A Corrida _ Piauí_65

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1/4/2014 A corrida | piauí_65 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-65/questoes-afeto-desportivas/a-corrida 1/7 A corrida por Ricardo Lísias Edição 65 > _questões afeto-desportivas > Fevereiro de 2012 Senti uma pressão enorme na cabeça e passei alguns minutos sem respirar. Caí no chão do cafofo e tudo parecia rodar. Minha vista escureceu. Preciso escrever sobre isso para não acontecer de novo. Tenho que correr para recuperar o fôlego As duas primeiras semanas de agosto do ano passado foram as piores da minha vida. Depois de apenas quatro meses, enquanto ainda estava tentando achar o lugar do interruptor e entender o que é ser um marido, fui obrigado a terminar meu primeiro casamento. A situação era quase inverossímil e parecia um dos meus textos. Achei que tinha enlouquecido: estou vivendo um conto, repeti enquanto ligava o computador para mandar um e-mail agredindo minha ex- mulher. Logo depois, enviava outro com uma declaração de amor. O terceiro ia para o advogado que ela tinha contratado. O último da manhã era mais calmo. Depois, tomava água e, da cama mesmo, olhava para o telhado do galpão onde vim morar. Como não tínhamos lugar para guardar meus livros, aluguei os fundos de uma casa. Eu morria de orgulho ao mencionar o “escritório”. Hoje, tenho vergonha de quase tudo isso, mas me afeiçoei ao cafofo.

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A Corrida - Ricardo LísiasPiauí 65

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    A corrida

    por Ricardo Lsias

    Edio 65 > _questes afeto-desportivas > Fevereiro de 2012

    Senti uma presso enorme na cabea e passei alguns minutos sem respirar. Ca no cho do

    cafofo e tudo parecia rodar. Minha vista escureceu. Preciso escrever sobre isso para no

    acontecer de novo. Tenho que correr para recuperar o flego

    As duas primeiras semanas de agosto do ano passado foram as piores da minha vida. Depois de apenas

    quatro meses, enquanto ainda estava tentando achar o lugar do interruptor e entender o que ser um

    marido, fui obrigado a terminar meu primeiro casamento.

    A situao era quase inverossmil e parecia um dos meus textos. Achei que tinha enlouquecido: estou

    vivendo um conto, repeti enquanto ligava o computador para mandar um e-mail agredindo minha ex-

    mulher.

    Logo depois, enviava outro com uma declarao de amor. O terceiro ia para o advogado que ela tinha

    contratado. O ltimo da manh era mais calmo. Depois, tomava gua e, da cama mesmo, olhava para o

    telhado do galpo onde vim morar. Como no tnhamos lugar para guardar meus livros, aluguei os

    fundos de uma casa. Eu morria de orgulho ao mencionar o escritrio. Hoje, tenho vergonha de

    quase tudo isso, mas me afeioei ao cafofo.

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    Na primeira semana, no dormi. De vez em quando, chegava quele estado de sonolncia em que

    vivem as pessoas muito ansiosas. No terceiro dia, eu me vi morto. Enxerguei meu corpo deitado e

    percebi que no respirava mais. A morte uma condio que a gente vive acordado.

    Em 13 de agosto, uma semana depois de ter ido embora, furioso com a situao e pensando em

    quebrar tudo, sa para andar. Decidi que, se tivesse enlouquecido, nunca mais olharia para os meus

    amigos.

    Acho que eram duas da manh. Com certeza fazia muito calor, apesar do inverno. O cafofo fica bem

    perto da avenida Indianpolis. Cruzei-a duas vezes. No vi nenhum carro popular pegando os

    travestis. De madrugada so os importados que rodam por l. A elite brasileira faz tudo escondido.

    Normalmente, enquanto os outros dormem.

    Deve ser timo levar a Ramona para casa. Mas s os covardes se escondem. Ela linda, apesar dos

    seios meio tortos. A operao foi no Brasil, contou-me, mas bom mesmo ir para a Europa. Ramona

    no gosta de clichs: nunca foi travesti na Itlia. Madri incomparavelmente melhor. Conversamos

    umas trs vezes naqueles dias. Na ltima, ela me mandou embora. Vai para casa, bobo.

