A CORRIDA SECRETA DE LANCE ARMSTRONG

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Este é um olhar profundo sobre o mundo do ciclismo profissional - e dos problemas de doping que cercam esse esporte e seu mais proeminente corredor, Lance Armstrong. O livro nos leva a fundo a um mundo obscuro.

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Tradução

Leonardo Castilhone

Nos bastidores do Tour de France: doping, armações e tudo o que for preciso para vencer

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Título original: The Secret Race

Copyright © 2012 Tyler Hamilton e Daniel CoylePosfácio © 2013 Tyler Hamilton e Daniel CoyleCopyright da edição brasileira © 2013, Editora Pensamento-Cultrix Ltda.

Publicado mediante acordo com Bantam Books, um selo da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc.

Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.A Editora Seoman não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.

Coordenação editorial e tradução do posfácio: Manoel LauandCapa e projeto gráfico: Gabriela GuentherEditoração eletrônica: Estúdio Sambaqui Foto da capa:Thierry Roge/Reuters

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Hamilton, Tyler A corrida secreta de Lance Armstrong : nos bastidores do Tour de France : doping, armações e tudo o que for preciso para vencer / Tyler Hamilton com Daniel Coyle ; tradução Leonardo Castilhone. -- São Paulo : Seoman, 2013.

Título original: The secret race. ISBN 978-85-98903-61-3

1. Armstrong, Lance 2. Ciclismo 3. Corridas de bicicletas - Corrupção 4. Doping nos esportes 5. Hamilton, Tyler, 1971- 6. Tour de France (Ciclismo) I. Coyle, Daniel. II. Título.

13-01723 CDD-796.62

Índices para catálogo sistemático:1. Ciclistas : Doentes de câncer : Biografia 796.62092

2. Doentes de câncer : Biografia 796.62092

Seoman é um selo editorial da Pensamento-Cultrix.

Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pelaEDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.

R. Dr. Mário Vicente, 368 – 04270-000 – São Paulo, SPFone: (11) 2066-9000 – Fax: (11) 2066-9008

E-mail: [email protected]://www.editoraseoman.com.br

que se reserva a propriedade literária desta tradução. Foi feito o depósito legal.

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Para minha mãe. – THPara Jen. – DC

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Se calar a verdade e escondê-la embaixo da terra, ela crescerá e acumulará tanta força explosiva que, no dia em que explodir, des-truirá tudo que estiver em seu caminho.

— Émile Zola

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Índice

A HiSTÓRiA POR TRÁS deSTe LiVRO

Daniel Coyle 11

Capítulo 1 enTRAndO nO JOGO 23

Capítulo 2 ReALidAde 39

Capítulo 3 euROdOGS 50

Capítulo 4 cOLeGAS de QuARTO 75

Capítulo 5 A FAmÍLiA BuScAPé 91

Capítulo 6 2000: cOnSTRuindO A mÁQuinA 115

Capítulo 7 um nÍVeL AcimA 137

Capítulo 8 A VidA nA VizinHAnçA 153

Capítulo 9 RecOmeçO 174

Capítulo 10 A VidA nO AuGe 192

Capítulo 11 O ATAQue 208

Capítulo 12 TudO Ou nAdA 223

Capítulo 13 deSmAScARAdO 243

Capítulo 14 A eScAVAdeiRA de nOViTzky 267

Capítulo 15 eScOnde-eScOnde 281

Capítulo 16 A eVASiVA 294

POSFÁciO 309

POR Onde eLeS AndAm 327

AGRAdecimenTOS 331

LeiTuRA cOmPLemenTAR 334

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A HiSTÓRiA POR TRÁS deSTe LiVRO

Daniel Coyle

Em 2004, mudei-me para a Espanha com a minha família para escrever sobre Lance Armstrong e sua tentativa de vencer seu sex-to Tour de France [Volta da França]. Era um projeto fascinante, por muitas razões, sendo a maior delas o mistério que envolvia sua peça-chave: quem era Lance Armstrong, de verdade? Era ele um campeão verdadeiro e merecedor, como muitos acreditavam? Era ele um usuário de doping e uma enganação, como outros insistiam? Ou, quem sabe, vivia num limbo obscuro entre os dois opostos?

