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O CAFÉ DO BRAGUINHA:
O despertar do consumo capitalista no Rio de Janeiro.∗
A criação de um mercado consumidor capitalista
Engana-se redondamente aquele que crê que a expansão do mercado
capitalista no mundo se fez naturalmente, quase que espontaneamente, pelas leis
naturais do mercado ou pela força das coisas, a saber, pelas qualidades inerentes às
mercadorias produzidas a baixo custo pelas novas forças produtivas industriais,
criadas na Inglaterra durante o último terço do século XVIII, e em pleno desabrochar
durante a centúria seguinte.
O exemplo do Brasil é flagrante e as fontes que o atestam são muito ricas e
variadas, especialmente as aqui utilizadas, como a correspondência diplomática
francesa, os jornais e almanaques mercantis, os romances e crônicas de época, bem
como os livros de viagem, que nos permitem restituir o quotidiano do consumo na
cidade do Rio de Janeiro. É, pois, neste dia a dia da agitação comercial e no
burburinho das ruas, onde alguns brancos, em geral europeus ricos, se misturavam a
uma multidão de negros e mulatos escravos e uns poucos livres de mesmas cores, que
vamos descobrir as astúcias dos comerciantes para acelerar o consumo de seus
produtos, importados ou não, criando as condições para o surgimento de um
verdadeiro mercado consumidor capitalista, ainda que nem sempre muito burguês
devido à forte presença de relações escravistas de trabalho e de dependência pessoal,
como no caso dos agregados.
Se nos remontarmos às fontes do início do século XIX, especialmente os
livros de viajantes e a correspondência dos diplomatas franceses, ciosos de seus
produtos de luxo mas que não conseguiam esconder sua inveja do sucesso dos
produtores ingleses que, detentores de privilégios alfandegários, monopolizavam o
comércio de importação brasileiro, descobriremos que mesmos estes últimos haviam
dado uma prova, poder-se-ia dizer, de ridícula inexperiência, ao debutar neste
desconhecido mercado tropical da América do Sul.
∗ Almir Chaiban El-Kareh Prof. UFF/UERJ/Brasil Doutor EHESS/Paris [email protected]
Para isto, bastaria lembrar que os comerciantes britânicos, ainda na primeira
década daquele século, inebriados pela imprevista, ainda que há muito almejada,
abertura do mercado brasileiro às suas mercadorias, trataram rapidamente de se livrar
de seus estoques, acumulados em seus armazéns e à beira dos cais de seus portos,
enviando para as tórridas cidades do Rio de Janeiro e Salvador da Bahia tudo o que
havia ali, inclusive um enorme suprimento de grossos cobertores de lã, aquecedores a
carvão e até patins de gelo1, esquecendo-se de que o Brasil, felizmente, ficava bem
longe do Canadá e da Groelândia.
Porém, não bastava adequar as mercadorias ao clima do país, era preciso que
elas caíssem no gosto das pessoas e se alinhassem aos seus hábitos. Acontece que a
sociedade brasileira, ainda mesmo a da capital do recentemente elevado reino do
Brasil, era de gostos e hábitos muito simplórios e sequer havia uma tradição de
sociedade de corte. E, ainda em 1816, o representante francês no Rio de Janeiro ao
informar seu ministro em Paris sobre as possibilidades comerciais no país, lembrava
que “os povos selvagens do interior não consomem absolutamente nada” e que com
os “indígenas recentemente civilizados e mesmo os naturais do país que vivem em
sociedade nos campos” não se poderia contar senão para poucas coisas por viverem
em quase completa autarquia e “porque a maior parte se veste com fazenda de
algodão que eles mesmos fabricam”. Poder-se-ia, portanto, dizia ele, reduzir a
população consumidora de mercadorias à que vivia nas poucas cidades. “Mesmo
assim, acrescentava, em todas elas o número de escravos é bem superior ao da classe
livre”. E pior, como não bastasse o consumo de objetos de uso ao alcance dos
escravos ser extremamente limitado, “o calor do clima fez introduzir o hábito, mesmo
entre as pessoas que vivem na abastança, de ficar em suas casas tanto quanto possível
e não se vestir senão para sair”2.
A única perspectiva possível para criar um mercado consumidor para os
produtos europeus era mudar, ao menos, os hábitos da população citadina de algum
poder aquisitivo, o que fora em muito pequena medida alcançado com a transferência
da família real portuguesa e parte de sua administração para o Brasil, seguida de perto
por numerosos comerciantes que aí se instalaram. Todavia, ainda que algumas “das
1 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo duque de Richelieu ao Ministro das Relações Exteriores francês no final de 1816. 2 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo duque de Richelieu ao Ministro das Relações Exteriores francês no final de 1816.
primeiras famílias de Portugal” aí estivessem residindo, a emigração forçada e às
pressas de seu país natal não lhes permitiu trazer grande coisa consigo – e a situação
de suas propriedades, já mal administradas antes mesmo da guerra na península contra
espanhóis e franceses coligados, só piorou com a presença das onerosas tropas
inglesas que aí permaneceram, como aliadas, após a expulsão dos invasores –, o que
“as colocou em situação de viver dos favores do rei”. Havia que acrescentar a esta
pobreza momentânea da nobreza trânsfuga, o fato de que a corte portuguesa sempre
se caracterizara pelo pouco luxo, que a lei Pragmática de 1749 de D. João V não veio
senão reforçar.
