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O CAFÉ DO BRAGUINHA: O despertar do consumo capitalista no Rio de Janeiro. A criação de um mercado consumidor capitalista Engana-se redondamente aquele que crê que a expansão do mercado capitalista no mundo se fez naturalmente, quase que espontaneamente, pelas leis naturais do mercado ou pela força das coisas, a saber, pelas qualidades inerentes às mercadorias produzidas a baixo custo pelas novas forças produtivas industriais, criadas na Inglaterra durante o último terço do século XVIII, e em pleno desabrochar durante a centúria seguinte. O exemplo do Brasil é flagrante e as fontes que o atestam são muito ricas e variadas, especialmente as aqui utilizadas, como a correspondência diplomática francesa, os jornais e almanaques mercantis, os romances e crônicas de época, bem como os livros de viagem, que nos permitem restituir o quotidiano do consumo na cidade do Rio de Janeiro. É, pois, neste dia a dia da agitação comercial e no burburinho das ruas, onde alguns brancos, em geral europeus ricos, se misturavam a uma multidão de negros e mulatos escravos e uns poucos livres de mesmas cores, que vamos descobrir as astúcias dos comerciantes para acelerar o consumo de seus produtos, importados ou não, criando as condições para o surgimento de um verdadeiro mercado consumidor capitalista, ainda que nem sempre muito burguês devido à forte presença de relações escravistas de trabalho e de dependência pessoal, como no caso dos agregados. Se nos remontarmos às fontes do início do século XIX, especialmente os livros de viajantes e a correspondência dos diplomatas franceses, ciosos de seus produtos de luxo mas que não conseguiam esconder sua inveja do sucesso dos produtores ingleses que, detentores de privilégios alfandegários, monopolizavam o comércio de importação brasileiro, descobriremos que mesmos estes últimos haviam dado uma prova, poder-se-ia dizer, de ridícula inexperiência, ao debutar neste desconhecido mercado tropical da América do Sul. Almir Chaiban El-Kareh Prof. UFF/UERJ/Brasil Doutor EHESS/Paris [email protected]

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O CAFÉ DO BRAGUINHA:

O despertar do consumo capitalista no Rio de Janeiro.∗

A criação de um mercado consumidor capitalista

Engana-se redondamente aquele que crê que a expansão do mercado

capitalista no mundo se fez naturalmente, quase que espontaneamente, pelas leis

naturais do mercado ou pela força das coisas, a saber, pelas qualidades inerentes às

mercadorias produzidas a baixo custo pelas novas forças produtivas industriais,

criadas na Inglaterra durante o último terço do século XVIII, e em pleno desabrochar

durante a centúria seguinte.

O exemplo do Brasil é flagrante e as fontes que o atestam são muito ricas e

variadas, especialmente as aqui utilizadas, como a correspondência diplomática

francesa, os jornais e almanaques mercantis, os romances e crônicas de época, bem

como os livros de viagem, que nos permitem restituir o quotidiano do consumo na

cidade do Rio de Janeiro. É, pois, neste dia a dia da agitação comercial e no

burburinho das ruas, onde alguns brancos, em geral europeus ricos, se misturavam a

uma multidão de negros e mulatos escravos e uns poucos livres de mesmas cores, que

vamos descobrir as astúcias dos comerciantes para acelerar o consumo de seus

produtos, importados ou não, criando as condições para o surgimento de um

verdadeiro mercado consumidor capitalista, ainda que nem sempre muito burguês

devido à forte presença de relações escravistas de trabalho e de dependência pessoal,

como no caso dos agregados.

Se nos remontarmos às fontes do início do século XIX, especialmente os

livros de viajantes e a correspondência dos diplomatas franceses, ciosos de seus

produtos de luxo mas que não conseguiam esconder sua inveja do sucesso dos

produtores ingleses que, detentores de privilégios alfandegários, monopolizavam o

comércio de importação brasileiro, descobriremos que mesmos estes últimos haviam

dado uma prova, poder-se-ia dizer, de ridícula inexperiência, ao debutar neste

desconhecido mercado tropical da América do Sul.

∗ Almir Chaiban El-Kareh Prof. UFF/UERJ/Brasil Doutor EHESS/Paris [email protected]

Para isto, bastaria lembrar que os comerciantes britânicos, ainda na primeira

década daquele século, inebriados pela imprevista, ainda que há muito almejada,

abertura do mercado brasileiro às suas mercadorias, trataram rapidamente de se livrar

de seus estoques, acumulados em seus armazéns e à beira dos cais de seus portos,

enviando para as tórridas cidades do Rio de Janeiro e Salvador da Bahia tudo o que

havia ali, inclusive um enorme suprimento de grossos cobertores de lã, aquecedores a

carvão e até patins de gelo1, esquecendo-se de que o Brasil, felizmente, ficava bem

longe do Canadá e da Groelândia.

Porém, não bastava adequar as mercadorias ao clima do país, era preciso que

elas caíssem no gosto das pessoas e se alinhassem aos seus hábitos. Acontece que a

sociedade brasileira, ainda mesmo a da capital do recentemente elevado reino do

Brasil, era de gostos e hábitos muito simplórios e sequer havia uma tradição de

sociedade de corte. E, ainda em 1816, o representante francês no Rio de Janeiro ao

informar seu ministro em Paris sobre as possibilidades comerciais no país, lembrava

que “os povos selvagens do interior não consomem absolutamente nada” e que com

os “indígenas recentemente civilizados e mesmo os naturais do país que vivem em

sociedade nos campos” não se poderia contar senão para poucas coisas por viverem

em quase completa autarquia e “porque a maior parte se veste com fazenda de

algodão que eles mesmos fabricam”. Poder-se-ia, portanto, dizia ele, reduzir a

população consumidora de mercadorias à que vivia nas poucas cidades. “Mesmo

assim, acrescentava, em todas elas o número de escravos é bem superior ao da classe

livre”. E pior, como não bastasse o consumo de objetos de uso ao alcance dos

escravos ser extremamente limitado, “o calor do clima fez introduzir o hábito, mesmo

entre as pessoas que vivem na abastança, de ficar em suas casas tanto quanto possível

e não se vestir senão para sair”2.

