A Crise Brasileira Da Educacao de Sud Mennucci

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    A Crise Brasileira de EducaoProf. Sud Mennucci

    Verso para eBook

    eBooksbrasil

    Fonte digitaldigitalizao da 2a. edio em papel de 1934

    Editora Piratininga - So Paulo - SPUSO NO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL

    2006 Sud Mennucci

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    Prof. Sud Mennucci

    Sud Mennucci, nasceu na cidade de Piracicaba em 20 dejaneiro de 1892. Foi educador, gegrafo, socilogo, jornalista eescritor.

    Em 1910 iniciou sua carreira no magistrio, lecionandonuma escola rural, e entre 1913 e 1914 reorganizou as Escolasde Aprendizes de Marinheiros de Belm do Par. Mais tarde,atuou como professor pblico em Porto Ferreira e fundou oGinsio Paulistano, na capital.

    No ano de 1920, comandou o recenseamento escolar emSo Paulo, a partir do qual foi possvel localizar os ncleos deanalfabetismo do Estado e dividir o territrio paulista em quinzedelegacias regionais de ensino. Em seguida, assumiu a Chefiada Delegacia Regional de Ensino de Campinas.

    Entre 1925 e 1931, Sud Mennucci iniciou sua carreiracomo redator e crtico literrio do jornal O Estado de S.Paulo.

    Em 1931, assumiu pela primeira vez a Diretoria-Geralde Ensino de So Paulo.

    Alm de suas atividades na administrao do sistema

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    paulista e como jornalista e escritor, Sud destacou-se nocomando do Centro do Professorado Paulista, criado em 1930, eque atualmente uma das principais associaes docentes deSo Paulo.

    Alm de ter participado da Fundao do Centro,Mennucci presidiu a entidade entre 1931 e 1948.

    Dos vrios livros que publicou, um dos maioresdestaques, foi o livroA Crise Brasileira de Educao, premiadopela Academia Brasileira de Letras.

    Faleceu na cidade de So Paulo em 23 de julho de 1948.

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    1',&(

    PrefcioA crise universal de educao

    A crise educativa nacionalA profundidade do malA escola brasileiraA conquista do meio fsico guisa de respostaApndice da 1a. edioO ensino particular e o nacionalismoApndice da 2a. edio

    A reforma do ensino ruralComo seriam as Normais RuraisA organizao do curso primrio ruralA guerra zona ruralO comeo da vitriaOpinies alheiasNotas

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    Crise de carter, crise de ensino, crisedesintegradora, tudo so reflexos de um fenmeno s:a crise da escola primria.

    PANDI CALOGERAS.(Problemas de Governo, pag. 136).

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    OBRAS DO MESMO AUTOR

    ALMA CONTEMPORNEA So Paulo, 1918 2a. ediono prelo Edit. Piratininga.

    HUMOR So Paulo, 1923 2a. edio no prelo EditoraPiratininga.RODAPS So Paulo, 1927 2a. edio no prelo Editora Piratininga.A ESCOLA PAULISTA 1930 1 vol. (esgot.)CEM ANOS DE INSTRUO PBLICA (1822-1922) Tipografia Siqueira, So Paulo, 1932 1 vol.BRASIL DESUNIDO Tipografia Siqueira, So Paulo, 1932

    1 vol.O QUE FIZ E PRETENDIA FAZER Editora Piratininga S/A So Paulo, 1932 1 vol.

    Separadas da Revista Educao:

    O vertiginoso crescimento de So Paulo 1929. (2a. edioem preparo)O ensino do vernculo nas escolas primrias 1929.A SAIR:HISTRIA DO DIRIO OFICIAL DO ESTADO DE SOPAULO 1934.

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    A Academia Brasileira de Letras, em sesso de 8 dejunho de 1933, concedeu a este livro o 1. prmio no concursoda srie Francisco Alves, subordinada ao ttulo Qual omelhor meio de disseminar o ensino primrio no Brasil.

    o seguinte o teor do parecer:

    O livro de Sud Mennucci o mais claro, o mais lgico,o mais prtico. tambm o mais original no modo de encarar oproblema e na soluo que prope. Principia o autor tratandoda crise universal da educao. A cincia transformou ascondies da vida ocidental. Todos os valores de tempo edistncia passaram a ter outra significao. A escola antigaficou fora de fase, atrasou-se tanto mais quanto j no encontrao apoio que sempre lhe deram a famlia de tipo romano e aoficina. O trabalho moderno outro; outras so as condies

    da famlia em que o ptrio poder j no tem a extenso deoutrora, em que a mulher vive e trabalha fora do lar. O surto daescola nova corresponde a tais circunstncias. A escola novaquer ser de preferncia internato, quer instalar-se em zona decampo, valendo-se do ar puro, do sol e do cenrio. Ela faz dotreino sensorial o expediente mximo da sua pedagogia e seorganiza com a preocupao do estudo psicolgico e fisiolgicodo educando, do seu gnio, das suas aptides, das suas

    preferncias, dos seus interesses imediatos. Ela procura reunirtudo quanto cabia famlia e oficina, complemento histricodos antigos centros de educao. Condicionado o sistemaeducativo de cada poca pela organizao do trabalho entodominante, tivemos no Brasil, o que o autor chama saldonegativo proporcionado pelo trabalho escravo. No segundocaptulo do seu livro o autor demonstra que a mentalidade

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    nacional foi influenciada pelo preconceito do trabalho manual.Veio a repblica e com ela a obra de reconstruo educativa.Mas foram copiados os modelos clssicos, inspirados no que sevia nos pases industriais da Europa. O pas ansiava por umalegislao educativa essencialmente rural; deram-lhe escolasurbanistas. E quando pensaram em fundar escolas rurais foipior. Fizeram-se escolas de cidade localizadas no campo.Alberto Torres por isso mesmo escreveu que a nossa instruopblica era um sistema de canais de xodo da mocidade docampo para as cidades e da produo para o parasitismo. Emvez de promover o progresso do campo, a escola oficialdespovoa as lavouras. Delas o filho do lavrador no saiaperfeioado lavrador que o pai deseja... Passa depois o autor

    a definir o que lhe parece deva ser a escola brasileira, semprede acordo com o ambiente regional. S com a segmentao doslatifndios, sustenta ele, ser possvel o nosso verdadeiro surtoeducativo. O xodo dos campos desaparecer. A posse da terraseria capaz de anular os resduos psquicos da velha prevenocontra as trabalhos de amanho da lavoura.

    Como retalhar os latifndios, uma vez que a soluo

    russa, violenta e imprpria, ou a rumica, baseada no consensodos possuidores, ou a francesa, baseada na herana nopodem ser propostas? A soluo de Sud Mennucci acampanha pelas oportunidades de repartir a terra. Juntem-se aUnio, os Estados, os Municpios, s Associaes particularesnesse objetivo. Conheo clubes comerciais, escreve o autor,para inmeros fins, que entregam aos seus prestamistas ascoisas mais disparatadas que eles possam desejar. Nunca ouvi

    falar de nenhum que sorteasse glebas de terras para oestabelecimento de uma famlia... Sei de homens pios quedeixam avultadas quantias para aumentar patrimnios de todosos gneros... Nunca me constou... que algum houvesse doado acasas de caridade grandes lavouras, sob a condio de apuraro esplio mediante a venda a longos prazos desses terrenos anumerosas famlias de caboclos...

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    Depois o autor considera o problema do professor. Oprofessor no gosta do campo, porque o campo atrasado...mas o campo no progride porque o professor no lhe d o seuentusiasmo. Se ele foi feito para a cidade...

    O sistema de Sud Mennucci para divulgar o ensinoprimrio no Brasil , destarte, um todo harmnico, antes socialque pedaggico, cheio de originalidade e de clareza. A posse daterra, a conquista do meio s comodidades humanas, aformuo do professor so as faces mais salientes do seuedifcio. No terreno da prtica, escreve Sud Mennucci, aprimeira ddiva a conceder ao meio rural seria destruir-lhe oisolamento... Um simples aparelho de rdio obtido das

    administraes pblicas ou mediante subscrio popular,colocado no ponto central do bairro, dar-lhe- o informanteminucioso e quotidiano das coisas e acontecimentos da terra,ao mesmo tempo o recreio costumeiro dos habitantes O rdiosubstitui o jornal com vantagem, Sud Mennucci jornalista... alcana a populao analfabeta, chega na mesma hora aospontos onde os jornais levam dias a chegar; junto com o rdio,a energia eltrica.

    Sud Mennucci no seu livro, indica, pois, de maneirarealmente superior, todas as condies sociais em que se defineo problema considerado. E indica, com clareza, simplicidade,entusiasmo, de maneira prtica, solues modernas e possveis.Deve receber o primeiro prmio Alves.

    (a. a.)

    ROQUETE PINTO, relator.MIGUEL COUTOALOYSIO DE CASTRO.

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    H cerca de quarenta anos, senhores, que a educaouniversal entrou em crise. Sem querer penetrar muito fundo noestudo das causas mltiplas que a determinaram, estudo que melevaria muito longe e muito fora do programa que aqui me

    trouxe, pode dizer-se, com toda segurana, que essa crise nasceuno dia em que comeou a utilizao industrial intensiva dasinmeras descobertas cientficas, pressentidas, s vezes, sculosantes, mas s efetivamente realizadas, para a prtica, na segundametade do sculo passado.

    medida que essas descobertas se aperfeioavam e quea sua explorao industrial se ia simplificando, crescia e se

    acentuava a crise educativa. Lance-se um olhar para o percursoda ltima trajetria do homem sobre a terra. Num prazorelativamente curto, que, na maioria dos casos, no ultrapassouo da durao mdia da vida humana, ns fomos das primitivaslocomotivas ronceiras ao possante comboio eltrico; do balocativo e do aerostato errante ao dirigvel das grandes carreiras eao hidroplano de quinhentos quilmetros hora; da berlindapesada ao automvel concorrente das estradas de ferro; do naviode rodas, caricatura do steam-boat de Fulton, aos gigantescosnavios motores modernos. Fomos do telgrafo e telefonecomuns radiotelegrafia e radiotelefonia e, j agora, televiso; da lanterna mgica, imvel como um sorriso idiota debailarina, ao cinema mudo e ao animatgrafo sincronizado; dolampio de querosene s lmpadas de Edison; da morosatipografia de distribuio lenta para as rapidssimas monotipos

    de destruio diria; da caixa de msica, a moer sempre amesma pea, panatrope eltrica, que toca trinta discos sozinha.E no contentes com isso, suprimimos a caligrafia com amquina de escrever e aposentamos o crebro com a mquinade calcular.