Alugamos um apartamento na base de treinamento de Arms-trong, em Girona, que ficava a dez minutos de caminhada de sua casa (que mais parecia uma fortaleza), onde morava com sua então namorada, Sheryl Crow. Vivi durante quinze meses no Planeta Lan-ce, aproveitando os momentos com amigos de Armstrong, seus co-legas de equipe, médicos, treinadores, advogados, agentes, mecâni-cos, massagistas, rivais, detratores e, é claro, o próprio Armstrong.

Gostava da energia abundante de Armstrong, seu sagaz senso de humor, e suas habilidades de liderança. Não gostava muito de sua instabilidade, sua aura misteriosa, ou das maneiras, às vezes, intimidadoras com que tratava seus colegas de time e amigos –

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porém, novamente, isso realmente não era brincadeira de crian-ça: era o esporte mais exigente do planeta, tanto f ísica quanto mentalmente. Relatei todos os lados da história, o mais minucio-samente possível, e depois escrevi A Luta de Lance Armstrong, que muitos dos colegas de Lance julgaram ser objetivo e justo (Armstrong deixou registrado que estava “na boa” com o livro).

Durante os meses e anos após a publicação do livro, as pesso-as frequentemente me perguntavam se eu achava que Armstrong havia ou não tomado doping. Eu ficava em cima do muro a res-peito dessa questão, porém, a probabilidade foi crescendo com o passar do tempo. De um lado, tinha-se as provas circunstanciais: estudos mostravam que o doping aumentava o desempenho em 10 a 15% num esporte em que as corridas eram quase sempre decididas por uma fração de um ponto percentual. Existia o fato de que praticamente todos os outros ciclistas que estiveram no pódio da Volta da França, junto com Armstrong, eventualmente estiveram ligados a algum caso de doping, além de cinco de seus companheiros da equipe U.S. Postal. Havia também a proximida-de de longa data de Armstrong com o Dr. Michele (pronuncia-se mi-QUE-le) Ferrari, mais conhecido como o “Dr. Maligno”, o mis-terioso italiano conhecido como um dos médicos mais infames do esporte.

Por outro lado, sabíamos que Armstrong passou em testes an-tidoping com avaliações maravilhosas. Existia a questão de que ele se defendia vigorosamente, e ganhou diversos grandes proces-sos judiciais. Além do mais, lá no fundo, sempre havia um pensa-mento reincidente: se, por acaso, Armstrong estava tomando do-ping, ele se colocaria em pé de igualdade com os outros ciclistas, não é mesmo?

Independentemente da verdade, eu estava completamente convencido de que nunca mais iria escrever sobre doping e/ou Armstrong novamente. Para simplificar: doping era muito chato. Claro que era fascinante essa espécie de conspiração, mas, quanto mais a fundo se ia, mais sério e obscuro isso ficava: histórias de médicos perigosamente desqualificados, diretores de times ma-

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quiavélicos e ciclistas desesperadamente ambiciosos, que sofriam profundos danos f ísicos e psicológicos. O que já era pesado, ficou pior, durante minha época em Girona, com a morte de duas estre-las da “Era Armstrong”: Marco Pantani (depressão, overdose de cocaína, aos 34 anos de idade) e José María Jiménez (depressão, ataque cardíaco, aos 32 anos de idade), além da tentativa de suicí-dio de outra estrela, Frank Vandenbroucke, de 30 anos.

Envolvendo tudo isso, como um cofre de aço, estava a omertà: a regra do silêncio que rege velocistas quando o assunto é doping. A força da omertà estava bem consolidada: ao longo da história do esporte, nenhum ciclista de alto nível revelou a verdade. Ci-clistas de apoio e pessoas da equipe que falassem sobre doping eram expulsos da irmandade e tratados como traidores. Com tão poucas informações confiáveis, denunciar o doping era um exer-cício frustrante, principalmente quando se tratava de Armstrong, cujo status emblemático como santo cidadão que combateu o câncer criava barreiras para um exame mais minucioso a respeito. Quando A Luta estava concluído, toquei adiante outros projetos, feliz em ver o Mundo de Lance distanciando-se de mim.

