Comociênciarigorosa,exigirádenósumaposturafenomenológicaquenosconduziráàsraízesúltimasdetodasascoisas.Éverdadeque,nafasedacrise,Husserlbuscaestefundamento,dealgumaforma,nomundodavida(Lebenswelt).

8 A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FENOMENOLOGIA

OpensamentodeHusserlpassouporlongaeprofundaevo-lução.NoperíododeHalle (1887-1901)escreveuasInvestiga-ções; noperíododeGoettingen(1901-1916)elaborousuafenome-nologiapuraeproduziuasIdeias; maistarde,emFriburgo,naFlorestaNegra(1916-1928),produziuafenomenologiacomonovotranscendentalismo ou idealismo caracterizadonasMeditações cartesianas. Nosúltimosanos,jáaposentadonauniversidade,refletiusobreacrisedasciênciascomoexpressõesdacrisedacul-turacontemporânea.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

39

Noperíodode1934-1937,Husserldedicou-seao temada“Crisedas ciênciaseuropeiasea fenomenologia transcendental”.Nesseperíodoabordaproblemasque,aseuver,conduziramàcri-se.Persegueaorigemdessacriseatéamodernamatematizaçãodasciênciasparaabordaradivisãoourupturasurgidaentreoobjetivismofisicalistaeosubjetivismotranscendental.EstudaahistóriadafilosofiamodernadesdeDescartes,Locke,Berkeley,HumeatéKant.Propõe-seasuperaresseabismoatravésdafeno-menologia,buscandoofundamentodosentido,ocultoàsciências.Nesseperíodoelaborouotextosobre“Acrisedahumanidadeeu-ropeiaeafilosofia”, indicandooacessoouocaminhoàfenome-nologiatranscendentalapartirdomundodavidaedapsicologia.

Otextoapresentadooriginou-sedeumaconferênciaqueHusserlfeznodia7demaiode1935noKulturbund deViena.Essa conferênciaHusserl pronunciounuma situação determi-nada.Em1928 foi aposentado (emeritiert), ou seja, foi dispen-sado de sua atividade de ensino nauniversidade.Em1930 re-conheceuqueM.Heidegger, seuex-alunoe sucessornacátedra,assumiraposição diferente da sua. Em 1933, os nazistas che-garamaopoder,naAlemanha,eaícomeçouaascensãodeumirracionalismoqueprovocouumacrisepolíticaecultural.Comissoenfrentouumproblemapessoalportersanguehebreu.Masnão deixou de fazer uma análise profunda dessa nova situação,detectandooperigoqueameaçavaahumanidadeeuropeia,estahumanidadequeesquecerasuatradiçãoespiritualvindadesdeaantiguidadegrega,emboraestivesseproibidodemanifestar--sepublicamenteemseuprópriopaís.Husserlresponsabilizouosfilósofoseoscientistaspelacriseporteremdeixadodeserviràrazão.Segundoele,oséculodaciênciadesviou-sedarazão.

NaoportunidadequelhefoidadaemViena,Husserlevocaaherançaculturalqueconstituiabasecomumdacivilizaçãooci-dental.Posiciona-secontraodesvioracionalistae,aomesmotem-po,contracertoirracionalismo,expondosuaprópriaconcepção.

40

URBANO ZILLES

Opõe-seaoracionalismoingênuodosséculosXVIIeXVIIIcomsua concepção das tarefas infinitas da razãohumana; e ao obje-tivismo reinante nas ciências positivas, de modo especial napsicologia objetivista, pela consciência científica do espíritoenquantoespírito.Suaspalavrasecoamcomoumaprofissãodefé:“e,portanto,asideiassãomaisfortesquetodasasforçasempí-ricas”(HusserlianaVI,p.335).StefanStrasser,profundoco-nhecedordafenomenologiadeHusserl,noprefácioqueescreveuàediçãofrancesa(bilíngue:alemãoefrancês)chamaestetextode“ummanifestonoverdadeirosentidodapalavra”(E.Husserl.La crise de l’humanité européenne et la philosophi. Paris,Au-bierMontaigne,1987,p.5).Poder-se-iachamaressetextotambémde“testamentopolítico”deHusserl.

ParaHusserl,aexistênciadacriseéumfatodoqualsedevetomarconsciência.Estacriserefere-seàsciênciaseuropeiaseaohomemeuropeu;refere-seàEuropacomomaneiraespiritualdeser,ouseja,aEuropacomoentecultural:“Emsentidoespiritual,aEuropaenglobamanifestamenteosdomíniosingleses,osEUA,etc.Trata-seaquideumaunidadedevida,deumaação,deumacriaçãodeordemespiritual,incluindotodososobjetivos,osinteresses,aspreocupaçõeseosesforçoscomasinstituiçõeseasorganizações.Nelasatuamosindivíduosdentrodassocieda-desmúltiplasdediferentescomplexidades,emfamílias,raças,nações,nasquais todosparecemestar interioreespiritualmentevinculadosunsaosoutrose,comodisse,naunidadedeumaestru-tura espiritual”.Husserlnão compartilhaa resignaçãonemopessimismodoexistencialismo,naépoca,poiscrênopoderdara-zãohumanaetentaumdiagnósticodascausasdessacriseparasódepoisreceitaroremédio.Constata:háumaherançadahis-tóriaqueéoobjetivismocientífico;umesquecimentotrágico:oLe-benswelt ouomundodavida;afenomenologiapoderáencami-nharparaumasoluçãoousuperaçãodessacrise:

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

41

“Nesta conferência quero tentar suscitar um novo interesse para o tão frequentemente tratado tema da crise europeia, desenvolvendo a ideia histórico-filosófica (ou o sentido teleológico) da humanida-de europeia. Ao expor a função essencial que, neste sentido, tem a exercer a filosofia e suas ramificações, que são nossas ciências, a crise europeia também ganhará uma nova elucidação” (Husser-liana VI, p. 314).

ConfusõesespirituaisepolíticasnasprimeirasdécadasdoséculoXXhaviamdespertado,nocontinenteeuropeu,aconsci-ênciadeumacrise,queHusserlcompartilhoucommuitoscontem-porâneos.Demaneiramaisacuradaqueoutros,viuaameaçaàculturaeuropeiacondicionadapelacrisedafilosofia.Estaúltima,paraele, consistiaessencialmentenaameaçadacientificidadedafilosofia.Depoisde1910nãofaltamponderaçõesnessesentidoemseusescritos.Estedadoé importanteparaentenderaobratardiacaracterizadacomo“crisedasciênciaseuropeias”.

8.1 NOVA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA

NaobrafenomenológicadeHusserlsalientamosdoisaspectosdiversosapartirde1913.ComeçacomasIdeias (1913),obraquefoicaracterizadadeidealismotranscendental.Estaetapaesten-de-seatéasMeditações cartesianas (1931).Emgrandeslinhas,po-de-sedizerque,nestaetapa,contraaanálisefenomenológicasobreosujeitocomosuportedoatodeconsciênciaeinstânciaconstituintedosentidodomundo.Sobcertoaspectoatésepodedizerqueafe-nomenologiaassumeaformadeegologia. O ego transcendentalagecomosuportedasvivênciasdaconsciência.

Posteriormente,nofinaldesuavida,nafasecaracterizadapelacrise (1930-1938),buscaumnovoacessoàfenomenologiaatravésdahistória.Depoisde1920,Husserlpreocupa-secomocomeçodafenomenologia.Pelaprimeiravezposiciona-se,explicitamente,naquestãodahistóriaetematizaahistoricidadedafilosofia.Nacon-ferênciadeViena(1935)játrabalhacomdeterminadoconceito

42

URBANO ZILLES

dehistória.Concebe-acomotranscenderdaatitudenatural,quepermanecenossimplesdados,paradesenvolverumateoriafilo-sófica,que,emsuanovaperspectiva,significaumacertaepoqué dointeresseoriginário,paracaptaroenteemsuaglobalidade.Comessareivindicaçãodatotalidade,segundoointérpreteWal-terBiemel,emergeaideiadeinfinito,queédecisivaparaahu-manidadeocidental(Husserliana, VI,p.XVIII).Essanovapers-pectivanãosignificaumrompimentocomafaseanterior,masumenriquecimentodeseuprogramafenomenológicopelapers-pectivadahistóriaedavida.NestasegundafaseHusserlpre-ocupa-secomasevidênciaspré-lógicas,comomundodosvalores,comosentidodaexistênciapessoalecoletiva, etc. Entretanto,comonaprimeirafase,continuaembuscadeumsaberapodíticoeuniversaledeseusfundamentos.

Husserldenunciaacrisedacivilizaçãodonossotempo,inter-pretando-a como uma crise das ciências europeias. Situa essacrisenãonosfundamentosteoréticos,masnofracassodasciên-ciasnacompreensãodohomem.Aorigemdacriseéaconvicçãodeque“averdadedomundoapenasseencontranoqueéenunciávelnosistemadeproposiçõesdaciênciaobjetiva”,ouseja,noobje-tivismo.Estepõedeladoasquestõesdecisivasparaumaautênticahumanidade.Comissoaciênciaperdeimportânciaparaavidaeomundo.

Emacrise, Husserlelaboraumareconstruçãodatradiçãofilo-sóficanaperspectivafenomenológicatomandoateleologia darazãohistórico-crítica como ponto de referência. Não se preocupacom detalhes de erudição histórico-crítica. Coloca a questão:qualacaracterísticaessencial,ouseja,oeidos, doeuropeu,dessaformaespiritualdeser?Traçaumesquemanamedidaemqueinte-ressaàfenomenologiaparamostraraideia-fimouotélos-intrínseco quepresideaatividadefilosóficanoOcidenteatravésdosséculos.

Omododeserpróprio,estemodoespiritualdeserrealizou--se,pelaprimeiravez,naGrécia,entreosséculosVII-VIa.C.com

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

43

oaparecimentodeumanovaatitudediantedomundo.Dessaati-tude emergiramnovas formas do espírito, que constituíram umsistemaculturalnovo,asaber,afilosofiacomoaentenderamosantigosgregos:“comociênciauniversal,ciênciadouniverso,ciên-ciadaunidadetotaldetodoente”.Foiointeressepelatotalidade,pelo universal que produziu o desenvolvimento das diferentesciênciasparticulares,ramificando-sea“filosofia,aciênciauna,emmúltiplasciênciasparticulares”.Centrasuareflexãosobreosseguintesmomentos:ofundamentoorigináriodofilosofarnaGrécia antiga como forma de saber universal eúnico sobreatotalidade do ser; reabilitação durante o Renascimento do idealoriginário,modificadoagorapelorecursoàmatemáticacomoins-trumentoformalizante;voltadeDescartesedoempirismoinglêsparaaconsciência,emboracomaambivalênciadaracionalida-dematemática;giroradicaldeKantparaasubjetividadecomofundamento da ciência, sem todavia conseguir realizar umafilo-sofiatranscendental.EssesmomentosdahistóriadopensamentosãodestacadosporHusserlcomotentativasprecursorasdafeno-menologia,mas insuficientes.Afenomenologia, enfim,assumeaideia origináriadafilosofia como realizaçãoconsequentedeumsaber fundamental,apodítico e transcendental.Até certo ponto,Husserlaplicaaepoqué àsfilosofiasdopassadoenquantosiste-masqueignoraramoLebenswelt comolugardaexperiênciaabso-luta.

Aquestãofundamental,quecoloca,éaseguinte:Comoodesen-volvimentogigantescodasciênciasmodernaspodeconduziraumacrisedasciênciasque,simultaneamente,representaumacrisedahumanidadeeuropeia?Constataqueotelos, queemergiudafiloso-fiagregaparaahumanidadeeuropeia,dequererserumahumani-dadeapartirdarazãofilosófica,foiperdidocomodesenvolvimentodasciências.Estudaporqueasciênciasfracassaram.

ParaHusserl,acrisedasciênciasmanifestaacrisedahuma-nidadecomoprojetoracional.Oprojetodohomemeuropeu,cons-

44

URBANO ZILLES

tituídonaantigaGrécia,traçouumprojetopolíticoracionalparaconfigurar a vida humana a partir da razão. AGuerra de 1914mostrouofracassocomopossibilidadeinerenteàculturamoderna.Suasanálisesvãodesdeaconsideraçãodacriseepistemológicadopsicologismo até a crise generalizada das ciências europeias quesignificouumacriseantropológica.Parasuperaressacriseépre-cisorestaurarafénoprojetoteórico,práticoepolíticooriginário,corrigindooserrosimplícitosnaepistemologia.Destaformaafe-nomenologiarecuperaráumaconcepçãodohomemquetemcomocentroosujeitoracional, fundadonãonos fatos,masnarazão.Ohomemnãoéummerofatomundano,masolugardarazãoedaverdade,asubjetividadetranscendental.Arazãonãoécausadapelascircunstânciasdomundo,maséoqueéporsimesma.

8.2 LEBENSWELT OU “MUNDO DA VIDA”

Afasedacrise deHusserlcaracteriza-sepeloconceitodoLe-benswelt (mundodavida).OpõeoLebenswelt aomundodasciên-cias.Tentafundamentaroúltimonoprimeiro,nomundopré-cien-tífico.Segundoele,aprópriaciênciaemergedealgoanterioraelamesma,docampodasexperiênciaspré-científicasepré-categorias,ouseja,deuma priori concreto,quechamadeLebenswelt ou Le-bensumwelt. Emoutraspalavras,perguntapelascondiçõesa prio-ri depossibilidadedasciênciasaonívelhistóricoeexistencial.

O Lebenswelt é umtemapresentenopensamentodeHusserldesdeocomeço.EmGöttingendenomina-oErfahrungswelt oumun-dodaexperiência.Areconduçãodaciênciaasuaorigemnomundodavida,comoacríticadapsicologiacientífica,exigeaconstituiçãodaciênciadomundo da vida eumapsicologiafenomenológica.Omundodavidaéafontedosentidodosconceitoscientíficos.Sees-sesnãopuderemreferir-seaomesmo,carecemdesentido.

Husserlconsideraomundodavidacomoorigem(Unsprung) efundamento(Baden) dasciênciasobjetivas.Seomundodavida,

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

45

porumlado,eraaorigemdasciênciasobjetivas,poroutro,era--lheclaroquetinhamesquecidoessaorigem.Esteera,paraele,ummomentodacrisedasciências.Consideravaomundodavidacomoumnovopontodepartidanocaminhoparaafenomenologiatranscendental,sobretudoparaasubjetividadetranscendental,da qualbrotam, emúltimaanálise,não sóas ciências objetivas,masoprópriomundodavida.Dessamaneira,na fenomenologiahusserliana,omundodavidaexerceumaduplafunção:a)afunçãodefundamento(Bodenfunktion)emrelaçãoàsciênciaseb)afun-çãodefiocondutor (Leitfadenfunktion) paraoretornoda feno-menologiaasubjetividadeconstitutivadomundo.