    Cito, senhores, propositadamente, apenas o que de maisforte e impressivo abalou a mentalidade popular e mais

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    facilmente se incorporou sua maneira de viver. Deixo, por issomesmo, de lado as mil outras descobertas que por inacessveis compreenso exata do vulgo, permanecem por assim dizerobumbradas, ainda que a sua influncia real pese sobre osnossos dias com maior intensidade que as de maior aparato.

    que aquelas bastam ao ponto de vista que desejo fixarneste ligeiro ensaio: dar a sensao ntida de que a nossa vidano se parece em nada com a que existia, sobre os mesmssimospontos do globo, cinqenta anos atrs, para concluir que estanova maneira de viver devia, necessariamente, ter modificado ascondies econmicas do mundo e feito variar, pelos aspectosnovos dos mesmos ambientes, a sensibilidade geral e a

    capacidade de julgar da nossa gerao.2',5(,72$2&21)2572

    A industrializao das descobertas cientficas criou oconceito de que todos devem gozar das conquistas do saber e doengenho humano. Todos os homens tm direito ao conforto quea cincia, nas suas aplicaes prticas, proporciona. Toda gentedeve poder permitir-se o luxo de usar meias de seda e roupas de

    casimira, ir ao cinema, utilizar-se do telefone, servir-se doaeroplano. E, se ns fssemos os Estados Unidos, tambmpoderamos possuir um automvel para cada quatro pessoas.

    Duas conseqncias imediatas se desdobraram desseconceito: o aumento das necessidades dos homens, decorrentesnaturais do acrscimo de conforto, e, portanto, racionalmente, oaumento do custo da vida; e a obrigatoriedade da produo emlarga escala para atender procura das vantagens que asdescobertas permitiam.

    A primeira providncia, pois, que se fez indispensvel,no intuito de vulgarizar as novas comodidades, tornando-asposse e condomnio da espcie, foi a reorganizao do trabalho.A produo intensa era e incompatvel com o sistema dos

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    ofcios e profisses que existia, porque ela assenta sobre umprincpio diverso, chamado da eficincia e exige o maiorrendimento dentro do menor tempo e da menor despesapossvel.

    Ora, tal eficincia s se obtm com a subdiviso dotrabalho, isto , com o parcelamento das tarefas. Esteparcelamento, por sua vez, demandava se mobilizassemexrcitos cada vez maiores de operrios, problema, alis,relativamente fcil de resolver porque as novas tarefas,reduzidas a puros movimentos primrios, indecomponveis,automticos, permitiam a entrada nas fbricas e oficinas aelementos tidos por inferiores, que antes no poderiam

    legitimamente aspirar ao artesanato por lhes falecerem asqualidades requeridas formao de um bom ou mesmo de ummdio profissional.

    Entre as vantagens, pois, da nova ordem de cousas,arrolava-se essa de valorizar, como massa obreira, umapopulao nova, normalmente desocupada, que vinha aumentaro capital humano e enriquecer o patrimnio da espcie,

    envolvendo a prpria mulher na batalha econmica do mundo.(48,/%5,21292)508/$6129$6

    O contragolpe no podia faltar. A situao recm criada,modificadora por excelncia das normas consuetudinrias davida, rebentou em efeitos que desequilibraram o metabolismosocial e tenderam transformao das noes correntes epreconceitos seculares. Dois desses efeitos costumam atrair depreferncia a ateno do pblico, ferido nos seus inatossentimentos de justia: um o que transparece lucidamente nasingular preponderncia que veio a adquirir, nestes ltimos vinteou trinta anos, a chamada questo social e que envolve asjustas, justssimas reivindicaes da classe obreira, abandonada,quando no comprimida, universalmente, por uma legislao aque falta inteligncia e descortino. A outra o nascimento das

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    aspiraes femininas igualdade civil.

    No eram eles, contudo, os nicos efeitos da mudana deregime de trabalho e, a sermos justos, no eram mesmo os maisimportantes. Outro havia que se no apresentava com o mesmoestardalhao e que, ao contrrio, na maior parte das vezes,surdia apenas como um mal-estar vago, quase inconsciente atorturar os preceptores do fim do sculo passado e do comeodo atual: era a questo educativa. Ia-se percebendo o pouco, opouqussimo com que a escola (e de ordinrio todo oaparelhamento pedaggico) estava contribuindo para o gozopleno da vida em comum.

    Os mais atilados e sagazes, esses que so como que asantenas da humanidade e pressentem, muito antes que os outros,as metamorfoses que se esto elaborando no complexo dasensibilidade geral, haviam intudo, divinatoriamente por certo,o sentido em que elas se iam orientar. Verificavam que aatividade mental do homem cem-dobrara sem que houvessemaparecido as aptides necessrias ao seu treino e sem que sehouvessem multiplicado os expedientes indispensveis para

    adquiri-la. Para as novidades que enchiam e revolucionavam omundo, no existia ainda a memria social, memria que umaespcie de cadinho coletivo, em que toda a gente deposita opouco de sua experincia anterior, organizando assim o lastrocapaz de criar, pela repetio das geraes, aqueles reflexosindispensveis ao exerccio soberano de cada faculdade novaque a vida estava a exigir de ns.

    Vivamos j no regime do caos, da insegurana, datransio forada, servindo-nos, para essas modalidades daatividade mental recm surgida e, concomitantemente, para assuas paralelas atitudes espirituais, do mesmo velho instrumentalque nos haviam legado os homens que tinham vivido sob todiversa disciplina constitucional, Mas no havia outro, e esse,inadequado e imperfeito s funes que lhe destinvamos, era

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    tudo com que podamos contar como auxlio e cooperao dopassado. Comevamos a nos fatigar numa extenuante tarefa deadaptao diria, que forava a onipresena da conscincia naefetivao de nossos atos quotidianos, quando a vida , para ocomum dos seres e logicamente para a estabilidade da vidasocial um simples conjunto de treinos e de hbitos, de atos egestos estereotipados que conduzem ao automatismo, overdadeiro nome da rotina. E ao asserto fcil verificar-lhe averacidade nesses museus vivos, que so para os cientistas, oshospitais e manicmios, onde a vida aparece exagerada comoatravs de vidros de aumento, mas nem por isso menosestereotipada.

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    Esse caos e essa insegurana haviam quebrado aharmonia entre a escola e o organismo social. Temos ouvido,nestes ltimos tempos, uma srie de queixas, de recriminaes,de objurgatrias contra a escola antiga, a escola clssica, aescola tradicional, a escola rgia, enfim. desassisada a grita eprincipalmente injusta. Julgamo-la nos seus efeitos do passadocom os nossos critrios do presente. E esquecemos, por isso, omeio em que a escola antiga se gerou e cresceu. Se alocalizarmos exatamente no tempo e no espao, veremos que elaagia, ento, a contento, e satisfazia, sua moda, aqueleluminoso conceito de Durkheim na sua Educao eSociologia: os sistemas educativos so conjuntos deatividades e instituies lentamente organizadas no tempo,solidrias com todas as outras instituies sociais, que a

    educao exprime ou reflete, instituies essas que, porconseqncia, no podem ser mudadas vontade mas s com aestrutura mesma da sociedade.

    No existem, senhores, anacronismos sociais seno naspocas de transio e Oswald Spengler j mostrou, na suaadmirvel Decadncia do Ocidente, o carter permanente efatal da interdependncia dos fenmenos e a intercadncia das

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    invenes e criaes de uma poca. O subconsciente elaboraformas de vida social aparentemente dspares, mas, na verdade,partidas de um fundo comum que as relacionainsofismavelmente com as idias mestras do tempo. E as idiasmestras de uma poca no so pontos de vista de retricos ousofistas, de idelogos ou sonhadores. So aquelas que aorganizao social permite se deduzam do cotejo, confronto eparalelo das instituies entre si. Por isso, a sociologia sersempre uma cincia em perptua evoluo e a filosofia, comometafsica da experincia, ser varivel e volvel como ohomem.

    Ora, a escola antiga, exatamente como a de hoje. tinha

    por lema principal, ainda que in-expresso, a socializao dacriana, isto , integr-la ao meio em que devia obrar,preparando-a a ingressar na sociedade em que devia viver.Apenas, aquele tipo de instituio contava, desde sculos, com oapoio de outras duas, a que se ajustava cabalmente, e sconsiderava a sua tarefa preenchida quando lhe no faltasse oamparo das outras: a famlia e a oficina.

    A escola era a ponte que ligava a tarefa da primeira aestabelecer contacto com a ltima. A famlia tradicional nuncaabriu mo desse seu ponto de honra de estar vigilante durantetoda a fase preparatria da criana, e que ia do bero posse deum ofcio. Por isso mesmo, ostentava aquela brilhante fachadapatriarcal de vida calma e serena, em que a paz caa sobre osespritos, em que as necessidades eram relativamente poucas epequenas, justamente porque o horizonte mental do universo

    era, na mdia, de reduzido crculo.

    A cooperao social no ia alm de um restrito limite,que se fechava, de ordinrio, nas divisas da cidade. Ascomunicaes difceis e para o volume das transaeshabituais, perfeitamente inteis mesmo simplificavam otrabalho de encurralar o mundo no estreito mbito dos

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    insignificantes aglomerados urbanos, em que a humanidadevegetava, circunscrita ao teto de suas casas e largura de suasruas. A prpria idia de ptria, que nos legaram, e que deveriaimitar um instinto profundo como o das abelhas, era acanhado eegosta. Faziam-lhes falta aos nossos avs as asas com que oinseto perambulava, tonto de luz e de sol, pela esfera azul dofirmamento. O regionalismo, ou, mais acentuadamente, ocampanilismo, era, pela fora do hbito, das tradies, daeducao, o sentimento patritico mais bem vincado, e, muitasvezes, o mais perigoso da espcie. A funo da famlia,portanto, no era nem pesada nem difcil, asfixiada por umasrie de praxes disciplinares, que o lazer da existnciaautorizava a realizar com toda a calma.

    Quando a obra oficial da escola entrava em vigor,contava ela, alm do apoio permanente da famlia, com outroauxiliar poderoso: o perodo do aprendizado profissional de seusex-alunos. Era o complemento lgico, natural, indispensvel efatal de sua obra. Todo o currculo escolar tendia para esseremate. E o tempo gasto pelo aluno, munido do certificado deensino primrio, no seu noviciado nas fbricas ou nas oficinas,

    podia computar-se como estgio escolar ainda. A a suaformao recebia os retoques precisos, como os de uma peasada da forja que a lima ajusta ao encaixe conveniente.Fechava-se o ciclo: o que a educao popular, vulgarmentechamada primria, podia dar, estava feito.

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    Foi esse estado de organizao social que, a certo pontodo sculo passado, as descobertas cientficas destruram.

    Durante os primeiros tempos, tentou-se obviar ao malcom paliativos e sucedneos. isso da essncia humana e noh que deblaterar, O homem, por efeito mesmo da educao quelhe ho secularmente ministrado, no gosta de destruir o queest de p e prestou servios. Da o seu amor pelas runas e

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    pelos museus. E enquanto algumas vozes comeavam aerguer-se no brua do universo, conclamando pelas mudanassalutares e radicais, ele tentava evitar a reforma e adiava otermo da entrada em vigor do novo regime.