Então, em maio de 2010, tudo mudou.O governo dos Estados Unidos abriu uma investigação para

analisar se Armstrong e sua equipe U.S. Postal seriam levados a julgamento. As investigações baseavam-se em fraude, conspira-ção, crime organizado, suborno de oficiais estrangeiros e crime de ameaça a testemunha. A investigação foi conduzida pelo pro-motor federal Doug Miller e o pelo investigador Jeff Novitzky, os quais tiveram participação fundamental no caso Barry Bonds/BALCO. Naquele verão, eles começaram a voltar os holofotes para os cantos mais escuros do Mundo de Lance. Eles chamaram diversas pessoas – colegas, membros da equipe de Armstrong, e amigos – para testemunhar perante o grande júri de Los Angeles.

Comecei a receber ligações. Fontes me disseram que a inves-tigação era grande e cresceria ainda mais: Novitzky conseguiu provas, de testemunhas oculares, de que Armstrong transportou, usou e distribuiu substâncias controladas, e provas de que ele te-

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ria tido acesso a drogas experimentais de substituição de sangue. Como me disse o Dr. Michael Ashenden, um especialista australia-no em antidoping que havia trabalhado em diversas investigações de grande porte: “Se Lance conseguir se livrar dessa, vai superar Houdini”. [O grande mágico, rei do escapismo.]

À medida que a investigação prosseguia, comecei a me sen-tir compelido a lidar com questões mal resolvidas, no sentido de que essa poderia ser a chance de descobrir a verdadeira história da Era Armstrong. O problema era que eu não podia relatar essa história por conta própria. Precisava de um mentor, alguém que tivesse vivido neste mundo e estivesse disposto a romper a omer-tà, quebrar esse silêncio. Havia apenas um nome que eu poderia considerar: Tyler Hamilton.

Tyler Hamilton não era nenhum santo. Foi um dos velocistas mais bem colocados e mais conhecidos do mundo, vencedor da medalha de ouro olímpico, até que foi pego por doping, em 2004, e expulso do esporte. Sua conexão com Armstrong tinha mais de uma década, primeiro como escudeiro fiel de Armstrong na U.S. Postal, de 1998 a 2001, depois como rival, quando Hamilton deixou a Postal para liderar a CSC e depois a Phonak. Os dois, por acaso, eram vizinhos, moravam no mesmo prédio em Girona: Armstrong no segundo andar; Hamilton e sua esposa, Haven, no terceiro.

Antes de sua queda, Hamilton era considerado um tipo de Herói Faz-Tudo que os jornalistas esportivos costumavam inven-tar nos anos 1950: fala calma, bonitão, educado e durão acima da média. Natural de Marblehead, Massachusetts, era um grande esquiador até a faculdade, quando uma lesão nas costas o levou a descobrir seu verdadeiro talento. Hamilton era o oposto de uma celebridade: um corredor humilde que, pacientemente, ascendeu a pirâmide do ciclismo mundial. No decorrer do caminho, tor-nou-se famoso por sua ética profissional sem precedentes, uma personalidade amigável e moderada, e, acima de tudo, sua im-pressionante habilidade de resistir à dor.

Em 2002, Hamilton machucou-se logo no início da Volta da Itália, na terceira semana, fraturando seu ombro. Ele continuou

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pedalando, aguentando tanta dor que chegou a destruir onze dentes até a raiz, necessitando de cirurgia após a prova. Ele ter-minou em segundo. “Em 48 anos de prática, nunca vi um homem que pudesse aguentar tanta dor quanto ele”, disse o fisioterapeuta de Hamilton, Ole Kare Foli.

Em 2003, repetiu a dose, quebrando sua clavícula logo na pri-meira etapa da Volta da França. Ele prosseguiu, chegando a vencer uma fase e terminando num incrível quarto lugar, numa perfor-mance que o médico veterano da Volta, Gérard Porte, descreveu como “o mais belo exemplo de coragem com o qual já me deparei”.