E como se isto não bastasse, a morte da rainha D. Maria I, a louca, em 1816,
foi, como era hábito, rigorosamente seguida por um luto de um ano por todas as
classes sociais. E como luto não combinava com luxo e a sociedade tendia a se
moldar mirando-se no exemplo da corte, “tudo, em uma só palavra, contribuía para
tirar um mal partido dos objetos de luxo”3, que era a especialidade dos fabricantes
franceses.
No entanto, os negócios dos ricos comerciantes ingleses e alemães que com
suas famílias se transferiram para o Rio a fim de gerir suas casas comerciais de
importação e exportação iam muito bem. Eles, com sua demanda sofisticada,
reforçaram numérica e qualitativamente a população de alto poder aquisitivo da nova
e provisória capital do império português. Para atender a seu consumo foi preciso não
só importar dos mais corriqueiros aos mais sofisticados produtos de consumo diário
do europeu, inclusive alimentos. Com efeito, móveis, artigos de decoração, faqueiros,
serviços de jantar de louça ou de fina porcelana, enfim, tudo que era necessário para
montar uma casa e pôr uma mesa “de gosto refinado” vinha do estrangeiro e era
caríssimo. Esta ausência de produção local, por sua vez, atraiu um grande número de
artesãos europeus, especialmente franceses, que veio em busca de melhores condições
de vida e não encontrou aqui senão auxiliares escravos despreparados e matéria-prima
importada, muito cara. E como eram os únicos a deter o saber-fazer artesanal, dizia o
cônsul francês, eles fizeram a lei e transferiram aos consumidores “a dificuldade que
lhes custa o trabalho com semelhantes auxiliares e neste terrível clima”4.
3 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo Cônsul Geral, Coronel Maler, ao Ministro das Relações Exteriores francês, em 30/01/1818. 4 Ministère des Affaires Étrangères français, Correspondance Consulaire, Despacho enviado do Rio de Janeiro pelo Marquês de Gabriac, ao Ministro das Relações Exteriores francês, em 03/06/1827.
Enfim, não só as condições sociais e materiais da cidade do Rio de Janeiro
haviam mudado muito, desde 1808, com o aumento da população europeia e a sua
demanda por moradia, palácios, edifícios públicos, ruas calçadas etc., como esta
demanda estimulou o emprego de todo tipo de escravos que se qualificavam e se
especializavam em todos os ofícios, inclusive domésticos, e, consequentemente, a
população cativa, em 1821, já dobrara. Além disso, o medo do fim iminente do tráfico
africano em 1830, exigido pela Inglaterra, incentivou a compra cada vez maior de
escravos. Em consequência, a população cativa, que correspondia a um terço da
população total de 43.376 habitantes até o início do século, passou a corresponder à
quase metade. E nem o surto imigratório europeu da década de 1840, acompanhando
o boom do café do vale do Paraíba, não diminuiu o impulso escravista que seguiu
aumentando, atingindo a cifra de quase 80.000 em 1849, véspera da abolição
definitiva, em 1850, do comércio africano de escravos. Entretanto, sua participação
relativa na população total da cidade diminuíra, sendo menos de 40% dela, sem contar
os libertos, negros e mulatos, que somavam quase 11.000 pessoas.
Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil: A escravidão
urbana no Rio de Janeiro do século XIX.
Entende-se facilmente porque a viajante austríaca, Ida Pfeiffer, ao
desembarcar no Rio em 1842, na Praia dos Mineiros, ali encontrou “uma praça suja,
asquerosa, povoada por alguns negros tão sujos e asquerosos quanto ela, que
agachados no chão vendiam frutas e guloseimas dos quais gabavam a qualidade aos
gritos”5. E não muito longe dali, no final da Rua Direita (atual 1º de Março), estava a
residência do rei, o Palácio do Paço. A praça que se estendia diante dele, “ornada de
um chafariz bastante simples e muito sujo”, também servia de dormitório a muitos
pobres e negros livres que, de manhã, tomavam tranquilamente o seu banho diante de
todo o mundo. Chocada, ela esbarrava a cada passo com “criaturas repugnantes,
negros e negras com feios narizes chatos, lábios grossos e cabelos curtos e crespos” e,
ainda por cima, quase sempre seminus: as mulheres com blusas que mal escondiam os
seios, quando não os traziam totalmente expostos; e os homens levando uma pequena
tanga, simples farrapo, ou velhas roupas gastas de seus senhores que acentuavam suas
linhas e seus volumes, mas que não escondiam este seu aspecto esmolambado,
tornado ainda mais horrível pelas doenças, inclusive a elefantíase. E esta feiura geral
parecia contagiar até os cães e gatos que em multidão percorriam as ruas, “a maior
parte deles pelados ou cobertos de feridas e de sarna”6.
Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil: A
escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX.
O ramo da restauração
Numa tal sociedade, em que a clivagem social era muito acentuada e a
população formada basicamente por escravos e homens pobres, negros e mulatos
5 Ida Pfeiffer, Voyage d’une femme autour du monde, p. 26. 6 Ida Pfeiffer, Voyage d’une femme autour du monde, p. 28.
forros e jovens imigrantes, geralmente despreparados profissionalmente e recebendo
salários irrisórios, era natural que alguns empresários se decidissem por um serviço de
alimentação voltado para a minoria dos abastados.
Segundo o periódico publicitário anual, Almanak Laemmert, de 18457, ano
seguinte ao seu lançamento, os hotéis, casas de pasto e cafés da cidade do Rio, todos
confundidos, eram em número de vinte e cinco a se dividir a parcela mais rica da
sociedade carioca, e todos eram de propriedade individual.