OqueHusserlentendeporLebenswelt?Areduçãoaomundodavidaquerdizer“colocarentreparênte-

ses”oqueserefereaele.Entretantoaepoqué nãoéorecursodeumrealistaescrupuloso,masométodoparaoacessoàexperiên-ciatranscendentalporvocaçãorigorosamentefilosófica.Pormundo da vida Husserlnãoentende,pois,omundodenossaatitude natural, naqualtodososnossosinteressesteóricosepráticossãodirigidosaosentesdomundo.Naatitude fenomenológica trata--se de suspendernossa atençãonessehorizonte para ocupar-nosexclusivamentecomoprópriomundodavida,ouseja, comotemlugarparanósapermanenteconsciênciadaexistênciauniversal,dohorizonteuniversaldeobjetosreais,efetivamenteexistentes.Oobjetodainvestigaçãofenomenológicasobreomundonãoétantooserdomundoquantooseusentido.

Ointeresseteóricodaatitudefenomenológicadirige-seexclu-sivamenteaouniversodasubjetividadenoqualsenosdáomundocomoexistente.Aciênciadomundodavidaéaciênciadasubjetivi-dade,aciênciadouniversalcomodapreexistência(Vorgegebenheit) domundocomofundamentodetodaequalquerobjetividade.Con-templaromundoapartirdanossaatitudefenomenológicasigni-ficavê-lopuraeexclusivamentedomodocomoadquiresentidoevalidadeexistencial emnossavidade consciência e em confi-

46

URBANO ZILLES

guraçõessemprenovas.Aciênciadomundodavidatem,pois,por objeto o estudoda vida transcendental e desuaatividadeconstituinte.

Éomundohistórico-culturalconcreto,sedimentadointersub-jetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre osquaisseencontraaimagemdomundoelaboradapelasciências.O Lebenswelt é oâmbitodenossasoriginárias“formaçõesdesentido”,doqualnascemasciências.ParaHusserl,omundodavidaéuma priori dadocomasubjetividadetranscendental.O erro do objetivismo foi esquecê-lo ou desvalorizá-lo comosubjetivo.Asteoriaslógico-matemáticassubstituíramomundoda vida pela natureza idealizada na linguagem dos símbo-los.Cabeàfenomenologiarecuperá-lo,tirá-lodoanonimato,poisohumanopertence,semdúvida,aouniversodosfatosobjetivos;mas,enquantopessoas,enquantoeu, oshomenstêmfins,perse-guemmetas,referem-seàsnormasdatradição,àsnormasdaverdade;normaseternas.

Husserl,nessa fasedesua fenomenologia, colocaa tônicanomundodavida,naexperiênciapuraenoa priori pré-categorial,emboramantenhaosujeitotranscendentalcomoumpolodereferência.Nacrise, vinculaoeu e o Lebenswelt nacorrelaçãocons-ciência-mundo.Comissoconseguenovasperspectivasparaain-tencionalidadeeaintersubjetividade,poisagoraaplicaambososconceitosaomundocomohistóriaecomoteleologia.Emsínte-se,tentarecuperaromundodavidaatravésdeumregressoaomundoqueprecedetodaaconceitualizaçãometafísicaecientífica,aomundopressupostoouLebenswelt.

SegundoHusserl,éprecisorecolocarasubjetividadetranscen-dental no centro da reflexão para recuperar omundo da vida,dasexperiênciaspré-científicasorigináriassobreasquaishistori-camentesãoconstituídasasprópriasciências.Aprópriaraizdasevidênciaslógico-matemáticasencontra-se,pois,nomundodavida.Ouniversodeidealidadedasciênciasmodernasnasceno

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

47

própriomundodavida,poiséconstituídoapartirdasformassensí-veisdascoisasnaexperiênciacotidiana.Pelaimaginação,apartirdelassedesenhamasformasgeométricasideaispuras,quenãosãoasreais,masdecorposidealizados.Erroneamentepassou-seaconsiderartaisidealidadescomoobjetivas.Destaformaidealizou--seanaturezapensando-adeacordocomoparadigmadasidealida-desmatemáticas.Esqueceu-sedequeoprocessodeidealizaçãofei-topelamatematizaçãogalileanadanaturezaé,antesdetudo,produtodasubjetividadepensante.Querelaçãoaindapermaneceentreomundodoqualfalaofísicoeaqueledoqualfalaopoetaoudoqualtodosfalamosnalinguagemcotidiana?

QuandoHusserl seocupada funçãodomundodavidacomofundamentodasciênciasobjetivas,costumarelacionarcomessasaconcepçãogalileanadenatureza.Comestaassociaçãoquermostrarque,desdeGalileu,aciênciaemergentedesconheceoca-rátermetodológicodesuaatividadecomapretensãodecaptarcomseusinstrumentosomundotalcomoénaverdade,pordetrásdovéudenossaexperiênciacotidianasubjetivaerelativa.Talpretensão ontológica, para ele, foi de consequências equivocadastantonoracionalismoclássicocomonoempirismo.

Mundo da vida, nosentidodemundoexperimentadopeloho-mem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa, queoprópriohomemconstrói.Mas,aomesmotempo,oLebenswelt é constituídopelaHistória,linguagem,cultura,valores...Quandosefaladeexperiência é ingênuoquererreduzi-laàempiriasensíveldomundofísico.Aexperiência,semdúvida,éumatodaconsciência.Vinculandoaexperiênciaaomundodavida,ouseja,aomundopré--científico,pode-sefalardeexperiênciaestéticaoureligiosa,enfim,deexperiênciadasubjetividade.

Demodoalgumaexperiênciapodeserreduzidaaomundodasciênciasfísico-objetivas.Husserlbusca,pois,aexperiênciaalémdaexperiênciadanaturezadasciênciasobjetivasenquantovinculadaàcategoriadoLebenswelt. AssimoLebenswelt é uma priori das

48

URBANO ZILLES

ciências,cujosresultadospassarãoaintegraromesmo,quetraduzascondiçõesdepossibilidadedeummundocomomundohistórico,comsuastradições,comseupresenteehorizonteabertoaofuturo.Aciêncianãosóemergedomundodavida,mastambémrepercutesobreele,convertendo-oemummundoimpregnadocientificamen-te.Assimpode-sedizerqueaconstituiçãodasciênciasimplicaumaconstituiçãocientíficadomundodavida.

Nafasedacrise, Husserlintegraapolaridadesujeito-obje-tonomundodavida comohorizontede conhecimentoe comosuporte das ciências. Dessa forma toda experiência encontra-secondicionadaedeterminadaporumhorizontepré-dado.Sujei-toeobjetoencontram-seenglobadospelomundoepelahisteria:omundodavida.Esteatuacomofatormediadordoquesedánoobjetoenaconsciência.OLebenswelt nãoéumasomadeobjetos,masomundodosubjetivodoqualemergetodaaatividadehuma-na.Ohomemexercesuafunçãodecriarfatosculturaisnomundodavida.Entreessesfatosestáomundoobjetivodasciênciasedosinstrumentostécnicos.Tambémessessãoprodutohistóricocom finalidades e procedimentos quemudam. A categoria de“horizonte” supõeque cadaexperiência, cadadadoe cadapa-lavraseencontramnumnexoglobaldesentidoprovenientedaintencionalidadesubjetiva.Osdadoseasexperiênciassingularescompartilhamseresentidocomatotalidadenaqualseinserem.Ohorizonte,entretanto,constituiumatotalidadeabertaeviva.

Asciênciasapresentamumavisãodomundonaqualpre-dominamoobjetivismo,aquantificação,a formalização,a tec-nificação,etc.Omundodavida,pelocontrário,apresenta-secomoummundodeexperiênciassubjetivasimediatas,dotadoemsimesmodesentidoefinalidade,pré-dadoparaexplicitaçãocon-ceptual.Entreambos,entreomundodaciênciaeomundodavida,instaura-seumprocessodialéticodemaioroumenordistancia-mento.Omundoexpressonomodelocientífico,interpretadoporuma ideologia ou cosmovisão, permanecemundo,mas é um

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

49

mundomutiladoouparcial.Éumempobrecimentodarealidadericadomundodavidadoqualnãodeixadeserumatoderivado.Osentidodaciêncialegitima-se,emúltimainstância,nomun-do da vida. Só este confere fundamentação axiológica, estruturaintencional e doação originária de sentido à própria ciência.E omundodavidatemumíndicetemporalouhistórico.Omundodavida representa a dimensão interior do sujeito e da história.AcríticadeHusserlaoobjetivismodaciênciagira,pois,emtornodedoisaspectos:a)oesquecimentodosujeitoedeseumundovital;b)aperdadadimensãoética,poisométodoma-temáticoobjetivistarenunciaexplicitamenteatomarposiçãoso-breomundododever-ser.Omundodavidaé,paraHusserl,ummundoquetemohomemcomocentro.Porisso,sóoretornoàsubjetividadetranscendentalpoderárecuperarosentidodohuma-nismoesuperarodesvioobjetivista.Sersujeitotranscendental,noentanto,nãosignificaoutracoisaqueummodoparticulardeexistênciadoprópriosujeitohumanoenquantoessedesenvol-ve,aomáximo,suaspossibilidadesreflexivas.

Omundodavidaconotaoscomponentescotidianosdaexis-tênciapessoalanterioresàatividade científica, significandoa si-tuaçãodosujeitonarelaçãointencionalcomumcontextohistóricosocialqueenvolveosujeitocognoscenteeoobjetoconhecido.Eomundo gerado anonimamente pela colaboração humana quesecristalizaempráxishumanaconvencionada.Esteéomundodoqualascoisaseaspalavrassaemdeencontroimediatoaohomem;é omundo no qual parece, aHusserl, possível restabelecer aconexãoentreciência,éticaevida,poisaciênciaéapenasumamo-dalidadeparticulardecondutaprática, compartilhandoasorien-taçõespré-científicasexistentesnomundodavida.Husserldes-cobrequeoerrodoobjetivismocomeçaondearazãomodernaesqueceomundoordinárioecotidianodoshomens.

Enfim,analisandoomundodavida,afilosofiaconquistahori-zontessemprenovos,pois,detrásdasconcretizaçõesdescobreaati-

50

URBANO ZILLES

vidadeeacriatividadeintencionaldasubjetividade.ParaHusserl,autênticaanálisedeconsciênciaé,pois,hermenêuticadavidadaconsciência.Restamostrarqueafenomenologiaéotelos, ofim,ouseja,omovimentolatenteparaoqualtendeaprópriafundaçãodaculturafilosófica.AcosmovisãodeHusserlestácentradanoconcei-to de teleologia.

8.3 A TELEOLOGIA

QuandoHusserl faladacrisedasciênciasnãoquestionasuacientificidade, em suas aplicações técnicas, nem seus métodos.Questiona, isto sim, opções subjacentes à atividade científi-cacomotaleaoseudesenvolvimento.Atravésdessaanálisepodemostrar que ahistória do pensamentomoderno é umabusca dosentidodavidahumana(teleologia).Acrisedasciênciasé,emúltimaanálise,crisedesentido.QuandoHusserlfaladecrisedasciênciasrefere-se,pois,aoseusignificadoparaavidahumana.Emoutraspalavras,olugardacriseéoprojetodevida,omundoético-políticoporqueomundodaciênciafoiseparadodomundodavidaconcreta.Damesmaforma,atécnicadesinteressa-sedeseusfinsparaconcentrar-senosmeios.Porisso,arazãodacrisedahumanidadeeuropeiaéaperdadeteleologiae,consequentemen-te,dosentidodavida.Caberáàfenomenologiareconciliaromundodaciênciaedatécnicacomomundodavidaapartirdateleologiainerenteaoúltimo.

O humanismo ocidental caracteriza-se, desde sua origem,pelapresençadeumaideiafilosóficaedeumaintencionalidadete-leológica.Masomundocientíficocontemporâneoéumdesviodestateleologia,umdesviodoidealdafilosofiacomotarefainfinita.A consciência da crise é uma oportunidade para superar a in-genuidadedaciênciamoderna,fundamentando-anomundodavidaenasintencionalidadesqueaorientam.

ParaHusserl,aracionalidadefenomenológicaestávinculadaàhistóriaeàteleologia.Aspossibilidadesqueateleologiaofe-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

51

recenãosãopossibilidadesdo“seremsi”,maspossibilidadesdaliberdade.Acondição temporale teleológicadomundodavidapode se expressar coma palavra intencionalidade. A subjeti-vidaderealiza-senamedidaemquesetranscendeasimesmaporopçõesdaliberdade.

Refletir sobre a história, paraHusserl, equivale ameditarsobreseusentido.Destamaneiraafilosofiahusserlianadahistóriasustenta-sepelaideiadefinalidadeoutélos. E o télos ouofim,queorientaahistóriadahumanidadeeuropeia,consistenarealizaçãodarazãomedianteaelaboraçãodeumafilosofiaconcebida comosaberfundamental,unoeuniversal:“otélos espiritualdahuma-nidadeeuropeia,noqualestácompreendidootélos particulardasnaçõessingularesedoshomensindividuais,situa-senuminfi-nito,eumaideiainfinita,paraaqualtende,porassimdizer,ovir-a-serespiritualglobal”(Husserliana VI,p.320-321).

Pormeiodaanálisedahistória,Husserlquerdeixarmani-festoosentidoqueorientaosacontecimentosfilosóficosecien-tíficos damodernidade. Para consegui-lo, precisa retornar aomundo da vida e redescobrir o télos subjacente aomesmo, otélos esquecido pela ciência e pela técnicamodernas. A recu-peraçãodosentidodaciênciapassaporumretornoàestruturateleológica domundo da vida.A teleologia coincide com a es-truturatendencialeintencionaldetodooser.Terteleologiaequivaleaestarorientadoparaaautorrealizaçãodesimesmo,paraaverdadedesimesmo,paraaprópriaevidência.Assimateleologiaexpressaodinamismodascoisasenquantotendemàperfeiçãonumprogressoinfinito.Arealidademanifestaumaintencionalidade universal, significando uma teleologia uni-versal:“Creioquenóssentimosqueànossahumanidadeeuro-peiaestáinataumaentelequia quedominatodasasmudançasdeformaseuropeiaselheconfereosentidodeumaevoluçãoemdireçãoaumaformadevidaedeserparaumpoloeterno”(Hus-serliana VI,p.320).

52

URBANO ZILLES

HusserlperguntapelaEuropa:oqueéEuropa?Enquantonãoéummarcogeográfico,masumespaçohumano,ummododevida,umapossibilidadehumana,surgeapergunta:oqueéohomemeuropeu?EoprojetodehumanidadeesboçadonaantigaGrécia,doqualaEuropasesenteherdeira,apenasumigualaoutros?