A única perspectiva possível para criar um mercado consumidor para os

produtos europeus era mudar, ao menos, os hábitos da população citadina de algum

poder aquisitivo, o que fora em muito pequena medida alcançado com a transferência

da família real portuguesa e parte de sua administração para o Brasil, seguida de perto

por numerosos comerciantes que aí se instalaram. Todavia, ainda que algumas “das

1 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo duque de Richelieu ao Ministro das Relações Exteriores francês no final de 1816. 2 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo duque de Richelieu ao Ministro das Relações Exteriores francês no final de 1816.

primeiras famílias de Portugal” aí estivessem residindo, a emigração forçada e às

pressas de seu país natal não lhes permitiu trazer grande coisa consigo – e a situação

de suas propriedades, já mal administradas antes mesmo da guerra na península contra

espanhóis e franceses coligados, só piorou com a presença das onerosas tropas

inglesas que aí permaneceram, como aliadas, após a expulsão dos invasores –, o que

“as colocou em situação de viver dos favores do rei”. Havia que acrescentar a esta

pobreza momentânea da nobreza trânsfuga, o fato de que a corte portuguesa sempre

se caracterizara pelo pouco luxo, que a lei Pragmática de 1749 de D. João V não veio

senão reforçar.

E como se isto não bastasse, a morte da rainha D. Maria I, a louca, em 1816,

foi, como era hábito, rigorosamente seguida por um luto de um ano por todas as

classes sociais. E como luto não combinava com luxo e a sociedade tendia a se

moldar mirando-se no exemplo da corte, “tudo, em uma só palavra, contribuía para

tirar um mal partido dos objetos de luxo”3, que era a especialidade dos fabricantes

franceses.

No entanto, os negócios dos ricos comerciantes ingleses e alemães que com

suas famílias se transferiram para o Rio a fim de gerir suas casas comerciais de

importação e exportação iam muito bem. Eles, com sua demanda sofisticada,

reforçaram numérica e qualitativamente a população de alto poder aquisitivo da nova

e provisória capital do império português. Para atender a seu consumo foi preciso não

só importar dos mais corriqueiros aos mais sofisticados produtos de consumo diário

do europeu, inclusive alimentos. Com efeito, móveis, artigos de decoração, faqueiros,

serviços de jantar de louça ou de fina porcelana, enfim, tudo que era necessário para

montar uma casa e pôr uma mesa “de gosto refinado” vinha do estrangeiro e era

caríssimo. Esta ausência de produção local, por sua vez, atraiu um grande número de

artesãos europeus, especialmente franceses, que veio em busca de melhores condições

de vida e não encontrou aqui senão auxiliares escravos despreparados e matéria-prima

importada, muito cara. E como eram os únicos a deter o saber-fazer artesanal, dizia o

cônsul francês, eles fizeram a lei e transferiram aos consumidores “a dificuldade que

lhes custa o trabalho com semelhantes auxiliares e neste terrível clima”4.

3 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo Cônsul Geral, Coronel Maler, ao Ministro das Relações Exteriores francês, em 30/01/1818. 4 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo Marquês de Gabriac, ao Ministro das Relações Exteriores francês, em 03/06/1827.

Enfim, não só as condições sociais e materiais da cidade do Rio de Janeiro

haviam mudado muito, desde 1808, com o aumento da população europeia e a sua

demanda por moradia, palácios, edifícios públicos, ruas calçadas etc., como esta

demanda estimulou o emprego de todo tipo de escravos que se qualificavam e se

especializavam em todos os ofícios, inclusive domésticos, e, consequentemente, a

população cativa, em 1821, já dobrara. Além disso, o medo do fim iminente do tráfico

africano em 1830, exigido pela Inglaterra, incentivou a compra cada vez maior de

escravos. Em consequência, a população cativa, que correspondia a um terço da

população total de 43.376 habitantes até o início do século, passou a corresponder à

quase metade. E nem o surto imigratório europeu da década de 1840, acompanhando

o boom do café do vale do Paraíba, não diminuiu o impulso escravista que seguiu

aumentando, atingindo a cifra de quase 80.000 em 1849, véspera da abolição

definitiva, em 1850, do comércio africano de escravos. Entretanto, sua participação

relativa na população total da cidade diminuíra, sendo menos de 40% dela, sem contar

os libertos, negros e mulatos, que somavam quase 11.000 pessoas.

Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil: A escravidão

urbana no Rio de Janeiro do século XIX.

Entende-se facilmente porque a viajante austríaca, Ida Pfeiffer, ao

desembarcar no Rio em 1842, na Praia dos Mineiros, ali encontrou “uma praça suja,

asquerosa, povoada por alguns negros tão sujos e asquerosos quanto ela, que

agachados no chão vendiam frutas e guloseimas dos quais gabavam a qualidade aos

gritos”5. E não muito longe dali, no final da Rua Direita (atual 1º de Março), estava a

residência do rei, o Palácio do Paço. A praça que se estendia diante dele, “ornada de

um chafariz bastante simples e muito sujo”, também servia de dormitório a muitos

pobres e negros livres que, de manhã, tomavam tranquilamente o seu banho diante de

todo o mundo. Chocada, ela esbarrava a cada passo com “criaturas repugnantes,

negros e negras com feios narizes chatos, lábios grossos e cabelos curtos e crespos” e,

ainda por cima, quase sempre seminus: as mulheres com blusas que mal escondiam os

seios, quando não os traziam totalmente expostos; e os homens levando uma pequena

tanga, simples farrapo, ou velhas roupas gastas de seus senhores que acentuavam suas

linhas e seus volumes, mas que não escondiam este seu aspecto esmolambado,

tornado ainda mais horrível pelas doenças, inclusive a elefantíase. E esta feiura geral

parecia contagiar até os cães e gatos que em multidão percorriam as ruas, “a maior

parte deles pelados ou cobertos de feridas e de sarna”6.

Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil: A

escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX.

O ramo da restauração

Numa tal sociedade, em que a clivagem social era muito acentuada e a

população formada basicamente por escravos e homens pobres, negros e mulatos

5 Ida Pfeiffer, Voyage d’une femme autour du monde, p. 26. 6 Ida Pfeiffer, Voyage d’une femme autour du monde, p. 28.

forros e jovens imigrantes, geralmente despreparados profissionalmente e recebendo

salários irrisórios, era natural que alguns empresários se decidissem por um serviço de

alimentação voltado para a minoria dos abastados.

Segundo o periódico publicitário anual, Almanak Laemmert, de 18457, ano

seguinte ao seu lançamento, os hotéis, casas de pasto e cafés da cidade do Rio, todos

confundidos, eram em número de vinte e cinco a se dividir a parcela mais rica da

sociedade carioca, e todos eram de propriedade individual.

Este mesmo Almanak estampava, pela primeira vez, a lista de tavernas da

cidade, na qual certamente estavam incluídas as vendas, identificando-as apenas pelo

endereço, do que se desculpava: “O excessivo número destas casas não nos permite

por ora serem elas mencionadas nominalmente”.

Este excessivo número se explicava por sua popularidade: aí se comia

basicamente carne-seca com farinha de mandioca e peixe frito, que eram os alimentos

mais baratos, bem como se bebia o que havia de mais em conta: cachaça – aguardente

de cana de má qualidade – e vinho tinto português do pior. E, porque exigiam um

pequeno capital inicial em sua montagem, o serviço era péssimo, pois os locais eram

escuros, sujos e mal cuidados, e os produtos oferecidos eram os da pior qualidade. O

que não impedia que as tavernas e as vendas fossem muito apreciadas pela ralé que,

privada de uma espaço íntimo, as havia elegido como local predileto de reunião e

lazer.

Não espanta, pois, que elas totalizassem o incrível número de 984! e que

estivessem espalhadas por todas as ruas da cidade, inclusive em suas freguesias rurais

e mesmo nas insulares, as Ilhas das Cobras, do Governador e Paquetá. E a análise de

sua distribuição espacial nos revela que elas se concentravam sobretudo nas ruas do

centro da cidade, especialmente as mais próximas dos cais, particularmente o da

Alfândega. Com efeito, eram muitas as ruas que continham cada uma dez, quinze e,

duas delas, até vinte destes estabelecimentos! E isto numa cidade de menos de 200

mil habitantes, escravos inclusive!

Sem embargo, no ano seguinte, em 1846, o almanaque se absteve de

enumerá-las, alegando laconicamente que “sendo o número destas casas excessivo,

não é possível por ora mencionarem-se nominalmente, e como as alterações têm sido

7 O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert) era uma publicação anual e os dados nele contidos eram coletados sempre com um ano de antecedência. Logo, suas informações se referem sempre ao ano anterior ao de sua publicação.

poucas, pode servir de guia a relação publicada no Almanak anterior”8. E, a partir de

1847, ele sequer as menciona. O que se pode explicar facilmente, ainda que

hipoteticamente: os taverneiros e vendeiros não se interessaram em constar do

almanaque porque isto lhes custaria algum dinheiro e, certamente, porque sua

clientela, pobre, iletrada e analfabeta, não lia jornais e muito menos comprava

almanaques.

A desproporção entre o número de restaurantes e o de tavernas refletia muito

bem a clivagem social da cidade entre uma pequena minoria de ricos e uma

significativa maioria de pobres e escravos. Aliás, o razoavelmente preciso censo de

1849 avançava que, na cidade do Rio, para um total de 205.906 habitantes, 79.999

eram brasileiros, 78.855 escravos, 10.732 libertos e 36.320 estrangeiros. Destes

últimos, 28.936 eram dos sexo masculino, em sua maioria portugueses, e todos muito

jovens, celibatários e pobres.

Por sua vez, os poucos nove cafés e botequins listados em 1844 deviam, da

mesma maneira, corresponder verdadeiramente à sua reduzida clientela numa

sociedade onde, apesar da pequena burguesia ligada ao comércio varejista estar se

expandindo, o numeroso pessoal do comércio, os caixeiros, era em sua grande maioria

mal remunerado, formando antes uma clientela potencial das tavernas, vendas e

vendedoras ambulantes de alimentos preparados.

Ora, o resultado não podia ser outro: os pequenos capitalistas ligados à

indústria da restauração passaram a disputar acirradamente os poucos consumidores

de renda média da cidade, e as fronteiras entre os diferentes estabelecimentos de

produção de alimentos preparados, inclusive as padarias, se borraram. De repente,

viam-se cafés, botequins, padarias e restaurantes anunciando os mesmos produtos,

geralmente, salgadinhos, como as empadas, que podiam ser consumidos in loco ou

levados. Eis um deles: “Empadas de Galinha, de filhote (pijonneau), de palmito com

camarões e de peixe, haverá hoje na padaria francesa da rua da Carioca n. 119 A”9.

