A Convergencia Ao Uno No Contexto Das Eneadas

85
RUDINEI DOS SANTOS MARQUES A CONVERGÊNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENÉADAS Dissertação de Mestrado na área de Ética e Filosofia Política, apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Filosofia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre, sob a orientação do Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann. Porto Alegre 2010

Transcript of A Convergencia Ao Uno No Contexto Das Eneadas

  • RUDINEI DOS SANTOS MARQUES

    A CONVERGNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENADAS

    Dissertao de Mestrado na rea de tica e Filosofia Poltica, apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Filosofia como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre, sob a orientao do Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann.

    Porto Alegre

    2010

  • RUDINEI DOS SANTOS MARQUES

    A CONVERGNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENADAS

    Dissertao de Mestrado na rea de tica e Filosofia Poltica, apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Filosofia como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre, sob a orientao do Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann.

    Aprovada em ___ de ___________ de 2010.

    BANCA EXAMINADORA:

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann (Orientador) PUCRS

    ____________________________

    Prof. Dr. Felipe de Matos Muller PUCRS

    _____________________

    Prof. Dr. Margaret Marchiori Bakos - PUCRS

  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo investigar, a partir das Enadas, o que so e como se

    articulam os dois momentos da filosofia plotiniana, processo e retorno, analisando o processo

    dedutivo a partir do qual o Uno se faz mltiplo, os trs caminhos ascensionais que reconduzem da

    multiplicidade unidade, bem como a importncia do autoconhecimento para o caminho de retorno,

    enfatizando que o sistema de Plotino, forjado a partir da filosofia precedente e de sua prpria

    experincia existencial, tem como propsito central a reunificao com o Uno.

    Palavras-chave: Plotino. Neoplatonismo. Metafsica. Enadas. Processo. Retorno ao Uno.

    ABSTRACT

    This work aims to investigate, based on the Enneads, which are and how the two moments of

    the Plotinian philosophy, procession and return, articulate themselves, analyzing the deductive

    process from which the One becomes many, the three paths that bring ascension from multiplicity to

    unity, and the importance of self-knowledge for the return path, emphasizing that the system of

    Plotinus, forged from the previous philosophy and his own existential experience, centers the

    attention on the unification with the One.

    Keywords: Plotinus. Neoplatonism. Metaphysics. Enneads. Procession. Return to the One.

  • SUMRIO

    RESUMO ................................................................................................................................. 03

    ABSTRACT ............................................................................................................................. 03

    1 INTRODUO .................................................................................................................... 05

    2 PROCESSO E RETORNO NA FILOSOFIA PLOTINIANA ........................................... 08 3 A CONVERGNCIA DIALTICA ..................................................................................... 36 4 A CONVERGNCIA TICA ............................................................................................... 51 5 A CONVERGNCIA ESTTICA ........................................................................................ 66 6 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................ 81 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................................... 83

  • 5

    1 INTRODUO

    Este trabalho tem como objetivo investigar o que so e como se articulam os dois momentos

    da filosofia plotiniana: processo () e retorno (). Em relao ao primeiro, ser necessrio explicitar o surgimento do universo inteligvel a partir da unidade indiferenciada

    denominada simplesmente de Uno ( ), ou Primeira Hipstase, a qual, por sua vez, d origem ao Intelecto (), ou Segunda Hipstase, e Alma (), ou Terceira Hipstase, que est diretamente ligada formao do universo sensvel.

    Para tanto, o sistema plotiniano ser apresentado com um todo orgnico, em que cada esfera

    inteligvel mantm suas caractersticas prprias, enquanto dela procede algo inferior, at ao ponto de

    mximo afastamento da origem, qual seja, a matria, um dos conceitos mais complexos em Plotino,

    at mesmo com certas inconsistncias, cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho. Entre

    o ponto mais elevado e a base da concepo plotiniana de mundo, encontra-se o ser humano, que,

    apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensvel, traz consigo a certeza de um destino

    divino, que cedo ou tarde o reconduzir origem.

    Discorrer sobre o processo dedutivo, a partir do qual o Uno se faz mltiplo ser o objetivo do

    captulo inicial, intitulado Processo e Retorno na Filosofia Plotiniana. Sabe-se que dessa

    articulao entre o Uno e o mltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade,

    tanto no Oriente quanto no Ocidente. A soluo de Plotino no pretende ser inovadora, pois ele

    prprio dizia-se um mero exegeta de Plato, mas procura harmonizar a filosofia precedente em um

    todo coerente, mesclado-a com sua experincia existencial.

    H, em Plotino, uma verdadeira sede de retorno ao Princpio de todas as coisas. Pode-se

    dizer que toda a sua filosofia um chamado para uma realidade mais plena e duradoura. De fato, o

    licopolitano no se detm nas coisas particulares, nem em aspectos sociais ou polticos, mas mira

    sempre aquilo que mais elevado, vale dizer, os nveis internos da existncia. O Uno a Suprema

    realidade em torno da qual tudo gravita, da ser inevitvel o retorno origem.

  • 6

    Os captulos subsequentes tratam das trs perspectivas ascensionais que se encontram ao

    longo das Enadas: dialtica, tica e esttica. Como elas tendem ao mesmo ponto a unificao

    () , tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluncia, intitulando esses captulos, respectivamente, de A Convergncia Dialtica, A Convergncia tica e A Convergncia

    Esttica. Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano, ao passo que todos enfatizam

    a perspectiva ascendente caracterstica da tradio neoplatnica. Evidencia-se, desta forma, sob

    mltiplos enfoques, o tema que monopoliza as atenes do licopolitano.

    Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitrria de abordar a sua

    obra, pois vrios autores observaram a maneira assistemtica em que a filosofia plotiniana ela prpria marcadamente sistemtica est disposta nas Enadas1. Existem diversas razes para que isto ocorra: conta-nos Porfrio, o editor dos tratados, que Plotino escrevia de um s flego, como se

    estivesse copiando de um livro, sem efetuar revises2; herdeiro de uma longa tradio filosfica que

    remonta aos pitagricos, muitas teses foram tomadas como verdades filosficas, sem necessidade de

    justificao3; elementos de sua experincia pessoal no se enquadram em sistemas filosficos4, a

    exemplo da ntima associao entre razo e mstica5.

    Dado o carter primordial conferido por Plotino sua Primeira Hipstase nada menos do

    que a realidade primeira e ltima da qual tudo provm e qual tudo converge , optou-se pelo

    esquema tradicional de abordar as Enadas, primeiramente, desde a perspectiva dedutiva das

    hipstases inteligveis at esfera sensvel e, a seguir, empreendendo-se o caminho inverso, de

    acordo com as trs perspectivas de retorno, explicitando-se a via ascendente desde o universo

    sensvel at ao Uno, o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem.

    Conta-nos Porfrio, em sua A Vida de Plotino, que o licopolitano tinha em vista a filosofia

    praticada pelos persas e hindus. Contudo, foram poucas as iniciativas, at o momento, de investigar

    as possveis conexes entre tais sistemas. Assim, ao longo deste trabalho, sero feitas algumas

    referncias a obras que podero auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o

    neoplatonismo e as noes centrais da Escola Vedanta, seguramente a que apresenta maior

    correlao com o ensinamento plotiniano. 1 They give us, therefore, an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophy (ARMSTRONG, Prefcio s Enadas, p. viii). Plotino , num certo sentido, um pensador muito sistemtico, mas o modo como expe o prprio pensamento o mais assistemtico que se possa imaginar (REALE, 2001, v. IV, p. 433). 2 Porfrio, A Vida de Plotino, 8. 3 GERSON, 1998, p. xvi; REALE, 2001, v. IV, p. 419. 4 ARMSTRONG, Prefcio s Enadas, p. xiv. 5 BRHIER, 1999, p. 33.

  • 7

    Como sugere o ttulo da dissertao, este trabalho tomou por base, fundamentalmente, o

    contedo das Enadas, mxime na edio bilngue grego-ingls de A. H. Armstrong, com apoio nas

    edies de Jess Igal (espanhol) e Luc Brisson (francs). Foi de grande valia, tambm, uma das

    poucas tradues das Enadas em portugus, contemplando apenas doze tratados, de Amrico

    Sommerman, da qual foi extrada boa parte das citaes. Utilizou-se, ainda, a recente publicao da

    traduo do tratado Sobre a natureza, a contemplao e o Uno, de Jos Carlos Baracat Jnior.

    Subsidiariamente, recorreu-se a renomados intrpretes do pensamento plotiniano. Com isso, espera-

    se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo to rico da histria da filosofia.

  • 8

    2 PROCESSO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA

    Uma ideia abarca a imensido. (W. Blake)

    O voo do solitrio ao Solitrio6, na traduo potica desta que talvez seja a passagem mais

    conhecida das Enadas, trata-se de uma poderosa sntese da filosofia plotiniana. Todas as coisas

    esto radicadas no Uno a fonte inexaurvel da qual tudo provm e ao Uno se dirigem. No

    entanto, esta fuga7, como j foi observado8, no significa a negao do mundo, mas uma retirada

    interna, pois, como afirma Plotino, cada um de ns um universo inteligvel9.

    A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano: o primeiro, um

    movimento descendente no qual o mundo sensvel inteiramente deduzido do suprassensvel10;

    o segundo, o caminho de retorno, uma reunificao plena e total com o princpio11, uma retirada

    da multiplicidade unidade12. Traz implcita, ainda, a proposta filosfica e existencial que

    inaugura a tradio neoplatnica: a assemelhao ao Uno ().

    A investigao acerca do Uno ( ) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana, onde a doutrina das trs hipstases inteligveis desempenha um papel determinante: do Uno, anterior a tudo,

    procede o Intelecto (), unidade de ser e pensamento; deste, a Alma do mundo (), princpio ordenador do universo sensvel. Tudo traz em si a marca do Uno, razo pela qual se pode

    empreender o caminho inverso, pois na unio com o Uno que o homem, voltando assim sua

    origem, alcana a unio mstica, o conhecimento pleno, a felicidade e a perfeio13.