    Eis seno quando, um acontecimento extraordinrio,cujos efeitos desastrosos pesam ainda dolorosamente sobre ns,focalizou, de maneira imprevista, os fenmenos que a massaignorava. Foi a guerra. O turbilho da tremenda carnificina de1914 ensinou, em menos de cinco anos, pelo esforo titnico emque o mundo se esgotara, mais do que a espcie havia aprendidonum sculo.

    A primeira certeza, que ressaltou logo evidncia, foi ade que a escola no socializava mais a criana, isto , no eramais capaz de p-la em diapaso afinado com a sociedade, aque teria de pertencer ativamente, dentro de pouco, como ummembro treinado e perfeitamente ao par de seu mecanismo. Norespondia mais s necessidades das multides que careciam ecada vez mais carecem de educao segura e rpida.

    O mundo inaugurara a era da velocidade, mas a escolacontinuava a ensinar sem a menor preocupao de aproveitarconvenientemente o tempo. Desambientava, pois, o educando. Ecomo na sociedade a atmosfera uma s, porque existe umclima da poca, que a ningum dado ignorar sem declarar-sefora da comunidade e, portanto, fora da lei, clima formado poruma complicada trama de fatores, cujas razes afundam, histriaa dentro, na fisiologia e na psicologia racial, a escola perdera

    nitidamente o controle de sua tarefa e navegava serenamente emseu navio a vela, enquanto, por cima dos mastros e dasenxrcias, passavam, trepidando de gasolina, os aeroplanos ehidroavies.

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    A escola esquecera o contacto com a realidade. Depois

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    da tremenda prova que fora a guerra, ainda ignorava que doisbices formidveis lhe invalidavam os princpios em que sebaseara antes:

    O primeiro porque o trabalho perdera, de maneira quaseabsoluta, o seu valor educativo intrnseco. Parcelado at onde opermitiam as experincias de laboratrio, em que se notabilizaraTaylor, o fundador da Psicotcnica, substitudo pelas mquinasnas suas tarefas mais pesadas e exaustivas, ao mesmo tempo queconcedia melhor remunerao pelos servios mais leves, frutoda produo intensiva, ia-se fazendo cada vez mais simples,mais banal, mais enfadonho, torturante e alucinante demonotonia.

    A funo da anlise e do raciocnio, a nica que pealerta a conscincia, relegava-se para segundo plano, talvezmesmo para terceiro, nfimo e insignificante. No havia maisque esperar dela para alargar a esfera cultural do operariado oupara aumentar-lhe o acervo de conhecimentos. A srie demovimentos com que se iniciava um homem numa fbrica, era amesma que poderia estar repetindo dez anos depois. O trabalho

    estava, pois, e est, devido a uma seleo cientfica rigorosa,sem as suas fontes de mais subido valor educativo, e, industriale socialmente, reduzido ao mesquinho papel de ganha-po.

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    O segundo residia na desagregao da famlia. Tudoconcorreu para mudar-lhe o aspecto e a fora de influncia, masnada tanto quanto a incorporao da mulher s fileiras dostrabalhadores. Onde a mulher abandonava o lar para prover-lheao sustento, onde ela deixava de ser integralmente, como me,esposa, filha ou irm, a flor que perfuma a existncia nasalegrias e o blsamo que pensa as feridas nas horas dedesconforto, para ser tambm um soldado na grande batalhapela conquista do po, seria ridculo o lirismo e o romanticismoultrapassado das cadeias de ouro. Ela no era mais, e

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    unicamente, a companheira carinhosa, a guia sorridente, a abrirmo, na sua resignada generosidade, da prpria independnciaem benefcio exclusivo do ncleo humano que formava em seuredor. Nivelara-se ao homem, cuja insuficincia econmicacompletava e corrigia. Era-lhe igual, portanto. Se legalmenteesse direito no lhe fora logo reconhecido, de fato, ele existia base da nova organizao e independia de cnones paraafirmar-se.

    O princpio fundamental da constituio da famliaantiga o ptrio poder romano diludo pelas vicissitudes epelas transformaes sucessivas da economia do mundo,acabava de desaparecer, chocado de encontro a esse novo

    conceito social do direito ao conforto.O afastamento da mulher do lar ficou praxe e sistema. E

    crescendo desmesuradamente as cidades, empurravam-se asresidncias das classes populares para zonas cada vez maisdistantes dos centros de trabalho, criando-se assim o hbito daviagem diria. E esse fenmeno geral, se era um fator educativopor excelncia, era tambm um motivo mais de retardo na

    entrada para o lar. Os filhos permaneciam cada vez maisabandonados.

    Para o antigo conceito da sociedade, tudo isso seafiguravam desgraas. Infelizmente, porm, de nada valia carpirsobre elas e descabelar-se em queixumes e improprios, emlstimas e lamentos, exalando as virtudes de antanho. Valia eurgia muito mais repetir, com a educao, a lenda da Fnix, que

    renascia das suas prprias cinzas. Era mister encontrar umcaminho, pelo menos uma pista, que levasse aorestabelecimento do equilbrio perdido.

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    Uma das primeiras e mais longnquas manifestaes dabusca desse caminho, reside na progressiva preocupao pela

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    maior liberdade do aluno, regra que acabou postulado e j hojemania obsidente. Foi surgindo aos poucos, na conscinciacoletiva, a idia imperiosa do alargamento do quadro disciplinardo educando. Veio, antes de tudo, a eliminao de todos oscastigos fsicos, condenados como expedientes ferozes einutilmente cruis, o que, alis, estava perfeitamente conformecom o esprifo da hora, para o qual o idealismo do Quatorze deJulho continuava em franca evoluo. Isso, contudo, era apenasuma forma de violncia exteriorizada. Havia outras, mais sutis emenos ponderveis. Assistimos, destarte, nestes decnios maischegados, campanha em que se empenharam todos para abolirda escola toda e qualquer manifestao de coao e deconstrangimento.

    Essa rebeldia estava na lgica do tempo. Era uma dasrespostas de aberta e declarada oposio, que o fim do sculoXIX dava ao seu maior filosofo, ao solitrio pensador deSils-Marie, o grande Nietzsche, que, pouco antes de penetrar osumbrais da noite trgica da loucura para transpor os definitivosda morte, afirmava ainda a dor como nica e verdadeiramemria da humanidade.

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    A vida provara e provava o contrrio, A criana, quedeixavam sem guia, entregue a si mesma e sua prpriaargcia, precisou de uma qualidade nova para resolver osproblemas numerosos que lhe propunham diariamente, enquantoos pais se achavam fora. Precisou da iniciativa, qualidade

    completamente dispensvel antes, quando as mulheres ficavamem casa.

    Por uma naturalssima lei de harmonia psicolgica, oesprito de iniciativa s se desenvolveria custa da nooanterior da disciplina. Ds que se animava e incentivava afaculdade de resoluo pronta, a virtude da obedincia entravaem declnio, porque a iniciativa, em crebros to pequenos, teria

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    de viver em atmosfera propcia que no devera e no pudera sera que lhe proporcionava o exerccio do ptrio poder em voga,prolongado pela disciplina frrea, asfixiante, prussiana, em usonas escolas e dimanada diretamente daquele. O antigo sistema,slida e fortemente conjugado em todas as suas peas, nosobreviveria, contudo, se uma s lhe faltasse. E a falha, que lheapareceu, era curial para o funcionamento: faltou-lhe asubmisso do infante, assiduamente vigilado nos seus gestos econtinuamente adestrado no uso do crebro alheio para pensar eresolver. O sistema tinha que cair.

    Frise-se, entretanto, que a liberdade do aluno era apenasum aspecto de um problema muito mais complexo, e que, por

    muito grande que fosse na sua outorga, no podia degenerar emlicena. Tinha a sua esfera limitada por um ideal de educaohumana, a que a cincia coeva condicionava a extenso, atravsdos conhecimentos atuais. A liberdade s no podia aspirar aopapel de sucedneo da famlia e de substituta do treinoeducativo do trabalho. E os homens precisavam e andavamjustamente atrs de elementos capazes de se tornarem essessubstitutos, que a obra de criao e preparao dos filhos exigia.

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    Foi, ento, mister imaginar um aparelhamento completoe orgnico, no apenas lgica, mas naturalmente encadeado,prprio a realizar esse penoso e lerdo empreendimento desocializar a criana.

    Nasceram da esses tipos de escolas novas, que iniciam acriana no jardim de infncia, acompanham-na pelo estgioprimrio afora, pretendem guiar-lhe os passos nos institutosorientadores da vocao e nas casas de formao profissional,para s depois dizer ao operrio ou artfice que est apto, isto ,socializado.

    Essas escolas aproveitam-se da atividade normal da

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    criana, apanhada tanto quanto possvel nas mesmas condiesque no seu estado natural em casa, para encaminh-lasuavemente sua prpria direo. Por isso, a escola nova querser de preferncia um internato, quer instalar-se em zona decampo ou a ele limtrofe, valendo-se do seu ar puro, da suainsolao demorada e do seu cenrio; faz do treino sensorial oexpediente mximo de sua pedagogia e se organiza com apreocupao do estudo psicolgico e fisiolgico do infante, deseu gnio, de sua ndole, de suas aptides e preferncias, de seusinteresses imediatos e da durao desses interesses.

    Quem no est vendo que ela pretende suceder a umainstituio desaparecida, com suas tarefas no impostas, mas

    sugeridas ao esprito imitativo da criana? Quem no verificaque todas essas novas funes escolares pertenciam de direito famlia tradicional e que foram absorvidas pela escola nova,incorporadas sua disciplina, que, como naquela, a maisbranda e patriarcal possvel? E quem no adquire a certeza deque tais institutos de ensino se organizam para suprir uma somade conhecimentos que outrora as oficinas forneciam, atravs deum tirocnio longo, gasto para formar o artfice completo, que

    ficava senhor de todos os segredos de uma determinadaprofisso? Para qu esse absorvente empenho do trabalhomanual, nas escolas primrias, e para qu a disseminao dosestabelecimentos profissionais, se as oficinas e fbricaspudessem, como antigamente, proporcionar um longo perodode aprendizado, muito mais fecundo para o intelecto infantil quequanta dissertao didtica?

    Mas as oficinas e as fbricas, constitudas hoje sob oponto de vista da eficincia, no tm tempo a perder nemmaterial a desperdiar. E estes dois fatores so essenciais emtoda aprendizagem.

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    Se se quiser, contudo, a prova decisiva das modificaes

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    profundas que o critrio recente do direito ao confortoimprimiu obra de preparao dos nossos filhos, examine-se aevoluo por que passaram todas as iniciativas de assistncia infncia.