O êxito das confeitarias, frequentadas pela nata da sociedade, bem como o

sucesso retumbante das tavernas, expõem claramente as dificuldades daqueles que se

voltavam para as camadas médias urbanas, envolvidas num espaço tomado pela

miséria e sujeira de homens livres pobres e escravos que contrastava com a beleza

cheia de cores dos quadros do pintor francês Jean-Baptiste Debret ou a descrição

8 Almanak Laemmert, 1846, p. 293. 9 Jornal do Comércio, 05/01/1851, Anúncios, p. 3.

idílica do também francês Ferdinand Denis, aproximando-se mais do relato da

viajante austríaca, Ida Pfeiffer.

Cafés e botequins

As dificuldades encontradas pelos capitalistas que desejavam investir no

ramo dos cafés e botequins foram certamente grandes por terem que lidar com a

franja da população menos abastada e de origem humilde recente, fosse ela brasileira

ou estrangeira, que guardava hábitos e comportamentos que não se adequavam aos

valores e etiquetas de consumo burgueses. E não seria demais lembrar que a parcela

de estrangeiros, potencialmente capaz de introduzir novos hábitos de consumo na

sociedade carioca era de 15% em 1838, passara a 29% em 1849 e a 42% em 1872,

não cessando de crescer cada vez mais aceleradamente desde então.

Fonte: Soares, L. C. O “povo de Cam” na capital do Brasil.

É bem verdade que a composição social dos imigrantes era muito díspar,

sendo em sua grande maioria formada por jovens portugueses celibatários do sexo

masculino, pobres e profissionalmente desqualificados, que chegavam entre os 10 e

12 anos de idade e se empregavam sobretudo no comércio como caixeiros, garçons,

ajudantes de cozinha etc. Aliás, na cidade do Rio, onde a população celibatária

correspondia a 73,48% do total, havia um excedente de quase 30 mil jovens solteiros

do sexo masculino, e esta defasagem só podia ser atribuída à imigração.

Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil.

E era muito comum que esses jovens caixeiros aí fizessem um pecúlio com o

qual abriam um negócio no mesmo ramo, individualmente ou associados a outros

pequenos capitalistas. O que explica o enorme número de pequenos negócios de todos

os ramos, que surgiram em toda a cidade para a atender a uma população imigrante

em constante crescimento.

No ramo dos cafés e botequins, este crescimento chega a ser vertiginoso,

atingindo uma média de 46% ao ano, o que correspondia em parte ao crescimento da

população urbana masculina e seu maior poder aquisitivo, reflexo de uma mobilidade

social ascendente muito forte:

Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.

Mas o alto índice de fechamento ou mudança de proprietários destes cafés –

cuja média foi, entre 1855 e 1889, de 46,25%! – poderia ser explicado, quando não

pelas recorrentes crises comerciais da praça do Rio, ao menos pela falta de

experiência dos novatos neste ramo de comércio, alvo de tanta concorrência.

Fonte: Almanak Laemmert, 1855-1889.

Evidentemente, o resultado de uma oferta tão grande de cafés provocou uma

concorrência acirrada entre os proprietários dos mesmos. Este fato pode ser detectado

nos artifícios que foram usados para atrair e conquistar o maior número de clientes

possível. Um deles, talvez o mais poderoso de todos, foi a introdução do bilhar, que

parece ter sido a coqueluche de 1855 a 1870, mas que exigia um investimento muito

elevado em espaço e em aparelhamento.

Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.

A mania do bilhar

O jogo de bilhar, que se democratizou na França no último quarto do século

XVIII, chegou ao Rio nos anos 1840. Por ser o bilhar um esporte masculino, e por

reunir muita gente bebendo e falando alto, muitos hotéis e botequins preferiam

reservar-lhe um espaço à parte, ou no térreo, ou no prédio ao lado, ou no sobrado,

para não prejudicar parte de sua clientela. Mas isto implicava na utilização de um

espaço maior.

Para se ter uma ideia aproximada dos investimentos que os proprietários de

cafés e botequins, em geral, eram compelidos a fazer, não só pela concorrência entre

eles, mas também para se adaptarem às transformações dos hábitos de sua clientela,

cada vez mais europeizada, sofisticada e exigente, basta comparar o preço, em 1859,

de uma mesa de bilhar que custava 1:100$000 (um conto e cem mil réis) e o de um

escravo 1:200$000. Em outras palavras, significava dizer que montar um negócio,

como o Café Imperial, com 18 mesas de bilhar correspondia a criar uma empresa

com cerca de 18 escravos jovens. E como um escravo urbano rendia em media mil

réis por dia, o negócio do bilhar devia render mais do que isso para ser um

investimento vantajoso, pois sua desvalorização era mais rápida do que a de um

escravo.

O valor muito elevado de uma mesa de bilhar, que se impunha pela tecnologia

e materiais cada vez mais avançados necessários à sua fabricação, explica porque

apenas os seus fabricantes nacionais (que também eram importadores) e as sociedades

de capital, como a Seara, Leão & Cia., então proprietária do Café Imperial, eram os

únicos capazes de investir tão pesadamente em cafés-bilhares, e porque foram os

únicos que sobreviveram depois de passar a moda e a época de ouro do bilhar no

segundo reinado.