    Como a metafsica plotiniana est centrada na doutrina das trs hipstases14, a sua

    reconstituio impe a anlise cuidadosa do esquema de processes por meio do qual do Uno

    provm o mltiplo. O prprio Plotino reconhece a excelncia do Parmnides na distino das

    6 Enada VI, 9, 11: . 7 o termo grego utilizado na passagem citada. 8 His withdrawal from the world was primarily an inner withdrawal. (Ravindra, R. & Armstrong, A. H. Dimensions of the Self. In: RAVINDRA, 1998, p. 88.) 9 Enada III, 4, 3. notvel o paralelo cristo: O Reino de Deus est dentro de vs (Lucas, 17:21). 10 REALE, 2001, v. IV, p. 426. 11 Ib., loc. cit. 12 Enada VI, 9, 3. 13 CIRNE-LIMA. Sobre o Uno e o Mltiplo em Plotino. In: Amor Scientiae, 2002, p. 95. 14 , fundamento ou realidade subjacente. Do gr. (sob, por baixo de) e (colocar, pr).

  • 9

    hipstases, pois ali Plato identifica a primeira que mais adequadamente denominada Uno, a

    segunda, que ele denomina Uno-Mltiplo, e a terceira, Uno-e-Mltiplo15.

    Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16, ainda, a influncia dos trs reis da Segunda Carta,

    notadamente antecipadora, citada por Plotino em um dos seus ltimos tratados: volta do Rei de

    todas as coisas, todas existem; elas so em funo dele, e s ele a causa de absolutamente tudo o

    que h de belo; depois volta do segundo que se encontram as coisas de segunda ordem, e

    volta do terceiro as que so de terceira importncia17.

    Na verdade, a doutrina das trs hipstases advm da longa tradio filosfica herdada por

    Plotino, que se estende aos primrdios da filosofia grega18, mormente vertente pitagrico-

    platnica. Nesta perspectiva, bastante eloquente o fato de que, em auxlio caracterizao negativa

    do Uno, Plotino recorra aos pitagricos que o designaram entre si com o nome simblico de

    Apolo, negando assim toda a multiplicidade19.

    Como sentencia Giovanni Reale, impossvel entender Plotino fora do fundo e da

    perspectiva histrica em que est situado20. Deveras sugestiva, nesta linha, a proposio de

    Anthony Kenny, que no olvidou das devidas ressalvas, de que o Uno um Deus platnico, que o

    Intelecto (...) um Deus aristotlico, e a Alma um Deus estoico21. Com efeito, se a Primeira

    Hipstase descende do Uno do Parmnides, da Idia do Bem de A Repblica ou simplesmente do

    Um das Doutrinas no-escritas, o Intelecto assemelha-se dualidade essncia-inteligncia do

    movente no-movido aristotlico, ao passo que a Alma do mundo sugere o pantesmo estoico.

    Observe-se, por oportuno, a distino entre a trindade crist e a trade plotiniana: enquanto o

    Deus uno e trino cristo admite conumerao, em Plotino h subordinacionismo22, pois o

    licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trs hipstases. Assim, a Alma do mundo

    que, ao exercer funo demirgica, confere unidade s coisas sensveis, tambm a recebe de um

    princpio superior, o Intelecto. Este, por sua vez, se aquilo que pensa e pensado, ser duplo e

    15 Enada V, 1, 8: , , , . 16 ULLMANN, 2002, p. 17. 17 Carta II, Plato. Enada I, 8, 2 (a 51 na ordem cronolgica). 18 Plotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors. But he was an original philosophical genius, the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotle (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy, 1995, p. 197). 19 Enada V, 5, 6. Cp. com The number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unity (Plutarco, Isis e Osris, 381F). 20 REALE, 2001, v. IV, p. 428. 21 KENNY, 2008, p. 356. 22 ULLLMANN, 2002, p. 29.

  • 10

    no simples e, portanto, no ser o Uno23. Faz-se necessrio, ento, recorrer unidade primeira, ao

    Uno pelo qual todos os seres so seres24.

    Tem-se aqui aquela que foi considerada a parte mais desconcertante da filosofia de Plotino:

    o seu conceito de Uno25. A. H. Armstrong prope trs razes principais para que isto ocorra: a) a

    tentativa de expressar o inexprimvel; b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam

    tentando penetrar nas profundezas do Ser; c) a complexidade da tradio metafsica herdada por

    Plotino. Nesta perspectiva, torna-se bastante compreensvel o fato de, ao longo das Enadas, o

    licopolitano chamar a ateno para tais dificuldades, utilizando frequentemente expresses do tipo

    por assim dizer26.

    A par dessas ressalvas, a reconstituio do pensamento plotiniano e a articulao entre os

    principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipstase, o

    absolutamente simples () que em sua autonomia () aquilo de que tudo depende, mas que no depende de nada: assim, ele a realidade pela qual tudo aspira. Deve permanecer

    imvel enquanto tudo circula ao seu redor: como uma circunferncia ao redor de um centro do qual

    todos os seus raios provm27.

    De vrias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficincia do Uno. Se, como est

    expresso no tratado Sobre as Trs Hipstases Principais, admirar e buscar alguma coisa significa

    inferioridade em relao a ela28, o objeto par excellence do sistema plotiniano a Suprema

    Realidade, o vrtice de sua escala de valores. O Uno, porm, basta-se a si mesmo, pois nada existe

    pelo qual possa ser atrado29. Ademais, um princpio no tem necessidade das coisas que vm

    depois dele30. Ento o Uno, como primeiro princpio, no depende de nada, enquanto tudo o mais

    tem nele a sua fonte. Como uma nascente que de si mesma prov todos os rios sem se esgotar31, o

    Uno no se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas.

    preciso, no entanto, certa cautela na interpretao das imagens utilizadas pelo filsofo de

    Licpolis, tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade. As mais conhecidas

    23 Enada VI, 9, 2. 24 Enada VI, 9, 1: . 25 ARMSTRONG, 1967, p. 1. 26 Enadas I, 2, 6; II, 3, 18; VI, 7, 12; VI, 8, 13; VI, 8, 16. 27 Enada I, 7, 1. 28 Enada V, 1, 1. 29 Enada VI, 8, 13. 30 Enada VI, 9, 6. 31 Enada III, 8, 10.

  • 11

    metforas comparam o Uno ao Sol32, fonte inesgotvel de luz e calor que irradia incessantemente

    sem se diminuir. Contudo, o prprio Plotino adverte que o Sol e a substncia dos demais astros so

    partes, e no cada qual o conjunto e o todo, portanto sua permanncia diz respeito unicamente

    indestrutibilidade da Ideia33.

    Como j foi largamente demonstrado34, a no-observncia deste preceito fez com que muitos

    intrpretes fossem levados a erros, associando os conceitos de emanao e pantesmo filosofia

    plotiniana, quando, efetivamente, o licopolitano insiste em que o Uno transcende todas as coisas de

    que a causa, no sendo nenhuma delas35 e, ainda, que o Uno permanece em si mesmo e no se

    diminui ao criar36. Trata-se, em verdade, de uma processo () de vis panentesta37.

    A absoluta transcendncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo ( ), tornando inadmissvel a existncia de qualquer causa anterior, pois desta maneira ele deixaria de ser o primeiro princpio. O filsofo de Licpolis, para tanto, unifica a

    vontade e a essncia do Uno: Porque se sua vontade provm de si mesmo e se identifica com sua

    atividade, e o seu querer o mesmo que a sua existncia, ento ele no um resultado casual, mas o

    que ele desejou38.

    O Uno a Suprema Realidade, anterior a tudo ( ) o que manifestado ou condicionado, o princpio sem princpio, a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele. a

    potncia criadora de todas as coisas ( )39. Enquanto tudo o que existe originou-se de uma causa, o Uno no admite causa precedente. Por conseguinte, predicar algo da Primeira

    Hipstase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominvel, uma vez

    que o Uno desprovido de qualquer atributo.

    Com efeito, a predicao pressupe a existncia de dois termos, quais sejam, o sujeito do

    qual se afirma ou nega alguma coisa, e o predicado que se atribui a ele. Ocorre que esta diviso

    totalmente incompatvel com a absoluta simplicidade do Uno. Na perspectiva plotiniana, a rigor,

    32 ARMSTRONG (1967, p. 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Enadas, provavelmente devido influncia de A Repblica, o Timeu e as Leis, bem como dos escritos hermticos e do mdio estoicismo. 33 Enada II, 1, 1. 34 REALE, 2001, v. IV, ps. 453 e 456; ULLMANN, 2002, ps. 22, 34, 41; ARMSTRONG, 1967, p. 52. 35 Enada V, 5, 13. 36 Enada VI, 9, 5. 37 and are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One, which leaves their source undiminished (ARMSTRONG, 1967, p. 52). 38 Enada VI, 8, 13. 39 Enada III, 8, 10.

  • 12

    incorreramos em erro ao afirmar que o Uno o Bem, pois teramos de um lado o Uno, e de outro

    o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40.

    O Uno plotiniano est alm do ser e da essncia, pois todos os seres so seres em virtude do

    Uno, tanto os seres que so seres num sentido originrio como aqueles dos quais se diz que num

    sentido qualquer so contados entre os seres41. Por conseguinte, tudo o que s o em virtude

    de sua unidade, o que extensvel ao ser, essncia, ao Inteligvel e Alma. Como esclarece Reale,

    a raiz da unidade , portanto, algo que transcende o prprio , algo livre de qualquer pluralidade, o Uno em si42.