Hamilton era também um dos velocistas mais benquistos do grupo: humilde, elogiava seus companheiros, e atencioso. Os co-legas de equipe de Hamilton gostavam de fazer uma brincadeira em que um deles o imitava, como se ele estivesse estirado, se con-torcendo, caído na rua, após um acidente. Outro colega fingia ser o médico da equipe, correndo desesperado na direção de Hamil-ton. “Meu Deus, Tyler”, ele gritava, “suas pernas foram cortadas! Você está bem?” O companheiro imitando Hamilton sorria tran-quilamente. “Ah, não se preocupe, estou bem”, ele dizia. “E você, como está se sentindo hoje?”

Passei bastante tempo com Hamilton em Girona, em 2004, e foi uma experiência memorável. A maior parte do tempo, Hamil-ton era exatamente como falavam dele: humilde, gente fina, edu-cado, um cavalheiro, dos pés à cabeça. Ele abria a porta para mim, agradecia-me três vezes quando lhe pagava um café; era encan-tadoramente ineficaz quando se tratava de controlar seu exube-rante Golden Retriever, Tugboat. Quando falávamos sobre a vida em Girona, ou de sua infância em Marblehead, ou mesmo de seu querido time Red Sox, ele era engraçado, sensível e engajado.

Quando falava de corridas de bicicleta ou do Tour de Fran-ce que estava por vir, no entanto, a personalidade de Hamilton mudava. Seu senso de humor brincalhão evaporava; seus olhos fixavam-se em seu café, e ele começava a falar com os clichês es-portivos mais chatos, insossos e generalizados que já se ouviram. Ele me disse que estava se preparando para a Volta, “caminhando

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aos poucos, uma corrida de cada vez e fazendo sua lição de casa”; como Armstrong era “um cara legal, um competidor acirrado e um grande amigo”; como a Volta da França era “uma verdadeira honra só de fazer parte dela” etc. Era como se ele tivesse uma do-ença rara que causava surtos de tédio incontroláveis sempre que as corridas de bicicleta eram mencionadas.

Em nossa última conversa (que aconteceu algumas semanas antes de ele ser pego no teste de doping sanguíneo), Hamilton me surpreendeu ao perguntar se eu estaria interessado em escrever um livro com ele sobre sua vida no ciclismo. Disse que me sentia lisonjeado por receber esse convite e que, outro dia, deveríamos conversar mais a respeito. Para ser sincero, eu queria era desenco-rajá-lo. Como disse à minha esposa naquela noite, gostei de Ha-milton, e seus feitos no esporte eram incríveis e inspiradores, mas quanto a ser o assunto de um livro, aí estaria fadado ao fracasso: ele era muito chato.

Algumas semanas depois, descobri que estava errado. Como os relatos viriam a revelar, nos meses e anos subsequentes, Tyler levava uma vida paralela, vinda diretamente de um romance de espiões: codinomes, telefones secretos, dezenas de milhares de dólares em pagamentos em dinheiro a um médico espanhol, e um freezer chamado “Sibéria” usado para armazenar sangue que seria usado na Volta da França. Mais tarde, uma investigação policial espanhola revelou que Hamilton estava longe de estar só: outras dezenas de ciclistas estavam em programas secretos e elabora-dos de forma semelhante. Contra todas as evidências, Hamilton sustentou que era inocente. Suas alegações foram rejeitadas por autoridades antidoping; Hamilton foi suspenso por dois anos e, rapidamente, excluído das manchetes.

Então, à medida que a investigação de Armstrong acelerava, fiz algumas pesquisas em notícias. Os artigos diziam que Tyler estava se aproximando dos quarenta anos, era divorciado e vivia em Boulder, Colorado, onde dirigia um pequeno negócio de trei-namento f ísico. Ele tentou um breve retorno, após sua suspensão, que terminou quando seu teste deu positivo para uma droga que

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não visava o aumento de desempenho, mas que servia para lidar com sua depressão clínica, da qual sofre desde a sua infância. Ele não dava entrevistas. Um ex-colega de equipe referiu-se a Hamil-ton como “o Enigma”.

