A Criação Da Periferia de Brasilia

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A criação da “periferia” brasiliense: do concreto geral ao modernista (Gustavo Lins Ribeiro) Há alguns anos fui convidado por um partido político de esquerda a participar de um evento para discutir Brasília e sua “periferia” com um auditório bastante diversificado. Após várias considerações feitas pelos participantes da mesa redonda sobre as cidades satélites e o chamado entrono, assentamentos em Goiás ao redor do Distrito Federal, uma pessoa do público se levanta e protesta: - Quero Dizer que não sou de periferia de lugar nenhum, que onde eu moro é o meu centro e que há muita coisa interessante e inteligente acontecendo lá! Respondi imediatamente que, para a antropologia, a colocação era muito bem vinda porque os antropólogos, em grande medida, trabalham nas chamadas “periferias” e sabem que há vida inteligente e interessante em todas as partes. Porém, aquela breve intervenção espelhava uma questão muito mais ampla. Talvez em certos tipos de barganhas políticas e processos de construção identitária alguém possa aceitar, quem sabe estratégica e provisoriamente, ser classificado como periférico. Mas mesmo assim é complicado. Na verdade, podemos afirmar que dificilmente alguém goste de ser chamado de periferia. Por quê? Simples, periferia é uma categoria relacional, ser periferia significa estar em uma posição inferior, subordinada, vis-à-vis a um centro que exerce poder. Dentro das muitas definições de poder, uma das mais eficientes é aquela segundo a qual o poder é a capacidade que um indivíduo, ou uma coletividade, tem de interferir no ambiente do outro. Todos nós temos poder de interferir nos ambientes dos outros, mas, na verdade, não gostamos muito de que os outros interfiram no nosso ambiente, mesmo que estejamos cansados de saber que isso ocorre a cada instante. Então, o que significa tudo isso? Que ao falarmos de relações centro/periferia estamos falando de relações de poder entre partes. Mais ainda, estamos falando de uma certa economia política do poder, tanto quanto de uma certa história, geografia e geopolítica do poder.

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A Criação Da Periferia de Brasilia