    Afirmar que o Uno no seja o ser no equivale a dizer que o Uno seja o no-ser. Por

    paradoxal que seja, pode-se afirmar, com Plotino, que o Uno nem ser e nem no-ser, ou, nos

    termos plotinianos, que o Uno Super-Ser43, uma expresso que nos remete a um nvel ontolgico

    que ultrapassa a lgica linear, a discursividade racional e, at mesmo, o conhecimento notico. Ao

    longo das Enadas, Plotino procura enfatizar a transcendncia do Uno recorrendo inmeras vezes

    expresso alm do ser ( )44 proveniente do livro sexto de A Repblica.

    Deve-se questionar, ento, como possvel que do Uno, esta absoluta simplicidade, tenha

    surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas, ao que o filsofo de Licpolis responde: O

    Uno, perfeito porque nada busca, nada possui e de nada necessita, transborda, por assim dizer, e sua

    superabundncia produz algo distinto de si mesmo45, pois todas as coisas que chegam perfeio

    produzem; o Uno sempre perfeito, ento produz incessantemente; e o que produz menos do que

    ele prprio46.

    Valendo-se de um raciocnio analgico, questiona Plotino: se tudo o que perfeito, produz

    algo diferente de si, como o Primeiro, o perfeitssimo Bem, poderia permanecer em si mesmo no

    querendo dar de si ou incapaz de dar de si, se o poder produtor de todas as coisas? Como ele ainda

    seria o Princpio?47. Assim, a perfeio da Suprema Realidade pressupe uma , energia criadora que est no corao de todas as coisas, impulsionando-as unidade, mas que tambm se

    40 No h mister usar o verbo ser, dizendo: Ele o Bem. Uno e Bem so convertveis e constituem perfeies simples (ULLMANN, 2002, p. 34). 41 Enada VI, 9, 1. 42 REALE, 2001, v. IV, p. 441. 43 Enada VI, 8, 20. 44 Enadas I, 7, 1; III, 8, 10; IV, 4, 16; VI, 7, 40; VI, 8, 19. Cf. Repblica 509 b. 45 Enada V, 2, 1. 46 Enada V, 1, 6. 47 Enada V, 4, 1.

  • 13

    encontra alm de todas as coisas, qual poderoso atrator ao qual tudo converge. Nesta linha, como

    prope Ullmann, logra-se falar em transcendncia entitativa e imanncia operativa48.

    Armstrong, entretanto, demonstra que muitas das caracterizaes positivas conferidas ao

    Uno49 fazem dele inevitavelmente uma , por mais que ele possa transcender os seres que conhecemos; se uma , ento um Uno-mltiplo. Ele se torna um ser ao qual predicados podem ser aplicados e sobre o qual distines lgicas podem ser feitas50. Ou seja, entendido desta maneira

    o Uno assumiria caractersticas de substncia e essncia.

    O autor destaca, contudo, que a via apoftica ou negativa, na qual o Uno apresentado como

    uma unidade impredicvel, incondicionada e insuscetvel de apropriao lingstica, sobre a qual

    no h qualquer conceito ou conhecimento51, de sorte que s podemos falar dela a partir dos seus

    efeitos52, salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princpio. Como destaca Armstrong, as

    duas perspectivas, uma positiva e a outra negativa, ocorrem inextricavelmente entrelaadas ao

    longo das Enadas53.

    Em sntese, o Uno o ncleo do universo inteligvel de Plotino, assim como o universo

    inteligvel o ncleo do universo sensvel54. O recurso didtico aos gneros inteligvel e sensvel,

    presente tanto nas Enadas quanto nos Dilogos, no significa, contudo, que a filosofia plotiniana

    assim como a platnica, da qual o filsofo de Licpolis se denomina mero intrprete55 apresente

    um irreconcilivel dualismo entre nveis ontolgicos completamente desconexos.

    Recorrendo a uma analogia semelhante da linha utilizada por Plato em A Repblica56,

    Plotino manifesta, certamente, uma concepo filosfica no-dualista ao sugerir a existncia de algo

    como uma longa vida estendida longitudinalmente; cada parte diferente da seguinte, mas o todo

    contnuo consigo mesmo, mas com partes diferenciadas das outras, sem que a anterior perea na

    seguinte57. Em outro tratado, o licopolitano mais explcito, afirmando que todos os seres, tanto

    48 ULLMANN, 2002, p. 44. 49 He takes the decisive step when he makes the One , and gives it will, makes it eternally create itself and return eternally upon itself in love (ARMSTRONG, 1967, p. 3). 50 ARMSTRONG, 1967, p. 3. 51 Enada V, 4, 1. 52 Cf. Enada V, 3, 14. 53 ARMSTRONG, 1967, p. 14. 54 Cf. Enada IV, 3, 17. 55 Plotino ha interpretato la sua attivit filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platone (BEIERWALTES, 1993, p. 29). 56 A Repblica, 509 d 511 e. 57 Enada V, 2, 2.

  • 14

    os inteligveis como os sensveis, constituem uma cadeia contnua: os inteligveis existem por si

    mesmos, enquanto os sensveis sempre recebem sua existncia participando dos primeiros58.

    Deste ncleo do inteligvel provm uma diferenciao primria conhecida como dade

    indefinida ( ), termo de inspirao pitagrico-platnica59 que designa o princpio da alteridade e da multiplicidade, pois no existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imvel em si

    mesmo60. Tambm em Plato o eixo Um-mltiplo assume um papel determinante61. O tema requer

    ateno redobrada, pois, como j foi observado, a conexo entre o Uno e o ponto mais vital na estrutura do sistema de Plotino62.

    Ao voltar-se origem, a dade indefinida, tambm denominada matria espiritual ou

    matria inteligvel, encontra limites, vale dizer, determinada pelo Uno. Nas palavras do

    licopolitano, o Uno anterior dualidade, portanto a dade secundria e, originando-se do Uno,

    tem-no como um limite, mas pela sua prpria natureza indeterminada63. O Uno, em sua perfeio

    e absoluta simplicidade, no encerra qualquer diversidade, porm, desde sua plenitude, d origem a

    algo diferente de si mesmo: a dade, que, ao surgir, volta-se ao Uno e preenchida, tornando-se o

    Intelecto ao contempl-lo64.

    Na verdade, este momento de contemplao duplo: primeiro, verifica-se a conteno da

    dade indefinida frente ao Uno e dessa limitao surge o Ser; depois, o ato de contemplao d

    origem ao Intelecto. No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vm Depois do Primeiro,

    Plotino procura esclarecer a questo, tanto quanto possvel: Ao deter-se e voltar-se ao Uno,

    constitui o Ser; ao contemplar o Uno, o Intelecto. Por conseguinte, ao deter-se para contempl-lo,

    torna-se, ao mesmo tempo, Intelecto e Ser65.

    No entanto, em seu retorno contemplativo ao Uno, o Intelecto incapaz de capt-lo

    inteiramente, percebendo-o, ento, em si mesmo, como uma multiplicidade, dando origem ao mundo

    58 Enada IV, 8, 6. 59 Digenes Larcio cita o seguinte fragmento pitagrico: A mnada o princpio de todas as coisas; da mnada nasce a dade indefinida, que serve de substrato material mnada, sendo esta a causa; da mnada e da dade indefinida nascem os nmeros (Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, Livro VIII, 1, 25). 60 Enada IV, 8, 6. 61 O tema teria sido abordado na mtica conferncia Sobre o Bem, proferida na fundao da Academia (cf. DUMONT, 2004, p. 287), sendo tratado nos dilogos Filebo, Parmnides e Timeu. 62 ARMSTRONG, 1967, p. 49. 63 Enada V, 1, 5. 64 Enada V, 2, 1. Cf. Enada II, 4, 5. 65 Enada V, 2, 1.

  • 15

    das Ideias66. Deste movimento inteligvel de convergncia origem surgem, em ritmo numrico67,

    os pares de opostos articulados pela dade, como alteridade e identidade, movimento e repouso,

    multiplicidade e unidade, pois, enquanto o absolutamente simples no admite atributos, na esfera

    notica eles tornam-se imprescindveis.

    Como ensina Reale, esta atividade contemplativa de volver-se ao princpio, embora muitas

    vezes negligenciada pelos intrpretes, representa um dos eixos em torno dos quais gira a metafsica

    plotiniana68. De fato, esta chave interpretativa imprescindvel para a compreenso de Plotino,

    pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupem a contemplao das

    realidades superiores das quais o universo sensvel representa apenas a imagem.

    A contemplao resguarda o elo entre as hipstases: enquanto a alteridade as torna distintas,

    o reencontro propiciado pelo retorno origem as assemelha, assegurando a conexo entre elas.

    Assim como o Intelecto traz a marca do Uno, a Alma carrega os traos do Intelecto e, em sentido

    inverso, como escreve Plotino, a Alma uma expresso e um tipo de atividade do Intelecto, assim

    como o Intelecto o do Uno69.

    Desta forma, a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem.

    Pode-se, mesmo, dizer que o Intelecto uma unidade em dois sentidos: o primeiro decorre do

    retorno ao Uno pela contemplao; o segundo advm do encontro consigo mesmo, quando se d a

    integrao entre sujeito e objeto. Da decorrem, respectivamente, a unidade orgnica do Intelecto e a

    unidade ontolgica de Ser e Pensamento.

    Inobstante considerar o Intelecto um todo orgnico, Plotino atribui-lhe um carter dual, no

    apenas pela coexistncia do Uno-mltiplo, onde a perfeio do Uno d origem a uma mirade de

    Ideais que fluem dele como a luz do Sol70, mas porque, em seu prprio patamar ontolgico, como

    observou Brhier, a Segunda Hipstase congrega no somente as Formas Ideais de Plato, mas o

    66 The Forms, number, the internal multiplicity of the One-Being, are the way in which the One is apprehended by and informs . The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it, no in its own simplicity, but as multiform (ARMSTRONG, 1967, p. 70). 67 Os Nmeros Ideais foram caracterizados por Plotino como a fora que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser, a regra segundo a qual nascem do ser os mltiplos seres; e, nesse sentido, como fundamento e raiz dos seres (REALE, 2001, v. IV, p. 470). 68 REALE, 2001, v. IV, p. 459. 69 Enada V, 1, 6. 70 Enada V, 3, 12.