Este mesmo Almanak estampava, pela primeira vez, a lista de tavernas da
cidade, na qual certamente estavam incluídas as vendas, identificando-as apenas pelo
endereço, do que se desculpava: “O excessivo número destas casas não nos permite
por ora serem elas mencionadas nominalmente”.
Este excessivo número se explicava por sua popularidade: aí se comia
basicamente carne-seca com farinha de mandioca e peixe frito, que eram os alimentos
mais baratos, bem como se bebia o que havia de mais em conta: cachaça – aguardente
de cana de má qualidade – e vinho tinto português do pior. E, porque exigiam um
pequeno capital inicial em sua montagem, o serviço era péssimo, pois os locais eram
escuros, sujos e mal cuidados, e os produtos oferecidos eram os da pior qualidade. O
que não impedia que as tavernas e as vendas fossem muito apreciadas pela ralé que,
privada de uma espaço íntimo, as havia elegido como local predileto de reunião e
lazer.
Não espanta, pois, que elas totalizassem o incrível número de 984! e que
estivessem espalhadas por todas as ruas da cidade, inclusive em suas freguesias rurais
e mesmo nas insulares, as Ilhas das Cobras, do Governador e Paquetá. E a análise de
sua distribuição espacial nos revela que elas se concentravam sobretudo nas ruas do
centro da cidade, especialmente as mais próximas dos cais, particularmente o da
Alfândega. Com efeito, eram muitas as ruas que continham cada uma dez, quinze e,
duas delas, até vinte destes estabelecimentos! E isto numa cidade de menos de 200
mil habitantes, escravos inclusive!
Sem embargo, no ano seguinte, em 1846, o almanaque se absteve de
enumerá-las, alegando laconicamente que “sendo o número destas casas excessivo,
não é possível por ora mencionarem-se nominalmente, e como as alterações têm sido
7 O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert) era uma publicação anual e os dados nele contidos eram coletados sempre com um ano de antecedência. Logo, suas informações se referem sempre ao ano anterior ao de sua publicação.
poucas, pode servir de guia a relação publicada no Almanak anterior”8. E, a partir de
1847, ele sequer as menciona. O que se pode explicar facilmente, ainda que
hipoteticamente: os taverneiros e vendeiros não se interessaram em constar do
almanaque porque isto lhes custaria algum dinheiro e, certamente, porque sua
clientela, pobre, iletrada e analfabeta, não lia jornais e muito menos comprava
almanaques.
A desproporção entre o número de restaurantes e o de tavernas refletia muito
bem a clivagem social da cidade entre uma pequena minoria de ricos e uma
significativa maioria de pobres e escravos. Aliás, o razoavelmente preciso censo de
1849 avançava que, na cidade do Rio, para um total de 205.906 habitantes, 79.999
eram brasileiros, 78.855 escravos, 10.732 libertos e 36.320 estrangeiros. Destes
últimos, 28.936 eram dos sexo masculino, em sua maioria portugueses, e todos muito
jovens, celibatários e pobres.
Por sua vez, os poucos nove cafés e botequins listados em 1844 deviam, da
mesma maneira, corresponder verdadeiramente à sua reduzida clientela numa
sociedade onde, apesar da pequena burguesia ligada ao comércio varejista estar se
expandindo, o numeroso pessoal do comércio, os caixeiros, era em sua grande maioria
mal remunerado, formando antes uma clientela potencial das tavernas, vendas e
vendedoras ambulantes de alimentos preparados.
Ora, o resultado não podia ser outro: os pequenos capitalistas ligados à
indústria da restauração passaram a disputar acirradamente os poucos consumidores
de renda média da cidade, e as fronteiras entre os diferentes estabelecimentos de
produção de alimentos preparados, inclusive as padarias, se borraram. De repente,
viam-se cafés, botequins, padarias e restaurantes anunciando os mesmos produtos,
geralmente, salgadinhos, como as empadas, que podiam ser consumidos in loco ou
levados. Eis um deles: “Empadas de Galinha, de filhote (pijonneau), de palmito com
camarões e de peixe, haverá hoje na padaria francesa da rua da Carioca n. 119 A”9.
O êxito das confeitarias, frequentadas pela nata da sociedade, bem como o
sucesso retumbante das tavernas, expõem claramente as dificuldades daqueles que se
voltavam para as camadas médias urbanas, envolvidas num espaço tomado pela
miséria e sujeira de homens livres pobres e escravos que contrastava com a beleza
cheia de cores dos quadros do pintor francês Jean-Baptiste Debret ou a descrição
8 Almanak Laemmert, 1846, p. 293. 9 Jornal do Comércio, 05/01/1851, Anúncios, p. 3.
idílica do também francês Ferdinand Denis, aproximando-se mais do relato da
viajante austríaca, Ida Pfeiffer.
Cafés e botequins
As dificuldades encontradas pelos capitalistas que desejavam investir no
ramo dos cafés e botequins foram certamente grandes por terem que lidar com a
franja da população menos abastada e de origem humilde recente, fosse ela brasileira
ou estrangeira, que guardava hábitos e comportamentos que não se adequavam aos
valores e etiquetas de consumo burgueses. E não seria demais lembrar que a parcela
de estrangeiros, potencialmente capaz de introduzir novos hábitos de consumo na
sociedade carioca era de 15% em 1838, passara a 29% em 1849 e a 42% em 1872,
não cessando de crescer cada vez mais aceleradamente desde então.
Fonte: Soares, L. C. O “povo de Cam” na capital do Brasil.