    Por ela, a obra da moderna socializao da criana, porisso mesmo que tem de substituir a famlia e as oficinas, isto , atarefa educativa do lar e a tarefa educativa do trabalho, ter deiniciar-se nas creches e escolas maternais para terminar nasescolas e liceus de artes e ofcios, no ano que o aluno osabandona para dedicar-se luta da existncia, colocando-se nolugar que as suas aptides lhe reservam, frente a frente com avida. Todas as variadas instituies, que gravitam em torno

    dessa obra, entendida como o ciclo da educao popular, sosatlites de um nico pensamento central.

    Ningum, portanto, as considera mais obra parte, masindissoluvelmente ligadas tarefa educativa, e, o que maissignificativo no se aceitam mais envolvendo as idiasconexas de piedade e caridade, que se afiguram laivos ouresduos pejorativos de uma mentalidade que pretende

    enfeitar-se, ainda neste sculo, com o aparato dos sentimentosaltrusticos. A maior organizao que existe nessa matria, a dacidade de Viena, capital da ustria, mostra bem qual oesprito que a ditou e como est ultrapassada aquelamentalidade: um pas que bem entende a sua misso na terra,mxime se uma democracia, tem de fazer da eficincia o lemada sua trajetria no ciclo da histria e no pode desperdiar, sobnenhum pretexto e de nenhuma forma, a menor parcela de

    capital humano. Todas as existncias aproveitveis, total ouparcialmente educveis, so preciosas e necessrias e pelacolaborao e pela cooperao de todas as energias disponveisque o globo poder aspirar perfectibilidade crescente.

    Ora, numa organizao como essa e fora seraceit-la doravante, coagidos pela luta da hegemonia

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    internacional a piedade e a caridade no so apenasingredientes indesejveis, porque humilhantes e ahumilhao no cabe numa obra que quer valorizar a energiahumana mas so mesmo fatores contrrios corrente geral,que divisa na assistncia apenas dever e obrigao social.Assistncia passa, assim, categoria de obra de previdncia. por patriotismo, por um crescente aproveitamento da raa e daespcie que os departamentos da assistncia se ho de criar e seesto criando. Com o aplauso da massa, se lhes intuir o alcance,contra ela ou mesmo contra certas classes, se entenderem mudaro significado de uma responsabilidade inalienvel,transformando em gesto de desprendimento o que simplestarefa de cooperao e que ter de processar-se no globo como

    um imperativo categrico da conscincia coletiva. Se o homemvolta a ser, como nos bons tempos de Protgoras, a medida detodas as cousas, o nosso sonho e o nosso empenho ser faz-locada vez mais homem, no amplo sentido que a palavracomporta.

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    Todos os rtulos, portanto, com que as escolas modernasvm sendo apresentadas, no podero esconder nunca, aoobservador perspicaz e arguto, os dois pernos sobre queassentam. E as teorias filosficas e os vistosos postuladossociolgicos com que nos enchem a cabea, para explicar-lhes aorigem, no passam de justificaes posteriores, surgidaslentamente da anlise dos fatos e fenmenos sociais na hora emque se esto desenrolando. A verdade, porm, fica sempre no

    fundo: o sistema educativo, em vigor numa poca determinada, fruto e reflexo da organizao do trabalho da sociedade a queserve. Quando este se modifica, a escola, isto , aqueleaparelhamento a que incumbe o preparo adaptativo da massamaior dos membros da comunho, no pode fugir fatalidadede transformar-se.

    E foi exatamente isso que aconteceu, no fim do sculo

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    XIX e no comeo do atual, naquela parte do globo queconvencionou chamar-se a si mesma o mundo civilizado.

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    A existncia real, positiva, de uma crise universal deeducao, cujo quadro esbocei no captulo anterior, levou osnossos homens a verificar que tambm havia uma criseeducativa brasileira.

    Inmeros efeitos da nossa eram ou pareciam idnticosaos que se apontavam l fora; numerosos aspectos da de c senos afiguravam decalques dos de l. Que que havamos deconcluir? Aquele velho e traioeiro processo dialtico daanalogia induziu-nos a pensar que as causas determinantes dasduas crises eram justissimamente as mesmas. Seria verdade defato ou estvamos apenas repetindo aquilo que acontece

    diariamente a bons clnicos: diante da semelhana, s vezes daidentidade dos sintomas, formulam o mesmo diagnstico paracasos de essncia absolutamente diversa?

    O exame sereno e desapaixonado do problema mostraque ns fomos vtimas de um erro de generalizao apressada.Cometido de boa f e no melhor dos intuitos, mas erro apesar detudo.

    Em primeiro lugar, o carter de universalidade quereconhecamos crise aliengena no era to veemente assimque autorizasse a aplicao exata ou mesmo adequada doqualificativo. A crise no era universal porque somente abrangiaos pases que mais rpida e valentemente se haviamindustrializado na Amrica e na Europa. Se a ns acaracterstica de universalidade nos aparecia indiscutvel, partiaisso de uma razo diferente: que esses eram os povos que maisem contacto estavam conosco, essas eram as naes que maiscultura possuam e delas recebamos mercadorias, luzes eensinamentos.

    Entretanto, mesmo abstraindo-se todo o imenso peso detrs continentes, a sia, a frica e a Oceania, na prpria Europa

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    ficava uma larga parte e por sinal que a maior parte queno padecia da crise naquele aspecto. Abra-se um livromoderno, vindo luz em 1929, de um notvel economistafrancs, Les deux Europes, de Francis Delaisi, e veja-se comoele divide a pennsula da Eursia em duas seces perfeitamentedistintas, como se constata do mapa que o citado autorapresenta: industrial, compreendendo a Frana, a Blgica, aSua, a Holanda, a Alemanha, a Dinamarca, a ustria, aTchecoslovquia, a Sucia, a Noruega, a Inglaterra e uma parteda Esccia, um trecho da Polnia, metade da Hungria, o norteda Itlia e uma pequena rea da Espanha, ao todo perfazendo230 milhs de habitantes sobre um territrio de 2 milhes emeio de quilmetros quadrados; e a outra, agrcola,

    compreendendo todas as terras que faltam naquele quadro, comum total de 240 milhes de almas, vivendo num territrio demais de sete milhes de quilmetros quadrados. O direito, pois,de estender o epteto at o limite de universal parece-meexcessivo e infundado, desde que a prpria Europa, pelo seumaior quinho, no participa dele.

    Em segundo lugar o que verdadeiramente importa

    a crise brasileira mais grave, mais profunda e mais velhaque a dos pases para os quais nos voltamos em busca deremdios.

    O fenmeno social que mais espalhafato e mais alardeprovocou em todo o planeta, merc dos novos e poderososmeios de comunicao e vulgarizao que esses pasespossuam, foi justamente a crise que atacou os povos mais

    diretamente empolgados pela preocupao industrial. Forameles decerto que sentiram, em toda a sua plenitude, o peso dareorganizao do trabalho, da produo, do esfacelamento dafamlia e da perda do valor educativo do esforo individual. Issono prova, porm, que seja ela a mais interessante, a maiscuriosa ou a mais atraente ou mesmo a mais notvel das crisesrecentes. H outras que se esto, como aquela, processando at

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    agora, e to dignas, ou talvez mais, por um sem nmero demotivos, da ateno humana: a hindu, a russa, a chinesa... Emais que todas, sem dvida, a nossa.

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    Quando os primeiros albores surgiram no horizonte daEuropa industrial, anunciando a aproximao de mudanas emetamorfoses que a guerra tornaria agudas, ns j havamoschegado ao apogeu da crise nacional. Abolramos a escravatura,ponto crtico de um perigoso movimento interno, que submeteraa estrutura do organismo ptrio mais violenta, e, qui, maisdesarrazoada revoluo legal que o Brasil ainda sofreu.

    Todo o edifcio econmico do nosso passado, pelaconjuno de dois fatores incontornveis, a desmesuradaextenso territorial e a pequena densidade demogrfica,baseara-se no latifndio. E o latifndio descansava h sculossobre o lombo do negro.

    Quando a tormenta estalou e derrubou o edifcio,verificamos que havamos cometido este absurdo e este crime:

    havamos desonrado a nica forma de energia verdadeiramentenobre do planeta, a energia humana.

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    E encontrvamo-nos de repente, sem preparao prvia,com um dficit tremendo: faltava-nos um conceito mais alto emais amplo da superioridade do trabalho e ignorvamos, por

    completo, a profunda ao educativa que ele exerce sobre asmassas. Viciara-o e inquinara-o o nosso, durante mais de doissculos de colnia e mais de meio de vida independente, ointerregno das duas escravides: a negra e a vermelha. Tendoorganizado a fortuna pblica a golpes de fora, a lei ureapunha, sob os nossos olhos atnitos e assombrados, a figuratorva da herana que a violncia escravagista nos legara: aantipatia pelo trabalho, antipatia que se encanzinava

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    particularmente contra todas as fainas agrcolas. Havamoscriado no esprito das classes menos cultas, e que constituem,em toda a parte, o cerne das nacionalidades, o horror pelasatividades mais rendosas e nas quais se baseia, invariavelmente,a riqueza do mundo. Desmoralizando e mesmo ridicularizando,no seio das camadas populares, as virtudes supremas dotrabalho, atingramos em cheio, nos seus centros vitais, opatrimnio da economia brasileira, desonrando-lhe as fontes deproduo.

    Duas tarefas, portanto, e cada qual mais formidvel, senos apresentavam a um tempo. A Europa industrial precisavade, celeremente, reajustar-se s inovaes cientficas,

    reorganizando o trabalho. Mas a ns, ao mesmo passo que essaesmagante corve nos impunham as vicissitudes histricas,agigantava-se, premente e indeclinvel, a necessidade, de antesde tudo, reabilitar o trabalho. Porque havia, por baixo datempestade econmica, uma crise psicolgica subterrnea, maisdevastadora nas suas conseqncias e contendendo com a nossaformao espiritual. Era essa de haver-se o brasileiro habituado,desde os primrdios colonizadores, a separar completamente as

    duas formas de trabalho que o mundo lhe parecia comportar: aaristocrtica e a servil, a que era digna dos homens livres e aque era o ferrete do escravo, acabando por confundir no mesmoinenarrvel desprezo, o homem-cousa, o homem-propriedadecom as atividades manuais a que se dedicava. E como depreferncia o negro ia para a lavoura, as profisses urbanasviram-se isentas desse labu.

    E se se quiser um exemplo bem ntido, bem vivo, bemcaracterstico da fora com que esse preconceito hostil atividade agrcola atuou sobre a nossa mentalidade, s volver,ainda hoje, as nossas vistas para certos ncleos da populaonativa. No to falado pendor do nosso caboclo pela vadiagem,cuidam uns encontrar mamparrice pura e outros, molstiaapenas. Ser, no duvidemos, doena em muitos casos, mas para

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    mim, muito mais que propriamente indolncia ou preguia, nosentido fisiolgico do termo, h, quase sempre, um resduo dapsicologia coletiva, oriundo dessa antipatia pelo trabalho, que secristalizou em trs sculos de tradio.