Husserlcentrasuasreflexõesnoprojeto Europa, vinculadoaocomeçodafenomenologiae,aomesmotempo,apresentaafeno-menologiacomootélos ecumprimentodaintençãofilosófica.EstáconvencidodequeaEuropaéumprojetoderacionalidadeuniver-sal, da qual europeus tomaram consciência reflexa. Europa éumprojetodeconfigurar-seapartirdarazão,apartirdoexercícioracionallivredecomunidade,expressoemsuafilosofia.Estare-presentaumanovaetapanahistóriadahumanidade,umaetapanecessária para continuar o desenvolvimento humano.A etapadaracionalidadeautoconscientesupõeumaracionalidadeimplícitaemetapasanteriores.Osfilósofosdevemcolocar-seaserviçodosfinsdafilosofia,ouseja,aserviçodeumanovahumanidade.

8.4 A PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Acriseatualtemcomocausaprincipaloobjetivismo científi-coreinante,poisesteesqueceuomundodavidaeasubjetividadetranscendental.Asciênciasreduziram-seapuroconhecimentodosfatos,reduzindoosabereohomemamerascoisas.Porisso“oob-jetivismooua interpretaçãopsicofísicadomundo,apesardesuaevidênciaaparente,nãopassadeumaunilateralidadeingênua”.Épreciso,segundoHusserl,superara ingenuidadedoracionalismoobjetivista para recuperar um racionalismo autêntico, “capaz decompreenderosproblemasdoespírito”.Ora,aexperiênciadomun-dodavidaocorreaníveispré-científicos.Aciência,aocontrário,procededeummundojáconstituído,pré-dado.

Husserlquerrecuperarestaesferapré-científicadavidaecriarconsciênciadequeosaberéapenasumadimensãoparcialdomun-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

53

dodavida.Esteémuitomaisamploemuitomaisricoqueomundodaciência.Afundamentaçãodasciênciasremete,pois,aumcam-podeevidênciasprimeirasasquaisconstituemomundodavida.Destaformaasciênciasmanifestam-secomomerasconstruçõesdeoutras evidênciasmais originárias, ou seja, as evidências doLe-benswelt. Comissoosabercientíficodefine-secomomeroprocessode idealização da realidade concreta, cuja consciência se verificanomundodavida.Acriseconsiste,pois,nofatodeareduçãoob-jetivistadosaberterdesvinculadoaatividadecientíficadomundoconcretodohomem.Aciênciaassimformalizadanadatemadizeraohomemsobresuasnecessidadesvitais,perdendoosujeitocomosuportedeexperiênciaspessoaisedasintencionalidadesquemoti-vamosatoshumanos.

ParaHusserl,asuperaçãodacrise aconteceráquandoafiloso-fiaseinteressardenovopelohomemesuascriaçõesculturais,pelasociedadeeseussistemasdevalores.Seráprecisoqueafilo-sofiasedistanciedoformalismocientíficoeseaproximedomundodavida,ouseja,dosproblemasconcernentesàexistênciahumana.Amatematizaçãoeformalizaçãodaciênciamoderna,segundoele,produzemefeitosdesconcertantesnas“humanidades”enafilo-sofia.Aspretensõesdeummétodoúnico,deumalinguagemunifi-cadaeunívocaconduzemaumareduçãofisicomatemáticadoser,da racionalidade e da verdade.Aplica-se uma física ao psíquico,submetendo-aaumprocessodeobjetivaçãoeidealização,queper-deasdimensõessubjetivasdavidaespiritual.Areduçãodopsíqui-coaofísicoimplicaumatotaldependênciadoprimeiroemrelaçãoaosegundo.Comissoaliena-seomundodosujeitonomundodoobjeto.Opsicólogoconverte-seemfísicodaalma(psique).

Husserlquerrecuperarainstânciatranscendentalparasu-peraracrisedasciênciasedacivilizaçãomoderna.Paratantoé preciso desenvolver um saber que interprete a realidade comoautoexegesedoeu(Selbstauslegung) apartirdasvivênciasori-gináriasdosujeito,deseuLebenswelt. Sóreconhecendoarazão

54

URBANO ZILLES

ealiberdadecomoatributosdasubjetividadepoderáselibertarohomemdeprocessosobjetivantesqueesquecemomundodavidaconcreta.

Serhomemé,naconcepçãohusserliana,umprocessocons-tante in fieri, sempreperfectível,commaioroumenoraproxima-çãodeumideal.Esteprocessoéregidopeloeidos dohumano,ouseja,pelarazão.Serhomemé,antesdetudo,possibilidade,poistodohomemencontra-seorientadopelaracionalidade.Tomarconsciênciadessaorientaçãoparaarazãoconstituioutroproces-sohistórico.Nateoriacomonaprática,ohomemdesenvolvesuaorientaçãoteleológicatomandoconsciênciadesuaenteléquiaracional.Emqualquersituaçãoohomemtranscendeoplanodosfatosaoexerceracríticadosmesmoseformularnovosprojetosquelhepermitamsuperá-los.

Aculturaocidental,desdeopensamentogrego,realiza-sesobrea teleologia.O sentidodahistória coincide coma reali-zaçãodarazão,eissosignifica:“Arazãoéoespecíficodohomem,enquantoessência,queplasmasuavidaematividadesehábitospessoais”.Avidaéumvir-a-sercontínuo,penetradoporumain-tencionalidadeadesenvolver-se.Nãoéométodonemouniversodeidealidadesqueconferemsentidoàsciênciasmodernas,masomundodavidaenquantosuportedetodaatividadeteóricaepráti-ca.Omundodavidadosujeitoéolugarquedásentidoefinalidadeao agir e ser.

Husserlconstataacrisecomoumfatopré-históricoebuscanahistóriasuascausasesoluções.Nissoestáumanovaperspec-tivadafenomenologia.Oego transcendentalagoraaparececomorazãohistórica.Husserlenfrentaahistórianastrêsdimensõesconstituintesdatemporalidade:a)opresenteenquantositua-çãodecrise;b)opassadofilosóficoecientíficoenquantogêne-sedopresente;c)ofuturoenquantotélos queorientaráasuperaçãodacrisemediantearecuperaçãodeumaracionalidadeuniversal.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

55

Ospensadores,inseridosnumatradiçãomovidapelaideia--fim,compartilhamaracionalidadeteleológica,quepresideoacontecerhistóricoecontribuemparaarealizaçãodotélos paraaqualahistóriaseencaminha.Otélos encontra-senopresentecomo“intendido”e“antecipado”.

Osprojetosfilosóficosencarnamumaintencionalidadelegadapelatradiçãoeassumidapelospensadores.Areflexãosobreopas-sadoajudaaesclareceroqueosfilósofoseafilosofiaintencionamoupretendem.Cadafilósofonutre-sedahistória.Ameditaçãohis-tóricadeHusserl permitedescobrir que tiposde racionalidade esentidopresidemoacontecereuropeu.Paraisso,todavia,preci-satranscenderameranarraçãodefatoshistóricosparapenetrarnosentidointernodosmesmos,nateleologiainternaqueosorien-ta.Opensadorrecorreàhistórianãocomoingênuocompiladordedadosoucríticodedocumentos,mascomoleitordeumpassadosegundoaperspectivadeumpresenteconstituídoporseuprópriomundoespiritual.Ofilósofobuscaaverdade interiorqueescapaaopositivismohistoricista:“Pelofatodeconceberideias,ohomemtorna-seumhomemnovo,que,vivendonafinitude,seorientaparaopolodoinfinito”.

9 DEUS COMO TÉLOS DO UNIVERSO

SegundoHusserl,ateleologiaconduznecessariamenteparaahumanidadeverdadeiraeautênticanapráxishumanadofu-turo.Agarantiaparatalrealizaçãoencontra-se,noseuprincí-pio,emDeus.AfirmaHusserlque,seohomeméumserracional,o é somente namedida em que toda sua humanidade e hu-manidaderacional,orientadadeummodolatenteparaarazãoouabertamente orientada para a enteléquia que orienta o processohumanoconscientementeparaofuturo.

Na prática e na teoria, o homem desenvolve sua orientaçãoteleológica, tomando consciência de sua enteléquia racional.

56

URBANO ZILLES

Deuséofundamentoúltimodateleologia.HusserlpensaDeuscomoumconceito-limite.Inclusiveparaoateu,dizemIdeias I, a ideiadeDeuséumconceito-limite.Mas,a teleologia tam-bémtemsuas condiçõesdepossibilidade.Por issoa reduçãotranscendentaldevedaropassoparaoabsoluto incondicio-nado.

Nalógicaformaletranscendental,HusserlsehaviareferidoaDeuscomoLeistung, resultadodaatividadeconstituintedacons-ciência,que,adverteele,nãosignifica“queeuinventeouproduzaasuprematranscendência”.TambémoAldir ego transcendente,nãosendoprodutodaconsciência.ÉestecaráterdetranscendênciaquefazHusserlfalardaideiadeDeuscomoconceito-limite.

EntretantoDeusé,paraHusserl,nãoapenasumconceito-limitenemapenasumidealreguladordarazão,masa“subs-tânciaabsoluta”quesedánofimdareduçãotranscendental.SituaotemadeDeusnumpianoclaramenteontológico,real.Dizque“Deusfalaemnós,falanaevidênciadenossasdeci-sões,que,atravésdetodaafinitamundanidade,apontamparaainfinitude”.Estaminhaorientaçãoaoinfinitoémeucritério,segundoHusserl,demoralidade,avozdeminhaconsciência,avozdeDeus.TodososcaminhosretosconduzemaDeus.Eoscami-nhosorientadosaoinfinitosãoretosemeconduzemaDeusemsolidariedadecomosoutros“eus”.

AfilosofiahusserlianadescobreDeus comooprincípio teleo-lógicodaracionalidadedocursopráticodahistóriahumana.Nes-tesentidoafirmaque“a filosofia fenomenológicacomoideiaquejaznoinfinitoénaturalmenteteologia”. Assimafenomenologiacientíficaéseu“caminhoa-religiosoàreligião”,seu “caminhoa--teu para Deus”. O problema de Deus pertence ao domíniodacosmovisãodeHusserl.Secomo filósofocalaarespeito,in-teriormentedeleseocupapelofatodeexperimentaraDeuscomoopoderdoamorqueoperatantoemsuaexistênciapuramente

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

57

pessoalquantonodestinodahumanidade,amorque,atraves-sandotodaacontrariedade,convertetudoemúltimainstância,emalgobometodacontrariedadeembênção.

CONCLUSÃO

Husserl não só diagnostica a crise,mas apresenta a fe-nomenologia como método para superá-la. Com ela preten-deretornardomundoartificialeabstratodoobjetivismocientíficoaomundodavida, buscandoo saber fundamentalno campodasexperiências pré-científicas e originárias. Pretende restituiro sentidooriginárioàs ciênciasapartirda “função fundante”do“mundodavida”,queéoproblemaanterioreuniversalparatodasasciências.Afenomenologiapropõe-seserummétodonoqualtodoo conhecimento se constrói em referência à subjetividade.Destaformaafenomenologiaentende-senafunçãode“filosofiaprimei-ra”,paradigmadetodoosaber,quetendosentidoemsimes-ma o confere às demais ciências. Tematiza a subjetividadetranscendentalenquantoorigemeraizdetodaaintencionalidadeesentido,poisaciênciaéumprodutohumanoquepartedeumaintuição pertencente ao mundo da vida, fundamento últimodasciências.

Afenomenologiaassume,pois,atarefadeumfilosofarra-dicalcomonovocomeçoabsoluto:

“O maior perigo que ameaça a Europa é o cansaço. Lutemos contra este perigo como bons europeus com aquela valentia que não se rende nem ante uma luta infinita. Então ressuscitará do incêndio destruidor da incredulidade, do fogo no qual se consome toda a esperança na missão humana do Ocidente, das cinzas do enorme cansaço, a fênix de uma nova interioridade de vida e de espiritua-lização, como garantia de um futuro humano grande e duradouro, pois só o espírito é imortal”.

58

URBANO ZILLES

REFERÊNCIAS

CAPALBO,Creusaeoutros.Fenomenologia e hermenêutica. Rio de Janeiro:ÂmbitoCultural,1983.DARTIGUES,Andre.Oqueéafenomenologia?RiodeJaneiro:El-dorado,1973.FINK,Eugen.De la phénoménologie. Paris:Minuit,1974.FRAGATA,Júlio.A fenomenologia de Husserl como fundamenlo da filosofia. Braga:LivrariaCruzi/Fac.deFilosofia,1985.GÓMES-HERAS,JoséM.G.El apriori del mundo de la vida. Bar-celona:Anthropos,1989.GOMEZ-ROMERO, Isidro.Husserl y la crisis de la razón. 2. ed. Madri:Cincel,1991.HUSSERL,Edmund.Die Krisis der europäischen Wissenschafien und die transzendentale Phänomenologie. Haia:MartinusNijhoff,1976(Husserliana.v.6).______. La crise de I ‘humanité européene et la philosophic. 2. ed. Paris:Aubier,1987._______. Ideas relativas a una fenotnenologia pura y una filosofia fenomenologica. 3.ed.México:FondodeCulturaEconomica,1986._______. Meditações cartesianas. Porto:Rés,s.d._______. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa:Edições70,1986._______. Conferências de Paris. Lisboa:Edições70,1992._______. A filosofia como ciência de rigor. Coimbra:Atlântida,1965.LERNER,RosemaryR.P.de(Ed.).El pensantiento de Husserl en la reflexión filosófica contemporânea. Lima:InstituteRiva-Agüero,1993.LANDGREBE,Ludwig.El comma de la fenomenologia. Buenos Aires:Sudamerica,1968.LAUER,Q.La phénoménologie de Husserl. Paris:P.U.F.,1955.LÉVINAS,Emmanuel.En découvrant I ‘existence avec Husserl et Heidegger. Paris:Vrin,1974.LYOTARD, Jean-Francois.A fenomenologia. Lisboa: Edições 70,s.d.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

59

RIBEIRODEMOURA,CarlosA.Crítica da razão na fenomenolo-gia. SãoPaulo:EDUSP,1989.SANMARTIN,Javier.La fenomenologia de Husserl como utopia de la razón. Barcelona:Anthropos,1987.STROKER,Elisabeth.Husserls transzendentale Phänomenologie. Frankfurt:VittorioKlostermann,1987.

61

EDMUND HUSSERL

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA*1

*O textoA crise da humanidade europeia e a filosofia temdiversas versões.NoArquivoHusserldeLovainahádoistextosdatilografadosdeE.Fink.NaHusserlianaVI(p.314-348)foipublicadaaversãoa),queaémaisamplaqueab).Nóstraduzimosotextob),publicadona edição bilíngue (alemão e francês) por PaulRicoeur sob o títuloLa crise de l’humanité européenne et la philosophia (Paris:Aubier,1987,2.ed.).