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A criao da periferia brasiliense: do concreto geral ao modernista (Gustavo Lins Ribeiro)H alguns anos fui convidado por um partido poltico de esquerda a participar de um evento para discutir Braslia e sua periferia com um auditrio bastante diversificado. Aps vrias consideraes feitas pelos participantes da mesa redonda sobre as cidades satlites e o chamado entrono, assentamentos em Gois ao redor do Distrito Federal, uma pessoa do pblico se levanta e protesta: - Quero Dizer que no sou de periferia de lugar nenhum, que onde eu moro o meu centro e que h muita coisa interessante e inteligente acontecendo l!Respondi imediatamente que, para a antropologia, a colocao era muito bem vinda porque os antroplogos, em grande medida, trabalham nas chamadas periferias e sabem que h vida inteligente e interessante em todas as partes. Porm, aquela breve interveno espelhava uma questo muito mais ampla. Talvez em certos tipos de barganhas polticas e processos de construo identitria algum possa aceitar, quem sabe estratgica e provisoriamente, ser classificado como perifrico. Mas mesmo assim complicado. Na verdade, podemos afirmar que dificilmente algum goste de ser chamado de periferia. Por qu? Simples, periferia uma categoria relacional, ser periferia significa estar em uma posio inferior, subordinada, vis--vis a um centro que exerce poder.Dentro das muitas definies de poder, uma das mais eficientes aquela segundo a qual o poder a capacidade que um indivduo, ou uma coletividade, tem de interferir no ambiente do outro. Todos ns temos poder de interferir nos ambientes dos outros, mas, na verdade, no gostamos muito de que os outros interfiram no nosso ambiente, mesmo que estejamos cansados de saber que isso ocorre a cada instante. Ento, o que significa tudo isso? Que ao falarmos de relaes centro/periferia estamos falando de relaes de poder entre partes. Mais ainda, estamos falando de uma certa economia poltica do poder, tanto quanto de uma certa histria, geografia e geopoltica do poder.No pretendo fazer aqui nenhuma historiografia da noo de periferia. Na verdade, partes dos seus significados podem ser vistas travestidas em outras noes em diferentes momentos histricos. Enfim, no eram brbaros os no-gregos? No eram primitivos e selvagens os no-civilizados? Que tal subdesenvolvido? Mas, certamente, para o sentido contemporneo de periferia, mais fundamental a dcada de 1960, marcada pelos trabalhos do genial economista argentino Ral Presbisch que imprimiu sua marca na Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL). Com a consolidao e disseminao da teoria da dependncia, as expresses centro-periferia afirmaram-se no panorama intelectual e poltico internacional, associadas, em geral, a interpretaes marxistas do sistema capitalista mundial. So antigas as crticas s ideias de centro e periferia. Talvez mais comum seja aquela que acusa tal interpretao de professar o dualismo. Mais recentemente, com o impacto tanto da discusso sobre capitalismo transnacional, globalizao (especialmente da noo de espao global fragmentado), quanto do ps-modernismo (avesso a grandes totalizaes e propenso a valorizar fragmentaes), centro e periferia ganharam renovadas crticas. Primeiro, descobriu-se que h periferias no centro. Que novidade! Percebe-se que o sul de Bronx, na cidade de Nova York, miservel, que as Apalachianas so miserveis, e assim por diante. Depois, que as relaes entre fluxos e espaos fragmentados globais criam geografias que tornam caducas ideias de centros, uma vez que a volatilidade do capital contemporneo poderia transformar tudo em periferia. Um exemplo marcante aquele, nos anos 1980, de operrios na Nova Inglaterra, nos EUA, que chegam sua fbrica para trabalhar e se encontram com um cartaz: Mudamos para a Jamaica! Por fim, criam-se oximoros como centralizao descentralizada para interpretar a fluidez do capitalismo flexvel. comum encontrar afirmaes do tipo em tempos de capitalismo transnacional e de acumulao flexvel as noes de centro e periferia no se sustentam por serem demasiado rgidas. Mas, curiosamente, algumas pginas depois, o mesmo autor deixa escapar centro ou periferia de novo no seu texto. Como explicar a persistncia da ideia de centro e periferia? Acho que ela se deve sua eficincia em telegrafar diferenas de poder, igualmente persistentes, nas geografias e geopolticas, por mais cambiantes que elas possam ser. De qualquer forma, tudo isso aponta para um mal-estar que, espero, v alm dos frequentes modismos. Afinal, centro e periferia j existem h mais dcadas do que a maioria das noes nas cincias sociais, disciplinas sempre ansiosas pelos produtos que a fbrica de novidades acadmicas precisa gerar. Parece-me, assim, que apesar de reguladas, criticadas, colocadas entre aspas, problematizadas, as noes de centro e periferia ainda continuaro conosco, de uma forma ou de outra. Ser possvel, de fato, um mundo sem centro e periferia? Minha pergunta equivale a dizer: ser possvel de fato, um mundo sem diferenas de poder que se expressem econmica, espacial, social e politicamente?DE VOLTA AO CONCRETO MODERNISTABraslia, ou melhor, o Distrito Federal (DF) brasileiro e sua configurao espacial provm um excelente exemplo para vermos como, historicamente, constroem-se periferias. Antes de tudo, uma rpida pincelada a respeito do que o DF significa para o Brasil. Braslia foi o novo elemento na histria da geopoltica republicana no sculo XX que problematizou a concentrao de poder poltico no Rio de Janeiro e em So Paulo. Desde uma periferia, Gois, instaurou-se um outro eixo de poder at agora no totalmente deglutido por antigas e poderosas elites estaduais. Lembremos que, at recentemente, a criao da nova capital federal era contestada por certas parcelas, obscuras, sem dvida, da intelectualidade carioca que clamavam por um retorno da capital ao Rio! De alguma forma, continuavam acreditando na verso voluntarista, personalizada da histria, segundo a qual a construo e transferncia da capital federal deveram ao sonho iluminado de Juscelino Kubitschek e no ao profundo e histrico processo de incorporao de novas reas ao sistema capitalista integrado. Braslia tambm representa um dos poucos exemplos que contradizem a eficcia do tropicalismo, o orientalismo que naturaliza os brasileiros como presos exuberncia natural e cultural dos trpicos. Afinal, em Braslia, o que chama a ateno no a natureza dada, a beleza geogrfica, mas a capacidade de realizao e criao.A periferia de Braslia (leia-se periferia de Braslia sempre com aspas; relativismo antropolgico que me guia) s pode ser entendida historicamente em relao ao seu centro. De fato, hoje existem muitas periferias em Braslia. Algumas, como todas, nasceram precariamente, mas no so mais necessariamente perifricas, como a cidade de Taguatinga, por exemplo, prova cabal de que os termos das relaes podem, felizmente mudar. Definamos a equao. O centro Braslia, aqui compreendida como o Plano Piloto, a cidade modernista projetada por Lcio Costa e tombada como patrimnio mundial pela UNESCO, a cidade dos postais que carrega consigo todos os benefcios e malefcios de ser capital federal. Dentre os benefcios, altos ndices de desenvolvimento humano, maior renda per capita do pas e, fato que os brasilienses mais gostam de propagandear, alta qualidade de vida. Dentre os malefcios, os significados negativos geralmente atribudos cidade (ilha da fantasia, fora da realidade do pas, e outros piores) graas confuso total entre a vida cotidiana na cidade e sua funo de capital federal, confuso em geral feita por aqueles que conhecem a cidade pela mdia ou no seu trajeto aeroporto-Esplanada dos Ministrios.O papel cntrico do Plano Piloto no DF tem se mantido relativamente estvel. Entretanto, dado tratar-se de uma cidade planejada e tombada, Braslia j comea a encontrar o seu limite fsico. O Plano Piloto est cada vez mais cercado, de perto, por novas periferias, dessa vez de classe mdia, um movimento iniciado em 1968 com o Guar, e intensificado, a partir de 1989, com o boom do Setor Sudoeste e dos muitos condomnios irregulares, invases de classe mdia.Se o centro aparenta maior estabilidade, essa, no entanto, no a histria das periferias. Hoje, no DF, existem 15 cidades satlites. A ltima, Itapo, foi criada em janeiro de 2005. Essa proliferao certamente se deve ao neo-populismo goiano-brasiliense em cuja cartilha a troca de lotes pblicos por votos configura-se como a forma mais eficiente de manter o poder e o crescimento urbano ordenado, no importando se tais prticas simplesmente engrossem os fluxos de migrantes historicamente vidos pelas benesses da capital federal. De qualquer forma, a proliferao das cidades satlites s pode ser compreendida se considerarmos a construo de Braslia e a fora centrfuga que ela gerou.

O CAPITAL DA ESPERANA E A CRIAO DE PERIFERIAS