    O nosso horror por tudo quanto pudesse relembrar apena infamante de escravos foi to sensvel, to doentio e,humanamente, to agudo que persistem ainda, por esse enormeBrasil afora, certas aparentes idiossincrasias, s quais debalde seencontraria explicao razovel. A ojeriza pelo milho, apesar deseu grande valor nutritivo, substitudo pela mandioca inferior,que o caboclo de inmeras regies manifesta at hoje, s temcomo motivo verdadeiro o haver sido o angu a base da

    alimentao do negro do eito.,1&,2'(5(&216758d-2

    Pois bem, senhores, que fizemos ns para acudir a essacontingncia penosa, quando milhares e centenas de milhares deinfelizes, embriagados pela volpia da liberdade, abandonavamas lavouras? No podamos contar com os inmeros aderentes eagregados que, de todas as castas e cores, viviam normalmente

    s sopas da famlia senhoril e no eram capazes de substituir ostrnsfugas, educados que tinham sido. secularmente, no horror eno desprezo do trabalho?

    Promovemos, antes de mais nada, em muitos pontos dopas, a imigrao estrangeira, J h quem se sinta disposto amalsinar esse gesto, depois que certo autor norte-americanoprovou, ou asseverou, que as correntes aliengenas no aceleramem nada o crescimento dos povos, desde que aumentando ocoeficiente externo, diminuem o quociente de acrscimovegetativo interno e de tal modo que, no balano final, o pasque sofreu o processo imigratrio, mais perdeu do que ganhou.H outros que apenas vm, na chegada dessas levas, os homensque, num dado momento, vieram substituir o escravo,salvando-nos de um aperto transitrio. Outros ainda apenas

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    reconhecem o tributo que essa gente pagou ao processo dearianizao e clarificao da raa, porque, isenta depreconceitos da cor, no trepidou em cruzar-se com osdescendente de C.

    O mais belo e mais fecundo significado desse gesto estinscrito no concurso que as levas imigratrias trouxeram obrade reabilitar o conceito do trabalho e de enobrecer o sentido dalabuta. Esse o seu galardo incontestvel, mais importante quea soma de atividade desenvolvida, mais vigoroso que a injeode glbulos vermelhos, mais expressivo que a fortuna reerguida,O imigrante trazia o exemplo do valor do esforo individual ecomo ia para as fazendas e como esse exemplo no lhe custava

    nada, porque naturalmente adstrito sua psicologia, representouum benefcio para ns, na quadra insegura e mal-firme queatravessamos, bem maior que a prpria opulncia. Nunca segabar, por isso, suficientemente, a inteligncia e o descortinodos homens que promoveram a imigrao.

    No se esquea, contudo, para no perder o hbito daserenidade e da imparcialidade, que essas levas s se dirigiram

    para determinadas pores do territrio nacional. E mais aindaque o grosso dessas correntes nos veio daquelas zonas queDelaisi inclui na Europa agrcola, onde maior a porcentagemdo in-preparo individual. Complicvamos o problema j de sidifcil, criando duas zonas distintas no pas: uma em que a lutapela reabilitao do trabalho no gozara do benefcio doexemplo dos homens de outras terras e que se estendia doparalelo de 20 graus para o norte; outra, ao sul do mesmo

    paralelo, em que se iniciara a cura da crise psicolgica, mas emque se criava uma necessidade nova: a de nacionalizar as turmasestrangeiras (1). Tudo, enfim, retornava ao problemafundamental. reeducar as massas, dentro das premissas e dosantecedentes histricos do fenmeno contemporneo.

    Fizemo-lo? Di ter de declar-lo assim em pblico, mas

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    eu s posso, com honestidade, responder de uma maneira:Integralmente, eficazmente ou mesmo suficientemente, no.

    Aparo aqui a exclamao do auditrio, que vejo apingar-lhe dos lbios:

    Mas, ento, estes quarenta anos de lutas obstinadas,de trabalhos tenazes, de reformas contnuas no foramdespendidos no intuito de restabelecer o equilbrio perdido? OBrasil no trabalhou s para isso?

    Sim, trabalhou. Partimos, contudo, de premissaserradas e generalizamos fatos por aparncias enganosas. Paradeixar bem claro o meu pensamento, tenho de retomar o temano ponto em que o larguei no comeo deste captulo.

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    A existncia de uma crise educativa brasileira, paralela auma crise por ns chamada de universal, induziu-nos a ir pediraos pases europeus, regras e conselhos para a nossa conduta.Ora, todos esses povos, avassalados pela crescente

    industrializao de suas atividades, por fora de circunstnciasinexistentes aqui, eram justamente aqueles que nada poderiamoferecer de sua prpria experincia capaz de aproveitar, narealidade, aos nossos problemas. Se no bastasse a contingncia,por eles ignorada, de que nos incumbia reabilitar o esforo noconceito popular, para que nos afastssemos do seu exemplo,era suficiente o fato de que a nossa reorganizao do trabalhono se parecia em cousa nenhuma com a que eles pleiteavam eprecisavam. A deles era na indstria, a nossa era na agricultura,porque indispensvel no olvidar que. em ltima anlise, esta que fora a nica atingida pela revoluo triunfante a 13 demaio de 1888.

    A lgica mandava, portanto, que, a ter de escolhermodelos, nos voltssemos de preferncia para os pases da

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    Europa agrcola, nunca para os da industrial. No o vimos; nemsequer o pressentimos. Por que? No ser difcil explic-lo:

    Pas novo, sem tradies fundamente vincadas e, porconseguinte, sem originalidades retumbantes que cultivar,acompanhmos a corrente que nos pareceu ser a tradicional:havamos sido descobertos por uma raa europia, falvamosuma lngua latina, framos educados por uma mentalidade deemprstimo, a portuguesa, que nos exportou os critrios comque ela prpria erradamente se orientava e que tanto serviam pennsula, como serviriam ao Brasil ou a uma tribo do Estreitode Torres. As nossas produes iam para essa Europa, de ondenos vinham os artigos que nos faltavam, desde as batatas e o

    trigo s idias e sistemas filosficos. Porque no imitaramos osmodelos de organizao de onde nos vinham as mercadorias deluxo e os gneros de primeira necessidade?

    O uso inveterado, entretanto, de examinar o que se fazial fora, para o aplicar fielmente aqui, nos fez esquecer, paraalm de um limite razovel, o nosso prprio ambiente. Mesmotal fato at um certo ponto se compreende: Ratzel ainda no

    aparecera e a geografia humana era, como ainda hoje, umacincia desprezada de que os nossos pr-homens tiramargumentos de mofa e zombaria. E aconteceu que os prpriosremdios e mezinhas prescritos e religiosamente seguidos,imitados por fora de frmulas e receitas que se haviamrevelado hericas em vrias oportunidades, s lograram agravaro nosso estado de sade.

    Dito assim, nesse ar doutrinrio e generalizador,parecem essas frases carregadas de pessimismo. Fique,entretanto, claro, de uma vez para todas, que nada disso h aquie que o meu pessimismo o de um homem que acredita nofuturo de seu pas. O que quero fazer, apontar fatos e dadosconcretos e propor solues prticas, rpidas, realizveis.

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    O pior de todos os achaques do Brasil tem sido essamania da cpia servil e inconsciente sem consulta aos dados dosnossos problemas. E por isso, enquanto o pas ansiava por umalegislao visceralmente rural, imbuda at a medula dos ossosdo critrio da assistncia lavoura, a cpia fez nascer e crescere desenvolver um quadro de leis caracteristicamente urbanistas,de proteo escancarada e deslavada s cidades, deincompreensvel incremento expanso das grandes urbes.

    E isso no meio dos nossos ditirambos vida rural, denossas palindias ao rumo terra, de nossos versos eloqentese bombsticos ao serto em flor, de nossa grita, de nossosalarmes, de nossas tiradas bblicas contra o xodo dos campos.

    Mas, na elaborao das leis, na constituio de nossa disciplinasocial, sempre a cidade que leva a melhor. Toda a organizaode nossos servios pblicos ou de utilidade coletiva feita eprocessada revelia da zona rural e como se ela no existisse. Eos nossos reformadores esto to fortemente imbudos desseconceito fundamental da polis que nem sequer chegam aperceb-lo. -lhes uma segunda natureza, tal qual a dos gregosdos bons tempos de Alcebades. Estarei exagerando? (2).

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    Examine-se, ento, o caso do Distrito Federal. AConstituio prev que ele no permanea onde se acha eestabelece que, quando a mudana se efetuar para o PlanaltoGoiano, o atual municpio do Rio de Janeiro passe a constituirum Estado parte. Praza aos cus que o atual Distrito nunca

    deixe de ser a nossa Capital da Repblica, mas se um dia talacontecer, que Estado ser esse que s possui cabea? UmEstado reduzido a uma nica cidade, com uma pequenssimazona rural anexa e que, dia a dia, mingua e se retrai diante donatural e indetenvel avano dos subrbios. Ter de viver doconcurso dos seus vizinhos e ser, por isso. um Estado suigeneris. No haveria sido mais racional que o antigo MunicpioNeutro, justamente porque compreendia a cidade do Rio de

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    Janeiro, viesse, com a mudana, a ocupar o lugar de capital doEstado do mesmo nome?

    No seria, de certa forma, devolver quela unidade daRepblica a cidade que lhe fora arrancada, ao mesmo tempo quedar grande urbe o complemento rural que lhe justificasse aexistncia?

    Mas no quero ir buscar to longe os exemplos. Prefiroservir-me da prata da casa paulista e no pretendo esgotar oassunto. Muito pelo contrrio. E confio em que a memria dosouvintes saber juntar-lhe as achegas de sua experinciapessoal, dando os retoques que avivem o colorido do quadro.

    Comece o balano pela justia e certifique-se cada qualem como a diviso em entrncias consulta o critrio urbanista: medida que os juzes vo subindo de categoria, vo sendoremovidos para cidades cada vez melhores e com honorrioscada vez maiores. De maneira que as comarcas em que opredomnio rural absoluto, os juzes tm menor retribuio eso, por conseqncia, os novatos no ofcio. Os habitantes das

    zonas rurais levam assim duas desvantagens: funcionrios semgrande experincia, mal pagos, vivendo em ncleos em que aincultura do meio os coloca em situao manifesta deinferioridade e que alimentam o desejo de neles permanecer omenor tempo possvel.

    Ningum afirmar que seja melhor a situao da sadepblica. O que haveria a realizar em matria de saneamento

    rural tamanho que os administradores recuam diante dovolume de despesas que o caso exigiria. Entretanto, nas capitaise nas cidades mais importantes, existe sempre umaparelhamento que custa boa soma ao errio e que, de fato, semovimenta e age beneficamente a favor das populaesurbanas.