  • 16

    prprio sujeito que as conhece por serem idnticas a si71. Na mesma linha seguem Reale, ao notar

    em Plotino a complexa e grandiosa teoria do como sntese de ser e pensamento72, e Werner Beierwaltes, ao constatar a relevncia da autorreflexo no mbito do pensamento absoluto73.

    Assim, enquanto a unidade absoluta a marca do Uno, com a Segunda Hipstase tem-se um

    Uno-mltiplo, representado na harmonia do mundo das Ideias. Trata-se do Cosmo Notico ( ), expresso tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador a referir-se s Ideias como pensamentos de Deus74. Em Plotino, no entanto, a doutrina das Ideias

    reformulada, assumindo concepes distintas em relao ao platonismo e ao mdio-platonismo,

    principalmente devido coincidncia entre pensante e pensado. As Ideias no so apenas

    pensamentos na mente divina, mas ao mesmo tempo inteligvel e inteligncia.

    O Cosmo Notico o mundo arquetpico das verdadeiras realidades, onde todas as coisas do

    universo sensvel so reconhecidas em sua dimenso inteligvel e eterna, com sua prpria

    conscincia e vida, todas elas sendo governadas pela pura Inteligncia e pela imensa Sabedoria75.

    Ali, a singularidade de cada Ideia encontra-se em ntima comunho com todas as outras,

    constituindo uma unidade na diversidade, pois todas as coisas esto juntas, e nem mesmo a menor

    delas est separada76.

    Em diversas passagens das Enadas frequentemente fazendo uso de analogias Plotino

    enfatiza o entrelaamento dinmico das Ideias, onde a mtua implicao entre elas faz com que cada

    uma tenha todas as outras em si, e vice-versa: O Sol ali todas as estrelas, e cada estrela o Sol e

    todas as outras77. Portanto, na esfera inteligvel, pode-se dizer, com Plotino, que a beleza tem sua

    singularidade, mas tambm verdade; que a verdade, ao tempo que mantm sua tnica particular,

    tambm justia; bem assim a justia, que traz consigo a Ideia da beleza.

    Com a Segunda Hipstase tem-se a positivao do sistema plotiniano. Enquanto o Uno

    anterior a todas as coisas78, sendo sua condio de possibilidade, pois todas as coisas s so o que

    71 Ltre universel nest donc plus connu comme un objet, mais comme identique au moi. (BRHIER, 1999, p. 129). Ver tambm Armstrong: Intellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms, the totality of real beings: it is both thought and the object of its thought (ARMSTRONG, Prefcio s Enadas, p. xx). 72 REALE, 2001, v. IV, p. 410. 73 Un pensiero assoluto, a-temporale, una autorelazione riflessiva di una entit pensante () che, ad un tempo, puro essere: ecco, questa unidea centrale del filosofare di Plotino (BEIERWALTES, 1993, p. 30). 74 REALE, 2001, v. IV, p. 253. 75 Enada V, 1, 4. 76 Enada V, 9, 6. 77 Enada V, 8, 4: , . 78 Enada V, 3, 11.

  • 17

    so em virtude da unidade, o Intelecto todas as coisas em sua verdadeira dimenso imaterial, o

    puro Ser em eterna atualidade; nela no h lugar para futuro nem para passado algum, pois todas as

    coisas permanecem num eterno agora, idnticas a si mesmas no lugar que receberam para si, como

    identidades satisfeitas em serem o que so79.

    A plenitude da Segunda Hipstase a perfeio de um Uno-mltiplo, de um todo orgnico

    que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente

    divinizadas ao longo das Enadas, a exemplo da seguinte passagem: L todas as coisas so

    celestes, a terra, o mar, as plantas, os animais e os homens so celestes, todas as coisas que

    pertencem quele elevado cu so divinas80.

    semelhana do Hiperurnio de Plato, o lugar das Ideias em Plotino visto como uma

    dimenso imaterial de glria e resplendor ilimitados, de pura luz, pois l todas as coisas so

    transparentes, e no h nada escuro ou opaco; todas as coisas so claras para a parte mais ntima de

    tudo, pois a luz transparente luz81. Com efeito, no Cosmo Notico desaparecem as concepes

    ordinrias de tempo e espao, porque h eternidade em vez de tempo. E o lugar l existe de

    maneira intelectual, a presena de uma coisa em outra82.

    Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipstase: ela a esfera do

    conhecimento verdadeiro, o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer

    intermediaes. Como escreve Plotino, o Intelecto deve saber sempre e nunca esquecer qualquer

    coisa, e o seu conhecimento no deve ser conjectural, ambguo ou proveniente de terceiros.

    Tampouco depender de demonstraes83. Por bvio, esse conhecimento no est ligado quele

    decorrente da percepo sensorial, que nada mais do que o conhecimento das imagens externas reflexos de reflexos e no das coisas em si, nem ao conhecimento inferencial, originrio do raciocnio linear que evolui de premissa em premissa e est sujeito ao transcurso do tempo.

    O verdadeiro conhecimento, do qual nos fala Plotino, ocorre na dimenso atemporal do

    Cosmo Notico. No se d por meio do raciocnio discursivo (), mas pela faculdade prpria do Intelecto (), que a atividade de viso mental direta ou compreenso imediata do objeto de pensamento, ou uma mente que alcana seu objeto desta maneira direta e no como a concluso

    79 Enada V, 1, 4. 80 Enada V, 8, 3. 81 Enada V, 8, 4. 82 Enada V, 9, 10. 83 Enada V, 5, 1.

  • 18

    de um processo discursivo da razo84. Trata-se do conhecimento notico que representa a

    culminncia da dialtica ascendente da filosofia platnica; em Plotino, porm, ainda restar um

    degrau at o pice: a prpria .

    Fatores como a mtua implicao das Ideias, a coincidncia entre Ser e Pensamento85 e o

    carter atemporal da Segunda Hipstase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer intuitivo o poder de apreender realidades que certamente no so premissas ou axiomas ou expresses86. No Intelecto h perfeita unio ou assimilao recproca entre conhecedor,

    conhecido e conhecimento87, portanto no h possibilidade de erro ou de crenas irreais88. J os

    objetos sensveis carecem de autoevidncia, necessitando o auxlio da razo discursiva89 (ou

    conhecimento indireto) que, por sua vez, est sujeita a toda a sorte de iluses.

    Concepo nitidamente platnica, na qual o tempo a imagem mvel da eternidade90, este

    carter atemporal e no-espacial das Ideias assumido por Plotino ao estabelecer uma diferena

    fundamental entre a terceira e a segunda hipstases: enquanto as Ideias so perfeitas porque no

    requerem complementao ou acrscimo, isto , por serem o que so, sem estarem sujeitas ao devir,

    com a Alma nasce o tempo91, pois ela a vida que anima todas as coisas e as faz avanar no

    processo do vir-a-ser. Para o licopolitano, o jorro da vida envolve tempo; o progresso contnuo da

    vida envolve a continuidade do tempo (...) o tempo a vida da alma em um movimento de passagem

    de um modo de vida para outro92.

    Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino, um aspecto fundamental a destacar diz

    respeito vastido da esfera de suas atividades, pois a Alma composta de uma parte que est

    acima, ligada ao mundo superior, mas que, ao mesmo tempo, desce a esta regio inferior como um

    raio provm de um centro93. Este excerto do segundo tratado Sobre a Essncia da Alma assinala

    uma inovao em relao s hipstases precedentes, uma vez que o Uno e o Intelecto,

    permanecendo na perfeio e plenitude de seus respectivos nveis ontolgicos, no se dirigem ao

    84 ARMSTRONG, Prefcio s Enadas, p. xviii. 85 Invocando Parmnides, Plotino diz que pensar e ser so a mesma coisa (Enada V, 1, 8, 16). 86 Enada V, 5, 1. 87 Em outras palavras, no o pensar, o pensante e o pensado so idnticos (ULLMANN, 2002, p. 26, Nota 54). 88 Enada V, 5, 1. 89 Enada V, 5, 1. 90 Timeu, 37 d. Enada III, 7, 11. 91 The Soul is eternal just as the Intellect is. It is in the soul of the universe that time originates (GERSON, 1998, p. 63). 92 Enada III, 7, 11. 93 Enada IV, 2, 15.

  • 19

    que lhes inferior, ao passo que, dentre as vrias atividades da Alma, encontra-se a de interagir com

    o universo sensvel, seja organizando-o, seja dirigindo-o.

    A passagem em tela aponta ao menos duas dimenses da Terceira Hipstase: a primeira diz

    respeito sua transcendncia, pois a Alma ou as Almas, j que se trata de um Uno e mltiplo tambm um habitante no divino e eterno mundo das Ideias ( )94 e, enquanto tal, no se envolve com o mundo material; a segunda, sua imanncia, pois a Alma est diretamente ligada s

    atividades de organizao e direo do universo sensvel. As duas dimenses so denominadas,

    respectivamente, a Alma universal e a Alma do todo. Entre elas, como sublinhou Brhier95, tem

    lugar a dimenso humana da alma, com todas as suas faculdades psicolgicas.

    A existncia de nveis hierrquicos no mbito da Alma um dos fatores que contribuem

    significativamente para a complexidade do conceito96. Reale, reconhecendo a existncia de

    divergncias entre os estudiosos, assim identificou estes trs nveis: a) Em primeiro lugar est a

    Alma suprema, a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza (...); b) Existe, em

    seguida, a Alma do todo, que a Alma do mundo e do universo sensvel (...); c) Finalmente, h as

    almas particulares97.