É bem verdade que a composição social dos imigrantes era muito díspar,
sendo em sua grande maioria formada por jovens portugueses celibatários do sexo
masculino, pobres e profissionalmente desqualificados, que chegavam entre os 10 e
12 anos de idade e se empregavam sobretudo no comércio como caixeiros, garçons,
ajudantes de cozinha etc. Aliás, na cidade do Rio, onde a população celibatária
correspondia a 73,48% do total, havia um excedente de quase 30 mil jovens solteiros
do sexo masculino, e esta defasagem só podia ser atribuída à imigração.
Fonte: Luiz Carlos Soares, O “povo de Cam” na capital do Brasil.
E era muito comum que esses jovens caixeiros aí fizessem um pecúlio com o
qual abriam um negócio no mesmo ramo, individualmente ou associados a outros
pequenos capitalistas. O que explica o enorme número de pequenos negócios de todos
os ramos, que surgiram em toda a cidade para a atender a uma população imigrante
em constante crescimento.
No ramo dos cafés e botequins, este crescimento chega a ser vertiginoso,
atingindo uma média de 46% ao ano, o que correspondia em parte ao crescimento da
população urbana masculina e seu maior poder aquisitivo, reflexo de uma mobilidade
social ascendente muito forte:
Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.
Mas o alto índice de fechamento ou mudança de proprietários destes cafés –
cuja média foi, entre 1855 e 1889, de 46,25%! – poderia ser explicado, quando não
pelas recorrentes crises comerciais da praça do Rio, ao menos pela falta de
experiência dos novatos neste ramo de comércio, alvo de tanta concorrência.
Fonte: Almanak Laemmert, 1855-1889.
Evidentemente, o resultado de uma oferta tão grande de cafés provocou uma
concorrência acirrada entre os proprietários dos mesmos. Este fato pode ser detectado
nos artifícios que foram usados para atrair e conquistar o maior número de clientes
possível. Um deles, talvez o mais poderoso de todos, foi a introdução do bilhar, que
parece ter sido a coqueluche de 1855 a 1870, mas que exigia um investimento muito
elevado em espaço e em aparelhamento.
Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.
A mania do bilhar
O jogo de bilhar, que se democratizou na França no último quarto do século
XVIII, chegou ao Rio nos anos 1840. Por ser o bilhar um esporte masculino, e por
reunir muita gente bebendo e falando alto, muitos hotéis e botequins preferiam
reservar-lhe um espaço à parte, ou no térreo, ou no prédio ao lado, ou no sobrado,
para não prejudicar parte de sua clientela. Mas isto implicava na utilização de um
espaço maior.
Para se ter uma ideia aproximada dos investimentos que os proprietários de
cafés e botequins, em geral, eram compelidos a fazer, não só pela concorrência entre
eles, mas também para se adaptarem às transformações dos hábitos de sua clientela,
cada vez mais europeizada, sofisticada e exigente, basta comparar o preço, em 1859,
de uma mesa de bilhar que custava 1:100$000 (um conto e cem mil réis) e o de um
escravo 1:200$000. Em outras palavras, significava dizer que montar um negócio,
como o Café Imperial, com 18 mesas de bilhar correspondia a criar uma empresa
com cerca de 18 escravos jovens. E como um escravo urbano rendia em media mil
réis por dia, o negócio do bilhar devia render mais do que isso para ser um
investimento vantajoso, pois sua desvalorização era mais rápida do que a de um
escravo.
O valor muito elevado de uma mesa de bilhar, que se impunha pela tecnologia
e materiais cada vez mais avançados necessários à sua fabricação, explica porque
apenas os seus fabricantes nacionais (que também eram importadores) e as sociedades
de capital, como a Seara, Leão & Cia., então proprietária do Café Imperial, eram os
únicos capazes de investir tão pesadamente em cafés-bilhares, e porque foram os
únicos que sobreviveram depois de passar a moda e a época de ouro do bilhar no
segundo reinado.
O auge da popularidade do bilhar foi alcançado por volta dos anos 1855-1860,
quando 49% dos cafés possuíam bilhares, sendo que o Café Imperial possuía 18
mesas e o Cercle de l’Académie, 14. E a propaganda, em 1856, do “Café da Suíça”10
nos fornece o valor de uma partida de bilhar: de dia 400 réis, e de noite, quando a
procura era maior, 800. Se somarmos o preço de apenas uma partida ao de uma
garrafa de cerveja nacional, que ali custava 320 réis, teríamos que, à noite, o consumo
mínimo era de uns 1$120 (mil cento e vinte réis). Ou seja, o preço de um jantar no
elegante Restaurant à moda de Paris do Hotel dos Estrangeiros11 , o que significa
dizer que bilhar não era para qualquer um. Ali, servia-se também vinho “em garrafas
e meias garrafas”, refrescos e café, e seu proprietário lembrava ao público que, no seu
interior, havia uma exposição “de quadros de pintura de paisagens”. Com efeito, além
do seu poder de atração, o bilhar ensejava o consumo de bebidas, preferencialmente
10 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, p. 3. 11 Correio Mercantil, 20/10/1856, Anúncios, p. 3.
alcoólicas, e de salgadinhos como “as afamadas linguiças de fígado de porco por
porções”12.
Entretanto, o número de cafés-bilhares caiu drasticamente, tanto relativa como
absolutamente, a partir de 1875, não representando então senão 7% da totalidade dos
cafés, e apenas 1% em 1885, quando do total de 233 cafés somente 3 possuíam
bilhares.
Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.