Eu ainda tinha seu endereço de e-mail. Escrevi:

Oi Tyler,Espero que esteja bem.Há algum tempo, você me perguntou sobre a possibilidade de

escrevermos um livro juntos.Se isso ainda lhe interessar, adoraria conversar a respeito.Saudações,Dan.

s

Poucas semanas depois, voei para Denver para encontrar Ha-milton. Assim que saí do terminal, vi-o atrás de uma roda de um SUV prateado. A aura de garotão de Tyler envelheceu; seu cabelo estava maior e mostrava traços grisalhos; os cantos de seus olhos mostravam pequenas e profundas rugas. Durante nosso trajeto, ele abriu uma latinha de tabaco mastigável.

“Tenho tentado parar. É um hábito horrível, eu sei. Mas com todo esse estresse, isso ajuda. Ou, pelo menos, parece dar essa sensação.”

Tentamos um restaurante, mas Hamilton achou que estava muito cheio, e escolheu um mais vazio, uma quadra depois. Ha-milton escolheu um lugar nos fundos, com duas velas acesas na mesa. Deu uma olhada em volta. Então, o homem que podia to-lerar qualquer tipo de dor – aquele que preferiu roer os dentes até a raiz do que desistir – de repente, parecia que iria começar a chorar. Não de dor, mas de alívio.

“Desculpe”, ele disse, após alguns segundos. “Sinto-me tão bem por, finalmente, poder falar sobre o assunto.”

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Comecei com a grande questão: Por que ele havia mentido, antes, sobre seu próprio doping? Tyler fechou os olhos. Depois de um tempo, abriu-os novamente; pude ver sua tristeza.

“Olha, eu menti, pois pensei que isso causaria menos estragos. Ponha-se no meu lugar. Se eu tivesse dito a verdade, estaria tudo acabado. A equipe perderia seu patrocinador, e umas cinquenta pessoas, cinquenta amigos meus, perderiam seus empregos. Pes-soas com quem me importo. Se eu dissesse a verdade, seria banido do esporte para sempre. Meu nome estaria arruinado. E não dá para falar individualmente – não posso, simplesmente, dizer: ‘Ah, fui só eu, e foi só uma vez’. A verdade é muito maior, envolve muita gente. Só é possível contar tudo, ou nada. Não tem meio-termo. Portanto, sim, resolvi mentir. Não fui o primeiro a fazer isso e não serei o último. Às vezes, quando mentimos o bastante, começa-mos a acreditar na mentira.”

Hamilton me disse que, algumas semanas antes, havia sido in-timado, posto sob juramento e falou na frente de todos no Tribu-nal de Los Angeles.

“Antes de ir, pensei muito a respeito, muito mesmo. Sabia que não poderia mentir para eles, de forma alguma. Portanto, deci-di que, já que contaria a verdade, diria tudo, desde o princípio. Cem por cento, abriria o jogo totalmente. Resolvi, dentro de mim mesmo, que nenhuma pergunta iria me parar. Foi o que fiz. Tes-temunhei por sete horas. Respondi tudo que me perguntaram da melhor forma possível. Eles ficavam me perguntando sobre Lan-ce – eles queriam que eu o acusasse. Mas sempre acusava a mim mesmo, antes de tudo. Fiz com que compreendessem como fun-cionava todo o esquema, como tudo foi desenvolvido através dos anos e como não era possível acusar apenas uma pessoa. Era todo mundo. Todo mundo.”

Hamilton ergueu suas mangas, virou as palmas das mãos para cima e estendeu seus braços. Ele tinha cicatrizes, que mais pa-reciam aranhas, que se misturavam às suas veias. “Todos temos cicatrizes como essas”, ele disse. “É como se fosse uma tatuagem de uma fraternidade. Quando fiquei bronzeado, elas apareceram

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e tive de mentir a respeito; dizia às pessoas que havia cortado meu braço num acidente.”