    Segundo Plotino, a primeira, ou a Alma divina, sempre governa o sistema celeste mantendo

    em relao a ele uma ininterrupta transcendncia de suas potncias mais elevadas e enviando ao

    interior do mundo as suas potncias mais baixas98; a segunda, cuida do mundo supervisionando o

    geral, conduzindo-o ordem mediante um incessante comando de sua soberania real; e cuidando do

    individual, o que implica uma ao direta, um contato imediato no qual ela se contamina com a

    natureza do objeto sobre o qual age99.

    Quanto s almas particulares, Plotino recorre uma vez mais metfora do Sol ao dizer que

    elas tm um desejo intelectivo de retornar ao princpio de que provieram, mas ao mesmo tempo

    tm uma potncia voltada para a administrao deste mundo inferior como a luz est ligada ao Sol

    na regio superior, mas no deixa de lanar-se na regio inferior100. Enfatiza, contudo, a

    94 Enada IV, 2, 2. 95 Entre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie, ltude des facults humaines de lentendement, de la mmoire, de la sensation et des passions; ces facults humaines apparaissent un certain niveau de la vie de lme (BRHIER, 1999, p. 49). 96 The variations in his use of terms also make a good deal of difficulty (ARMSTRONG, 1967, p. 83). 97 REALE, 2001, v. IV, p. 480. 98 Enada IV, 8, 2. 99 Enada IV, 8, 2. 100 Enada IV, 8, 4.

  • 20

    transcendncia da alma humana: Nem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo,

    mas h algo nela que sempre permanece na regio inteligvel101.

    Esta polivalncia e, mais especificamente, o fato de considerar que a Alma do todo est para

    a Alma universal assim como a Alma universal est para o Intelecto, fez com que Armstrong

    conferisse primeira o status de uma quarta hipstase102, o que no parece adequado, j que o

    prprio autor reconhece que a vida da Alma como um todo que se estende da mais nfima poro

    de matria s mais elevadas regies do suprassensvel103. Ademais, como sentencia Ullmann, dela

    procedem as almas e todas as formas dos seres sensveis, ab aeterno, desde a planta at o homem,

    tudo constituindo uma admirvel harmonia e beleza104.

    Possivelmente, e de forma ainda mais acentuada que nas hipstases anteriores, a

    complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada incorporao de elementos das

    vrias tradies filosfico-religiosas que o precederam, nem sempre compatveis entre si. Ravindra e

    Armstrong identificaram ali a existncia de traos homricos, rficos e pitagricos, assim como as j

    conhecidas influncias platnicas, aristotlicas e estoicas105. No se pode olvidar, alm disto, a

    crena geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosficos

    advieram de suas prprias experincias espirituais106.

    Plotino incorpora muitos desses elementos e, especialmente a partir da influncia platnica,

    confere Alma do mundo primordialmente um papel demirgico107. Ela a inteligncia que plasma,

    ordena e conduz o mundo sensvel a partir da contemplao das realidades superiores. oportuno

    lembrar que em Plato a ao do Demiurgo torna possvel que as Ideias inteligveis possam agir

    101 Enada IV, 8, 8 102 ARMSTRONG, 1967, p. 86. 103 The life of psych is a continuum reaching from living rock to living gods (Ravindra, R. & Armstrong, A. H. Dimensions of the Self. In: RAVINDRA, 1998, p. 85.) 104 ULLMANN, 2002, p. 27. 105 To oversimplify crudely, the concept of psych which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psych known to us, the Homeric, in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost, and the Pithagorean-Orfic belief that the psych was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death, capable of wisdom and good conduct, or the reverse, and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version) (Ravindra, R. & Armstrong, A. H. Dimensions of the Self. In: RAVINDRA, 1998, p. 85). 106 Cf. Enada IV.8 (Nota Introdutria de A. H. Armstrong). 107 for Plotinus is not really the Demiurge (ARMSTRONG, 1967, p. 87). Souls function is rather demiurgic, operating as a kind of efficient cause (GERSON, 1998, p. 60).

  • 21

    sobre o receptculo sensvel para que, do caos, surja o cosmo sensvel108, estabelecendo assim o

    nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais.

    A propsito, Reale ensina que na teologia platnica devemos distinguir entre o divino

    impessoal, por um lado, e Deus e os deuses pessoais, por outro lado. Divino o mundo das Ideias

    em todos os seus planos. Divina a Ideia do Bem, mas no Deus-pessoa, e o autor complementa

    esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado em posio inferior ao mundo das Idias, uma

    vez que no o cria, mas dele depende109. Da mesma forma, a Alma do mundo, em Plotino, em

    posio imediatamente inferior da Segunda Hipstase, produz, anima e dirige o universo sensvel a

    partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto.

    O licopolitano, por sua vez, sugere que assim como a Inteligncia no apenas uma, mas

    Una e mltipla ao mesmo tempo, tambm devem existir muitas almas e uma Alma, e as diversas

    almas brotando da Alma, como as diversas espcies provm de um nico gnero110. Sendo Una e

    mltipla, a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligvel e sensvel: Quando olha para o

    que anterior a ela, a Alma intelige; quando olha para si mesma, conserva seu ser particular; e

    quando olha para o que lhe posterior, o ordena, o governa e o administra111.

    Portanto, em que pese a diversidade destas funes, a Alma em si mesma no est dividida

    nem se dividiu, pois permanece inteira consigo mesma, mas est dividida nos corpos porque os

    corpos, por sua peculiar divisibilidade, no so capazes de receb-la de modo indivisvel. Portanto, a

    diviso uma afeio prpria dos corpos, no da Alma112. Na concluso deste mesmo tratado,

    Plotino esclarece que a Alma tem de ser Una e mltipla, dividida e indivisvel (...) mltipla porque

    os seres so muitos, e una, a fim de manter a coeso do conjunto; por sua unidade mltipla a Alma

    d vida a todas as partes, e mediante sua unidade indivisvel, as conduz com sabedoria113.

    No universo inteligvel do licopolitano, onde Uno concebido como o absolutamente

    simples, o surgimento da Segunda Hipstase representa a quebra desta simplicidade primordial

    devido dualidade sujeito-objeto e multiplicidade das Ideias. No entanto, com a Terceira

    Hipstase tem-se uma complexidade bem mais expressiva, seja do ponto de vista estrutural, seja no

    mbito funcional, pois, com sua atividade, a partir da contemplao das Ideias, a Alma d origem ao 108 REALE, 2002, p. 142. 109 REALE, 1990, pg. 145. 110 Enada IV, 8, 3. 111 Enada IV, 8, 3. 112 Enada IV, 1 [2], 1. 113 Enada IV, 1 [2], 2

  • 22

    drama da existncia, gerando o universo sensvel, uma vez que ela prpria criou todas as coisas

    vivas, insuflando-lhes vida114.

    Segundo Reale, como ltima hipstase inteligvel, a alma constitui o momento extremo no

    processo de expanso da infinita potncia do Uno, a hipstase cosmognica que coincide com o

    momento no qual, como ltimo dom de si, o incorpreo gera o corpreo, manifestando-se na

    dimenso do sensvel115. Resta investigar, no entanto, como foi possvel que a Alma, que em seu

    nvel mais elevado mantm-se eternamente a contemplar o Intelecto, abdicasse, por assim dizer, de

    sua origem divina, dando incio, desta forma, aos sucessivos processos de gerao e transformao

    de todas as coisas no espao e no tempo.

    Em resposta, Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagrica, a vontade prpria

    ou a audcia (), que representa a resoluo da Alma em experimentar uma vida diferente daquela do Intelecto, caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias. Segundo Plotino,

    esta foi a origem do mal para as almas, a audcia, a entrada na esfera da alteridade e o desejo de

    pertencerem a si prprias. Estando satisfeitas com sua prpria independncia, moveram-se por si

    mesmas, tomando o caminho contrrio e afastando-se tanto quanto possvel, esquecendo-se at

    mesmo de sua origem116.

    No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo, onde dito que a eternidade inerente natureza

    do Intelecto, assim como o tempo o em relao Alma, atribui-se justamente a este desejo de

    independncia a origem tempo, simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-

    ser: Havia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma; tendo optado

    por buscar mais do que seu presente estado, ps-se em movimento e o tempo moveu-se consigo;

    sempre se movendo em direo ao prximo e ao depois e ao que no o mesmo117. Tem incio

    assim o Universo Sensvel, construdo imagem e semelhana das realidades superiores que a Alma

    contempla no Intelecto.

    Na relao que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensvel, encontra-se a

    tentativa do filsofo de Licpolis de reconciliar duas perspectivas platnicas aparentemente

    114 Enada V, 1, 2: . 115 REALE, 2001, v. IV, p. 477 116 Enada V, 1, 1. 117 Enada III, 7, 11.

  • 23

    antitticas118: a primeira, na qual o fundador da Academia despreza o mundo sensvel, reprova o

    consrcio da alma com o corpo, diz que a alma est acorrentada e sepultada nele e, ainda, exalta

    a verdade exposta nos mistrios de que a alma aqui est numa priso119, vivendo agrilhoada na

    caverna120 onde caiu devido perda de suas asas121; a segunda, proveniente do Timeu, onde Plato

    elogia o universo sensvel, qualifica-o de Deus bem-aventurado e diz que a alma lhe foi dada pela

    bondade do Criador para que este mundo fosse dotado de inteligncia, porque ele tinha de ser

    inteligente, o que no seria possvel sem Alma122.

    Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a viso do Timeu, Plotino parece optar pela

    hiptese de que este o melhor dos mundos possveis e que a descida da alma necessria para a

    atualizao de todas as suas potencialidades, visto que o processo de exteriorizao no poderia

    terminar no nvel das almas, pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela, bem como

    desenvolver-se a partir de um princpio central, como de uma semente, at chegar ao universo

    sensvel123. No sistema plotiniano, este processo de desdobramento ou processo a partir de uma

    realidade transcendente produzido por uma fora que tem de prosseguir incessantemente at o

    universo realizar a ltima de suas potencialidades124.