Mas o bilhar não foi a única forma de fazer o café se tornar mais atraente, o
boliche também. De fato, só houve um em toda a cidade e havia sido inaugurado em
1865 pelo norte-americano Augusto C. Prengel. Sem embargo, no ano de 1875, ele já
não constava da lista do Almanak Laemmert como a maioria dos cafés-bilhares.
Outra experiência foi o café-concerto. Tudo indica que ele foi tentado muito
cedo, ainda que informalmente, contratando-se músicos amadores, até que o francês
Brisson inaugura, em 1864, o El Dorado (Espetáculos e Concertos), mas que não
durou mais de três anos.
Organização financeira dos cafés e botequins
A análise da organização financeira dos cafés mostra que havia uma
tendência crescente à formação de sociedades, especialmente as de pessoas, que
atingiram uma média de 14,80% do total no período entre 1870 e 1889, enquanto que
as de capital alcançavam a média de 8%. Ainda que permanecessem amplamente
minoritárias frente às empresas de propriedade individual, cuja média para o mesmo
12 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, p. 3.
intervalo era de 77,4%. Sem embargo, em 1889, 32% de todos os cafés já estavam
organizados por sociedades e esta tendência podia ser um sintoma do esforço em
investir cada vez mais em qualidade, em resposta à clientela cada vez mais exigente
que acorria às luxuosas confeitarias, ponto de encontro da alta sociedade, de políticos
e de jornalistas à cata de furos do noticiário.
Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.
Fonte: Almanak Laemmert, 1845-1889.
O Café do Braguinha
O português José de Souza e Silva Braga, que ficou conhecido como
Braguinha, é sem dúvida o melhor exemplo de um proprietário de café que se
esforçou para aumentar o número de sua clientela procurando agradá-la pela
qualidade de seu serviço e dos produtos oferecidos, e para conquistá-la usou, como
ninguém até então, da publicidade.
Seu Café da Fama, incluído na primeira edição do Almanak Laemmert de
1844, mas que tudo leva a crer já existia desde 1840, estava situado na Praça da
Constituição, um dos pontos mais bem frequentados da cidade devido não só à
presença do Teatro São Pedro de Alcântara – frequentado pela família real bem como
pela elite carioca, que aí vinha menos pela Ópera Italiana do que por razões sociais –
como também de outros teatros e inúmeros cafés, restaurantes e hotéis, tornando-se,
com o passar dos anos, um dos grandes centros de lazer da cidade.
Já no primeiro número do Almanak, o Braguinha inova, inserindo uma singela
publicidade na simples listagem das casas de restauração. E, no número de 1847,
acrescenta às quatro linhas da publicidade anterior mais três linhas e meia, deixando
claro que estava decidido a investir em propaganda. No entanto, o grande passo na
área do marketing foi dado no ano de 1855, quando ocupa uma página inteira do
Almanak com uma enorme propaganda em prosa e em verso, encabeçada pela gravura
de um anjo arauto avantajado que, ao invés de trazer, como no Almanak do ano
anterior, uma trombeta na mão direita e uma coroa de louro na mão esquerda, trazia
naquela uma faixa com os dizeres “Sem mistura ou usura”, referindo-se ao seu leite e
a seus preços, e nesta uma xícara de café! E, como preâmbulo ao texto, utilizava a
seguinte sugestiva estrofe de Camões: “Cantando espalharei por toda a parte, Se a
tanto me ajudar engenho e arte”13.
Fonte: Almanak Laemmert, 1855, p. 569.
Desta forma, modificando à vontade de sua imaginação os clichês até então
disponibilizados pelas gráficas dos jornais, ele revolucionou a arte da propaganda de
13 Almanak Laemmert, 1855, p. 569.
seu tempo14. E, assim, fazendo uso de textos em versos fáceis de serem memorizados
por seu conteúdo sarcástico e jocoso, procurava “servir a toda a gente”. E porque
tratava sempre de questões ligadas ao dia a dia, a leitura deles é uma rica fonte de
informações sobre a sua atividade comercial bem como sobre a vida cotidiana carioca.
De sua leitura é possível depreender, passo a passo, as artimanhas comerciais
usadas para atrair a freguesia e aumentar os lucros dos capitalistas. Assim, a partir de
1847, oferece “bandejas de doces e tudo o que pertence a este ramo de negócio” e a
“boa orchata em massa, feita da pevides de melancias”15, sofisticando um pouco o
muito simples cardápio do qual constava apenas o “superior café com leite, chá,
chocolate etc.”, além da venda de “leite puro de vaca, todos os dias de manhã”, o que
lhe dava, em realidade, um ar muito roceiro e pouco cosmopolita.
Tudo leva a crer que, já em 1849, o Café do Braguinha, situado na Praça da
Constituição (hoje Tiradentes), tinha alcançado certa notoriedade, pois em seus
anúncios não mencionava o seu endereço, e uma casa de pasto sua vizinha, ao se
anunciar no Jornal do Comércio, avisava apenas: “Na casa de pasto junto ao botequim
da Fama do Café com Leite, há todas as semanas, nas terças e quintas-feiras a boa
feijoada, a pedido de alguns amigos […]”16.
No entanto, o Rio dos anos 1850 já se havia sofisticado muito para se contentar
com este cardápio, e os sofisticados cafés e confeitarias da Rua do Ouvidor
concentravam a nata da sociedade carioca. E é para lhes fazer concorrência que o
Braguinha, em 1853, reforma a sua loja, a transforma num estabelecimento “muito
espaçoso com um grande salão, com seis portas, muito arejado”, introduz um
mobiliário novo e mais confortável e passa a oferecer um menu mais sofisticado
contendo inclusive sorvetes, que eram vendidos “todos os dias (se o tempo permitir)
das 11 horas da manhã até à noite”17. E, em 1854, passa a utilizar assiduamente a
publicidade no quotidiano Correio Mercantil, jornal de segunda maior tiragem no
país, depois do Jornal do Comércio, do qual também se serviu. Aí, dá asas à sua
imaginação e à sua verve utilizando-se dos fatos da atualidade para a sua propaganda.