O auge da popularidade do bilhar foi alcançado por volta dos anos 1855-1860,

quando 49% dos cafés possuíam bilhares, sendo que o Café Imperial possuía 18

mesas e o Cercle de l’Académie, 14. E a propaganda, em 1856, do “Café da Suíça”10

nos fornece o valor de uma partida de bilhar: de dia 400 réis, e de noite, quando a

procura era maior, 800. Se somarmos o preço de apenas uma partida ao de uma

garrafa de cerveja nacional, que ali custava 320 réis, teríamos que, à noite, o consumo

mínimo era de uns 1$120 (mil cento e vinte réis). Ou seja, o preço de um jantar no

elegante Restaurant à moda de Paris do Hotel dos Estrangeiros11 , o que significa

dizer que bilhar não era para qualquer um. Ali, servia-se também vinho “em garrafas

e meias garrafas”, refrescos e café, e seu proprietário lembrava ao público que, no seu

interior, havia uma exposição “de quadros de pintura de paisagens”. Com efeito, além

do seu poder de atração, o bilhar ensejava o consumo de bebidas, preferencialmente

10 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, p. 3. 11 Correio Mercantil, 20/10/1856, Anúncios, p. 3.

alcoólicas, e de salgadinhos como “as afamadas linguiças de fígado de porco por

porções”12.

Entretanto, o número de cafés-bilhares caiu drasticamente, tanto relativa como

absolutamente, a partir de 1875, não representando então senão 7% da totalidade dos

cafés, e apenas 1% em 1885, quando do total de 233 cafés somente 3 possuíam

bilhares.

Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.

Mas o bilhar não foi a única forma de fazer o café se tornar mais atraente, o

boliche também. De fato, só houve um em toda a cidade e havia sido inaugurado em

1865 pelo norte-americano Augusto C. Prengel. Sem embargo, no ano de 1875, ele já

não constava da lista do Almanak Laemmert como a maioria dos cafés-bilhares.

Outra experiência foi o café-concerto. Tudo indica que ele foi tentado muito

cedo, ainda que informalmente, contratando-se músicos amadores, até que o francês

Brisson inaugura, em 1864, o El Dorado (Espetáculos e Concertos), mas que não

durou mais de três anos.

Organização financeira dos cafés e botequins

A análise da organização financeira dos cafés mostra que havia uma

tendência crescente à formação de sociedades, especialmente as de pessoas, que

atingiram uma média de 14,80% do total no período entre 1870 e 1889, enquanto que

as de capital alcançavam a média de 8%. Ainda que permanecessem amplamente

minoritárias frente às empresas de propriedade individual, cuja média para o mesmo

12 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, p. 3.

intervalo era de 77,4%. Sem embargo, em 1889, 32% de todos os cafés já estavam

organizados por sociedades e esta tendência podia ser um sintoma do esforço em

investir cada vez mais em qualidade, em resposta à clientela cada vez mais exigente

que acorria às luxuosas confeitarias, ponto de encontro da alta sociedade, de políticos

e de jornalistas à cata de furos do noticiário.

Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.

Fonte: Almanak Laemmert, 1845-1889.

O Café do Braguinha

O português José de Souza e Silva Braga, que ficou conhecido como

Braguinha, é sem dúvida o melhor exemplo de um proprietário de café que se

esforçou para aumentar o número de sua clientela procurando agradá-la pela

qualidade de seu serviço e dos produtos oferecidos, e para conquistá-la usou, como

ninguém até então, da publicidade.

Seu Café da Fama, incluído na primeira edição do Almanak Laemmert de

1844, mas que tudo leva a crer já existia desde 1840, estava situado na Praça da

Constituição, um dos pontos mais bem frequentados da cidade devido não só à

presença do Teatro São Pedro de Alcântara – frequentado pela família real bem como

pela elite carioca, que aí vinha menos pela Ópera Italiana do que por razões sociais –

como também de outros teatros e inúmeros cafés, restaurantes e hotéis, tornando-se,

com o passar dos anos, um dos grandes centros de lazer da cidade.

Já no primeiro número do Almanak, o Braguinha inova, inserindo uma singela

publicidade na simples listagem das casas de restauração. E, no número de 1847,

acrescenta às quatro linhas da publicidade anterior mais três linhas e meia, deixando

claro que estava decidido a investir em propaganda. No entanto, o grande passo na

área do marketing foi dado no ano de 1855, quando ocupa uma página inteira do

Almanak com uma enorme propaganda em prosa e em verso, encabeçada pela gravura

de um anjo arauto avantajado que, ao invés de trazer, como no Almanak do ano

anterior, uma trombeta na mão direita e uma coroa de louro na mão esquerda, trazia

naquela uma faixa com os dizeres “Sem mistura ou usura”, referindo-se ao seu leite e

a seus preços, e nesta uma xícara de café! E, como preâmbulo ao texto, utilizava a

seguinte sugestiva estrofe de Camões: “Cantando espalharei por toda a parte, Se a

tanto me ajudar engenho e arte”13.

Fonte: Almanak Laemmert, 1855, p. 569.

Desta forma, modificando à vontade de sua imaginação os clichês até então

disponibilizados pelas gráficas dos jornais, ele revolucionou a arte da propaganda de

13 Almanak Laemmert, 1855, p. 569.

seu tempo14. E, assim, fazendo uso de textos em versos fáceis de serem memorizados

por seu conteúdo sarcástico e jocoso, procurava “servir a toda a gente”. E porque

tratava sempre de questões ligadas ao dia a dia, a leitura deles é uma rica fonte de

informações sobre a sua atividade comercial bem como sobre a vida cotidiana carioca.

De sua leitura é possível depreender, passo a passo, as artimanhas comerciais

usadas para atrair a freguesia e aumentar os lucros dos capitalistas. Assim, a partir de

1847, oferece “bandejas de doces e tudo o que pertence a este ramo de negócio” e a

“boa orchata em massa, feita da pevides de melancias”15, sofisticando um pouco o

muito simples cardápio do qual constava apenas o “superior café com leite, chá,

chocolate etc.”, além da venda de “leite puro de vaca, todos os dias de manhã”, o que

lhe dava, em realidade, um ar muito roceiro e pouco cosmopolita.