    Depois da primeira noite de caminhada, dormi de verdade. Acordei uma hora depois, com uma

    descoberta: o segredo ficar cansado. Consegui tambm acertar um pouco a respirao. A falta de ar

    ainda duraria algumas semanas.

    Comecei a andar na avenida Indianpolis logo depois da meia-noite. Fiz na imaginao uma espcie de

    antropologia dos travestis. No se preocupe, leitor: no anotei nenhuma placa. A cultura brasileira

    detesta o radicalismo. Pessoas simpticas demais so falsas.

    Fui aumentando o ritmo. Com isso, em pouco mais de uma semana dormia por duas horas. Em alguns

    dias teria coragem para contar tudo para a minha me. Eu sei, inacreditvel, mas exatamente isso,

    me.

    Eu tambm precisava retomar o equilbrio para planejar um curso de contos. Faltavam quinze dias

    para a primeira aula. E tinha que concluir um romance. Um pouco antes de casar, garantira para o

    editor que terminaria O Cu dos Suicidas em novembro. Agora sequer consigo apontar o lpis direito.

    Escrevo mo.

    Reli Os Mortos, de James Joyce, antes de sair de casa no incio da segunda semana de caminhada.

    Seria esse o primeiro conto do curso. Logo na esquina, vi a Ramona curvada na janela de um carro

    importado. Por algum motivo, talvez o preo, ela no entrou. A elite brasileira esconde-se, mas

    muito zelosa doprprio dinheiro.

    Fao mil concesses, mas no aceito ficar na fila em Nova York para comprar o ingresso da

    Broadway. Pior do que isso, s mesmo a off-Broadway. Na porta do Metropolitan, voc s vai ouvir

    portugus. Nunca vou entrar na Notre Dame.

    Com uns vinte dias, as caminhadas deixaram de fazer efeito. Acontece com naturalidade: comecei

    ento a correr. Se no fizesse isso, iria me ver morto de novo.

    Primeiro voc anda e se cansa. Ento, caminha bem mais rpido e consegue dormir. Portanto, se

    correr, coloca a cabea no lugar de novo. O que existe de bom em tudo isso o raciocnio lgico. Eu

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    no tinha a menor chance de acreditar em outra coisa: essa era a minha salvao.

    O Festival de Cannes s uma feira. Ramona a nossa estrela mais representativa. Declararam que,

    por causa da tradio humanista, Lars von Trier persona non grata. Haroun, um dos membros do

    jri do varejo que sentenciou Trier, participou de uma guerra na frica e um cineasta humanista.

    Ele tem dois filhos e uma esposa em Paris.

    Na primeira vez, consegui correr por mais ou menos quatro quadras da avenida Indianpolis. No

    final, sem nenhum preparo, fiquei exausto. De volta ao cafofo, dormi e acho que at ronquei.

    Foi desse jeito que comecei a correr: lutando para adormecer de novo depois de sentir a maior tristeza

    do mundo, sem aceitar que tinham me enlouquecido, procurando a minha pele e respirando devagar

    para achar o flego.

    epois de uma semana, completei vinte minutos correndo sem nenhum intervalo. Com isso

    consegui mais ou menos trs horas de sono. Continuava nervoso, mas j no enviava e-mails

    para minha ex-mulher. Nem agresso e muito menos amor.

    Comprei um cronmetro e resolvi aumentar dois minutos por dia. Com meia hora de corrida pela

    madrugada, dormia bem, mas ainda no era capaz de preparar as aulas e, menos ainda, retomar o

    romance.

    Precisava regularizar meus horrios. Fiquei um dia sem correr, o que me causou outra noite

    acordado. Na manh seguinte, completei 24 minutos no Ibirapuera. Depois de uma tarde agitada e

    bem mais alegre, fiz um plano antes de dormir: em um dia, uma corrida pesada; no outro, caminhada

    longa, mas em ritmo leve.

    Meu mundo estava voltando a se organizar.

    Correr quarenta minutos no Ibirapuera foi um desafio. Eu precisava sentir cada parte do meu corpo.

    No comeo do treinamento, s pensava nisso: respirava fundo e conclua que estava vivo. S quero

    morrer mais uma vez. O casamento no foi para sempre, como a gente tinha combinado (e eu

    acreditado), mas a minha prxima morte vai ser.