E, de fato, seu estabelecimento, que já não vendia mais leite fresco de vaca,
apesar de começar pela letra F, vinha em primeiro lugar na lista dos avisos de Cafés,
14 Almir El-Kareh, “Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte”: Propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870). 15 Almanak Laemmert, 1854, p. 514. 16 Jornal do Comércio, 16/01/1849, Anúncios, p. 4. 17 Correio Mercantil, 27/09/1856, Anúncios, Sorvetes, p. 3.
Botequins, Bilhares etc. do Almanak Laemmert18. Pois, “Senhores! O Silva Braga,/
Homem baixo, mas troncudo,/Há de dizer tantas cousas,/Que o mundo fique
espantado! 19 . E por isso não regateava linhas nem espaços, ocupando o campo
correspondente a uma página inteira do almanaque. E, diariamente, textos igualmente
longos, que se renovavam quase semanalmente, eram publicados no Correio da
Manhã.
Agora, era preciso fazer com que seus fregueses permanecessem em seu café o
maior tempo possível e que consumissem sempre mais. Para isto, não bastava
proporcionar-lhes maior conforto e bem-estar oferecendo-lhes um espaço mais amplo
e agradável, arejado e com um mobiliário acolhedor. Ademais de um atendimento
personalizado, dado por garçons “sempre alertas” e por ele próprio, “bem cortês”,
junto às mesas, e um cardápio mais variado, Braguinha, como outros empresários do
ramo da restauração, para reter mais longamente seus clientes, colocou à sua
disposição jornais, de forma que “Agora pode o freguês/Tomar café com franqueza,/E
ler as folhas do dia/Que andam por cima da mesa”20.
Mas suas artimanhas não paravam por aí. Aproveitou-se da proximidade do
Teatro São Pedro de Alcântara para enviar seus garçons para “fornecer de sua casa
ceias de café, de chá e chocolate, licores, refrescos, doces, e enfim de tudo, para os
camarotes, nas noites que houver espetáculo”21, sem acréscimo dos preços. E como
não era o único a assediar com os seus caixeiros os amantes da ópera, que com razão
se queixavam, ele prometia que os seus garçons não iriam oferecer nada nos
camarotes, mas estariam prontos para lá levar apenas “as encomendas que lhe
fizerem”22.
É evidente que este serviço de melhor qualidade, que extravasava os limites do
estabelecimento – indo mesmo oferecer em domicilio aos fregueses “que quiserem cá
da Fama/ Tomar o belo café/ De manhã bem cedo na cama”23 –, o obrigava a fazer
mais gastos com pessoal da cozinha e do serviço das mesas, o que pode ser
comprovado com os repetidos avisos de procura por novos empregados24.
18 Almanak Laemmert, 1854, p. 514. 19 Almanak Laemmert, 1857, Notabilidades, p. 93. 20 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 21 Almanak Laemmert, 1856, Cafés, botequins e bilhares. p. 608. 22 Almanak Laemmert, Cafés, botequins e bilhares, 1857, p. 94 23 Almanak Laemmert, Cafés, botequins e bilhares, 1857, p. 94 24 O Correio Mercantil dos dias 04 e 06 de maio de 1856 anunciava respectivamente : “Precisa-se de um caixeiro para a Fama do Café com Leite, e um ajudante de cozinha” e “Precisa-se de mais uma pessoa para o serviço das mesas na Fama do Café com Leite”. E nos dias 30 de agosto, 4 de outubro e
Sensível às mudanças sociais, em particular o ainda que muito tímido passo da
mulher em direção ao espaço público da restauração, arrogantemente masculino,
Braguinha abriu, em 1857, uma nova “sala por cima do seu café unicamente para
receber famílias e tomar sorvetes ou qualquer outra coisa” 25 . Com bom gosto
preparada, era “um salão-toilette”, onde “senhoras terão entrada”. Tentava, assim,
contra-restar a forte e irresistível concorrência dos luxuosos cafés e confeitarias da
Rua do Ouvidor, principal artéria de moda feminina e de encontro da alta sociedade:
“Nem se precisa p’ra isso/Ir à rua do Ouvidor/Há na Fama do Café com Leite/Um
salão de primor”26.
Sabedor do apreço que os cariocas tinham pela música, aderiu ao café-concerto
a fim de atrair mais fregueses e retê-los mais demoradamente. Em 1864, seguindo de
perto a experiência do francês Bisson, que no ano anterior inaugurara seu Café El
Dorado (Espetáculos e Concertos), ele anuncia em versos o seu “Café Cantante”27. E,
numa propaganda de 1869, um cliente fictício comentava a respeito do pianista:
“Olhe, compadre, o tocador é magnífico, toca muita coisa que eu não tinha ouvido”28.
De fato, o Braguinha tudo fazia para atrair os setores médios da sociedade –
Aqui entra o deputado,/E também o senador;/Entra o padre, o militar,/Escrivão, juiz,
doutor”29 – que podiam dispor de tempo ocioso para frequentar, à tarde, as rodas que
se juntavam para papear e “os cafés tomar”. Mas, como atrair os comerciantes, para
quem tempo era dinheiro e formavam o grosso da população com poder aquisitivo
médio e elevado? A saída foi o cafezinho.