62

URBANO ZILLES

INesta conferência quero ousar a tentativa de suscitar um

novointeresseparaotãofrequentementetratadotemadacriseeuropeia,desenvolvendoaideiahistórico-filosófica(ouosentidote-leológico)dahumanidadeeuropeia.Aoexporafunçãoessencialque,nestesentido,temaexercerafilosofiaesuasramificações,quesãonossasciências,acriseeuropeiatambémganharáumanovaelucidação.

Partamosdealgobemconhecido,dadiferençaentreame-dicina científico-natural e a chamada “medicinanaturalista”.Enquantoestaseoriginanavidacomumdopovo,daempiriae tradição ingênuas,amedicinacientífico-naturalnascedoapro-veitamentodeconhecimentosdeciênciaspuramenteteóricas,dasciênciasdocorpohumano,emprimeirolugardaanatomiaedafisiologia.Masestas,porsuavez,baseiam-senasciênciasfunda-mentais,universalmenteexplicatórias,danaturezaemgeral,nafísicaenaquímica.

Voltemos agoranosso olhar da corporeidadehumanapara aespiritualidadehumana,paraaschamadasciênciasdoespírito.Nelasointeresseteóricodirige-seexclusivamenteaoshomenscomopessoaseparasuavidaeagirpessoais.Vidapessoaléumviveremcomunidade,comoeuenós,dentrodeumhorizontecomu-nitário.Eprecisamenteemcomunidadesdediferentesestrutu-ras,simplesoucomplexas,taiscomofamília,naçãoesupernação.Apalavravida aquinãotemsentidoumavidacujaatividadepos-suifins,quecriaformasespirituais:vidacriadoradecultura,emsentidomaisamplo,numaunidadehistórica.Tudoissoétemadasdiversas ciências do espírito. Evidentemente há diferença en-treprosperarvigorosamenteedegenerar,ou,comotambémsepoderiadizer,entresaúdeedoença,tambémparaascomunida-des,ospovos,osestados.Surge,pois,semdificuldade,apergunta:

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

63

Comoseexplicaque,nesteplano,nuncasechegouaumamedi-cina científica, a umamedicina dasnações e das comunidadessupranacionais?Asnaçõeseuropeiasestãoenfermas.Diz-sequeaprópriaEuropaestáemumacrise.Nãofaltamoscurandeiros.Estamossubmersosnumverdadeirodilúviodepropostasingênuaseexaltadasdereforma.Masporqueaquiasciênciasdoespírito,tão ricamente desenvolvidas, não prestam o serviço que asciênciasdanaturezacumpremexcelentementeemsuaesfera?

Aqueles que estão familiarizados como espírito das ciênciasmodernaspoderãorespondersemdificuldade:agrandezadasciênciasdanaturezaconsisteemelasnãoseconformaremcomumaempiriasensívelporque,paraelas,todaadescriçãodana-tureza só éumapassagemmetódicapara a explicação exata,emúltimo lugar, físico-químico.Osmesmosopinamqueasciên-cias“meramentedescritivas”nosprendemàsfinitudesdomundocircundanteterreno.Masaciênciadanaturezamatemático-exataabrange,comseumétodo,asinfinitudesemsuasefetividades(in ihrer Wirklichkeiten) e possibilidades reais (und realen Mögli-chkeiten). Entendeo sensivelmentedado comomero fenôme-nosubjetivamenterelativoeensinaainvestigaroselementoseasleisdamesmanaturezasuprassubjetiva(anatureza“objetiva”)comaproximação sistemáticanaquiloque temdeabsolutamenteuniversal.Aomesmotempoensinaaexplicartodasasconcreçõessensivelmentedadas,sejamhomens,sejamanimais“ou”corposce-lestesapartirdoexistente,emúltimainstância,asaber,anteci-pando,apartirdosrespectivos fenômenosfaticamentedados,asfuturaspossibilidadeseprobabilidades,emumaextensãoecomumaprecisãoqueexcedetodaaempiriasensivelmentedetermi-nada.Oresultadododesenvolvimentodasciênciasexatastemsidoumaverdadeirarevoluçãonadominaçãotécnicadanatureza.

Infelizmente émuito diferente, por razões internas, a si-tuaçãometodológicanasciênciasdoespírito.Aordemdoespíritohumanoestábaseadanaphysis humana;todaavidapsíqui-

64

URBANO ZILLES

ca individual humana está fundada na corporeidade, por con-seguinte, também toda a comunidade, nos corpos dos homensindividuais que são membros desta comunidade. Se, pois, sequiser tornar possível, para os fenômenos científico-espirituais,umaexplicaçãorealmenteexatae,emconsequência,umapráxiscientíficatãoabrangentecomonaesferadanatureza,entãooshomensdaciênciadoespíritonãodeveriamsóconsideraroespíri-to,masretornaraosuportematerialeelaborarsuasexplicaçõespormeioda físicaedaquímicaexatas.Mas tal intento fracassa(enadamudaránissonumfuturopróximo)diantedacompli-caçãodanecessáriainvestigaçãopsicofísicaexata,jáemvistadohomemindividualemaisaindacomrespeitoàsgrandescomunida-deshistóricas.Seomundo fosseumedifíciodedoisandaresderealidades–naturezaeespírito–comigualdadededireito,nenhumadependentemetodológicaeobjetivamenteemrelaçãoaoutra,entãoasituaçãoseriadiferente.Massóanaturezapodesertratadacomomundofechadoporsi,sóaciênciadanaturezapode,cominquebrantadaconsequência,abstrairdetodooespiri-tualeinvestigaranaturezapuramentecomonaturezaeelaéosuportecausaldoespírito.Compreende-se,assim,queoespecia-listadasciênciasdoespírito,queseinteressapuramentepeloespiritual como tal,nãoultrapasseumahistóriado espírito;ficapreso às realidades finitas de ordem intuitiva. Cada exem-ploatesta:éimpossívelfazerabstraçãodemaneiracoerentedoelemento corporal, se se quiser cercar teoricamente, demaneiraanálogacomonanatureza,ummundoconcretofechado,ummundopurodoespírito.Porexemplo,umhistoriadornãopodetratardahistóriadaGréciaantigasemconsiderarsuageografiafísica,suaarquitetura,esemconsiderar,outrossim,oaspectomaterialdosedifíciosetc.Tudoissoparececlaro.

Mas, se todo omododepensar, que semanifesta em tal in-terpretação, estivesse baseado empré-juízos funestos e por suasrepercussõesfossecorresponsávelpelaenfermidadeeuropeia?

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

65

Comefeito,estaéaminhaconvicçãoeaindaveremosqueaquihátambémumafonteessencialdacegueiradoscientistasmo-dernosparaapossibilidadedefundamentarumaciênciarigoro-saeuniversaldoespírito(eumaciênciaquenãosóconcorrecomaciênciadanatureza,masatéestáacimadela).

Édointeressedenossoproblema-Europapenetraraquiumpoucomaisedesarraigaraargumentaçãoàprimeiravistaconvin-cente.Ohistoriador,o investigadordoespíritoedaculturadetodaordem,encontra,porcerto,entreseusfenômenosconstante-mentetambémanaturezafísica,emnossoexemplo,anaturezadaGréciaantiga.Masestanaturezanãoéanaturezanosentidocientífico-natural,senãoaquiloqueosantigosgregosconsidera-vamcomonatureza,oquetinhampresentecomoomundocir-cundantedarealidadenatural.Demaneiramaiscompleta,omundocircundantehistóricodosgregosnãoéomundoobjetivo,emnossosentidoatual,massuarepresentaçãodomundo,istoé,suaconcepçãosubjetivadomundo,comtodasasrealidadesparaelesvigentesdestemundo,p.ex.,osdeuses,osdemônios,etc.

Mundocircundante(Umwelt) é umconceitoquetemseulu-gar exclusivamente na esfera espiritual. Que nós vivemos emnossorespectivomundocircundante,aoqualestãodirigidasto-dasasnossaspreocupaçõeseesforços,designaumfatoquesu-cedepuramentenoplanoespiritual.Nossocircum-mundoéumaformação espiritual (ein geistiges Gebilde) em nós e em nossavidahistórica.Paraquemtomaoespíritocomoespírito,nãoen-contraaquinenhumarazãoparaexigiroutraexplicaçãoquenãosejaapuramenteespiritual.Assimpode-seafirmar,demaneirageral:éumabsurdoconsideraranaturezadomundocircundan-tecomoalgoporsialheioaoespíritoeentãoquererfundamen-tar, em consequência, a ciência do espírito sobre a ciência danaturezaefazê-la,assim,pretensamenteexata.

66

URBANO ZILLES

Evidentementeesqueceu-seporcompletodequeaciênciadanatureza (como toda ciência em geral) designa uma atividadehumana(menschliche Leistungen), asaber,adoscientistasquecooperamentresi;sobesteaspecto,pertence,comotodososproces-sosespirituais,aocírculodosfatosquedevemserexplicadospelasciênciasdoespírito.Masnãoéabsurdoenãoconstituiumcírculoquererexplicardeummodocientífico-naturalosucessohistórico“ciênciadanatureza”,recorrendoàprópriaciênciadanaturezaeexplicando através de leis naturais que, como criação espiritual,pertencemelasmesmas,aoproblemaaresolver?

Ofuscadospelonaturalismo(emboraocombatamverbal-mente),oscientistasdoespíritotêmdescuidadocompletamenteaté a colocaçãodoproblemadeuma ciênciapura euniversal doespírito, indagandoporumaciênciaeidética(Wesenslehre) do es-píritopuramente comoespírito,que investigueoselementoseasleisabsolutamenteuniversaisqueregemaespiritualidade,comofimdeobterexplicaçõescientíficasemsentidoabsoluta-menteconclusivo.

Asreflexõesdedicadasatéaquiàfilosofiadoespíritooferecem--nosaperspectivaadequada(rechte Einstellung) paratratarotemadasituaçãoespiritualdaEuropacomoumproblemadeumaciênciapuradoespírito(rein geisteswissenschaftliches Problem), ouseja,primeiroemseuaspectodeumahistóriadoespírito.Comojáfoidito,porantecipação,naspalavrasintrodutórias,estemétododevefazeraparecerumateleologiasingular,inata(angeborene) somenteànossaEuropa,ejustamenteemíntimarelaçãocomaorigemouairrupçãodafilosofiaedesuasramificações,asciências,nosentidodosantigosgregos.Desdejápressentimosquesetratarádeelu-cidarasrazõesmaisprofundasdaorigemdofunestonaturalismoe,finalmente,deverásedescobrirassimosentidoespecíficodacrisequeafetaahumanidadeeuropeia.

Colocamosa seguintequestão: o que caracterizaa estruturaespiritual(gestige Gestalt) daEuropa?PortantonãoaEuropacom-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

67

preendidageográficaoucartograficamentecomosesepretendessedelimitarocírculodoshomensquevivemjuntossobreomesmoterritório como sendo a humanidade europeia. Em sentido es-piritual,aEuropaenglobamanifestamenteosdomíniosingleses,osEE.UU.,etc.Trata-seaquideumaunidadedevida,deumaação,deumacriaçãodeordemespiritual,incluindotodososob-jetivos,osinteresses,aspreocupaçõeseosesforços,asobrasfeitascomuma intenção,as instituiçõeseas organizações.Nelas atu-amosindivíduosdentrodesociedadesmúltiplasdediferentesgrausde complexidade, em famílias, raças,nações, nasquaistodos parecem estar interior e espiritualmente vinculados unsaosoutrose,comodisse,naunidadedeumaestruturaespiritual.

Cadaestruturaespiritual,pornatureza,situa-senoespaçodahistóriauniversal,ouseja,temsuahistória.Seacompanharmos,pois,asrelaçõeshistóricas,partindo,comoénecessário,denósedenossasnações,acontinuidadehistóricanosconduzirásempremais longe, denação emnação, de épocas emépocas.Enfim,naAntiguidade, os romanos remetem-nos aos gregos, aos persaseaosegípcios,etc.Éevidenteque,nestecaminho,nãoháfim.Re-trocedemosaos temposprimitivos (Urzeit) enãopoderíamosdei-xarde considerara obranotável e rica em ideiasdeMenghin(A história universal da idade da pedra). Esteprocedimento(método)fazaparecerahumanidadecomoumaúnicavidadein-divíduos e povos, unida por relações somente espirituais, comumadiversidadedetiposdehumanidadeedecultura,masque,portransiçõesinsensíveis,seprendemunsaosoutros.Écomoummar,noqualoshomenseospovossãoasondasquesefor-mam,setransformamelogodesaparecem,encrespando-seumasdemaneiramaisricaecomplicadaeoutrasdemaneiramaisprimitiva.

Entretanto, num exame posterior mais rigoroso, voltadoparaointerior,percebemosnovasesingularesafinidadesenovasdiferençastípicas.Pormaishostilizadasqueasnaçõeseuropeias

68

URBANO ZILLES

estejamentresi,conservamumpeculiarparentescointeriornoplanoespiritual,queaspenetraatodasetranscendeasdife-rençasnacionais.Écomoumlaçoqueuneirmãosenosdá,nestaesfera,uma consciênciapátria (das Beiwusstsein einer Heimatli-chkeit). Istosaltaaosolhostãologoqueiramospenetrar,porexemplo,nahistóriadaÍndia,comsuamultidãodepovoseforma-çõesculturais.Nesteconjuntoexiste,porsuavez,aunidadedeumparentesco familiar,mas é incompreensivelmente estranho paranós.Porseulado,ospovosdaÍndianossentemcomoestranhosesóasientresicomoprocedentesdeumlugarcomum.Contudoagentenãosepodecontentarcomestadiferençadeessênciarela-tivizada,sobmuitosaspectos—entrecomunidadedeorigem(Hei-matlickeit) erelaçõesdeestranheza(Fremdheit), emborasejaumacategoria fundamental de toda a historicidade. A humanidadehistóricanãosearticulademaneirainvariáveldeacordocomestacategoria.IstosentimosprecisamenteemnossaEuropa.Nelaháalgumacoisasingular,quetambémtodososoutrosgruposdahumanidadepercebemcomoalgoque,prescindindodetodasasconsideraçõesdeutilidade,seconverteparaelesnummotivodemaior oumenor europeização, apesardavontade inquebran-táveldaautoconservaçãoespiritual,enquantonós,senoscom-preendemosretamente,jamais,p.ex.,nosindianizaremos.Creioquenóssentimos(eapesardetodaobscuridade,estesentimentoprovavelmentetemsuarazão)queànossahumanidadeeuropeiaestá inataumaentelequiaquedomina todasasmudançasdeformas europeias e lhe confere o sentido de uma evolução emdireçãoaumpoloeterno.Nãocomoseaquisetratasse deumadasconhecidasfinalidadesqueconferemseucaráteraoreinofísicodosseresorgânicos;ouseja,aquinãosetratadealgocomoumaevoluçãobiológicaque,apartirdeumaformaembrional,con-duz em graus sucessivos, até amaturidade, o envelhecimentoeamorte.Poressência,nãoháumazoologiadospovos.Estesconstituemunidadesdeordemespiritualquenãotêm—esobre-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

69

tudonãoatemasupranaçãoEuropa—nenhumaformamadura,jáalgumavezalcançadaejamaisalcançávelcomo forma.Ahu-manidade psíquica nunca foi acabada e nunca o será.O télos espiritualdahumanidadeeuropeia,noqualestácompreendidootélos particulardasnaçõessingularesedoshomens individuais,situa-senuminfinito,éumaideiainfinita,paraaqualtende,porassimdizer,ovir-a-serespiritualglobal.Àmedidaque,noprópriodesenvolvimento,setornaconscientecomotélos, torna-se tambémmetapráticadavontade(Willensziel), iniciandocomissoumanova formade evolução, colocada sobdireçãodenormaseideiasnormativas.