Tudo leva a crer que, já em 1849, o Café do Braguinha, situado na Praça da

Constituição (hoje Tiradentes), tinha alcançado certa notoriedade, pois em seus

anúncios não mencionava o seu endereço, e uma casa de pasto sua vizinha, ao se

anunciar no Jornal do Comércio, avisava apenas: “Na casa de pasto junto ao botequim

da Fama do Café com Leite, há todas as semanas, nas terças e quintas-feiras a boa

feijoada, a pedido de alguns amigos […]”16.

No entanto, o Rio dos anos 1850 já se havia sofisticado muito para se contentar

com este cardápio, e os sofisticados cafés e confeitarias da Rua do Ouvidor

concentravam a nata da sociedade carioca. E é para lhes fazer concorrência que o

Braguinha, em 1853, reforma a sua loja, a transforma num estabelecimento “muito

espaçoso com um grande salão, com seis portas, muito arejado”, introduz um

mobiliário novo e mais confortável e passa a oferecer um menu mais sofisticado

contendo inclusive sorvetes, que eram vendidos “todos os dias (se o tempo permitir)

das 11 horas da manhã até à noite”17. E, em 1854, passa a utilizar assiduamente a

publicidade no quotidiano Correio Mercantil, jornal de segunda maior tiragem no

país, depois do Jornal do Comércio, do qual também se serviu. Aí, dá asas à sua

imaginação e à sua verve utilizando-se dos fatos da atualidade para a sua propaganda.

E, de fato, seu estabelecimento, que já não vendia mais leite fresco de vaca,

apesar de começar pela letra F, vinha em primeiro lugar na lista dos avisos de Cafés,

14 Almir El-Kareh, “Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte”: Propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870). 15 Almanak Laemmert, 1854, p. 514. 16 Jornal do Comércio, 16/01/1849, Anúncios, p. 4. 17 Correio Mercantil, 27/09/1856, Anúncios, Sorvetes, p. 3.

Botequins, Bilhares etc. do Almanak Laemmert18. Pois, “Senhores! O Silva Braga,/

Homem baixo, mas troncudo,/Há de dizer tantas cousas,/Que o mundo fique

espantado! 19 . E por isso não regateava linhas nem espaços, ocupando o campo

correspondente a uma página inteira do almanaque. E, diariamente, textos igualmente

longos, que se renovavam quase semanalmente, eram publicados no Correio da

Manhã.

Agora, era preciso fazer com que seus fregueses permanecessem em seu café o

maior tempo possível e que consumissem sempre mais. Para isto, não bastava

proporcionar-lhes maior conforto e bem-estar oferecendo-lhes um espaço mais amplo

e agradável, arejado e com um mobiliário acolhedor. Ademais de um atendimento

personalizado, dado por garçons “sempre alertas” e por ele próprio, “bem cortês”,

junto às mesas, e um cardápio mais variado, Braguinha, como outros empresários do

ramo da restauração, para reter mais longamente seus clientes, colocou à sua

disposição jornais, de forma que “Agora pode o freguês/Tomar café com franqueza,/E

ler as folhas do dia/Que andam por cima da mesa”20.

Mas suas artimanhas não paravam por aí. Aproveitou-se da proximidade do

Teatro São Pedro de Alcântara para enviar seus garçons para “fornecer de sua casa

ceias de café, de chá e chocolate, licores, refrescos, doces, e enfim de tudo, para os

camarotes, nas noites que houver espetáculo”21, sem acréscimo dos preços. E como

não era o único a assediar com os seus caixeiros os amantes da ópera, que com razão

se queixavam, ele prometia que os seus garçons não iriam oferecer nada nos

camarotes, mas estariam prontos para lá levar apenas “as encomendas que lhe

fizerem”22.

É evidente que este serviço de melhor qualidade, que extravasava os limites do

estabelecimento – indo mesmo oferecer em domicilio aos fregueses “que quiserem cá

da Fama/ Tomar o belo café/ De manhã bem cedo na cama”23 –, o obrigava a fazer

mais gastos com pessoal da cozinha e do serviço das mesas, o que pode ser

comprovado com os repetidos avisos de procura por novos empregados24.

18 Almanak Laemmert, 1854, p. 514. 19 Almanak Laemmert, 1857, Notabilidades, p. 93. 20 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 21 Almanak Laemmert, 1856, Cafés, botequins e bilhares. p. 608. 22 Almanak Laemmert, Cafés, botequins e bilhares, 1857, p. 94 23 Almanak Laemmert, Cafés, botequins e bilhares, 1857, p. 94 24 O Correio Mercantil dos dias 04 e 06 de maio de 1856 anunciava respectivamente : “Precisa-se de um caixeiro para a Fama do Café com Leite, e um ajudante de cozinha” e “Precisa-se de mais uma pessoa para o serviço das mesas na Fama do Café com Leite”. E nos dias 30 de agosto, 4 de outubro e

Sensível às mudanças sociais, em particular o ainda que muito tímido passo da

mulher em direção ao espaço público da restauração, arrogantemente masculino,

Braguinha abriu, em 1857, uma nova “sala por cima do seu café unicamente para

receber famílias e tomar sorvetes ou qualquer outra coisa” 25 . Com bom gosto

preparada, era “um salão-toilette”, onde “senhoras terão entrada”. Tentava, assim,

contra-restar a forte e irresistível concorrência dos luxuosos cafés e confeitarias da

Rua do Ouvidor, principal artéria de moda feminina e de encontro da alta sociedade:

“Nem se precisa p’ra isso/Ir à rua do Ouvidor/Há na Fama do Café com Leite/Um

salão de primor”26.