Com efeito, em 1855, ele lança a meia-xícara de “café simples muito bem feito”
a vinte réis. Teria sido ele o introdutor do cafezinho? De qualquer modo, reduzindo
em metade o conteúdo e o preço da xícara de café, ele procurava estimular o hábito de
seu consumo repetido, “Para que eles venham sempre,/Por dia quatro e seis vezes”30,
25 de dezembro daquele mesmo ano, este periódico anunciava respectivamente: “Precisa-se de um ajudante para cozinha, prefere-se brasileiro, para a Fama do Café com Leite”, “Precisa-se de um moleque pequeno [um negrinho africano] para lavar louças na Fama do Café com Leite, que seja de boa conduta” e “Precisa-se de uma pessoa para o serviço das mesas na Fama do Café com Leite”. Ainda no dia 20 de fevereiro de 1857 Braga anunciava pelo mesmo jornal: “Precisa-se de mais duas pessoas ativas para o serviço de mesa na Fama do Café com Leite”. É interessante notar que o café era tão conhecido que não havia necessidade de indicar o endereço em nenhum dos avisos. 25 Correio Mercantil, 28/02/1857, Anúncios, A Fama do Café com Leite. O teatro S. Pedro, p. 4. 26 Correio Mercantil, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 27 Jornal do Comércio, 04/09/1864, Anúncios, Fama do Café com Leite, p. 3. 28 Jornal do Comércio, 30/03/1869, Publicações a Pedido, p. 1. 29 Correio Mercantil, 15/06/1856, Anúncios, p. 3. 30 Correio Mercantil, 22/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
pois “Quanto mais café tomarem/Mais saúde lograrão;/E os cobres vêm p’ra
gaveta/Tin…tin…tin…tirilin… tin…tão”. De fato, teria bastado, como outros
empresários provavelmente já o faziam, enganar os fregueses diminuindo o tamanho
das xícaras – “Mas podia ganhar muito/Se as xic’ras fossem pequenas” 31 –, mas
preferia lucrar com o aumento de sua venda e com a maior frequência de sua casa.
Desde então, o cafezinho foi o carro-chefe de seu estabelecimento. Assim, em
pé, junto ao balcão, tomar um cafezinho quente, em alguns goles, se tornou um hábito
e um pretexto para uma pequena pausa no trabalho do comerciante e do artesão. E
convidar alguém para um cafezinho era uma forma de agrado a um amigo ou freguês.
Fazia-se negócio tomando um cafezinho e o cafezinho se tornou um grande negócio:
“As colunas que sustentam/A Fama com galhardia,/É ter sempre bom café/E uma
nobre freguesia”32.
Conclusão
Não há dúvida de que a iniciativa do editor Laemmert de lançar seu Almanak
Administrativo, Comercial e Industrial, em 1844, já era um reflexo do rápido
progresso econômico e social brasileiro liderado pela expansão da produção cafeeira
da província do Rio de Janeiro. Desde então, a aristocracia cafeeira fluminense e a
burguesia carioca tiveram maior ascendência sobre o poder central e transformaram a
capital do Império numa moderna metrópole iluminada a gás, servida por um
moderno sistema subterrâneo de esgoto de águas pluviais e servidas, e aprovisionada
de água potável até o interior das casas. Novos bairros residenciais surgiram na
periferia da cidade, para onde as famílias ricas migraram, e o desenvolvimento do
transporte terrestre sobre trilhos e do aquático a vapor estimularam este movimento de
separação residencial entre ricos e pobres. No entanto, a população mais pobre
continuou habitando o centro da cidade que se especializou como local de trabalho e
de lazer. Aí, os limites entre riqueza e pobreza eram menos nítidos e mais simbólicos,
representados nas aparências das coisas e dos corpos. Tudo isto, é claro, marcou as
transformações aceleradas por que passava o comércio de alimentação.
Braguinha não tardou a saudar estas inovações que tendiam a segregar a
população pobre de certos espaços públicos. Assim, dizia ele, o “O Braga quer
31 Correio Mercantil, 07/12/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 32 Correio Mercantil, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
freguesia/De gente limpa e asseada”, “Desordeiros, malcriados,/Na Fama não fazem
vaza”33. Por isso, podendo “Beber café com leite/A qualquer hora do dia”34, “Já não
fica mal a alguém/O entrar em um botequim/Muito mais quando asseado,/Pelo gás
iluminado”35.
Com efeito, especialmente depois de 1840, o importante contingente de
europeus, sobretudo artesãos, artífices e empregados do comércio, revolucionou os
hábitos urbanos cariocas, marcados até então pela inibidora produção doméstica. E,
finalmente, o Rio de Janeiro sucumbiu ao apelo do consumo burguês, transformando-
se num importante desague para a crescente produção industrial europeia.
Mas a concorrência entre os cafés e seus congêneres era tanto mais acirrada
quanto o público visado era o menos numeroso e de poder aquisitivo mais elevado, e
também mais sofisticado e exigente. O Braguinha, como tantos outros restauradores,
havia investido uma grande soma de capital na sua loja, muito bem situada, em sua
fachada e seu interior, em mobiliário, louças e talheres finos, que deviam ser
substituídos incessantemente, em parte devido à má qualidade da mão-de-obra que
empregava, normalmente rapazes muito jovens e inexperientes, muito mal pagos. Eis
como ele faz o balanço, fictício e superfaturado, do ano de 1856:
“Durante o ano quebraram-se/Xícaras finas – vinte mil;/Dez mil ficaram
rachadas/Que não valem um ceitil!/Dois mil e seiscentos bules/Que
mandei vir do Japão,/Ficou tudo em cacarecos/Espalhados pelo chão./Dez
mil e quinhentos pires,/Com seis grosas de leiteiras/Foram quebradas num
dia/Com sete mil cafeteiras/Dez grosas de facas finas/Com seus cabos de
veado,/Apenas existe um cento,/E esse mesmo maltratado./Manteigueiras,
paliteiros,/Colheres de prata de lei,/Perdem-se tão grande soma,/Que com
certeza, não sei”36.