Perguntei como ele conseguira evitar que seus testes apontassem positivo, todos esses anos, e Hamilton deu uma risada ríspida.

“Os testes são fáceis de burlar”, disse ele. “Estamos muito à fren-te dos testes. Eles têm os médicos deles e nós temos os nossos, e os nossos são melhores. Mais bem pagos, com certeza. Além do mais, a UCI [União Ciclística Internacional, o órgão regulador do esporte] nunca iria querer pegar alguns caras. Por que fariam isso? Iria lhes custar muito dinheiro.”

Perguntei-lhe por que ele queria contar sua história agora.“Fiquei calado por muitos anos”, disse Tyler. “Enterrei isso den-

tro de mim por muito tempo. Nunca, realmente, contei tudo, do início ao fim. Portanto, nunca enxerguei isso de verdade ou tive essa sensação. Então, assim que comecei a contar a verdade, pa-recia que havia uma explosão surgindo de dentro para fora. E é tão, tão bom, que não dá para descrever quão fantástica é essa experiência. Parece que estou tirando um peso gigantesco das mi-nhas costas, finalmente. Quando sinto isso, sei que estou fazendo a coisa certa, por mim e pelo futuro do meu esporte.”

s

Na manhã seguinte, Hamilton e eu nos encontramos em meu quarto de hotel. Defini três regras primordiais.

1. Nenhum assunto estaria além dos limites.2. Tyler iria me fornecer acesso total aos seus diários, fotos e

fontes.3. Todos os fatos poderiam ser confirmados independente-

mente, sempre que possível.

Ele concordou sem qualquer hesitação.Nesse dia, entrevistei Hamilton por oito horas – a primeira de

mais de 16 entrevistas. Naquele dezembro, passamos uma sema-

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na na Europa visitando locais fundamentais na Espanha, França e Mônaco. Para verificar e corroborar o relato de Tyler, entrevistei diversas fontes independentes – colegas de equipe, mecânicos, médicos, esposas, assistentes e amigos – além de oito ex-ciclistas da equipe U.S. Postal. Seus relatos também estão inclusos neste livro; alguns deles fizeram denúncias pela primeira vez.

No decorrer de nossa relação, descobri que a história de Ha-milton contou mais sobre ele, do que ele realmente contou. Seu relato emergia dele como se fossem extensas explosões. Ele pos-sui uma memória de rara precisão, e suas lembranças provaram ser de uma exatidão, possivelmente, atribuída à intensidade emo-cional das experiências originalmente vividas. A tolerância a dor de Hamilton foi muito útil. Ele não se poupou nesse processo, en-corajando-me, inclusive, a conversar com aqueles que poderiam julgá-lo sob uma ótica desfavorável. De certa forma, ele se tornou tão obcecado em revelar a verdade quanto já havia sido obcecado em vencer o Tour de France.

O processo de entrevistas durou aproximadamente dois anos. Por vezes, senti-me como um padre ouvindo uma confissão; ou-tras vezes, como um terapeuta. À medida que o tempo ia pas-sando, vi como a confissão mudava Tyler, gradualmente. Nossa relação acabou sendo uma jornada para ambos. Para Hamilton, foi uma jornada para longe de seus segredos, em direção a uma vida normal. Para mim, uma viagem rumo ao centro do mundo do nunca-visto-antes.

Por fim, sua história não era mais sobre doping; era sobre poder. Era sobre um cara normal que trabalhou em prol de sua ascensão em direção ao topo de um mundo extraordinário, que aprendeu a jogar uma partida de xadrez sombria, de estratégia e informação, até o limite mais distante do desempenho humano. Era sobre um mundo corrupto, mas estranhamente cavalheiresco, no qual se tomaria qualquer tipo de substância para ir mais rápido, mas es-peraria por seu oponente se ele, porventura, sofresse um aciden-te. Acima de tudo, era uma história sobre a tensão insuportável de viver uma identidade secreta.

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“Um dia, sou uma pessoa normal com uma vida normal”, ele disse. “No outro, estou parado na esquina de uma rua em Madrid, com um telefone secreto e um buraco em meu braço, sangrando muito, torcendo para não ser preso. Era tudo muito louco. Mas parecia ser o único modo, na época.”