    De passagem, pode ver-se como aperfeioado o

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    critrio urbanista num simples detalhe: nos concursos decandidatos a educadoras sanitrias, constitui motivo para asmais baixas colocaes o fato de ser a candidata professora deescola rural. , ou melhor, parece uma niquice essa, masdenuncia um estado de esprito elucidativo.

    Passando organizao bancria, o aspecto no sermais animador. Inmeros publicistas e economistas no sefartam de demonstrar o mal que advm ao pas da falta deinstitutos de crdito de feio popular, cooperativas mais quebancos, a juros baixos e prazos longos, que incentivem einsuflem a vontade da compra de terras de cultura para aexplorao agrcola. So bancos que, nos pases novos e pobres,

    proporcionam, aos que desejam trabalhar por conta prpria,crdito prolongado. Que h disso por aqui? Pouco, quase nada.No faltam, contudo, nas grandes cidades, os institutos quepermitem hoje a qualquer cidado a posse paulatina de seu lar,construdo ao gosto e ao sabor do possuidor. E o prpriogoverno no se olvidou de fazer idntica concesso aos seusfuncionrios para a conquista do lar... urbano.

    Os servios de utilidade coletiva, energia eltrica, luz,telefones do a impresso de que foram inventados s para ascidades. muito rara a Cmara Municipal que trata desalvaguardar convenientemente os interesses da zona rural paraa fcil e cmoda implantao desses melhoramentos. Aindarecentemente, a Cmara de So Paulo encampou, na sua lei paraa renovao do contrato com a Companhia Telefnica, udispositivo caracteristicamente urbanista: delimitou uma rea

    central com seis quilmetros de raio, estabelecendo assim umazona privilegiada dentro da qual as ligaes se podem obter sema cobrana de taxas adicionais. Criou, destarte, municpiosdentro do municpio, prejudicando a zona rural, que a quehabitualmente fica para alm do raio fixado. ndice mais clarodas nossas tendncias abertamente urbanistas, no ser dadoencontr-lo. E mui provavelmente o dispositivo vai ser imitado

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    pelas cmaras das cidades mais importantes do Brasil. E isso,naturalmente, dar direito a que todas as demais empresas deservios pblicos pleiteiem obter clusulas idnticas nos seusfuturos contratos.

    E ns a gritarmos, depois, que os campos se despovoam.Mas evidentemente que se ho de despovoar. Somos ns, oshomens das cidades, que os estamos coagindo a essa prtica,impondo-lhes medidas proibitivas na obteno desse confortoque todos reclamam para viver.

    E agora, respondam a uma pergunta sintomtica: desdequando existe, em So Paulo, uma poltica rodoviria,honestamente seguida de acordo com um plano inteligente? Aresposta simples: desde 1920. Quer isto dizer que, at dez anosatrs, as administraes ignoravam legalmente que ocrescimento de um pas depende, em primeirssimo lugar, daexistncia de bons meios de comunicao. A verdade no essa: elas no o ignoravam, mas que as rodovias beneficiam,de preferncia, os ncleos rurais. E a poltica era outra.

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    Em educao pblica, se no bastasse o fato de quemunicpios ricos e prsperos, como Campinas, que tem umaarrecadao de mais de seis mil contos anuais, s possuem quando possuem servio escolar na sede, no existindo umanica escola municipal nos bairros rurais, poderamos apelarpara o outro vcio de s se haverem criado escolas profissionais,no Estado, com a orientao fidalgamente industrial. S a ltimaescola, a de Sorocaba, que mal tem um ano de instalada, podeostentar algo que se parea com o desejo de tambm acudir sfainas agrcolas daquele adiantadssimo municpio. Ora, asindstrias crescem e proliferam nas cidades, de ordinrio nascidades grandes.

    Observe-se ainda outro fenmeno, que reproduz o caso

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    da justia: os professores que vo para o campo so os quemenores vencimentos tm. A regra perceberem um teromenos, advindo desse fato que a zona rural que recebe osnefitos, isto , os novios mal-sados das escolas normais.

    E registre-se ainda para pasmo do auditrio: o esforoem prol do ensino rural de ontem, representa quase umanovidade em nossas rodas pedaggicas, porque, durante trintaanos de Repblica, a zona dos campos ficou literalmenteabandonada. Iam para ela os poucos e pobres mestres sem aproteo de ningum e sem jeito para arranjar padrinho. E nuncaexistiu um plano de conjunto, bem articulado na sua estrutura,que acudisse efetivamente as populaes mais necessitadas.

    Parece-lhes incrvel?O primeiro movimento de nossos republicanos histricos

    foi organizar a escola citadina. Lendo-se a lei e o regulamentopaulista do tempo, sente-se que h nele uma idia fixa,dominante, soberana: a escola da cidade. E durante trinta anos,as tendncias marcadas de todas as sucessivas administraes,no pensam e no cuidam em outra cousa.

    O sonho o alfabeto. ele que, no verbo inflamado dosnossos e alheios poetas, fecha uma cadeia para cada escola quese abre. Sobrevm a onda dos grupos escolares. Essesestabelecimentos s eram criados nas cidades mais importantes,isto , nas cabeas de comarca. Mais tarde, as sedes demunicpio comearam a receber o rgio presente da escola queno era rgia. E mais tarde ainda que surgiram, timidamente,

    as escolas reunidas, espcie de grupo escolar em escalareduzida. E, assim mesmo, estas s se localizavam nas sedes demunicpio de menor relevncia e nas sedes de distrito de pazque apresentassem densos aglomerados urbanos.

    Em 1920, senhores, enquanto as escolas reunidas noiam alm de 52, com menos de 250 classes ao todo, j os gruposescolares eram 195, com mais de trs mil classes. E as escolas

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    isoladas, se lhes diminuirmos as de sede de municpios edistritos de paz e as escolas e cursos noturnos para aalfabetizao de adultos, que sempre se localizaram nas cidades,no chegavam a mil.

    Estvamos, entretanto, no ano do recenseamento federal,que acusou, para So Paulo, 4.600.000 habitantes, dos quaisapenas um milho e meio residiriam nas cidades e vilas doterritrio do Estado. De modo que, das quatro mil classes deensino oficial existentes, mais de trs quartas partes cabiam auma populao que mal chegaria a um tero da populao geral,destinando-se o escasso quarto restante das escolas aos doisteros da populao no urbana.

    E tenho ainda de fazer uma restrio pondervel a esteltimo nmero. o de lembrar que as chamadas escolas rurais,que permaneciam realmente em funcionamento ativo (porque apraxe era funcionarem poucos meses por ano) se localizavam depreferncia nas estaes das estradas de ferro e em os ncleosde campo prximos s cidades e, portanto, de fcil acesso comas viagens de ida e volta dirias do mestre-escola. Imagine-se,

    pois, a que se reduziria, na realidade, a insignificante minoria deescolas verdadeiramente rurais, situadas em ncleos de zonasafastadas.

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    O primeiro mpeto de espritos desprevenidos seria o decondenar essa poltica como lesiva aos interesses do pas ecomo visivelmente injusta, porque, afinal de contas, a terra aalma-materda vida do planeta. H, entretanto, que ponderar.

    Foi a esse af exclusivista em prol da cidade que, no so aparelhamento do ensino paulista, mas toda a engrenagemsocial do pas, deveu as caractersticas de organismodefinitivamente constitudo que hoje tem. Cidades sempreexistiram e ho de sempre existir, enquanto no globo

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    permanecer esse animal gregrio que o homem. Justo ser queelas usufruam das regalias e proventos que a sua privilegiadaposio de densos aglomerados torna fceis de conceder e a quetm incontestvel e legtimo direito.

    O que h a condenar, portanto, no a preocupao debeneficiar as cidades, mas a de beneficiar s a elas, esquecendotoda a imensa rea que lhes fica em volta e que no desabitada, que no pode ser desabitada, sob pena dedesaparecerem tambm as urbes. Se as cidades, para usar umavelhssima imagem, a que a idade no diminui o poder deexpresso, so como as pedras preciosas de uma gema, no seengastam elas, contudo, no vcuo, mas sobre as peas da jia, e

    essas peas sero sempre de ouro ou de platina, para que a gematenha preo. Esquec-lo equivale a esquecer que, se verdadeque as flores e os frutos dessa rvore gigantesca, que um povo,se alojam, de preferncia, nos meios urbanos, tambm no omenos que o tronco e as razes, isto , o cerne dasnacionalidades, permanecem, precisam fielmente permanecer nocampo.

    No exato, porm, que o hajamos esquecido. Fao essajustia inteligncia brasileira. O culpado de todo essemovimento parcial foi o figurino que adotmos. Quisemo-locopiar com todas as mincias do modelo. O modelo era a cidadeindustrial europia ou norte-americana. E ns, para sermos bemfiis e para merecer os elogios dos mestres, inventamos at umaindstria brasileira. Quer dizer que inventamos, nas palavrasincisivas e sarcsticas de Vivaldo Coaracy, essa cousa em que

    o capital , regra geral, estrangeiro; a mquina estrangeira; osindustriais, estrangeiros; a matria prima, em grande parte, estrangeira; os tcnicos so estrangeiros; o operrio estrangeiro. Nacional s o consumidor. (3)

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    Aquele preceito de equidade e de serenidade para que.seguidamente, tenho apelado nestas palestras, obriga-me aagregar um codicilo minha ltima anlise.

    Na crtica, por mim feita, e a que, sem retrica balofa, sepode chamar implacvel, das diretrizes urbanistas de nossalegislao, no fiz restries algumas quanto ao trabalho destesderradeiros anos. E a justia manda declarar que, de 1920 parac, pelo menos no captulo da educao popular, a obrarealizada a maior de quantas h notcias na histria do pas.

    Como jornalista no o asseverei e no o afirmaria nunca.

    A tica profissional obrigava-me a dizer sempre que, enquantose no atingisse o ponto mximo, a tarefa estaria ainda atrasada.O ponto de vista de quem se pe fora da nao e examina oconcerto universal. Como crtico, que vem analisandoimparcialmente as fases intensas de nosso crescimento interno,no posso negar-me a constatar um fenmeno que se passa aoalcance dos meus olhos.

    E para no abandonar a praxe de servir-me da prata dacasa, tenho de avanar ainda o exemplo de So Paulo.

    A poltica que se vinha seguindo, de s proteger ascidades, teve ainda outros resultados, alm daqueles queassinalei em minha anterior parlanda: permitiu se incorporassem faina civilizadora as mais longnquas sentinelas postadas boca do serto bruto, com o que, medida que auxiliava a tarefa

    rdua e penosa da expanso geogrfica e administrativa doBrasil, ia integrando cada vez maiores tratos de gleba aopatrimnio agrcola nacional.