Tudoissonãopretendeserumainterpretaçãoespeculativadenossahistoricidade,masexpressãodeumpré-sentimentovivo, que emerge numa reflexão imparcial. Este pré-sentimentoserve-nosdeguiaintencional(intentionale Leitung) paradiscer-nir,nahistóriadaEuropa,relaçõessumamentesignificativas,emcujaperseguiçãoopré-sentidosetornacertezacontrolada.Opré-sentimentoé,emtodasasordensdedescoberta,odetector(Wegweiser) afetivo.

Vamosàexplicação.AEuropa(nãodesignaumaondapassa-geira,mas) temumnascimento preciso e um lugar de nasci-mento,naturalmenteespirituais.Encontra-seempessoasindi-viduaiscomomembrosdeumanaçãosingular.AEuropatemumlugardenascimento.Comissonãopensonumterritóriogeográfico,emboratambémtenhatal,masnolugarespiritualdenascimento,emumanação,ouemindivíduosougruposhumanosdestana-ção.TalnaçãoéaGréciaantigadoséculoVIIeVIa.C.Nelasur-geumanova atitude deindivíduosparacomomundocircundante.E,comoconsequência,irrompeumtipototalmentenovodecria-çõesespirituais,querapidamenteassumiuasproporçõesdeumaformaculturalbemdelimitada.Osgregoschamaram-nafilosofia.Corretamentetraduzido,conformeosentidooriginal,estetermoéumoutronomeparaaciênciauniversal,aciênciadatotalidade

70

URBANO ZILLES

domundo,daunidadetotaldetodooexistente.Bemdepressacomeçaointeressepelouniversoecomeleaindagaçãopelodevirqueenglobatodasascoisasepelosernodevir,especifica-sesegun-doasformaseregiõesgeraisdosere,destamaneira,afilosofia,aciênciauna,seramificaemmúltiplasciênciasparticulares.

Nairrupçãodafilosofiatomadanestesentido, incluindonelatodasasciências,porparadoxalquepareça,vejoofenômenoorigi-nal (Urphänomen) quecaracterizaaEuropasoboaspectoespiritu-al.Medianteasexplicaçõesmaisdetalhadas,apesardesuaine-vitávelbrevidade,logoserádissipadaaaparênciadoparadoxo.

Aspalavrasfilosofiae ciênciadesignamumaclasseespecialdecriaçõesculturais(Kulturgebilde). Omovimentohistórico,quetemporestiloaformasupranacional,quechamamosEuropa,tendeparaumaestruturanormativasituadanoinfinito,masquenãosepodeconstataratravésdeumameraobservaçãoconsiderandosomenteaevoluçãodeformassucessivas.Opermanenteestar-dirigidoaumanormaéineren-teàvidaintencionaldepessoassingulares,eapartirdaídenaçõesedesuassociedadesparticularese,finalmente,doorganismodasnaçõesunidasdaEuropa.Semdúvida,nemtodasaspessoasestãodirigidasparaestanorma:naspersonalidadesdeelite(estaorientação)nãoestáplenamentedesenvolvida,masencontra-senumprocessonecessárioeconstantedepropagação.Aomesmotempo,esseprocessosignificaumatransformaçãoprogressivadetodaahumanidadeapartirdafor-maçãodeideias,queadquiremeficáciaemcírculospequenosemuitoreduzidos.Ideias,formassignificativasnascidasempessoassingularescomamaravilhosamaneiranovadeabrigaremsiinfinitudesintencio-nais,nãosãocomoascoisasreaisnoespaço,quenãomudamoprópriohomem,queseinteressaounãoporelas.Pelofatodeconceberideias,ohomemsetornaumhomemnovo,que,vivendonafinitude,seorientaparaopolodoinfinito.Tudoissotornar-se-ácompreensível,quandovoltarmosàsorigenshistóricasdahumanidadeeuropeiaediscernir-mosonovotipodehistoricidadequeadestacasobreofundodahistóriauniversal.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

71

Paracomeçar,esclareçamosprimeiroanotávelpeculiaridadedafilosofia,ramificadaemciênciassistemáticas,contrastando-ascomou-trasformasculturaisjáexistentesnahumanidadepré-científica,comooartesanato,aagriculturaeocultivodocomércio,etc.Todaselasde-signamclassesdeprodutosculturais,commétodosadequadosparaas-seguraramelhorprodução(Erzeugung). Deresto,essesprodutostêmexistênciatransitórianomundocircundante.Aocontrário,asaquisi-çõescientíficas,depoisdeadquiridoométodoeficazdeproduçãoparaelas,têmummododesereumatemporalidadetotalmentediferentes.Nãoseconsomem,nãoperecem.Umaproduçãoreiteradanãocriacoi-sasidênticas,quandomuitocoisasigualmenteutilizáveis.Umnúmeroqualquerdeoperaçõesdamesmapessoaedeumnúmeroqualquerdepessoasproduzidenticamenteomesmo,idênticosegundoosentidoeavalidade.Pessoasligadasentresiemcompreensãorecíprocaatu-alnãopodemsenãoexperimentaroproduzidoemigualformapelosrespectivoscompanheiroscomoidenticamenteomesmocomaprópriaprodução.Numapalavra:oqueaatividade (Tun) científicaadquire(envirbt) nãoéalgoreal,masideal;mais ainda, oqueassiméadqui-rido,comseuvaloresuaverdade,torna-seamatériaparaapossívelcriaçãodeidealidadesdenívelsuperioreassimpordiante.Dopontodevistateórico,cadadegrauatingidotorna-seumtermopuramenterelativo,umapassagemtransitóriaemdireçãoafinssemprenovosdedegraus,sempremaiselevados,conformeumprocessoprevistoparaoinfinito;essafinalidadeconstituiumatarefainfinitaquesuscitaoes-forçoteóricodaconsciência.Aciênciadesigna,pois,aideiadeumainfi-nitudedetarefas.Acadainstante,umapartelimitadadessastarefaséexecutadae,aomesmotempo,estaconstituiofundodepremissasparaumnovohorizonteinfinitodetarefascomounidadedeumatarefain-finita.Antesdafilosofia,nohorizontehistórico,nenhumaoutraformaculturaléculturacomparáveldeideias,nemconhecetarefasinfinitasetaisidealidades,cujosmétodosdeproduçãopossuemelesmesmosapropriedadeidealdepoderemserrepetidosaoinfinitoesuperamtodasasinfinitudesdepessoasreaisoupossíveis.

72

URBANO ZILLES

Aculturaextracientífica,queaciênciaaindanão tocou,éuma tarefa e uma atividade do homemna finitude.O horizonteabertoeinfinito,noqualvive,nãoestáfechado;osfinsquevisaeasobrasquerealiza,seucomércioesuasmodificações,suamoti-vaçãopessoal,coletiva,nacionalemítica,tudosemovenummundo circundante que pode ser abrangido comum olhar fi-nito. Aí não há tarefas infinitas, nem aquisições ideais cujainfinitudesejaelamesmaocampodeaçãodohomeme lheapresenteascaracterísticasdetalcampodetrabalho.

Aocontrário,asideias,osideaisdetodogênero,entendidosnoespíritoque,pelaprimeiravez,encontrouumsentidonafiloso-fia,carregamtodosemsimesmooinfinito.Paranósaindaexis-tem,foradaesferafilosófico-científica,muitosideaisefinitudesquesóadquiriramocaráterdeinfinitude,detarefasinfinitas,pelatransformaçãodahumanidadeatravésdafilosofia.Acultura,sobaideiadainfinitude,significaumarevoluçãodoconceitodecul-tura,umarevoluçãodetodoomododeserdahumanidadecomocriadoradecultura.Significa,outrossim,umarevoluçãodahisto-ricidade,quedehistóriadahumanidadefinitapassouaserumahumanidadecapazdetarefasinfinitas.Estamudançaprimeiroseproduziunopequenocírculodosfilósofosedaprópriafilosofia.

Aquigostariaderesponderaumaobjeção,quelogosecolo-ca,dequeafilosofia,aciênciadosgregos,nãoéumacriaçãoespe-cíficasua,queelesapenasadifundiramnomundo.Elesmes-mossereferemaossábiosegípcios,babilônios,etc.eefetivamenteaprenderam muito daqueles. Hoje possuímos numerosos traba-lhos sobre a filosofia indiana, chinesa, etc. filosofias que demodoalgumsãosemelhantesàqueladosgregos.Portanto,nãose deve querer suprimir as diferenças de princípio e ignorar omaisessencial.Amaneiradecolocarmetase,consequentemente,osentidodosresultadoséfundamentalmentediferente.Sóafi-losofiagregaconduz,atravésdeumdesenvolvimentopróprio,aumaciênciaemformadeteoriasinfinitas,dentrodaquala

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

73

geometriagrega,durantemilênios,foiumexemploemodelo.Amatemática—aideiado infinito,dastarefas infinitas—é comoumatorrebabilônica,que,apesardeseuinacabamento,permane-ceumatarefacheiadesentido,abertaaoinfinito;esteinfinitotemporcorrelatoohomemnovo,demetasinfinitas.

Masanovahumanidadedemetasinfinitasprimeirosóapa-receemfilósofossingularesnomeiodeumuniversoqueconservasuaformaantiga.Prometeutrazologos divinoaalgunsindivídu-os isolados que levamavante a tarefado espírito quealgumdiailuminaráetransformarátodoouniversohumano.Apelaremosa algummilagre?Naturalmente todo o conhecimentohistóriconovo tem suamotivação e é uma tarefa especial a de esclarecercomoseoriginouaqueletipodehumanidadegreganosséculosVIIeVIa.C.,nocontatocomasnaçõesvizinhasecomasculturasnacionais,comoseproduziuaquelagrandemudançadeatitudequeconduziuaofamosothailincitzein, queosmestresdoprimei-roperíododeapogeudafilosofia,PlatãoeAristóteles,consideramaorigemdafilosofia.

Naverdade,sóentreosgregosrealiza-se,nohomemdafi-nitude,umamudançaradicaldeatitudeparacomomundocir-cundante,atitudenaqualreconhecermosumpurointeressepeloconhecimentoe,porantecipação,designamosuminteressepura-menteteórico.Nãosetratademeracuriosidadedesviadadaseriedadedavida,comsuapreocupaçãoeesforço,quevemaserpurointeressecasualpelopuroesimplesSerepeloSer-assim(So--Sein) dosdadosdomundocircundanteemesmodetodoocircum--mundovital(Lebenslanwelt). Esteinteresseéessencialmenteanálogoaosinteressesprofissionaiseàsatitudesprofissionaisquesuscita.Emrelaçãoatodososoutrosinteresses,temocará-terdeuminteresseabsolutamentenãopráticoequeenvolvetodoouniverso.Ohomemdispõeantecipadamentesobretodaavidavoluntáriafuturaetraça,emconsequência,ohorizontequeconscientementeseráseucampodetrabalho.Apodera-se,

74

URBANO ZILLES

pois,dohomemapaixãoporumconhecimentoquetranscendetodapráxisnaturaldavidacomseusesforçosesuaspreocupaçõesdiárias e transforma o filósofo em espectador desinteressado,emumcontempladordomundo.

Nestaatitude,ohomemcontemplaprimeiroadiversidadedasnações,aprópriaeasoutras,cadaqualcomseumundocircun-dantepróprio,envolvendosuastradições,seusdeuses,seusdemô-nios,suaspotênciasmíticas,considerandocadanaçãoestemundosimplesmenteevidenteereal.Nestesurpreendentecontrastesurgeadiferençaentrearepresentaçãodomundoeomundorealeanovaperguntapelaverdade;nãopelaverdadecotidia-na, vinculada à tradição,mas pela verdade unitária, universal-menteválidaparatodosaquelesquenãomaisestejamofus-cadospelatradição,umaverdadeemsi.Epróprio,pois,daatitudeteóricadofilósofoadecisãoconstanteepredeterminadadecon-sagrartodaasuavidafuturaàtarefadateoria, adarasuavidaumcaráteruniversal,eaconstruir in infinitum conhecimentoteóricosobreconhecimentoteórico.

Desse modo nasce em algumas personalidades isoladas,comoTales,etc.umanovahumanidade;sãohomensque,criandoavidafilosófica,afilosofia,são,porprofissãocriadoresdeumaformaculturaldenovogênero.Écompreensívelque,emsegui-da,surjaumacorrespondentenovarelaçãodeconvivênciacomuni-tária.Essasformaçõesideaisdateoria, graçasaumacompreensãoecriaçãorenovadas,deimediatotornam-seobjetodeumamorcomume deumaadoção comum.Conduzem, semmais,aotrabalhoemcomum,àcolaboraçãomútuaatravésdacrítica.Tambémosque estãode fora, osnãofilósofos, voltamse aten-tos a este trabalho insólito. Por sua vez, se o compreendem,convertem-setambémelesemfilósofos;seestãomuitoabsorvidosporsuaprofissão,tomam-seaprendizes.Dessemodoafilosofiasepropagadeduplamaneira,comoumacrescentecomunidadeprofis-sionaldosfilósofosecomoummovimentocomunitáriocrescente

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

75

dedicadoàeducação.Masaquiseoriginaafataldivisãointeriordaunidadedopovoemgentecultaeinculta.Evidentementeestatendênciadepropagaçãonãotemseuslimitesnanaçãopátria.Aocontráriode todasasoutrasobrasculturais,elanãoéummovimento de interesse vinculado ao solo da tradiçãonacional.Tambémosestrangeirosiniciam-senosabereparticipam,emge-ral,dapoderosatransformaçãoculturalqueirradiadafilosofia.Éprecisamenteistoquesedevecaracterizarmelhor.