    Quando as costas comeam a doer, preciso curvar o tronco para a frente. Se as coxas reclamam,

    chegou a hora de diminuir o ritmo. Os dedos do p devem estar folgados, mas o tnis, bem apertado.

    Logo depois de esquematizar essas ideias sobre a corrida, preparei a primeira aula. A estratgia estava

    clara para mim: o resto do dia existiria em paralelo ao treinamento.

    Mesmo assim no foi fcil. Eu tinha receio de os alunos perceberem minha fragilidade psicolgica. E

    depois iria almoar com a minha me... Mas se tive coragem para comear a correr (inventar meu

    prprio treino fez parte da tcnica de superao), talvez conseguisse contar tudo.

    Eu sei, inacreditvel, mas exatamente isso, me.

    No grupo de alunos, havia alguns casais. Um deles sentou-se bem na minha frente. A moa sorria

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    compenetrada e o rapaz carregava um exemplar de Infinite Jest. Na mesma hora, lembrei-me de que

    David Foster Wallace se enforcou mais ou menos na mesma poca que o meu grande amigo Andr.

    Antes de comear a falar, ento, fiz outra promessa para mim mesmo: se conseguir terminar a aula de

    hoje e depois contar tudo para minha me sem chorar, corro a So Silvestre.

    o comeo de outubro esquematizei meu treinamento para a prova mais famosa do Brasil.

    Quando atingisse, sem nenhum intervalo, uma hora e meia no Ibirapuera, comearia ento a

    correr em subidas. No sei de onde tirei isso. Minha respirao j tinha quase se normalizado e aos

    poucos eu aumentava as horas de sono. Devo ter retomado a confiana.

    A mesma coisa funciona para escrever um romance. Cada um tem o seu plano, mas sem um nunca o

    livro vai ficar pronto. Gente inconsequente vive mergulhada na vulgaridade. Talvez entre na Notre

    Dame ou no hotel onde esto os jurados do Festival de Cannes, mas da arte nunca vai se aproximar.

    A literatura o mundo da consequncia. A gente escreve um captulo por vez, e o prximo vai sempre

    se referir ao anterior. Voc s termina a corrida se pensar em cada um dos quilmetros.

    Como j tinha acostumado meu corpo ao treino e o curso de contos estava indo bem, faltava apenas

    voltar ao romance para recolocar minha vida no lugar. Respirar tinha ficado fcil.

    Criei um mtodo: antes de ir ao parque, por volta das sete da manh, lia o que tinha rascunhado no dia

    anterior. Durante o treino, pensava no texto, cortava trechos na cabea, invertia frases e desenvolvia

    algumas ideias. Nem reparei que estava correndo cada vez mais rpido.

    Eu carregava um pedao de papel que deixava na bicicleta com o lpis. Assim que terminava o treino,

    corria para anotar tudo o que lembrava. Quando me acostumei a correr uma hora e quinze, acabei o

    romance.

    O Andr tambm gostava de esportes. Camarada, o livro sai em dois meses e estou bem de novo. No

    cuidei de voc direito, mas eu no sabia o que fazer.

    ouco depois de me inscrever para a So Silvestre, fui ameaado. Uma amiga da minha ex-

    mulher, uma reprter de tev (acho que hoje aposentada), comeou a gritar no telefone que, se

    eu no parasse de escrever, a imprensa iria me destruir. Como se fosse pouco, enfrentaria as garras da

    Justia. Por fim, a ameaa suprema: Voc est lidando com jornalistas, estamos te monitorando.

    quela altura, j havia percebido que s retomaria meu equilbrio se, alm de correr, tentasse

    elaborar ficcionalmente o que tinha sofrido. O esquema da corrida espelhava o dos textos. O primeiro

    saiu aqui mesmo na piau, em novembro passado. O segundo, Meus Trs Marcelos, estava circulando

    em uma edio caseira que eu tinha feito para presentear meus alunos. Uma editora fez uma edio

    artesanal e muito caprichada em janeiro.

    Estive perto de enlouquecer quando achei que estava vivendo um texto que eu assinaria. Senti uma

    presso enorme na cabea e passei alguns minutos sem respirar. Ca no cho do cafofo e tudo parecia

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    rodar. Minha vista escureceu. Preciso escrever sobre isso para no acontecer de novo. Tenho que

    correr para recuperar o flego. A minha pele pode ter sido roubada, mas minha literatura no vo

    tirar. J morri uma vez.