Sabedor do apreço que os cariocas tinham pela música, aderiu ao café-concerto

a fim de atrair mais fregueses e retê-los mais demoradamente. Em 1864, seguindo de

perto a experiência do francês Bisson, que no ano anterior inaugurara seu Café El

Dorado (Espetáculos e Concertos), ele anuncia em versos o seu “Café Cantante”27. E,

numa propaganda de 1869, um cliente fictício comentava a respeito do pianista:

“Olhe, compadre, o tocador é magnífico, toca muita coisa que eu não tinha ouvido”28.

De fato, o Braguinha tudo fazia para atrair os setores médios da sociedade –

Aqui entra o deputado,/E também o senador;/Entra o padre, o militar,/Escrivão, juiz,

doutor”29 – que podiam dispor de tempo ocioso para frequentar, à tarde, as rodas que

se juntavam para papear e “os cafés tomar”. Mas, como atrair os comerciantes, para

quem tempo era dinheiro e formavam o grosso da população com poder aquisitivo

médio e elevado? A saída foi o cafezinho.

Com efeito, em 1855, ele lança a meia-xícara de “café simples muito bem feito”

a vinte réis. Teria sido ele o introdutor do cafezinho? De qualquer modo, reduzindo

em metade o conteúdo e o preço da xícara de café, ele procurava estimular o hábito de

seu consumo repetido, “Para que eles venham sempre,/Por dia quatro e seis vezes”30,

25 de dezembro daquele mesmo ano, este periódico anunciava respectivamente: “Precisa-se de um ajudante para cozinha, prefere-se brasileiro, para a Fama do Café com Leite”, “Precisa-se de um moleque pequeno [um negrinho africano] para lavar louças na Fama do Café com Leite, que seja de boa conduta” e “Precisa-se de uma pessoa para o serviço das mesas na Fama do Café com Leite”. Ainda no dia 20 de fevereiro de 1857 Braga anunciava pelo mesmo jornal: “Precisa-se de mais duas pessoas ativas para o serviço de mesa na Fama do Café com Leite”. É interessante notar que o café era tão conhecido que não havia necessidade de indicar o endereço em nenhum dos avisos. 25 Correio Mercantil, 28/02/1857, Anúncios, A Fama do Café com Leite. O teatro S. Pedro, p. 4. 26 Correio Mercantil, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 27 Jornal do Comércio, 04/09/1864, Anúncios, Fama do Café com Leite, p. 3. 28 Jornal do Comércio, 30/03/1869, Publicações a Pedido, p. 1. 29 Correio Mercantil, 15/06/1856, Anúncios, p. 3. 30 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.

pois “Quanto mais café tomarem/Mais saúde lograrão;/E os cobres vêm p’ra

gaveta/Tin…tin…tin…tirilin… tin…tão”. De fato, teria bastado, como outros

empresários provavelmente já o faziam, enganar os fregueses diminuindo o tamanho

das xícaras – “Mas podia ganhar muito/Se as xic’ras fossem pequenas” 31 –, mas

preferia lucrar com o aumento de sua venda e com a maior frequência de sua casa.

Desde então, o cafezinho foi o carro-chefe de seu estabelecimento. Assim, em

pé, junto ao balcão, tomar um cafezinho quente, em alguns goles, se tornou um hábito

e um pretexto para uma pequena pausa no trabalho do comerciante e do artesão. E

convidar alguém para um cafezinho era uma forma de agrado a um amigo ou freguês.

Fazia-se negócio tomando um cafezinho e o cafezinho se tornou um grande negócio:

“As colunas que sustentam/A Fama com galhardia,/É ter sempre bom café/E uma

nobre freguesia”32.

Conclusão

Não há dúvida de que a iniciativa do editor Laemmert de lançar seu Almanak

Administrativo, Comercial e Industrial, em 1844, já era um reflexo do rápido

progresso econômico e social brasileiro liderado pela expansão da produção cafeeira

da província do Rio de Janeiro. Desde então, a aristocracia cafeeira fluminense e a

burguesia carioca tiveram maior ascendência sobre o poder central e transformaram a

capital do Império numa moderna metrópole iluminada a gás, servida por um

moderno sistema subterrâneo de esgoto de águas pluviais e servidas, e aprovisionada

de água potável até o interior das casas. Novos bairros residenciais surgiram na

periferia da cidade, para onde as famílias ricas migraram, e o desenvolvimento do

transporte terrestre sobre trilhos e do aquático a vapor estimularam este movimento de

separação residencial entre ricos e pobres. No entanto, a população mais pobre

continuou habitando o centro da cidade que se especializou como local de trabalho e

de lazer. Aí, os limites entre riqueza e pobreza eram menos nítidos e mais simbólicos,

representados nas aparências das coisas e dos corpos. Tudo isto, é claro, marcou as

transformações aceleradas por que passava o comércio de alimentação.

Braguinha não tardou a saudar estas inovações que tendiam a segregar a

população pobre de certos espaços públicos. Assim, dizia ele, o “O Braga quer

31 Correio Mercantil, 07/12/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 32 Correio Mercantil, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.

freguesia/De gente limpa e asseada”, “Desordeiros, malcriados,/Na Fama não fazem

vaza”33. Por isso, podendo “Beber café com leite/A qualquer hora do dia”34, “Já não

fica mal a alguém/O entrar em um botequim/Muito mais quando asseado,/Pelo gás

iluminado”35.

Com efeito, especialmente depois de 1840, o importante contingente de

europeus, sobretudo artesãos, artífices e empregados do comércio, revolucionou os

hábitos urbanos cariocas, marcados até então pela inibidora produção doméstica. E,

finalmente, o Rio de Janeiro sucumbiu ao apelo do consumo burguês, transformando-

se num importante desague para a crescente produção industrial europeia.