    E tudo junto serviu para mostrar, com flagrante epalpvel injustia, que se ia afundando cada vez mais o sulconatural existente entre a cidade e o campo. O sulco alargou-se

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    em valeta, acabou virando vala e ameaava transformar-se emabismo intransponvel. No era mais um caminho o quetrilhvamos. Era o descaminho.

    Houve a necessidade de uma reverso completa no modode agir, acudindo zona rural esquecida. Um reformadorprevidente, Sampaio Doria, e um administrador de conscincia,Guilherme Kuhlmann, foram os homens que, ao lado de AlaricoSilveira, iniciaram, no quatrinio Washington Luis, omovimento de reao. E as necessidades eram tamanhas queduas mil escolas lanadas aos campos paulistas foraminsuficientes para contentar a nsia das populaes.

    Veio, porm, em 1925, um refluxo. Tentaram fazer-nosregredir ao ponto de vista que vigorara cinco anos antes e, atcerto ponto, lograram prejudicar o que j estava feito. Era,contudo, impossvel deter o impulso dos acontecimentos eimpraticvel a contramarcha desejada. De 1927 para c,reatou-se o fio do bom senso com a semeadura de mais de duasmil escolas para a zona rural de So Paulo. E apesar de tudo,quem refletir um bocado sobre os nmeros que apresentei,

    relativos aos anos de 1920, ter de concluir que, em matria daquantidade das escolas, as necessidades ainda persistem.

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    Mas e aqui vamos tocar dolorosamente na chaga depois de haver criado e instalado escolas pelos ncleoscampesinos, depois da natural alegria que esse acontecimentodeterminava em quantos sentiam a tragdia muda dos homensda roa, um novo mal principiou a aparecer, pior, muito pior nosseus efeitos, que o analfabetismo. Comearam a se revelarprofticas as palavras da maior cabea que o Brasil produziu nosculo passado, as palavras iluminadas de Alberto Torres, ovidente que denunciara, j em 1915, no seu Problema NacionalBrasileiro, o novo, o grande perigo a que estvamos expostos:

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    Organizmos dissera ele uma instruo pblicaque, da escola primria s academias, no seno um sistemade canais de xodo da mocidade do campo para as cidades e daproduo para o parasitismo.

    A disseminao intensiva das escolas rurais j nos levoua verificar este assombro: estamos furtando da lavoura, pormeio do ensino oficial, aquilo com que de mais slido poderela contar para o seu desenvolvimento.

    As classes primrias transformaram-se em polvossugadores da energia rural, porque envenenam a alma dos filhosdos nossos lavradores, criando-lhes no ntimo a enganosa eperigosa miragem da cidade. O alfabeto, em vez de ser umauxiliar, um amparo, um sustentador da lavoura, virou umtxico poderosssimo e violento. Pe na cabea da juventudealde o desejo louco de aprender para se libertar do fardoagrcola.

    Como se explica o imprevisto fenmeno? Facilmente:levamos s regies do campo uma organizao escolar que est

    profundamente, visceralmente eivada do preconceito urbanista.So simples escolas de cidade implantadas ou enxertadas fora em ncleos rurais. Trazem, apesar do vistoso aparatocultural com que se apresentam, uma irraciocinada animosidadecontra tudo o que relembra o trabalho dos campos, resduo aindada campanha abolicionista, e que transparece no desdmsuperior e absoluto com que as escolas ignoram os laboresrurais.

    Tudo nelas conspira contra o menino incauto que o meiolhe entrega... para perd-lo.

    Os lavradores, com esse instinto de conservao que jazno fundo da espcie, pressentiram-no imediatamente eopuseram-lhe uma guerra tenaz e contnua, como s as sabefazer a sua proverbial testarudez.

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    Pode encarnar-se a luta sustentada pelo bairro contra asua escola, nas queixas e lamrias dos campnios a propsito daorganizao das aulas. Reclamaram, desde longa data, contra ohorrio de funcionamento, contra a durao do estgio dirio,contra o regime de frias, contra o ensino de disciplinas, cujasvantagens no intuam. Tivemo-las sempre em conta defutilidades esses protestos, mas o certo que exprimiam ummal-estar vago e impreciso, que se refletia contra a obraeducativa, invalidando-lhe os melhores esforos pela atmosferahostil que criava contra o mestre-escola. Devia ter uma causaprofunda, diversa da apontada, que nos incumbia estudar.Infelizmente, o mal s se mostrou em toda a sua pujanarecentemente e, apesar de todas as tentativas e experincias,

    ainda continua espera de soluo. Com as antigasadministraes no havia que contar. No percebiam o alcancedessas queixas nem desconfiavam que pudessem ser um sintomade molstia grave.

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    Lembro-me, a propsito, do que me disse um inspetorescolar ambulante, no tempo em que todos eles residiam naCapital e faziam, s vezes, um reide pelo interior, tempo em queeu era um modesto adjunto de um grupo escolar de poucasclasses.

    Chamara-lhe eu a ateno para o fracasso das escolasrurais e dava ele a culpa, como de regra, ao descaso doscampnios, cuja ignorncia no lhes permitia ver os lucros que

    seus filhos teriam com o ensino.Eu, j imbudo de idias pragmatistas, lhe obtemperava

    que isso se dava por motivos vrios, entre os quais avultavam osdas queixas dos homens da roa. Talvez fosse melhor que asescolas funcionassem s trs horas, pela manh ou tardinha ou noite, de acordo com o desejo dos habitantes, com regime defrias de acordo com as necessidades regionais. Seria uma

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    forma hbil de fazer criar um hbito que no havia.

    O velho professor, minha autoridade hierrquica,redargiu-me, severo, com todo o peso e com toda aimportncia de seu alto cargo:

    Como, professor? Pois, ento, o senhor no sabe queisso da lei e que ningum pode opor-se a que ela se executeto rigorosamente como est escrita? Todos, absolutamentetodos, tm de cumpri-la e respeit-la.

    Olhei o inspetor, espantado. Meus olhos disseram-lhe oque eu no disse:

    Porque a lei era uma obrigao geral, ningum acumpria. Porque incumbia a todos aceitar-lhe os ditames,ningum a respeitava e a populao agrcola jazia no maisdoloroso abandono.

    Tive o mpeto de contrari-lo e mostrar-lhe que o erroera justamente da lei. No adiantava nada. O bom do homem,que eu conhecia de longos anos, no chegara a entender que s lei legtima a que representa codificao de costumes e quesempre fora redondamente intil legislar sem a existncia dehbitos. O velho inspetor organizara para seu uso, nas grandescidades em que vivera, o conceito ntimo da lei como um tabulegal, indiscutvel, intangvel, intouchable. Malentendera afuno dos congressos e no chegara a intuir que entre osdeveres mais enrgicos da sociedade, figurava esse da reforma

    das leis omissas, das leis incompletas, das leis peremptas, dasleis inaplicadas e inaplicveis.

    O professor no era um ignorante. O ponto de vistacitadino que lhe amoldara o crebro s idias urbanistas. Paraele, como para tantos outros, o Brasil, estes oito milhes e meiode quilmetros quadrados, s se entendiam cheios de ruas, depraas, de casas alinhadas.

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    E tanto se entende assim, isto , que o ncleo rural apenas uma cidade em esboo que ainda no teve o lazer dedesenvolver-se, que, juntamente com a escola urbana,mandamos para o campo o professor bisonho.

    H quarenta anos, senhores, que o recrutamento domagistrio rural prejudica o pas. J o frisei mais de uma vez etorno a repeti-lo, porque preciso que haja algum com acoragem necessria de cumprir as tarefas ingratas de desagradaros outros e de protestar contra o prejudicial. Coube-me a mimesta parte indesejvel.

    Vai para o campo, de acordo com as nossas leis, omestre novato, apenas sado da forja das Normais, inexperientee inexperto, treinado em estabelecimentos de ensino urbano,onde tudo fcil e cmodo e onde pode pr em jogo, com umacerta probabilidade de sucesso, aquela psicologia de laboratrioque nos chega empacotadinha de fora e que, bem que mal, seajusta ao estudo das crianas que freqentam grupos escolares.

    Tendo quase sempre menos de vinte anos, sobram-lhe,na mente e na fantasia, uma poro de caraminholas e iluses,que o trato duro com a realidade far desaparecer nos primeirosdias de aula. Porque essa criana, por fora da educaorecebida, absolutamente imprpria a entender as almasincultas que a sorte lhe ps entre as mos e menos ainda defazer-se o seu guia e mentor espiritual, e seu amigo. Falta-lhetudo para tanto: falta-lhe a idade, falta-lhe o preparo, acapacidade de adaptao, o savoir faire, o entusiasmo, a f, eprincipalmente aquela qualidade que s a experincia da vidaconcede: a diplomacia, que a aura de irradiao pessoal domestre em volta de si mesmo conquista da simpatia e daconfiana alheias.

    O resultado s pode e s tem sido um: essa criana

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    nunca ser o professor que os meios rurais reclamam.Sentir-se- num inferno, de que precisa sair o mais depressa,custe o que custar. Ali ele se estiola, atrasa e azeda.

    Mas enquanto espera a oportunidade de remoo, quelhe restituir a liberdade, vai difundindo como um portador debacilos insidiosos, idias de hostilidade e combate vida rural,mostrando-lhe as imperfeies, as inferioridades, a incultura,todos os lados feios. E dramatizando, quanto puder, o seuapostolado negativo com exemplos que calam fundo nas almasignaras que doutrina, ou escudando-se na prtica do ridculoconstante e do motejo impiedoso, levar a cabo uma tremendacampanha cujas desastrosas conseqncias ele, o mestre,

    incapaz de prever.Um livro existe, senhores, escrito por uma professora de

    So Paulo, que pe em relevo esse estado de alma. um livrovivido e que, pretendendo narrar um calvrio (4) dossofrimentos do mestre-escola, apenas, conseguiu traar adolorosa odissia da inadaptao do professor ao seu meio. Esem querer, talvez, desvendou, aos olhos dos mais desavisados,

    que ns, pensando organizar um plano eficiente que elevasse onvel mental do homem das glebas, apenas tnhamos levantadocontra ele uma arma traioeira, porque embaindo-o e tornando-oconfiante, lhe vamos arrancando o que ele possui de maisprecioso: a mocidade de seu filho para prolongar, no tempo, asua labuta no amanho da terra, constituindo assim o pundonortradicional da famlia.

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    Evidentemente, esse estado de cousas no podecontinuar. O Brasil no suporta uma sangria das suas forasrurais, que o leve situao das naes industrializadas,possuidoras de 60 ou 70% de sua populao nas cidades.

    No suporta, mas ns vamos indo para l e muito mais

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    rapidamente do que se pensa. Reflita-se sobre estes dados: nodecnio 1910-1920, o Brasil cresceu 14,9% sobre sua populaogeral. Mas a populao urbana aumentou, nesse mesmo tempo,de 18,8% sobre o total anterior, ao passo que a populao ruralteve o mesquinho acrscimo de 3,2%.