Dafilosofia,quesepropagasobaformadeinvestigaçãoedeaçãoeducativa,parteumduploefeitoespiritual.Porumlado,omaisessencialdaatitudeteóricadohomemquefilosofaéapecu-liaruniversalidadedaposturacrítica,decididaanãoadmitir,sem questionar, nenhuma opinião aceita, nenhuma tradição,masquestionartodoouniversotradicionalpré-dadoporsuaverdadeemsi,porsuaidealidade.Masissonãoéapenasumanovaposturadeconhecimento.Emvirtudedaexigênciadesubmetertoda a empiria a normas ideais, as da verdade incondicional,aparece,deimediato,umamudançadegrandealcanceemtodaapráxisdaexistênciahumana,portanto,detodaavidacultural.Estajánãosedeveregerpelaingênuaempiriacotidianaepelatradição,maspelaverdadeobjetiva.Dessamaneira,averdadeidealconverte-seemumvalorabsolutoquetrazconsigoumaprá-xis universalmente transformada nomovimento de formaçãocultural e sua constante repercussãona educação dos jovens.Seconsiderarmosmaisatentamenteaíndoledestatransformação,compreenderemosimediatamenteoqueéinevitável:seaideiageraldeverdadeemsiseconverteemnormauniversaldetodasas realidades ede todasas verdades relativas, queaparecemnavidahumana,issoafetatambémtodasasnormastradicio-nais,asdodireito,dabeleza,dafinalidade,dosvaloreshumanosdominantes,valoresdecaráterpessoal.

Surge,assim,umahumanidadeespecialeumaprofissãoespe-cialcomanovacriação(Leistung) deumacultura.Oconhecimen-

76

URBANO ZILLES

tofilosóficodomundooriginanãosóessesresultadosespeciais,masumcomportamentoquerepercutedeimediatoemtodoorestodavidaprática,comtodososseusfinsesuaatividade,ouseja,osfinsdatradiçãohistórica,naqualsomosengendradosedaíadquiremseuvalor.Forma-seumacomunidadenovaeespi-ritual (innige), poderíamosdizer,umacomunidadepuradeinte-ressesideaisentreoshomensquesededicamàfilosofia,unidosnadedicaçãoàsideiasquenãosósãoúteisparatodos,massãoiden-ticamentepatrimôniodetodos.Constitui-se,necessariamente,umacomunidadedetipoespecial,naqualcadaumtrabalhacomooutroepelooutro,exercendoumacríticaconstrutivaembenefíciomútuo,enaqualsecultivamosvalorespuroseincondicionaisdaverdadecomoumbemcomum.Aissoseacrescentaatendênciane-cessáriadatransmissãodessetipodeinteresse,fazendoqueoutroscompreendamo que se quis e obteve e a tendência de incorpo-rarpessoassemprenovas,aindanãofilósofos,nacomunidadedosquefilosofam.Issoprimeiramenteocorredentrodapróprianação.Apropagaçãonãopodeobterêxito,seserestringeàinvestigaçãocientíficaprofissional,masocorreparaalémdocírculodeprofissio-naiscomomovimentodeeducaçãocultural.

Oqueocorreseestemovimentoculturalseestendeacírcu-losdopovocadavezmaisamplose,naturalmente,aosdirigentessuperioresmenosabsorvidoscomapreocupaçãodavida?Éevi-dentequenãoseproduzsimplesmenteumatransformaçãohomo-gêneadavidanoquadrodoEstadonacional,maséprovávelqueoriginegrandestensõesinternas,quelevamestavidaeoconjuntodaculturanacionalaumestadosubversivo.Combater-se-ãoentresiosconservadoressatisfeitoscomatradiçãoeocírculodosfilóso-fosnumalutaque,certamente,setravaránaesferadopoderpolítico.Jánaauroradafilosofiacomeçaaperseguição,odesprezodosfilósofos.E,apesardisso,as ideiassãomais fortesquetodasasforçasempíricas.Deve-selevaremcontatambémqueafilosofiasurgedeumaatitudecríticauniversalcontratudotradicionalmen-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

77

tepreestabelecidoenãoédetidaemsuapropagaçãopelasbar-reirasnacionais.Sóqueacapacidadeparaumaatitudecríticauni-versalque,naverdade,tambémtemseuspressupostos, jádeveestarpresenteaumcertoestadodaculturapré-científica.Dessemodo,asubversãodaculturanacionalpodeestender-se,primeiro,namedidaemqueaciênciauniversal,elamesmaemviasdepro-gresso,setornaumbemcomumparaasnaçõesinicialmenteestra-nhasumasàsoutras,eaunidadedeumacomunidadecientíficaeculturalpenetraamaioriadasnações.

Aindadevemosacrescentaralgoimportantenoqueserefereàatitudedafilosofiaparacomastradições.Devem-seconsiderarduaspossibilidades:ouosvalorestradicionaissãototalmenterejeitadosouseassumeseuconteúdoaumnívelfilosóficoe,assim,recebe-seumaformanovanoespíritodaidealidadefilosófica.Umcasosingularéodareligião.Aquiquerodeixardeladoas“religiõespoliteístas”.Osdeusesnoplural,aspotênciasmíticasdetodaíndole,sãoobjetosdomundocircundantedamesmarealidadequeoanimalouohomem.NanoçãodeDeuséessencialosingular.Vistodoladohumano,im-plicaquesuaqualidadedeseredevalorsejaexperimentadapelohomemcomovínculointeriorabsoluto.Eaquifacilmenteseconfundeesseabsolutocomaqueledaidealidadefilosófica.Noprocessogeraldeidealizaçãoqueprocededafilosofia,Deus,porassimdizer,élogici-zadoeinclusivetorna-seportadordologos absoluto.Estouinclinadoaver,alémdisso,ológicojánofatodequeareligiãoseapoiateologi-camentenaevidênciadafécomoumamaneirasingulareprofundadefundamentaçãodoverdadeiroser.Masosdeusesnacionaisestãoaíinquestionavelmentecomofatosreaisdomundocircundante.An-tesdafilosofianãoseformulamperguntasgnosiológico-críticas,nemquestõesdeevidência.

Agorajádelineamos,noessencial,aindaqueesquematicamen-te,amotivaçãohistórica,quetornacompreensívelcomo,apartirde alguns homens isolados na Grécia, pode se desenvolver umatransformaçãodaexistênciahumanaedetodaasuavidacultural,

78

URBANO ZILLES

primeiroemsuapróprianaçãoedepoisnasnaçõesmaispróximas.Mas,aomesmotempo,tambémsepodevercomopodesurgirumasupranacionalidadedeíndoletotalmentenova.Refiro-me,natural-mente,àestruturaespiritualdaEuropa.Jánãosetratadesimplesjustaposiçãodediferentesnações,quesó influenciamumasàsoutraspelafiliação,pelocomércioounoscamposdebatalha,masumnovoespíritodelivrecríticaedenormasorientadasparatare-fasinfinitas,oriundasdafilosofiaedasciênciasparticularesdeladependentes,governaahumanidadeecriaideaisnovoseinfinitos.Existemtaisparaoshomensindividuaisdentrodesuasnaçõeseparaasprópriasnações.Enfim,existemtambémideaisinfinitosparaasíntesecadavezmaisampladasnações,naqualcadaumadelas,precisamente,por tender,noespíritoda infinitude,aoseupróprioideal,dáomelhordesiàsnaçõesaelaassociadas.Nestedarerecebereleva-seatotalidadesupranacionalcomtodaasuahierarquiadeestruturassociais;oespírito,queahabita,nascedeumatarefainfinita,queelamesmaarticulasuperabundanteemmúltiplos infinitos,permanecendo,única.Nesta sociedadetotal,regidapeloideal,afilosofiaelamesmaconservasuafunçãodirigenteesuapeculiartarefainfinita;afunçãodereflexãolivre,universal, teórica que abrange igualmente todos os ideais e oidealtotal,portantoosistemadetodasasnormas.Afilosofiadeve-ráexercer,constantemente,noseiodahumanidadeeuropeia,suafunçãodiretriz(die archontische) sobretodaahumanidade.

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

79

IIMasagoradevemosprestaratençãoaosmalentendidoseescrú-

pulosquesenutremdaformasugestivadospré-juízosdamodaedesuasfraseologias.

Oqueaquifoiexpostonãoéumatentativamuipoucooportunadereabilitar,emnossotempo,ahonradoracionalismo,doiluminismo(Aufklärerei), dointelectualismoperdidoemteoriasalheiasaomundoreal,comsuasconsequênciasinevitavelmentedesastrosas,damaniadaculturavazia,doesnobismointelectualista?Nãosignificaissoque-rerretomaràquelailusãofataldequeaciênciatornaohomemsábio,dequeéchamadaacriarumahumanidadeautêntica,senhoradeseudestino?Quemaindalevaráasériotaispensamentoshoje?

Talopiniãocertamentetemumgrãozinhodeverdadeesejustifi-caparcialmenteparaafasededesenvolvimentoeuropeudoséculo17aoséculo19.Masnãoatingeosentidoprópriodeminhainterpretação.Parece-mequeeu,opretensoreacionário,soumaisradicalemaisre-volucionárioqueaquelesquehojesemanifestamtãoradicaisemsuaspalavras.

Tambémeuestouconvencidodequeacriseeuropeiasearraigaemumaaberraçãodoracionalismo.Masistonãomeautorizaacrerquea racionalidade como tal éprejudicial ouquena totalidadedaexistênciahumanasópossuaumsignificadosubalterno.Certamen-tearacionalidadenaquelesentidoelevadoeautêntico(esófalamosdeste),nosentidooriginárioquelhederamosgregosequeseconver-teuemidealdoperíodoclássicodafilosofiagrega,necessitavatodaviademuitasreflexõesesclarecedoras,maselaéachamadaadirigir,demodoseguro,odesenvolvimentodahumanidade.Deoutraparte,con-cedemosdebomgrado(enistooidealismoalemãojánosprecedeuhámuito)queaformaevolutivaquetomouaratio comoracionalismodoperíododoiluminismo(Aufklärung) foiumaaberração,emboraumaaberraçãocompreensível.

80

URBANO ZILLES

Razãoéumtítulomuitoamplo.Ohomem,segundoaboaevelha definição, é o ser vivente racional, e neste sentido amplotambémopápuaéumhomemenãoumanimal.Tambémeleper-segueseusfinseprocedereflexivamente,submetendoaspossibi-lidadespráticasàreflexão.Asobraseosmétodos,namedidaemquesedesenvolvem,formamatradiçãoesempredenovopodemsercompreendidosemsuaracionalidade.Mascomoohomem,einclusive o pápua, representa um novo estádio zoológico frenteaoanimal,assimtambémarazãofilosóficarepresentaumnovoestádionahumanidadeeemsuarazão.Masoestádiodaexistên-ciahumanaedasnormasideaisparatarefasinfinitas,oestádiodaexistênciasub specie aeterni, sóépossívelnauniversalidadeabsoluta, precisamente na universalidade compreendida, desdeoprincípio,na ideiadefilosofia.Afilosofiauniversal comtodasasciênciasparticulares,constitui,porcerto,umaspectoparcialdaculturaeuropeia.Mastodaaminhainterpretaçãoimplicaqueestaparteexerce,porassimdizer,opapeldecérebro,decujofun-cionamentonormaldependeaverdadeirasaúdeespiritualdaEu-ropa.Ohumanodahumanidadesuperiorouarazãoexige,pois,umafilosofiaautêntica.

Eaquiresideoperigo.Aodizer“filosofia”devemosdistinguirentreafilosofiacomofatohistóricodeumarespectivaépocaeafilosofiacomoideiadeumatarefainfinita.Afilosofiaefetivaemcada casohistoricamente real é o intento,mais oumenos suce-dido,de realizara ideia condutorada infinitudee, com isso,doconjuntototaldasverdades.Ideaispráticos,intuídoscomopoloseternos,dosquaisninguémsepodeafastaremtodaasuavidasemarrependimento,semtornar-seinfielasimesmoe,comisso,infeliz,demaneiraalgumanameraintuiçãojásãoclarosepreci-sos,masseantecipamnumageneralidadevaga.Suadetermina-çãosomenteemergenoagirconcretoenoêxito,aomenosrelativo,doproceder.Porissocorremoconstanteperigodeserematraiçoa-dosporinterpretaçõesunilateraisquesatisfazemprematuramen-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

81

te;masasançãovememformadecontraçõessubsequentes.Daío contraste entreasgrandespretensõesdos sistemasfilosóficosque,semdúvida,sãoincompatíveisentresi.Aissoseacrescentaanecessidade,etambémoperigo,daespecialização.

Assim,porcerto,podeumaracionalidadeunilateralviraserummal.Istotambémsepodeexpressardeoutraforma:pertenceàessênciadarazãoqueosfilósofossomentepodemcompreendere elaborar sua tarefa infinita primeiramente numa unilaterali-dade absolutamente inevitável.Nisso, emprincípio, nãoháne-nhumabsurdo,nenhumerro;mas,comojádisse,ocaminhoque,paraeles,édiretoenecessário,nãolhespermiteabrangermaisqueumaspectodatarefa,semdeixardever,aprincípio,queatarefainfinitaemseuconjunto,adeconhecerteoricamenteato-talidadedaquiloqueé,aindatemoutrasfaces.Seainsuficiênciaseanunciaemobscuridadesecontradições, istodámotivoparaumareflexãouniversal.Por conseguinte, ofilósofo sempredevetentar assenhorar-se do verdadeiro e pleno sentido da filosofia,datotalidadedeseushorizontesdeinfinitude.Nenhumalinhadeconhecimento,nenhumaverdadeparticulardeveserabsolutizadaeisolada.Sónessaconsciênciasupremadesi,queporsuavezseconverteemumramodatarefainfinita,afilosofiapodecumprirsuafunçãodepromover-seasimesmae,comisso,ahumanidadeautêntica.Mas, que isso seja assim, também pertence à esferadoconhecimentofilosóficonograudesupremareflexãosobresimesmo(höchster Selbstbesinnung). Sóemvirtudedestaconstan-teatividadedereflexão(ständige Reflexivität) umafilosofiaéumconhecimentouniversal.