    No dia seguinte ameaa, nervoso, corri exatamente uma hora e 56 minutos no Ibirapuera. Terminei

    o treino maravilhado. No consegui repetir a mesma faanha quando estava bem mais calmo. Mesmo

    assim, a confiana de ter corrido ao menos uma vez todo esse tempo me animou.

    No comeo de dezembro, sentindo-me de novo mais ou menos so ou seja, normal , meu

    rendimento no passava de uma hora e dez minutos. Comecei a ter receio de no terminar a corrida.

    Fechar 2011 com outra decepo seria pssimo.

    Faltava-me o que pensar durante o treino. Meu corpo tinha se acostumado e j no desanimava no

    incio. Depois de 3 quilmetros, a vontade de parar tentadora. Como exige muita fora de vontade, a

    corrida devolve a confiana. O livroestava comeando a ser produzido pela editora e o curso tinha

    acabado bem. Minha cabea parecia organizada e eu me sentia tranquilo e forte. Mesmo assim, depois

    de uma hora e dez minutos meu corpo travava.

    Resolvi passar de uma vez por todas para a subida. Todo mundo diz que esse o trecho mais difcil da

    So Silvestre. Caso no conseguisse terminar, ao menos percorreria boa parte do caminho. Se desse

    errado, ficaria muito frustrado.

    No comeo, minhas coxas doam, provavelmente porque a inclinao exige um ritmo menor, o que

    fora muito as passadas. As ruas terminavam sem exceo na movimentada avenida Jabaquara.

    Quando percebi que no ouvia mais os barulhos dos carros, dei um enorme sorriso: de novo estava

    conseguindo viver dentro de mim.

    Mas era preciso pensar em algo enquanto treinava. Esse outro ganho que a corrida oferece: se

    encher a cabea com alguma coisa, a gente rende mais. Resolvi esboar um romance novo. Vou

    escrev-lo agora em 2012. Depois de cada sesso de treinamento, redigia umas cinco pginas de

    rascunhos e ideias.

    Nos ltimos dez dias do ano passado, subi e desci correndo algumas ladeiras todas as manhs. Posso

    garantir: exatamente como criar um romance. Persistncia, confiana, tcnica, coragem, convvio

    consigo mesmo e autoconhecimento.

    Em 29 de dezembro, tomado por uma imensa esperana, encerrei o treinamento que tinha inventado

    para a Corrida Internacional de So Silvestre de 2011.

    ara os amadores, a largada da So Silvestre um caos. Alm da quantidade enorme de gente, o

    pessoal fantasiado s atrapalha. A gente cruza toda hora com um recalcado vestido de noiva,

    dois Batmans, um monte de Super-Homem e patetas carregando faixas falando de tudo. Deus nos

    proteja faz muito sentido naquele contexto.

    Caminhei praticamente por toda a avenida Paulista. No pequeno trecho da Doutor Arnaldo, comecei

    por fim a correr. Atingi um bom ritmo apenas no contorno do estdio do Pacaembu. No incio do

    Centro velho, percebi que tinha me estabilizado: as pessoas ao redor eram as mesmas h algum tempo.

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    Com exceo de certas dores localizadas, que vencia alternando levemente minha postura, meu corpo

    parecia bem. Comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido. Senti alguma raiva, mas atrs do

    Teatro Municipal estava comovido: se o Andr no tivesse se matado, com certeza estaria correndo

    ao meu lado.

    Fechei os olhos sentindo a chuva que comeava a apertar. Vou terminar essa corrida. Nada vai me

    fazer desistir.

    Um pouco antes da Brigadeiro Lus Antnio, correu o rumor de que o brasileiro Marlson no

    ganharia a prova. Algum gritou que precisvamos nos concentrar porque a subida estava chegando.

    Ento so esses os meus novos amigos?

    Quando entrei na Brigadeiro, meu corpo sentia algum cansao. Um senhor que acenava para a gente

    parecia meu av. Por algum motivo, lembrei dos trs dias em que mais chorei na minha vida: quando

    meu irmo mudou-se para a Austrlia, quando me ligaram dizendo que o Andr tinha se enforcado e,

    cinco meses atrs, quando fui embora de casa.