Ora, sendo a manutenção destes estabelecimentos relativamente custosa e
constante, eles estavam permanentemente sujeitos ao desfalque e vulneráveis às
crises. O Café do Braguinha havia resistido com galhardia às crises provocadas tanto
33 CM, 15/06/1856, Anúncios, p. 3. 34 CM, 06/07/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 35 CM, 29/06/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3. 36 Correio Mercantil, 07/12/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
pela luta entre comerciantes atacadistas e importadores, episódio conhecido como o
Convênio (1849-1850) 37 , que muito afetou o comércio, da mesma forma que as
epidemias de febre amarela (1850) e cólera (1855) que fizeram despencar as vendas.
E como sói acontecer nestas ocasiões, o Braga se enriqueceu ocupando o espaço
daqueles que não suportaram a queda drástica do consumo. E, como dizia, “Lá
enquanto ao vintenzinho/Que o Braga fez aumentar,/No tempo em que nos
achamos/Não são coisas de estranhar”38.
No entanto, a crise econômica provocada pela Guerra do Paraguai, muito longa
e desgastante (1864-1870), parece que lhe causou, como ao comércio do Rio em
geral, muito dano. E, de fato, o Brasil, envolvido neste conflito até o pescoço, aí
enterrou um mundo de dinheiro e um sem número de homens em idade produtiva. E a
cidade do Rio de Janeiro – onde as tropas estacionavam e se aparelhavam antes de
partir para a frente de batalha e que recebia aqueles que dela voltavam enfermos e
inválidos – sofreu mais ainda com este acúmulo de gente pobre, mal vestida e mal
alimentada, foco de doenças, de contaminação e contágio. E como miséria e consumo
não formam par, o comércio da cidade ficou profundamente abatido, especialmente
aquele voltado para o lazer:
Fonte: Alamnak Laemmert, 1845-1889.
No entanto, se tomarmos como parâmetro de seu sucesso o gasto que fazia com
publicidade, poderíamos dizer que seus negócios começaram a fraquejar a partir de
1865, ano seguinte ao início do conflito com o Paraguai. Então, pela primeira vez, seu
café não foi mais incluído na lista de Notabilidades do Almanak Laemmert. Ora,
37 Almir C. El-Kareh, “O Convenio: a queda de braço entre os comerciantes importadores e atacadistas em meados do século XIX no Rio de Janeiro”. In Anais da XX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba, 2001. 38 Correio Mercantil, A Fama do Café com Leite, Anúncios, p. 3.
quem te viu e quem te vê! Logo o Braguinha que não economizava em publicidade…
Certamente, ele ia mal das pernas. E, de fato, também dos jornais foi se retirando.
Coincidentemente, sua última grande propaganda em versos no Jornal do Comércio
data de 1864, e o seu derradeiro aviso é de 1º de janeiro de 1870. E quando, em março
deste ano, decorou a fachada de seu café para comemorar a vitória brasileira na
guerra, estava jogando sua última cartada.
Café do Braguinha ornamentado por ocasião dos festejos do final da Guerra do
Paraguai em 1870.
Fonte: Acervo fotográfico do Museu Histórico Nacional/RJ
Parece que o Braguinha não resistiu ao prolongado conflito militar que exauriu
as forças produtivas do país, mas ele nos deixou, graças à sua publicidade, as marcas
da engenhosidade dos capitalistas de sua época que lutavam contra os vestígios
coloniais da sociedade carioca. E, sem dúvida, o papel de comerciantes como o
português José de Souza e Silva Braga foi decisivo neste processo de eclosão da
sociedade de consumo capitalista carioca. Talvez seja por isso que:
“A Fama do Café com Leite/É por todos conhecida,/A lembrança do
Braguinha/É por todos aplaudida”.39
39 Correio Mercantil, 06/07/1856, Anúncios, A Fama do Café com Leite, p. 3.
Bibliografia
ALMANAK LAEMMERT (Almanak Administrativo, Comercial e Industrial),
Rio de Janeiro, 1844-1889.
BRASIL. Ministério dos Negócios do Império, Censo de 1870.
CORREIO MERCANTIL, Rio de Janeiro, RJ, 1854-1858.
PFEIFFER I. Voyage d’une femme autour du monde. Trad. W. De Suckau. 2
ed. Paris: Hachette , 1859.
FRANÇA. Ministère des Affaires Étrangères, Correspondance Consulaire ;
Paris, 1816-1827.
EL-KAREH A. O Convênio: a queda de braço entre os comerciantes
importadores e atacadistas em meados do século XIX no Rio de Janeiro”. Anais da
XX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica; Curitiba, 2001.
_________ “Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar engenho e
arte”: Propaganda, técnicas de vendas e consumo no Rio de Janeiro (1850-1870).
Antropolítica, nº 21, 2 semestre; EdUFF, 2006.
JORNAL DO COMÉRCIO, Rio de Janeiro, RJ, 1849-1870.
SOARES L. C. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: A escravidão urbana no
Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007.