Eudissequeocaminhodafilosofiapassapelaingenuidade.Esteéocomeçoparacriticaro tãoaltamentecelebrado irracio-nalismoe,aomesmotempo,olugarparadenunciaraingenuida-dedaqueleracionalismoqueéconsideradocomoaracionalidadefilosófica pura e simples,mas que, a rigor, caracteriza a filoso-fiadetodaaIdadeModerna,apartirdoRenascimento,equese

82

URBANO ZILLES

consideraoracionalismoverdadeiro,portanto,universal.Estain-genuidade,inevitávelnocomeço,envolvetodasasciênciase,noinício, tambémasciênciasque, jánaAntiguidade,conseguiramsedesenvolver.Ditomaisexatamente:adenominaçãomaisgeralqueconvémaestaingenuidadeéoobjetivismo, queseconfiguranosdiferentestiposdenaturalismo,nanaturalizaçãodoespírito.Filosofiasantigasemodernaserameseguemsendoingenuamen-teobjetivistas.Mas,parasermaisjusto,deve-seacrescentarqueoidealismoalemão,procedentedeKant,jáseesforçouapaixona-damenteporsuperaraingenuidadepercebida,semquepudessealcançarrealmenteograudereflexividadesuperiordecisivoparaanovaformadafilosofiaedahumanidadeeuropeia.

Só posso apresentar algumas indicações rudes para tornarcompreensíveloquefoidito.Ohomemnatural(digamosodope-ríodopré-filosófico)estávoltadocomtodasassuaspreocupaçõesesuaatividadeparaomundo.Odomínionoqualviveeageéomundocircundante,queseestendeespaço-temporalmenteaoseuredor,noqualelepróprioseinclui.Estacaracterísticapermanecenaatitudeteóricaque,emseuprimeiromomento,nãopodesersenãoadoespectadordesinteressadoemrelaçãoaomundoque,com isso, se despoja de seusmitos. A filosofia vê, nomundo, ouniversodoser,eomundoconverte-senomundoobjetivofrenteàsrepresentaçõesdemundo,quevariamdeacordocomanacio-nalidadeeossujeitosindividuais:averdadeconverte-se,pois,emverdadeobjetiva.Assimafilosofiacomeçacomocosmologia,diri-gida,primeiramente,comoéóbvio,emseuinteresseteórico,paraanaturezacorpóreae,precisamente,porquetudoqueédadonoespaçoenotempotem,pelomenosemsuabase,aformaexisten-cialdacorporeidade.Homenseanimaisnãosãoapenascorpos,mas,naperspectivadeumolharparaomundocircundante,apa-recemcomoalgoqueexistecorporalmente,eporisso,comorea-lidadesintegrantesdaespáciotemporalidadeuniversal.Dessartetodososprocessospsíquicos,osdecadaeu,comooexperimentar,

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

83

pensar, querer, têm certa objetividade.A vida comunitária dasfamílias, dos povos e semelhantes parece então dissolver-se nadosindivíduossingulares,consideradoscomoobjetospsicofísicos;avinculaçãoespiritualpormeiodeumacausalidadepsicofísicaprescindedeumacontinuidadepuramenteespiritual,eemtodaaparteimperaanaturezafísica.

Ocursododesenvolvimentohistóricoédeterminado,compre-cisão,porestaatitudeparacomomundocircundante.Jáoolharmais fugaz às coisas corpóreas, nomundo circundante,mostraqueanatureza éum todohomogêneo, queune todasas coisas,ummundo para si, digamos, cativo da ordem espáciotemporal,homogêneo,dividido emobjetosparticulares, todos iguais entresi como res extensae eque sedeterminamcausalmenteunsaosoutros.Muitorápidodá-seoprimeiropassoparaumadescober-taimportantíssima:éadasuperaçãodafinitudedanaturezajápensadacomoumemsiobjetivo,umafinitudesubsistente,apesardocaráterabertoeindefinidodanatureza.Descobre-seainfinitu-de,primeiroemformadeidealizaçãodagrandeza,damassa,dosnúmeros,dasfiguras,dasretas,dospolos,dassuperfícies,etc.Anatureza,oespaço,otempotornam-seidealmente prolongáveiseidealmentedivisíveisaoinfinito.Daagrimensuranasceageome-tria,daartedosnúmerosaaritmética,damecânicacotidianaamecânicamatemática,etc.Agoraanaturezaeomundointuitivosse transformam, sem que disso se faça uma hipótese explícita,nummundomatemático, omundodas ciênciasmatemáticasdanatureza.Aantiguidadeprogrediuecomsuamatemáticadesco-briu,pelaprimeiravez,ideaisinfinitosetarefasinfinitas.Istosetornaaestrelaqueguiaráasciênciasparatodosostempospos-teriores.

Comorepercutiuoêxitoembriagadordestadescobertadain-finitudefísicasobreodomíniocientíficonaesferaespiritual?Naatitudeparacomomundocircundante,naatitudeconstantemen-teobjetivista,todooespiritualaparececomosuperpostoàcorpo-

84

URBANO ZILLES

reidadefísica.Dessamaneiratendia-separaumaadoçãodomodode pensar científico-natural. Por isso, já no início, encontramosomaterialismoeodeterminismodeDemócrito.Masosespíritosmaiores retrocediamante tais doutrinas, assim comoante todaapsicofísicadeestilomaismoderno.DesdeSócrates,a reflexãotomaportemaohomememsuahumanidadeespecífica,ohomemcomopessoa,ohomemnavidaespiritualcomunitária.Ohomempermanece inserido nomundo objetivo, mas esse já se torna ogrande temaparaPlatãoeAristóteles.Percebe-seaíumacisãonotável,poisohumanopertenceaouniversodosfatosobjetivos;masenquantopessoas,enquanto“eu”,oshomenstêmfins,per-seguemmetas,referem-seàsnormasdatradição,àsnormasdaverdade; normas eternas. Se este desenvolvimento se paralisounaantiguidade,elecontudonãoseextinguiu.

Demosumsaltoà chamada IdadeModerna.Comumentu-siasmoardenteéacolhidaatarefainfinitadeumconhecimentomatemáticodanaturezaedomundoemgeral.Osprogressosgi-gantescos,noconhecimentodanatureza,agoradevemseresten-didosaoconhecimentodoespírito.Arazãodemonstrousuaforçananatureza.“Comoosoléoúnicosolqueiluminaeaquecetodasascoisas,assimtambémarazãoéaúnicarazão”(Descartes).Ométodotambémdeverápenetrarossegredosdoespírito.Oespí-ritoéumarealidadenatural,umobjetonomundoecomotalfun-dadonacorporeidade.Porconseguinte,acompreensãodomundoadotaimediatamenteeemtodososdomíniosaformadeumdu-alismo,mais exatamente de umdualismo psicofísico. Amesmacausalidade, apenasdividida emduas, abrange oúnicomundo;aexplicaçãoracionaltemomesmosentidoemtodaaparte,en-tendendo-sequetodaexplicaçãodoespírito,sedeveserúnicaeterumalcancefilosóficouniversal,hádeconduzirparaoplanofísico.Nãopodehaverumainvestigaçãoexplicativapuraefecha-daemsidoespírito,umapsicologiaouteoriadoespíritovoltadatotalmenteparaointerior,quevádiretamentedesdeoeu,desde

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

85

opsíquicoimediatamentevivido,apsiquedooutro;éprecisoto-marocaminhoexterior,ocaminhodafísicaedaquímica.Todososdiscursosemvogasobreoespíritocoletivo,sobreavontadedopovo, sobre fins ideais, políticos das nações e semelhantes, nãopassamderomantismoemitologia,originadosnumatransposiçãoanalógicadeconceitosquesópossuemsentidopróprionaesferapessoaldoindivíduo.Oserespiritualéfragmentário.Indagando,agora,pelafontedetodasastribulaçõespode-seresponder:esteobjetivismoouestaconcepçãopsicofísicadomundoé,apesardesuaaparenteevidência,umaunilateralidadeingênuaque,comotal,permaneciaincompreendida.Éumabsurdoconferiraoespíri-toumarealidadenatural,comosefosseumanexorealdoscorposepretenderatribuir-lheumserespácio-temporaldentrodanatu-reza.

Masaquiénecessário,paraonossoproblemadacrise,mos-trar como é possível que a época moderna, durante séculos tãoorgulhosadeseusêxitosteóricosepráticos,tenhacaídoelames-manumacrescente insatisfaçãoequeaindadeveexperimentarsuasituaçãocomosituaçãodepenúria.Emtodasasciênciasseinsinuaessapenúria,emúltimaanálise,comopenúriadométodo.Masnossapenúriaeuropeia,emboranãocompreendida,concerneàgrandenúmerodeciências.

Trata-se de problemas procedentes da ingenuidade, emvirtude da qual a ciência objetivista toma o que ela chama omundoobjetivocomosendoouniversodetodooexistente,semconsiderarqueasubjetividadecriadoradaciêncianãopodeterseulugarlegítimoemnenhumaciênciaobjetiva.Aquelequeéformadonasciênciasnaturaisjulgaevidentequetodososfato-respuramentesubjetivosdevemserexcluídosequeométodocientífico-natural determina, em termos objetivos, o que temsuafiguraçãonosmodossubjetivosdarepresentação.Porissobusca o objetivamente verdadeiro tambémno plano psíquico.Aomesmotempoadmite-se,comisso,queosfatoressubjetivos

86

URBANO ZILLES

excluídospelofísicoserãoinvestigadospelapsicologiaprecisa-mente comoalgopsíquico enaturalmenteporumapsicologiapsicofísica.Masoinvestigadordanaturezanãosedácontadequeofundamentopermanecedeseutrabalhomental,subjeti-vo,eomundocircundante(Lebensumwelt) vital,queconstan-tementeépressupostocomobase,comooterrenodaatividade,sobreoqualsuasperguntaseseusmétodosdepensaradquiremumsentido.Ondesesubmeteàcríticaeàelucidaçãoaenormeaquisiçãometodológica,queconduzdesdeomundocircundante(Lebensumivelt) intuitivoatéas idealizaçõesdamatemáticaea interpretação do mundo como ser objetivo? A revolução deEinsteinconcerneàsfórmulasquetratamdaphysis idealizadae ingenuamente objetivada.Mas nada nos diz sobre como asfórmulas em geral, como a objetivaçãomatemática em geral,adquiremosentidosobreabasedavidaedomundocircundan-teintuitivo;assimEinsteinnãoreformaoespaçoeotempo,nosquaissedesenrolanossavidarealeconcreta(unser lebendiges Leben).

Aciênciamatemáticadanatureza éuma técnicamaravi-lhosa que permite efetuar induções de uma fecundidade, deumaprobabilidade,deumaprecisãoedeumafacilidadedecál-culo,queantessequerseteriapodidosuspeitar.Comocriação(Leistung),é umtriunfodoespíritohumano.Masnaquiloqueconcerneàracionalidadedeseusmétodosedesuasteorias,étotalmenterelativa.Jápressupõeumadisposiçãofundamentalpréviaque,emsimesma,careceporcompletodeumaraciona-lidadeefetiva.Àmedidaqueseesquece,natemáticacientíficadomundocircundanteintuitivo,dofatormeramentesubjetivo,esquece-setambémdoprópriosujeitoatuante,eocientistanãosetornatemadereflexão.(Comissoaracionalidadedasciên-ciasexataspermanece,sobestepontodevista,namesmalinhadaracionalidadequeilustramaspirâmidesegípcias).

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

87

Éverdadeque,desdeKant,possuímosumateoriadoconheci-mentoprópriae,deoutrolado,existeumapsicologiaquequerser,comsuaspretensõesaumaexatidão científico-natural, a ciênciageralefundamentaldoespírito.Masnossaesperançanumaracio-nalidadegenuína,istoé,deumconhecimentogenuíno,aquieemtodaparteédecepcionada.Ospsicólogossequerpercebemque,emsuascolocações,comohomenscriadoresdeciência,nãotêmacessoa simesmos e a seumundo circundante.Não percebem que, deantemão,sepressupõemasimesmosnecessariamentecomosereshumanosvivendoemcomunidadedeseumundocircundanteedesuaépocahistórica,equequeremalcançaraverdadeemsi,válidaparatodos.Porcausadeseuobjetivismo,apsicologianãoconsegueincluiremseu temadereflexãoàalma,ouseja, oeu,queageesofre,emseusentidomaispróprioemaisessencial.Supondoqueelapossaobjetivaretratarindutivamenteavivênciavalorante,avivênciavolitiva,repartidanoscorposvivosseráelacapazdefazeromesmocomosfins,osvaloreseasnormas?Podeelaconverteremtemadereflexãoaprópriarazão,digamoscomo“disposição”?Esquece-setotalmentedequeoobjetivismo,emseucaráterdecria-çãoautênticadoinvestigadorembuscadeverdadeirasnormas,jápressupõeessasnormas,eesteobjetivismo,portanto,nãopodeserderivadodefatosqueaíjásãopensadoscomoverdadesenãocomoficções.

Percebem-se logo as dificuldades aqui subjacentes: o conflitosuscitadopelopsicologismooatesta.Masaindanãoselucrounadacomarejeiçãodeumafundamentaçãopsicológicadasnormas,so-bretudodasnormasquepresidemaverdadeemsi.Torna-secadavezmaispalpável,emgeral,anecessidadedereformartodaapsi-cologiamoderna,masaindanãoseentendequeelatenhafracassa-doporcausadeseuobjetivismo,queelanãotemnenhumacessoàessênciaprópriadoespírito,queéabsurdooisolamentodapsiqueconcebidaobjetivamenteesuainterpretaçãopsicofísicadoser-em--comunidade.Écertoqueotrabalhodapsicologiamodernanãofoi

88

URBANO ZILLES

emvão: temelaboradonumerosas regrasempíricasque tambémpossuemumvalorprático.Maselaétãopoucoumaautênticapsi-cologiacomoaestatísticamoral,comseusconhecimentosnãome-nosvaliosos,éumaciênciamoral.

Emnossotempoanuncia-se,emtodaaparte,aprementene-cessidadedeumacompreensãodoespírito,esetornouquasein-suportávelaconfusãoqueafetaasrelaçõesdemétodoedeconteú-doentreasciênciasdanaturezaeasciênciasdoespírito.Dilthey,umdosmaiorescientistasdoespírito,dedicoutodaaenergiadesuavidaaoesclarecimentodasrelaçõesentreanaturezaeoespí-rito,aoesclarecimentodacontribuiçãodapsicologiadetipopsi-cofísica,aqual,comoeleacreditava,deveriasercompletadaporumapsicologianova,descritivaeanalítica.OsesforçosdeWindel-bandeRickertinfelizmentenãotrouxeramadesejadaevidência.Tambémeles,comotodos,permaneceramvítimasdoobjetivismo.Maisainda,osnovospsicólogosreformadores,quecreemquetodaaculpasereduzaopreconceitodoatomismoreinante,hámuitotempo,equese inaugurouumanovaépocacomapsicologiadatotalidade.Masasituaçãonuncamelhoraráenquantonãoseco-locaremevidênciaaingenuidadedoobjetivismo,surgidodeumaatitudenaturalemrelaçãoaomundocircundanteenãoseesti-verconvencidodaabsurdidadedaconcepçãodualistadomundo,segundoaqualnaturezaeespíritodevemserconsideradoscomorealidadesdesentidohomogêneo,emboraumaedificadasobreaoutrademaneiracausal.Julgo,comtodaaseriedade,quenuncaexistiunemexistiráumaciênciaobjetivaacercadoespírito,umadoutrinaobjetivadaalma,objetivanosentidodeatribuiràsal-mas,àscomunidadespessoais,umainexistência,submetendo-asàsformasespáciotemporais.