    Diminu um pouco o ritmo para enxugar as lgrimas e chequei meu corpo, tentando me concentrar

    para sentir o p, as pernas e as costas. Estava tudo bem. Respirei fundo e subi a Brigadeiro com toda a

    fora que tinha juntado para preparar minhas aulas e terminar O Cu dos Suicidas. No fiquei louco.

    Vou acabar essa corrida.

    Estranhamente, no pensei nos dias mais felizes da minha vida. Talvez fosse fazer isso no final da

    subida. Mas no d: quando a Brigadeiro acaba, os corredores todos gritam a mesma palavra:

    Conseguimos! Emociona.

    Agora s falta a descida. Tranquilo. Eu e meus novos amigos tnhamos conseguido concluir a So

    Silvestre.

    Quando um corredor profissional toma a dianteira e se distancia dos outros, o locutor da televiso diz

    que ele est absoluto na corrida. Durante a infncia e a adolescncia, ouvi essa frase inmeras vezes

    vendo a So Silvestre.

    Atravessei a linha de chegada debaixo de um temporal enorme. Conclu a prova em 1 hora, 25 minutos

    e 32 segundos. Minha classificao a de nmero 5 392. Fiquei satisfeito, claro, mas senti algo

    indito. No sei como descrever. Eu estava absoluto em mim mesmo.

    corrida me devolveu a confiana, a respirao regular, o sono e a capacidade de fazer planos.

    Mas continuei fazendo algumas opes absurdas. Cruzei a linha de chegada da So Silvestre

    destrudo. Nas primeiras horas, estava to feliz que no sentia nada. Depois do Rveillon, porm,

    minhas pernas ficaram to pesadas que eu no conseguia dar dois passos sem ter que parar e respirar

    bem fundo.

    Como imaginava que ficaria desse jeito, marquei uma longa viagem para o dia seguinte. Fazia dez anos

    que eu no visitava meu irmo na Austrlia e estava morrendo de vontade de conhecer meus

    sobrinhos. Emily tem hoje 8 anos e Erich, 4. O raciocnio era bvio: como estaria destrudo, dormiria

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    facilmente no voo de quase catorze horas entre Buenos Aires e Sydney...

    Um mero absurdo. Sempre que tentava pegar no sono, meu corpo reclamava. As pernas no ficavam

    bem em nenhuma posio, as costas custavam a se acostumar ao banco e dos meus ps eu j tinha

    desistido. Fiquei acordado a viagem inteira.

    Ainda assim, o prazer de ter concludo a So Silvestre no 5 392 lugar valia mais que o desconforto.

    Inventei outro desafio: a Meia Maratona de So Paulo, agora no comeo de maro. Talvez em 2013 eu

    tenha coragem de encarar a famosa Maratona de Nova Iorque.

    No quero mais sofrer tanto. Vou morrer s mais uma vez.

    Uma semana depois da So Silvestre, recuperado, comecei os treinamentos para a Meia Maratona.

    Aqui em Sydney, onde estou escrevendo, muita gente corre em espaos pblicos. Uma parte de

    inmeras ruas reservada para ciclistas e corredores.

    Tracei na internet um percurso que sai da casa do meu irmo, cruza uma pequena praa com aranhas

    do tamanho da minha mo, vai at um centro municipal de prtica esportiva, vira esquerda em uma

    grande avenida e retorna rua dele.

    Quando terminei a primeira volta, resolvi fazer uma brincadeira com meus sobrinhos (que adoram

    baguna) e entrei correndo em casa. Emily, quase uma moa, se espantou, mas Erich veio atrs na

    mesma hora. Cruzamos o corredor e demos um giro pelo quarto dele. Na sada, a irm veio junto e ns

    trs fizemos a volta olmpica pelo quintal. As crianas adoraram.

    No final do treino, entrei em casa e os dois tinham feito um pdio com uma cadeira. Emily me trouxe

    algumas flores e Erich entregou a medalha que tinha acabado de fazer com papelo e barbante.

    Durante a cerimnia, cantaram um hino que at agora no sei qual . Mas percebi que sentiam orgulho

    de mim.

    Foi a maior alegria da minha vida.