Hamilton, às vezes, expressava medo de que Lance e seus ami-gos poderosos agissem contra ele, mas nunca expressou qualquer ódio por Armstrong. “Sinto-me condoído por Lance”, disse Ha-milton. “Entendo quem ele é, e onde ele está. Ele fez a mesma escolha que todos nós fizemos para se tornar um competidor. Daí, ele começou a ganhar o Tour de France, saindo do controle, com suas mentiras tornando-se cada vez maiores. Agora ele não tem mais escolha. Ele precisa continuar mentindo, para continu-ar tentando convencer as pessoas a seguirem suas vidas. Não se pode mais voltar atrás. Armstrong não pode dizer a verdade. Está numa enrascada.”

Armstrong não respondeu a qualquer pedido de entrevista para este livro. No entanto, seus representantes legais deixaram claro que ele nega absolutamente todas as acusações de doping. Como disse Lance, numa declaração feita após a Agência Anti-doping dos EUA (USADA) acusar ele, seu treinador, Dr. Ferrari, e quatro de seus colegas de equipe da U.S. Postal, de uma conspira-ção de doping, em 12 de junho de 2012: “Jamais tomei doping e, ao contrário de muitos acusadores da minha pessoa, competi como um sólido atleta, por 25 anos, sem quaisquer picos de desempe-nho, tendo passado em mais de 500 testes de doping, sem nunca ter falhado em nenhum deles.”

Muitos dos colegas de Armstrong acusados pela USADA ne-garam veementemente terem qualquer envolvimento em ativida-des de doping, incluindo o próprio ex-diretor da U.S. Postal, Johan Bruyneel, o Dr. Luis del Moral e o Dr. Ferrari. Numa entrevista ao The Wall Street Journal, del Moral disse que nunca forneceu drogas proibidas ou executou qualquer procedimento ilegal nos atletas. Numa declaração em seu site, Bruyneel disse: “Nunca participei de qualquer atividade de doping e sou inocente de to-

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das as acusações.” Num depoimento enviado por e-mail, Ferrari disse: “NUNCA estive de posse de qualquer EPO ou testostero-na em minha vida. NUNCA administrei EPO ou testosterona a qualquer atleta.” O Dr. Pedro Celaya e Pepe Martí, assistente do Dr. del Moral, que também foi acusado pela USADA, não fize-ram nenhuma declaração pública. Os cinco não responderam a solicitações para participar de entrevistas para este livro. Bjarne Riis, que foi o diretor de Hamilton no time CSC, de 2002 a 2003, deu a seguinte declaração: “Fico realmente entristecido por estas alegações que estão sendo feitas sobre mim. Mas como essa não é a primeira vez que alguém tenta desacreditar-me e, infelizmente, provavelmente, não será a última, irei me abster de comentar tais alegações. Pessoalmente, sinto que mereço meu lugar no mundo do ciclismo, e que fiz uma contribuição para fortalecer o trabalho antidoping no esporte. Fiz minhas manifestações ao doping, sou peça-chave na criação do passaporte biológico e dirijo um time com uma clara política antidoping.”

“A questão é que Lance sempre foi diferente de todos nós”, dis-se Hamilton. “Nós queríamos vencer. Mas Lance precisava ven-cer. Ele tinha de estar 100% certo de que ganharia todas as vezes, e isso fez com que ele passasse muito dos limites, na minha opinião. Entendo que ele fez muitas coisas boas para muita gente, mas ain-da assim não é certo. Ele deveria ser processado e ir para a prisão pelo que fez? Acho que não. Porém, deveria ter ganho sete Tour de France seguidos? Com certeza, não. Então, sim, acho que as pessoas têm o direito de saber a verdade. Todos têm o direito de saber como tudo realmente aconteceu, podendo assim tirar suas próprias conclusões”.1

1 Nas páginas seguintes, adicionarei contexto e comentários ao relato de Hamilton, por meio de notas de rodapé. (N.A.)

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