    Apesar dessa perspectiva predominante125, alguns tratados parecem privilegiar a viso da

    imperfeio do mundo material. Mas, como alerta Armstrong, no h que confundir tais

    perspectivas, pois Plotino sempre sustenta que o universo sensvel bom, e que sua existncia a

    concluso necessria da ordem universal126 e s poderia ser considerado uma priso se contrastado

    com as elevadas esferas inteligveis a que a alma humana pode ascender. Some-se a isto o fato de

    no se encontrarem, na leitura das Enadas, passagens onde o mundo material seja categoricamente

    considerado suprfluo, pois, mesmo quando apresentado como um jogo de imagens, estas refletem

    as verdadeiras realidades inteligveis de que so cpias.

    Portanto, seja como possibilidade ltima da processo desde o Uno, seja como concluso

    necessria da ordem csmica, o universo fsico real e a sua existncia tem a natureza de uma 118 It is the old struggle of ideas that appears in Plato (...) between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeus (ARMSTRONG, 1967, p. 87). 119 Enada IV, 8, 1. Fdon 62 b, 65 a-c. Crtilo 400 c. 120 Repblica 515 a 519 d. 121 Fedro 246 c-d, 248 c-d. 122 Enada IV, 8, 1. Timeu 29 a, 30 b, 34 b. 123 Enada IV, 8, 6. 124 Enada IV, 8, 6. 125 Enadas I, 8, 7; II, 3, 17; III, 4, 1. 126 ARMSTRONG, 1967, p. 83.

  • 24

    imagem ou de um reflexo do universo inteligvel o nvel mais denso da cosmogonia plotiniana,

    no qual cada fragmento traz consigo os vestgios () de uma realidade mais plena e duradoura. No universo sensvel, como sugere Plotino, mesmo os nossos corpos so somente traos das partes

    e poderes do universo127, ou seja, so o microcosmo e, como tal, contm em si todas as hierarquias

    celestes.

    Como imagem, o universo fsico composto de matria () sensvel e forma. Assim como as formas corpreas provm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Notico, tambm a matria

    sensvel deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna matria

    inteligvel128. Sobre estas duas matrias, Plotino diz que ambas provm de causas anteriores, so

    simples, ilimitadas e indeterminadas e s alcanam definio quando se voltam sua origem,

    assumindo, ento, uma forma; diferenciam-se, no entanto, como o arqutipo difere da imagem129.

    A origem da matria sensvel a partir da extremidade inferior da Alma, quando ento surgem

    as condies para a existncia de corpos sensveis, abordada no primeiro tratado Sobre os

    Problemas quanto Alma: Se no houvesse um corpo, a Alma no poderia seguir adiante, porque

    no h outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se. Mas se a Alma pretende seguir adiante,

    dever produzir um lugar para si mesma e, ento, um corpo130. Com efeito, esta passagem faz

    referncia ao processo dedutivo por meio do qual, a partir do incorpreo, origina-se o universo

    sensvel.

    Na sequncia do excerto acima, Plotino afirma que, desde a sua estabilidade no Universo

    Inteligvel, a Alma irradia uma grande luz, e nos confins desta chama torna-se trevas (). A Alma v est obscuridade e confere-lhe uma forma, j que havia surgido um substrato para a

    forma131. Igal chama a ateno para o esquema bifsico contido nesta passagem: a) em uma

    primeira fase, ocorre a gnese da matria maneira de um substrato obscuro; b) em uma segunda

    fase, ocorre a estruturao da matria pela Alma mediante a imposio de um logos132. Outro

    tratado ratifica este entendimento: No que engendrado por ltimo h total indeterminao, que

    127 Enada IV, 4, 36. 128 La multiplicit des Formes implique lexistence dune matire, car il doit y avoir un substrat qui reoit chacune de ces Formes particulres (...) le monde sensible est une copie dun modle intelligible. Sil existe une matire ici-bas, dit Plotin, le monde intelligible doit galement en possder une (Nota Introdutria de Luc Brisson Enada II, 4). 129 Enada II, 4, 15. 130 Enada IV, 3, 9. 131 Enada IV, 3, 9. 132 Notas 95 e 96 de J. Igal Enada IV, 3, 9.

  • 25

    por sua vez se aperfeioa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente quela que

    tinha em potncia133.

    No incio do tratado Sobre os Dois Tipos de Matria, Plotino faz referncia aos conceitos de

    matria como substrato () e receptculo (), associados, respectivamente, a Aristteles e Plato. Ao longo do texto, porm, prope retificaes a ambos os termos. Afirma, neste

    sentido, que, para ser um receptculo, no necessrio que a matria tenha massa, mas que seja

    capaz de receber atributos quantitativos, uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134.

    Sustenta, ainda, que a matria tambm um substrato, ainda que seja invisvel e sem dimenso135,

    distanciando-se do conceito aristotlico de substncia. Afasta-se, tambm, por bvio, do

    materialismo estoico, ao propor a incorporeidade da matria.

    Nesta perspectiva, a matria sensvel distingue-se inteiramente das formas que acolhe, pois

    justamente o elemento comum entre os corpos sensveis e um requisito tanto para a qualidade

    quanto para a grandeza e, portanto, para os corpos136, no podendo ser confundida com eles.

    Destituda de qualidades e de grandeza, logo privada de atributos, a matria sensvel foi considerada

    o esgotamento total e, portanto, privao extrema da potncia do Uno e, por conseguinte, do

    prprio Uno ou, em outros termos, privao do Bem (que coincide com o Uno)137.

    Note-se que esta privao mxima no afeta as hipstases inteligveis, que permanecem

    hierarquicamente estruturadas, cada qual subordinada que lhe superior, at o topo, onde o Uno

    permanece em sua absoluta independncia. Pois bem, a matria sensvel ocupa o ltimo lugar nesta

    hierarquia, em posio diametralmente oposta Primeira Hipstase, at mesmo porque nada se

    segue a ela: enquanto o Uno a energia criadora de todas as coisas, a matria passividade pura que

    nada produz, apenas recebe, da Plotino consider-la um no-ser relativo e o mal, referindo-se,

    respectivamente, carncia do Ser e do Uno-Bem138.

    Na clebre metfora dos crculos concntricos, onde Uno comparado fonte da luz, o

    Intelecto ao primeiro crculo de luz e a Alma ao segundo crculo, luz da luz ( )139, a matria sensvel seria tomada como a escurido total, inteiramente dependente de iluminao 133 Enada III, 4, 1. 134 Cf. Enada II, 4, 11. 135 Enada II, 4, 12. 136 Enada II, 4, 12. 137 REALE, 2001, v. IV, p. 487. 138 Enada II, 4, 16. I suggest that when he says that evil has nothing of the Good, what he means is that matter in itself has no form, which is the only way that anything can participate in the Good (GERSON, 1998, p. 197). 139 Enada IV, 3, 17.

  • 26

    externa. Todavia, o fato de receber luz do exterior, isto , uma forma, no implica aprisionamento do

    Inteligvel no sensvel, porque a matria sensvel, como foi visto, no tem espessura prpria. Em

    uma metfora corrente ao longo das Enadas140, Plotino compara-a a um espelho, sugerindo que a

    matria sensvel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas.

    A partir dessas definies, a matria sensvel s poder ser entendida, como proposto por

    Plato no Timeu, a partir de um raciocnio bastardo141. Ocorre que, sendo indeterminada e

    destituda de forma, privada de qualidades e de magnitude, a matria sensvel torna-se

    incognoscvel. No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal, no qual matria sensvel e mal

    sinonimizam, h uma passagem bastante elucidativa: Como so Ideias e tm uma inclinao natural

    em direo a elas, o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias. Mas como

    algum poderia imaginar que o mal uma Ideia quando ele surge apenas na ausncia de qualquer

    tipo de bem?142. Resta, ento, a possibilidade de compreender a matria (e, portanto, o mal) a partir

    do que se segue a ela, isto , do universo sensvel.

    Cabe notar aqui a forte inspirao platnica na compreenso do mundo a partir de um

    processo analgico ou de correspondncia, pois o universo sensvel tomado como cpia ou

    imagem do modelo inteligvel. Com efeito, nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o

    simples, aquilo que destitudo de atributos: o Uno, no centro do inteligvel, e a matria sensvel, no

    polo oposto. Tem-se, ainda, a dade indefinida ou matria inteligvel, substrato das Ideias, como

    arqutipo da matria sensvel, receptculo das formas. Tambm as formas corpreas so imagens

    das Ideias refletidas na matria fsica. Alm disso, como tratado a seguir, a alma superior projeta sua

    imagem no animal corpreo.

    Tendo-se analisado a cosmognese plotiniana, que evidencia um universo animado nas

    mirades de formas que o compem, resta investigar a antropognese do licopolitano a origem, o

    desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano. Observe-se, contudo, que o universo

    plotiniano no encerra uma perspectiva eminentemente antropocntrica, pois existe uma vida

    oculta143 no corao de todas as coisas, vale dizer, todas as formas corpreas esto vivas e,

    portanto, so partcipes da harmonia universal. Seria mais apropriado referir-se a uma concepo

    140 Enadas I, 1, 8; II, 9, 4; III, 6, 7; IV, 3, 11. 141 Enada IV, 4, 10, 12. Cf. Timeu 52 b. 142 Enada I, 8, 1. 143 Enada IV, 4, 36.

  • 27

    holista, pois, na medida em que o ser humano experimenta nveis mais profundos ou internos do seu

    prprio Ser, h uma progressiva integrao com a essncia de todas as coisas.

    No universo sensvel, os homens so vistos como deuses no desterro: apesar de serem

    habitantes incorpreos e eternos do divino mundo das Ideias, encontram-se consorciados escurido

    da matria, pois a necessidade decorrente da ordem csmica, a vontade prpria e o desejo de

    pertencerem a si prprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensvel.