O espírito, e só o espírito, é o que existe em si mesmo e para si mesmo, só o espírito é autônomo e pode ser tratado nesta autono-mia, e só nesta, em forma verdadeiramente racional, de um modo verdadeira e radicalmente científico. Quanto à natureza, conside-

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

89

rada na verdade que lhe conferem as ciências naturais, ela só tem uma autonomia aparente, e só aparentemente ofereceumconheci-mentoracionaldesinasciênciasdanatureza.Poisaverdadeiranatureza,nosentidodasciênciasdanatureza,éobradoespíritoqueaexploraepressupõe,porisso,aciênciadoespírito.Oespí-ritoé,poressência,capazdeexerceroconhecimentodesimes-mo,ecomoespíritocientíficoécapazdeexerceroconhecimentocientíficodesi, e isto reiteradamente.Sónopuro conhecimentocientífico-espiritualocientistaescapaàobjeçãodequeseencobreasimesmoemseusaber.Porissoéerrôneo,departedasciênciasdoespírito,lutaremcomasciênciasdanaturezaporumaigual-dadededireitos.Logoqueaquelas reconhecemàs últimasumaobjetividadequesebastaasimesma,elasmesmassucumbemnoobjetivismo.Mas tais comohoje estãodivididas emsuasmúlti-plasdisciplinas,asciênciasdoespíritocarecemdaracionalidadeautêntica,possibilitadaporumacosmovisãoespiritual.Precisa-mente,estafaltageneralizadadeumagenuínaracionalidadeéafontedaobscuridadejáinsuportáveldohomemsobresuaprópriaexistênciaesuastarefasinfinitas.Estasseencontraminsepara-velmenteunidasnumaúnicatarefa:Só quando o espírito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e perma-necer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar--se a si.

Comose chegouaumcomeçodeuma tal reflexão sobre si?Talcomeçoeraimpossívelenquantodominavaosensualismo,oumelhordito,opsicologismodosdados,apsicologiadatábula rasa. SóquandoBrentanopostulouumapsicologiacomociênciadasvi-vênciasintencionaisdeu-seumimpulsoquepoderálevaradiante,emboraopróprioBrentanoaindanãotenhasuperadooobjetivis-mo,nemonaturalismopsicológico.Aelaboraçãodeummétodoefetivoparacompreenderaessênciafundamentaldoespíritoemsuaintencionalidade,e,apartirdaí,construirumateoriaanalíti-cadoespíritoquesedesenvolvedemodocoerenteaoinfinito,con-

90

URBANO ZILLES

duziuafenomenologiatranscendental.Estasuperaoobjetivismonaturalistaetodoobjetivismoemgeraldaúnicamaneirapossí-vel:osujeitofilosofantepartedoseueu,maisprecisamente,eleseconsideraapenascomoexecutor(Vollzieher) de todos os atos do-tadosdevalidade,tornando-seumespectadorpuramenteteórico.Nestaatitudeconsegue-seconstruirumaciênciadoespíritoabso-lutamenteautônoma,nomododeumaconsequentecompreensãodesimesmoecompreensãodomundocomoobradoespírito.Aíoespíritonãoéespíritonanaturezaouaseulado,masapróprianatureza entrana esferado espírito.O eu então jánãomais éumacoisaisoladaaoladodeoutrascoisassimilaresdentrodeummundodadodeantemão;aexterioridadeeajustaposiçãodoseuspessoaiscedelugaraumarelaçãoíntimaentreosseresquesãoumno outroeumpara o outro.

Masnão é possível estender-me sobre este ponto aqui, poisnenhumaconferênciapoderiaexauri-lo.Contudo,esperotermos-tradoqueaquinãose trataderestauraroantigoracionalismo,queeraumnaturalismoabsurdoe incapazdecompreender,emsuma,osproblemasdoespíritoquenos tocammaisdeperto.Aratio dequeagorasetratanãoésenãoacompreensãorealmenteuniversalerealmenteradicaldesidoespírito,naformadeumaciênciauniversalresponsável,naqualseinstauraummodocom-pletamentenovodecientificidade,naqualtemseulugartodasasquestõesdoser,asquestõesdanorma,assimcomoasquestõesdoquesedesignacomoexistência.Eminhaconvicçãoédequeafe-nomenologiaintencionalfez,pelaprimeiravez,oespíritocomoemcampodeexperiênciaeciênciasistemáticas,determinandoassimareorientaçãototaldatarefadoconhecimento.Auniversalidadedoespíritoabsolutoabrangetodoosernumahistoricidadeabso-luta, dentrodaqual se situaanatureza como obrado espírito.Sóafenomenologiaintencional,eprecisamenteatranscendental,trouxeclarezagraçasaseupontodepartidaeaseusmétodos.Sóelapermite compreender, e pelas razõesmaisprofundas, o que

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPEIA E A FILOSOFIA

91

éobjetivismonaturalistae,emparticular,mostraqueapsicolo-gia,condenadadevidoaseunaturalismo,acarecerdaatividadecriadoradoespírito,queéoproblemaradicaleespecíficodavidaespiritual.

92

URBANO ZILLES

IIISintetizemosaideiafundamentaldenossaexposição.A“crise

daexistênciaeuropeia”,tãodiscutidaatualmenteeatestadaeminú-merossintomasdedesintegraçãodavida,nãoéumdestinoobscuro,nãoéumafatalidadeimpenetrável,massetornacompreensívelepenetrávelaoolharsobreofundodateleologia da história europeia queafilosofiaécapazdepôradescoberto.Masestacompreensãodependedepreviamenteseapreenderofenômeno“Europa”emseunúcleoessencial.

Parapoderentenderaanormalidadeda“crise”atualfoineces-sário elaborar o conceito de Europa comoa teleologia histórica de fins de razão infinitos; foinecessáriomostrarcomoo“mundo”euro-peunasceudeideiasdarazão,istoé, doespíritodafilosofia.A«cri-se»entãopodeseresclarecidacomoo fracasso aparente do raciona-lismo. Omotivodofracassodeumaculturaracionalnãoseencontra–comojásedisse–naessênciadopróprioracionalismo,massóemsuaalienação,nofatodesuaabsorçãodentrodo“naturalismo”edo“objetivismo”.

A“crise”daexistênciaeuropeiasótemduassaídas:ouoocasodaEuropanumdistanciamentodeseuprópriosentidoracionaldavida,oafundamentonahostilidadeaoespíritoenabarbárie,ouorenascimentodaEuropaapartirdoespíritodafilosofiamedianteumheroísmodarazãoquetriunfedefinitivamentesobreonatura-lismo.OmaiorperigoqueameaçaaEuropaéocansaço.Lutemoscontraestemaiorperigocomo“bonseuropeus»comaquelavalentiaquenãoserendenemanteuma luta infinita.Entãoressuscitarádoincêndiodestruidordaincredulidade,dofogonoqualseconso-me toda a esperançanamissãohumanadoOcidente, das cinzasdoenormecansaço,aFênixdeumanova interioridadedevidaedeumanovaespiritualidade,comogarantiadeumfuturohumanograndeeduradouro,poisunicamenteoespíritoéimortal.

SÉRIE FILOSOFIAACiênciaeaOrganizaçãodosSaberesnaIdadeMédiaLuis Alberto de Boni

ADoutaIgnorância–NicolaudeCusaReinholdo Aloysio Ullmann

AÉticaMedievalFaceaosDesafiosdaContemporaneidadeLuis Alberto de Boni

AFragilidadedaRazãoEvilázio Francisco Borges Teix

AHermenêuticaFrancesa:PaulRicoeurConstança Marcondes Cesar

AMetafísicadoConceitoAlfredo de Oliveira Moraes

ARecepçãodoPensamentoGreco-RomanoÁrabeeJudaicoRoberto Hofmeister Pich

ATeoriaÉtico-PoliticadeJohnRawlsJosé Nedel

Agostinho:conhecimento,linguagemeéticaRoberto Hofmeister Pich

AlteridadeeÉtica:obracomemorativados100anosdenascimentodeE.LevinasRicardo Timm de Souza

AmoreSexonaGréciaAntigaReinholdo Aloysio Ullmann

CidadaniaeDemocraciaDeliberativaCatherine Audard

Cioran:afilosofiaemchamasRosário Rossano Pecoraro

CrereCompreenderUrbano Zilles

CríticadaReligiãoeSistemaemKantJair Antônio Krassuski

CríticaeTeoriasdaCriseBento Itamar Borges

DaRazãoPráticaAoKantTardioJosé N. Heck

DaRepresentaçãoaoSentidoAloisio Ruedell

De Abelardo a LuteroLuis Alberto de Boni

DireitoeeticidadeWalterJaeschkedoelogioàVerdadeDion da vi Macedo

DoJuízoTeleológicoComoPropedêuticaàTeologiaMoralemKantCarlos Adriano Ferraz

EmNomedaLiberdadeHans-Georg Flickinger

Ensinar-DeixarAprenderJayme Paviani

EntreHistóriaeImaginárioGregorio Piaia

EntreKanteHegelJoãosinho Beckenkamp

EntreSócrateseCristoAlvaro Luiz Montenegro Valls

EpistemologiaAmbientalGeraldo Mario Rohde

EstéticaMínimaJayme Paviani

ÉticaeCompreensãodoOutroRicardo Bins Di Napoli

Éticaeestética:arelaçãoquaseesquecidaNadja Herrmann

ÉticaeÉticasAplicadasaReconfiguraçãodoÂmbitoMoralaJovino Pizzi

SÉRIE FILOSOFIA

93

ÉticaeFelicidade:umestudodoFilebodePlatãoSonia Maria Maciel

ÉticaeFilosofiaPolítica:HegeleoformalismoKantianoThadeu Weber

ÉticaeGenéticaIIBernardo erdtmann

Ética,CriseePerspectivasPergentino S. Pivatto

Ética,DireitoeJustiçaJosé Nedel

ÉticasemDiálogoRicardo Timm de Souza

ExposiçãoSobreaSubstânciadoOrbeRosalie Helena de Souza Pereir

FenomenologiaeCultura:Husserl,LevinaseamotivaçãoéticadopensarMarcelo Fabri

FenomenologiaHojeII:significadoelinguagemNythamar Fernandes de Oliveira

FenomenologiaHojeIII:bioética,biotecnologia,biopolíticaRicardo Timm de Souza

FidesRatioAuctoritas:oesforçodialéticono MonologionManoel Luís Cardoso Vasconcell

FilosofiaeLiteraturaRicardo Timm de Souza

FilosofiaeSociedadePós-ModernaSávio Carlos da sen Scopinho

FilosofiaMedievalLuis Alberto de Boni

FranciscodeVitoriaeosDireitosdosÍndiosAmericanosRafael Ruiz

GlobalizaçãoeHumanismoLatinoArno Dal Ri Junior

GlobalizaçãoeJustiça-GlobalisierungUndGerechtigkeitDraiton Gonzaga de Souza

GlobalizaçãoeJustiçaIIDraiton Gonzaga de Souza

HelenizaçãoeRecriaçãodeSentidosMiguel Spinelli

HistóriadaFilosofiaeTradiçõesCulturaisJosé Maurício de Carvalho

IgrejaePoderSergio R. Strefling

JoaquimdeFiori:trindadeenovaeraNoeli Dutra Rossatto

JustiçaePolíticaDraiton Gonzaga de Souza

JustiçaGlobaleDemocracia:homenagemaJohnRawlsDraiton Gonzaga de Souza

LaPresenciadeLaFilosofíaenLaUniversidadVicente Durán Casas

Leituras de PlatãoLuc Brisson

Levinas:areconstruçãodasubjetividadeMarcelo Luiz Pelizzoli

LiberdadeeLiberalismoWolfgang Kersting

Liberdade Ou IgualdadeMario A. L. Guerreiro

LinguagemeSignificado:oprojetofilosóficodeD.daVidsonMaria Cristina de Távora Spara

MaquiavelJosé Nedel

94

SÉRIE FILOSOFIA

Merleau-Ponty:acercadaexpressãoMarcos José Müller

MundoVividoErnildo Stein

OConhecimentoAbstrativoemDunsScotoCesar Ribas Cezar

OeueaDiferença:HusserleHeideggerMarcelo Luiz Pelizzoli

OHomemeaFilosofiaJosé Maurício de Carvalho

OLivrodasCausasJan Gerard Joseph Ter Reegen

OMundodaConsciênciaLuiz Hebeche

OPensamentoSocialdeSantoAntônioJosé Camargo Rodrigues e Souza

OProblemadoMalnaPolêmicadaAntimaniquéiadeAgostinhoMarcos Roberto Nunes Costa

ORacionaleOMísticoemWittgensteinUrbano Zilles

OsDireitosSociaisBásicosMaria Clara Dias

OsIndíciosdeDeusnoHomemJorge Antonio Torres Machado

OsMercadores,OTemploeaFilosofia:MarxeareligiosidadeMauro Castelo Branco de Moura

OsMovimentosSociaiseOespaçoAutônomodo“Político”Luiz Vicente Vieira

OsSentidosdaJustiçaemAristótelesDenis Coitinho Silveira

OsSentidosInternosemIbnSina(Avicena)Miguel Attie Filho

Plotino:umestudodasenéadasReinholdo Aloysio Ullmann

PráxiseResponsabilidadeWolfdietrich Schmied-Kowarzik

ProblemaseTeoriasdaÉticaContemporâneaJosé Maurício de Carvalho

PropriedadeeDemocraciaLiberalNeiva Afonso Oliveira

RacionalOuSocial?Alberto Oliva

RazõesPluraisRicardo Timm de Souza

ReligiãoeCapitalismoRosalvo Schütz

RicoeureaFormaçãodoSujeitoAbrahão Costa Andrade

Rousseau e RawlsNeiva Afonso Oliveira

Ser-No-MundoeConsciência-De-SiLívio Osvaldo Arenhart

SobreaResponsabilidadeZeljko Loparic

TemasSobreKantÂngelo Vitório Cenci

TeoriadoConhecimentoUrbano Zilles

UniversalismoeDireitosHumanosWolfgang Kersting

SÉRIE FILOSOFIA

95

EditoraçãoEletrônicaFormato

TipografiaNúmerodePáginas

ImpressãoeAcabamento

GiovaniDomingoseJardsonCorrêa16x23cmNewCenturySchoolbookeOptima96GráficaEPECÊ