    O flagelo urbanista delineia-se em toda a pujana deseus tremendos perigos.

    Que que nos propem se constitua em freio desse rodarvertiginoso?

    Propem-nos, recentemente, com uma insistnciapasmosa, a adoo da escola ativa.

    A lembrana parte de um raciocnio simplista, que,verdadeiro num aspecto, um s e bem pequeno, absurdo paratodos os outros que efetivamente importam soluo doproblema brasileiro. Os argumentos, no fundo, reduzem-se aisto:

    H, no mundo, uma crise educativa geral que , como anossa, uma crise da qualidade das escolas e do tipo de educaoministrado. A Europa e os Estados Unidos j o verificaram eacabaram preconizando a escola ativa como o ideal que aresolve. Porque no os imitamos?

    A analogia pura e simples inspira esse raciocnio. amania da cpia que dita o alvitre, o desconhecimento dasnossas necessidades e singularidades que orienta o prurido dasreformas sociais; a preocupao urbanista, herdada com osangue dos antepassados, que nos tolhe o juzo crtico.Queremos imitar. Mas vale a pena?

    A escola ativa a ltima trouvaille dos meiosadiantados, admirvel de concepo, magnfica de bom senso,genial mesmo, se quiserem, pela inteligncia com que resolve

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    um gravssimo impasse econmico. Mas de onde nos vem? Deinmeros focos, centros de indstria: da Sua, da Blgica, daAlemanha, da Itlia, da Inglaterra, dos Estados Unidos. Cadaum desses pases pode ser representado no quadro da pedagogiamoderna, por um nome: Claparde, Decroly, Kerschensteiner,Montessori, Parkhurst, Dewey.

    Os dois primeiros, ento, desses pases, ficaram mesmo e nem sempre a justo ttulo como os ndices, os estalesdo progresso da nova pedagogia cientfica. So eles, de regra, osimitados e copiados em toda a parte.

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    E, no entretanto, ningum cogitou de que so elestambm dois expoentes da industrializao do globo. Basterelembrar, ligeiramente, os dados da sua geografia fsica eeconmica para verificar que eles tanto nos servem paramodelos como as ilhas de Hawai.

    A Sua tem pouco mais de quarenta mil quilmetrosquadrados de superfcie e quatro milhes de habitantes, o que d

    mais de noventa pessoas por quilmetro quadrado. Isso mesmo fantasia estatstica, que joga com algarismos globais e abstraido clculo os macios gelados dos Alpes, onde a vida impossvel, mas que se computa como terra habitvel. Narealidade, uma quarta parte do territrio helvtico de terrasinaproveitveis; outra quarta parte constituda de florestas e ametade restante destina-se a pastagens.

    Isso explica, sem mais delongas, porque a Sua temuma produo essencialmente industrial: fazendas e sedasmanufaturadas; relgios, jias, doces, mquinas e, sobretudo, aconhecida indstria dos hotis. Quando a Sua se volta para ocampo, tem de adstringir-se pecuria e indstria pastoril:couros e derivados, leite condensado, queijo e manteiga.

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    Agricultura propriamente dita no existe na terra deGuilherme Tell. Ou melhor, para ser rigorosamente exato, existeo empenho oficial de vir a criar uma agricultura sua, o qual,para tanto, vem incrementando, de todas as formas, o aumentodas lavouras. At agora, que se saiba, com a poltica seguida deamparar o produto nacional, s conseguiu a modelar Repblicaaumentar sensivelmente o custo da vida no pas, originado peloalteamento das tarifas aduaneiras.

    Compreende-se tal fato perfeitamente: pas sem matriaprima, situado em to elevadas altitudes, s o engenho humanodesfaria as dificuldades que a natureza armazenou contra a vidado homem. E s a indstria o salvaria. E a prova est nos seus

    cinco mil quilmetros de vias frreas, cortando um pas que asexta parte do Estado de So Paulo, que parece modeladofisiograficamente s para pr em destaque a habilidade dosfabricantes de mapas em relevo e onde as condies tcnicas dotrfego exigiram obras audazes, arrojadas, dispendiosssimas.

    A Blgica ainda melhor exemplo que a Sua: temtrinta mil quilmetros quadrados e sete milhes e meio de

    habitantes, isto , 250 almas em cada quilmetro. Isso querdizer: a superfcie do Estado de Alagoas com a populao deMinas Gerais. Embora seja um modelo de organizao agrcola,essa prpria densidade demogrfica denuncia a causa pela qualpode manter um to exagerado nmero de habitantes em tominsculo territrio: a indstria. Num pas agrcola, umaproporo como essa, entre a terra e o homem, determinaria oregime da fome permanente, como acontece, em condies

    infinitamente melhores, na China, por exemplo. S as indstriasconcederiam se estabelecesse esse recorde da aglomeraohumana.

    E os meios de transporte servem de contraprova aoasserto: a Blgica possui mais de um quilmetro de estrada deferro para cada trs quilmetros quadrados de superfcie,

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    porcentagem que no existe, e duvidoso venha a existir, emqualquer outro canto do planeta. E isso sem falar na intricadarede de canais navegveis interiores, entre o mar, o Escalda, oMosa e os seus afluentes.

    Ambos aparecem tipicamente como pases em que areorganizao do trabalho modificou estruturalmente o regimesocial. E foi para acudir s populaes, desorientadas com asconseqncias dos inventos modernos e da desagregao dafamlia, que nasceram as escolas chamadas ativas. Alis, essasescolas novas so to fruto do organismo industrial que, mesmoremontando o curso de sua curtssima histria, para alcanar asprimeiras manifestaes, tateantes e indecisas, de seu

    aparecimento, no conseguiremos sair da zona fortementeindustrializada da Europa e teremos de nos defrontar com asduas precursoras italianas, as irms Agazzi, de Milo.

    So, conseqentemente, como j mostrei no primeirocaptulo, escolas nascidas da preocupao de ministrar osensinamentos que a famlia no pode mais fornecer e osconhecimentos que as fbricas e oficinas so incapazes de

    cultivar com aquela harmonia exigvel em toda obraeminentemente educativa. Pressupem a existncia de situaesidnticas ou aproximadas, para que o seu emprego d oresultado que se espera: uma indstria em franco florescimento,famlia em decadncia, cidades solidamente organizadas,agricultura em declnio ou pelo menos insuficiente para sustentoda massa da populao.

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    Ser esse, senhores, o nosso caso? Examine-sedesapaixonadamente, imparcialmente o problema, e verifique-seque estamos em situao quando no oposta, pelo menosmuitssimo diversa.

    Toda a estrutura econmica do Brasil

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    fundamentalmente agrcola. A sua riqueza se exprimecomercialmente por intermdio de produtos que se obtm nafaina das lavouras: o caf, a cana de acar, o milho, o feijo, oarroz, o algodo, o mate, o cacau, a borracha, o fumo, as frutas,num total que no anda longe de 90% da produo global. Eentre todas as novas possibilidades, so ainda outros produtosagrcolas que ocupam a primazia.

    Toda a nossa constituio social repousa ainda sobre oconceito da famlia antiga. Certo, est modificada pelos agentespsicolgicos das correntes filosficas, mas, na essncia, aindaapresenta os caracteres de unidade daquela.

    ainda to profundo e arraigado esse conceito que asnossas instituies de assistncia no puderam encadear-se emenos ainda harmonizar-se em plano de conjunto articulado. Eque lhes falta, strictu sensu, o carter de indispensvel. Afamlia ainda impera no Brasil e pode estabelecer aqueles elosque administrativamente no se soldaram.

    A nossa indstria um simulacro rudimentar do que se

    faz nos grandes centros, pobre e pequeno esboo mal-armado deorganismo embrionrio. O que existe de real, espalhado pelopas, inteiro, so, de ordinrio, as pequenas oficinas, onde seformam os artesos, espcie de bonnes tout faire, quepercorrem, demoradamente e pedagogicamente, a escala dasvariadas tarefas de uma profisso, at serem declarados oficiaiscompletos. Quer dizer, regime patriarcal ainda, que, no campo,roa pelo primitivismo.

    As cidades brasileiras... O grosso delas, num regimelatifundirio como o nosso, no passam de lobinhos que vivem sombra das fazendas e estncias circunvizinhas. Poder-se-iamcitar centenas e centenas de ncleos urbanos assim, vegetandosem vida prpria.

    Ningum nega que haja algumas cidades importantes e

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    reais. Mas so poucas e basta um retrospecto sobre a populaolocal para concluir que o brasileiro mora, de preferncia, nocampo. Temos duas nicas cidades de mais de um milho dehabitantes: Rio e So Paulo. Quatro outras ficam entre osduzentos e trezentos mil: Porto Alegre, Salvador da Baa, Recifee Belm. Outras tantas de cem mil, se no mentem asestatsticas e no incorporam ao total da cidade os habitantes domunicpio; outra meia dzia ou dzia e meia de trinta a oitentamil e vem depois a miualha, que vai de cinco a vinte e tantos.Tudo somado, no perfar uma populao urbana de setemilhes. Num pas de 40 milhes certos, como somos hoje, issorepresenta apenas uma sexta parte. Uma quinta ou mesmo umaquarta que representasse, e seria sempre uma minoria incapaz de

    enfrentar numericamente a outra, a que mora nos campos e naszonas agrcolas, que teria sempre a seu favor, na pior dashipteses, um saldo de trinta milhes de habitantes.

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    O quadro descrito obriga a concluir que a escola ativa sserviria naquelas cidades que pudessem ostentar umaparelhamento industrial, que justificasse a aprendizagemorientada para esse lado. Por certo que nessas condies estaria,visivelmente, o nosso Distrito Federal.

    O seu edifcio econmico o da especializao defunes, decorrente no apenas de ser uma cidade industrial,mas tambm a capital da Repblica e porto comercial e militar.Tudo, destarte, concorre para dar-lhe um lugar parte no Brasil,

    e, principalmente, a sua insignificante rea territorial, que noatinge a 1.200 quilmetros quadrados, contando-se as ilhasdesabitadas, os espaos ocupados pelas serras, pelos alagadiose pelos pantanais.

    A escola ativa desde que o queiram resolveria oproblema educativo carioca. Porque l o ensino rural estreduzido a um mnimo inaprecivel, sem vulto para criar a

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    necessidade de uma poltica escolar e o que pior sofrendo diminuies constantes pela funo desagregadora dacidade. A Capital da Repblica alarga-se de ano para ano e osseus subrbios, como um Moloch, exigem sempre novos lotesde terra para construir as casas em que os operrios se iroalojando. As glebas rurais, por conseguinte, as mais prximasdos ncleos j urbanizados, tm de ceder terreno ao avanocitadino e tero de ced-lo at o seu definitivo desaparecimento.No andar muito longe o dia em que os alunos do DistritoFederal, para que possam formar uma idia clara do que sejaum