    Nestas circunstncias, os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si

    mesmos: Toda a sua reverncia e admirao foi dirigida s coisas que lhes eram exteriores e,

    apegando-se a tais coisas, romperam seus laos originais, tanto quanto isso possvel a uma

    Alma144.

    No entanto, este rompimento nunca total e definitivo, uma vez que, em sua multiplicidade,

    a parte mais nobre da Alma, aquela que perfeita e dirige-se ao Intelecto, permanece sempre pura e

    vira as costas matria, e nem olha nem se aproxima do que indeterminado, sem medida e mal.

    Permanece, assim, pura, completamente definida pelo Intelecto145. Isto se torna possvel devido

    ambivalncia do conceito de alma em Plotino, pois as almas particulares so dotadas de um

    impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram, mas

    possuem tambm um poder que exercem sobre que est sobre a terra146.

    No penltimo tratado da ordem cronolgica mas o primeiro na ordenao de Porfrio ,

    intitulado Sobre o que o Animal e o que o Homem, Plotino discorre sobre a distino entre a

    natureza divina e a animal no homem. Trata-se de uma investigao profunda, ainda que concisa,

    sobre a natureza humana, analisando sob vrios ngulos aquilo que se convencionou chamar de

    eu, o sujeito das emoes, pensamentos e aes, bem como aquele nvel da alma que se mantm

    imperturbvel, admitindo to-somente uma atividade imanente.

    Plotino, em sintonia com Plato, recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua

    filosofia. O deus-marinho Glauco tomado de A Repblica como aluso natureza dual da alma

    humana: livre das incrustaes, purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar sua verdadeira

    essncia, poder divisar o deus interior que permanece inclume s vicissitudes da vida material.

    Resgata, ainda, a histria do heri e semideus Hrcules, reconciliando sua natureza divina com seu

    144 Enada V, 1, 1. 145 Enada I, 8, 4. 146 Enada IV, 8, 4.

  • 28

    aspecto mortal ao sustentar que a dimenso superior da alma mantm-se imperturbvel mesmo em

    meio s aes do homem no mundo: Ele est acima, mas tambm existe uma parte dele abaixo147.

    As questes centrais desse tratado, dispostas j no primeiro captulo, do a tnica da

    investigao: quem o sujeito dos sentimentos, da razo, das opinies e da inteleco? Quem o

    sujeito dos desejos e averses, quem incide no erro e experimenta o sofrimento? Afinal, no que diz

    respeito natureza humana, o que eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no

    processo do autoconhecimento? Em outras palavras, o licopolitano est interessado em descobrir

    quem o observador que permanece impassvel diante de quaisquer circunstncias e quem ou o

    que a coisa observada, esta sim sujeita s afeces corpreas.

    Primeiramente, ao investigar a alma e a sua essncia, com Plotino conclui-se que, caso sejam

    idnticas, no haver a alma de ser corrompida em sua excelsitude, uma vez que no receber nada

    do que lhe seja exterior, apenas dos princpios superiores que a antecedem, aos quais permanece

    eternamente ligada por meio da contemplao. Portanto, nem prazeres nem dores, nem averso ou

    apego, nada poder prejudicar a serenidade da alma superior, pois o que essencialmente simples

    autossuficiente, porque permanece em sua prpria essncia tal como 148. Como sintetiza o filsofo

    de Licpolis, o essencial puro ( )149 e, neste caso, a alma seria uma espcie de Ideia, admitindo to somente uma atividade imanente.

    Como, ento, a alma tomaria conhecimento das impresses externas? Para resolver tal

    questo, o licopolitano concebe a existncia de um terceiro elemento, o composto ou o corpo

    animado, proveniente da interao entre os poderes da alma e o animal propriamente dito. So os

    poderes da alma, eles prprios, assim como a alma, imperturbveis, que transmitem ao animal o

    poder de agir e de receber impresses sensrias150. Com efeito, no h coincidncia entre a vida da

    alma e a vida do corpo animado151, pois a alma d ao corpo apenas uma imagem do que ela mesma

    possui portanto ela d ao corpo somente uma imagem de vida e uma forma corprea152.

    Desta forma, preserva-se o carter impassvel da alma, uma vez que to-somente o

    composto que recebe as impresses sensrias, que o sujeito das emoes e demais afeces

    corpreas em decorrncia da presena dos poderes emitidos pela alma como uma espcie de luz que 147 Enada I, 1, 12. 148 Enada I, 1, 2. 149 Enada I, 1, 2. 150 Enada I, 1, 6. 151 Enada I, 1, 6. 152 Enada IV, 3, 10.

  • 29

    produz algo distinto dotado de sensibilidade153. Plotino esclarece, assim, quem o sujeito das

    emoes e das paixes, ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma, pois ela toma

    conhecimento do mundo apenas de forma indireta, por meio de uma imagem criada por seu prprio

    brilho.

    Estabelecida essa distino, Plotino introduz uma questo de suma importncia que prepara o

    desenvolvimento de sua sntese antropolgica: Mas como somos ns que sentimos ( )?154. Em resposta, o licopolitano sustenta que o homem constitudo por uma multiplicidade e, ademais, os poderes intelectivos da alma no se confundem com os da percepo

    sensvel, mas antes devem ser de receptividade s impresses produzidas pela sensao no ser vivo;

    so ento entidades inteligveis. Logo, a sensao externa a imagem desta percepo da alma, e

    esta, sendo essencialmente mais verdadeira, contemplao impassvel exclusivamente das

    formas155.

    Em resumo, Plotino distingue as sensaes das percepes da seguinte maneira: sensaes

    so as impresses produzidas no corpo animado, consistindo de um aspecto material e de outro

    formal. J as percepes consistem na contemplao impassvel da alma unicamente no que tange s

    formas, no se admitindo a interferncia direta de elementos corpreos. Torna-se, ento, possvel

    divisar o homem real (ns) da sua imagem (que nossa): enquanto a imagem est sujeita s

    emoes e sensaes, o verdadeiro homem, o homem interno, comea com o exerccio do

    pensamento e estende-se por toda a dimenso inteligvel.

    O homem interno ( ), portanto, no deve ser tomado exclusivamente como a alma imortal. J que nada se separa completamente do que o antecede156, o ser humano traz em

    si um esplendor que no tem limites. Deve-se considerar, por conseguinte, o Intelecto e o prprio

    Uno na constituio total do homem. No Intelecto est a essncia da alma humana, que se mantm

    eternamente ligada a ele por meio da contemplao. Segundo Plotino, o Intelecto est presente no

    homem tanto em seu carter comum quanto particular: Comum porque sem partes e onde quer

    que seja sempre o mesmo; particular para ns mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte

    mais elevada da alma157.

    153 Enada I, 1, 7. 154 Enada I, 1, 7. 155 Enada I, 1, 7. 156 Enada V, 2, 1. 157 Enada I, 1, 8.

  • 30

    O Intelecto, por sua vez, depende do Uno e s se define ao contempl-lo. O Uno, em sua

    absoluta simplicidade e autossuficincia, o fundamento ltimo de todas as coisas, todas as

    coisas e no nenhuma delas em particular ( )158, isto , todas as coisas, inclusive o prprio homem, em sua dimenso transcendente, mas nenhuma delas em especfico. o

    poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana, cuja finalidade ltima essa

    experincia rara e extraordinria, mas possvel, de identificao Suprema Realidade.

    Fundamental, alm disso, para a compreenso da viso antropolgica do licopolitano saber

    como a Alma do mundo, que se d inteira ao universo, sem deixar de manter sua unidade, tambm

    se d a cada indivduo em particular. Deve-se lembrar, que ela traz em si as razes seminais ( ) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto, enquanto seu aspecto inferior, a Alma do mundo, exerce um papel demirgico ao plasmar essas sementes na matria, dando

    origem aos corpos particulares. justamente essa ambivalncia, onde a Alma do mundo preserva

    sua unidade enquanto se particulariza, que faz dela um Uno-e-Mltiplo ( ).

    Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo, sem

    abdicar de sua unidade, multiplica-se em inumerveis reflexos, permanecendo em si mesma

    indivisa, como uma face vista em muitos espelhos ( )159. Em sntese, existe uma dimenso mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo

    que projeta na matria uma contraparte inferior e seus poderes, descendo nos corpos e conferindo-

    lhes todas as suas faculdades, como as de sensao, de reproduo e de crescimento.

    Da mesma forma, a parte mais nobre da alma humana permanece inclume s aflies da

    vida, s aes e aos resultados decorrentes destas aes, vale dizer, a alma superior estar livre de

    culpas pelos males que o homem pratica e sofre160. A quem, ento, atribuir a responsabilidade

    pelos erros humanos, se a alma, justamente a natureza racional do homem, est isenta de erro? No

    estaria Plotino incorrendo numa aporia irresolvel ao penalizar aquela dimenso do homem a alma

    inferior que no est no pleno exerccio de suas faculdades racionais? primeira vista, portanto, a

    resposta do licopolitano de que o composto que erra e sofre, no parece de todo satisfatria.

    Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o

    homem est em contato direto com as realidades superiores: O Intelecto ou toca ou no toca,

    158 Enada V, 2, 1. 159 Enada I, 1, 8. 160 Enada I, 1, 9.

  • 31

    portanto impecvel; vale dizer, ou ns estamos em contato com o inteligvel no Intelecto ou no

    estamos em contato com o inteligvel em ns mesmos, pois podemos t-lo sem que o tenhamos

    disposio161. Da infere-se que mesmo a alma humana, no estrito exerccio da razo, estar sujeita

    a julgamentos equivocados, pois o raciocnio lgico-discursivo ainda imperfeito, se comparado ao

    conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essncia das coisas.