Mas a concorrência entre os cafés e seus congêneres era tanto mais acirrada

quanto o público visado era o menos numeroso e de poder aquisitivo mais elevado, e

também mais sofisticado e exigente. O Braguinha, como tantos outros restauradores,

havia investido uma grande soma de capital na sua loja, muito bem situada, em sua

fachada e seu interior, em mobiliário, louças e talheres finos, que deviam ser

substituídos incessantemente, em parte devido à má qualidade da mão-de-obra que

empregava, normalmente rapazes muito jovens e inexperientes, muito mal pagos. Eis

como ele faz o balanço, fictício e superfaturado, do ano de 1856:

“Durante o ano quebraram-se/Xícaras finas – vinte mil;/Dez mil ficaram

rachadas/Que não valem um ceitil!/Dois mil e seiscentos bules/Que

mandei vir do Japão,/Ficou tudo em cacarecos/Espalhados pelo chão./Dez

mil e quinhentos pires,/Com seis grosas de leiteiras/Foram quebradas num

dia/Com sete mil cafeteiras/Dez grosas de facas finas/Com seus cabos de

veado,/Apenas existe um cento,/E esse mesmo maltratado./Manteigueiras,

paliteiros,/Colheres de prata de lei,/Perdem-se tão grande soma,/Que com

certeza, não sei”36.

Ora, sendo a manutenção destes estabelecimentos relativamente custosa e

constante, eles estavam permanentemente sujeitos ao desfalque e vulneráveis às

crises. O Café do Braguinha havia resistido com galhardia às crises provocadas tanto

33 CM, 15/06/1856, Anúncios, p. 3. 34 CM, 06/07/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 35 CM, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 36 Correio Mercantil, 07/12/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.

pela luta entre comerciantes atacadistas e importadores, episódio conhecido como o

Convênio (1849-1850) 37 , que muito afetou o comércio, da mesma forma que as

epidemias de febre amarela (1850) e cólera (1855) que fizeram despencar as vendas.

E como sói acontecer nestas ocasiões, o Braga se enriqueceu ocupando o espaço

daqueles que não suportaram a queda drástica do consumo. E, como dizia, “Lá

enquanto ao vintenzinho/Que o Braga fez aumentar,/No tempo em que nos

achamos/Não são coisas de estranhar”38.

No entanto, a crise econômica provocada pela Guerra do Paraguai, muito longa

e desgastante (1864-1870), parece que lhe causou, como ao comércio do Rio em

geral, muito dano. E, de fato, o Brasil, envolvido neste conflito até o pescoço, aí

enterrou um mundo de dinheiro e um sem número de homens em idade produtiva. E a

cidade do Rio de Janeiro – onde as tropas estacionavam e se aparelhavam antes de

partir para a frente de batalha e que recebia aqueles que dela voltavam enfermos e

inválidos – sofreu mais ainda com este acúmulo de gente pobre, mal vestida e mal

alimentada, foco de doenças, de contaminação e contágio. E como miséria e consumo

não formam par, o comércio da cidade ficou profundamente abatido, especialmente

aquele voltado para o lazer:

Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.

No entanto, se tomarmos como parâmetro de seu sucesso o gasto que fazia com

publicidade, poderíamos dizer que seus negócios começaram a fraquejar a partir de

1865, ano seguinte ao início do conflito com o Paraguai. Então, pela primeira vez, seu

café não foi mais incluído na lista de Notabilidades do Almanak Laemmert. Ora,

37 Almir C. El-Kareh, “O Convenio: a queda de braço entre os comerciantes importadores e atacadistas em meados do século XIX no Rio de Janeiro”. In Anais da XX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba, 2001. 38 Correio Mercantil, A Fama do Café com Leite, Anúncios, p. 3.

quem te viu e quem te vê! Logo o Braguinha que não economizava em publicidade…

Certamente, ele ia mal das pernas. E, de fato, também dos jornais foi se retirando.

Coincidentemente, sua última grande propaganda em versos no Jornal do Comércio

data de 1864, e o seu derradeiro aviso é de 1º de janeiro de 1870. E quando, em março

deste ano, decorou a fachada de seu café para comemorar a vitória brasileira na

guerra, estava jogando sua última cartada.

Café do Braguinha ornamentado por ocasião dos festejos do final da Guerra do

Paraguai em 1870.

Fonte: Acervo fotográfico do Museu Histórico Nacional/RJ

Parece que o Braguinha não resistiu ao prolongado conflito militar que exauriu

as forças produtivas do país, mas ele nos deixou, graças à sua publicidade, as marcas

da engenhosidade dos capitalistas de sua época que lutavam contra os vestígios

coloniais da sociedade carioca. E, sem dúvida, o papel de comerciantes como o

português José de Souza e Silva Braga foi decisivo neste processo de eclosão da

sociedade de consumo capitalista carioca. Talvez seja por isso que:

“A Fama do Café com Leite/É por todos conhecida,/A lembrança do

Braguinha/É por todos aplaudida”.39

39 Correio Mercantil, 06/07/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.

Bibliografia

ALMANAK LAEMMERT (Almanak Administrativo, Comercial e Industrial),

Rio de Janeiro, 1844-1889.

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PFEIFFER I. Voyage d’une femme autour du monde. Trad. W. De Suckau. 2

ed. Paris: Hachette , 1859.

FRANÇA. Ministère des Affaires Étrangères, Correspondance Consulaire ;

Paris, 1816-1827.

EL-KAREH A. O Convênio: a queda de braço entre os comerciantes

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XX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica; Curitiba, 2001.

_________ “Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar engenho e

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JORNAL DO COMÉRCIO, Rio de Janeiro, RJ, 1849-1870.

SOARES L. C. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: A escravidão urbana no

Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007.