    Como, ento, o licopolitano pode afirmar que a alma superior est isenta de erro? Aqui se

    deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreenso da filosofia plotiniana, a saber,

    a contemplao. por meio dela que a alma superior, por assim dizer, faz-se una com o Intelecto,

    consistindo, no caso dos seres humanos, na Ideia de um indivduo. S assim poder haver a

    coincidncia entre observador e coisa observada, eliminando, desta forma, as possibilidades de

    engano que a mera opinio ou o raciocnio linear ensejam.

    Unificando-se com o Intelecto, dado o entrelaamento dinmico e a simultaneidade das

    Ideias, a alma humana, sem perder sua singularidade, traz em si todo o Cosmo Notico, pois ali a

    esfera do Uno-mltiplo, onde reina uma verdadeira unidade na diversidade, como se l na seguinte

    passagem: No Universo Inteligvel, toda inteligncia constitui uma unidade, no algo separado

    nem dividido, e em tal mundo de unidade todas as almas esto unidas sem distanciamento espacial,

    num mundo que eternidade162.

    No obstante esse esclarecimento, o problema persiste: como penalizar a alma inferior do

    homem, se ela no est no pleno exerccio da razo e, portanto, do livre-arbtrio? Plotino amplia,

    ento, sua concepo de ser humano, afirmando que praticamos o mal quando somos guiados pelo

    que pior em ns pois somos muitos , pelo desejo ou paixo ou falsas imagens163. Se a alma

    superior est isenta de erro, como afirma Plotino, o mesmo no ocorre com sua imagem projetada no

    mundo. Logo, incide-se no pecado (), porque a natureza inferior da alma erra o alvo e absorvida pelo vcio e pelo engano, ao invs de voltar sua ateno para as coisas superiores e, assim,

    ascender ao campo da virtude e da verdade.

    Ao tomar o universo sensvel como a realidade ltima, o homem esquece sua verdadeira

    natureza, volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas. Foi assim que os homens, conclui

    Plotino, tomando o caminho contrrio e afastando-se cada vez mais dos princpios, acabaram por

    161 Enada I, 1, 9. 162 Enada IV, 4, 2. 163 Enada I, 1, 9.

  • 32

    perder at mesmo a lembrana de sua origem divina. (...) Como no mais conheciam a sua origem,

    dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmos164.

    Compreendida a dialtica descendente do licopolitano, pode-se perscrutar o sentido e a

    natureza daquela fuga que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta

    filosfica e existencial. Para explicit-la, Plotino recorre ao Teeteto: Fugir dessa maneira tornar-

    se o mais possvel semelhante a Deus; e tal semelhana consiste em ficar algum justo e santo com

    sabedoria165. De fato, esta passagem encerra uma prxis que procura alcanar a Inteligncia e a

    Sabedoria, e, mediante a Sabedoria, o supremo Bem166.

    Na libertao do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas

    mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano. Para tanto

    concorrem a prtica da virtude, a contemplao da beleza e o exerccio da sabedoria. As virtudes

    porque conduzem ao domnio da mente e das emoes e, assim, ao equilbrio na prpria conduta e

    na vida social. A contemplao da beleza exterior porque esta nos remete beleza imaterial

    existente em ns mesmos167. Tambm o conhecimento aproxima o homem do objetivo final, na

    medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o certo do

    errado e, sobretudo, de agir a partir de tal compreenso168.

    De fato, como ensina Reale, as virtudes no so o nico caminho que leva unio com o

    Divino. (...) Plotino valoriza igualmente a ertica169 e a dialtica que so, embora a ttulo diverso e

    em medida diferente, modos distintos com os quais a alma se desapega, se liberta e se purifica do

    corpreo, avizinhando-se do Absoluto170. Observe-se, contudo, que as vias ascensionais conduzem

    to-somente ao limiar da meta, pois a unificao requer a superao de toda a dualidade, como

    sugere a conhecida mxima plotiniana afasta-te de tudo ( )171.

    164 Enada V, 1, 1. 165 Teeteto 176 a-b. 166 Enada VI, 9, 11. 167 O belo sensvel constitui uma fora motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpreo. Para Plotino, o belo no anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo, mas revelao de algo que o transcende, de algo inteligvel (ULLMANN, 2002, p. 165). 168 In generale, conoscere significa agire. La conoscenza non una semplice raprresentazione ma unazione: lazione di una potenza () (...) lintelligenza unattivit, una vitta, e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU, 1997, ps. 74 e 82). 169 Em Plotino, a ertica est associada sua concepo esttica. 170 REALE, 2001, v. IV, p. 515. 171 Enada V, 3, 17.

  • 33

    Nessa direo aponta a via apoftica ou negativa. Se j difcil a aproximao e a posterior

    descrio do Intelecto, do Ser e da Ideia, que so algo, em relao ao Uno, que est antes do

    Intelecto, que no algo e nem o Ser, enfim, que no se confunde com as coisas que gera172, essa

    dificuldade aumenta. Em direo unificao, todo o conhecimento prvio que enseja a

    caracterizao positiva ou a possibilidade de comparao deve ser transcendido173.

    Ainda assim, Plotino afirma que somente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos

    olhar para o Uno... pois pelo puro Intelecto e pelo que h de mais nobre nele que devemos

    contemplar a mais pura das realidades174. Na senda ascendente, portanto, mesmo depois de a alma

    haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto, a meta final requer um passo decisivo, pois a

    conscincia de si mesmo o que encerra uma dualidade deve ser superada.

    O ideal plotiniano, portanto, uma reabsoro integral ao Intelecto e, a partir dele, a

    assemelhao Uno. Logo, o apelo de retorno () unidade primordial torna-se uma constante no discurso do licopolitano. Se o movimento de processo foi marcado pela diferenciao,

    alteridade e crescente complexidade at a formao do universo fsico percebido pelos sentidos, o

    movimento inverso o retorno ou a ascenso requer progressiva purificao e simplificao, pois apenas o semelhante conhece o semelhante ( )175.

    Segundo Plotino, aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar

    dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processes por meio do qual o Uno se faz

    mltiplo: Devem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia so desprovidas

    de valor. (...) A segunda coisa que devem considerar a origem e a dignidade da alma. E esta

    considerao mais importante do que a primeira, pois exposta com clareza torna bvia a

    primeira176.

    O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferena ou desapego pelos prazeres terrenos.

    No se trata de desleixo em relao s obrigaes decorrentes da vida em sociedade, muito menos

    de negligncia para com as necessidades de subsistncia, j que o escoro bibliogrfico do

    licopolitano, elaborado por Porfrio, quase uma hagiografia, retrata uma conduta irrepreensvel177.

    172 Enada VI, 9, 3. 173 La negazione universale rivela lUno stesso come cio che in se stesso libero da ogni differenza (BEIERWALTES, 1993, p. 52). 174 Enada VI, 9, 3. 175 Enada II, 4, 10. 176 Enada V, 1, 1. 177 Na obra, Porfrio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonncia com a filosofia que professava.

  • 34

    Em verdade, o desapego preconizado por Plotino busca alcanar a imperturbabilidade da alma, uma

    condio imprescindvel aos que estejam trilhando o caminho de retorno.

    bvio que a atrao por coisas terrenas prazer, poder e reconhecimento pessoal, por

    exemplo s pode encontrar satisfao no prprio mundo sensvel. Ora, isto implica, na tica

    plotiniana, depreciao e perturbao da alma em sua senda ascendente, na medida em que a

    felicidade condicionada a fatores externos, transitrios e sujeitos iluso. Alm disso, o desejo por

    experincias sensrias diz respeito exclusivamente ao composto, mormente ao prprio animal, cujas

    aspiraes nem sempre coincidem com a vontade da alma.

    Por outro lado, depreende-se da passagem em tela que apenas a ausncia de desejos,

    isoladamente, no conduz via ascensional. Em verdade, o licopolitano sustenta que mais

    importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma. Logo, o caminho de retorno no se

    caracteriza por uma violenta luta contra as paixes terrenas, mas pela percepo das potncias

    divinas na prpria alma, isto , de que o ser humano o microcosmo. Assim, luz do ensinamento

    socrtico178, Plotino reconhece que a ignorncia fundamental a ignorncia de si mesmo179.

    A equao existencial do filsofo de Licpolis poderia ser resumida na seguinte frmula: por

    desconhecer a si mesmo, o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitrios da

    existncia, vale dizer, aferra-se existncia terrena e toma o irreal pelo Real. Essa supervalorizao

    dos objetos sensveis incessante causa de atraes e repulses produz um estado de dependncia e apego ao mundo exterior, em detrimento das realidades inteligveis que restam no esquecimento.

    Como antdoto, Plotino prope um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma

    a atenuar a atrao que os objetos externos exercem sobre a alma humana. Para tanto, deve-se

    considerar o valor relativo, ou mesmo a ausncia de valor, das coisas terrenas que a alma tanto

    aprecia. Dado esse primeiro passo, preciso recordar a ascendncia divina da alma, primeiramente

    de que um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina, a seguir, que esta uma imagem do

    Intelecto e, por fim, que o Intelecto procede do Uno.

    Tem-se, aqui, o objetivo supremo da filosofia plotiniana, o retorno ao Uno: necessrio

    que subamos ao princpio que est em ns mesmos e nos recolhamos da multiplicidade unidade,

    178 bem conhecida a inscrio no frontispcio do Orculo de Delfos tomada por Scrates como divisa: Homem, conhece-te a ti mesmo, e conhecers o universo e os deuses. 179 La filosofia dellepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso: chi conosce s conosce Dio (ARNOU, 1997, p. 160).

  • 35

    posto que queremos contemplar o Princpio e o Uno180. Apenas quando se eleva aos princpios

    superiores, ao Intelecto e ao Uno, o homem verdadeiramente livre. Plotino no pretende, portanto,

    equacionar a relao entre o entre o inteligvel e o sensvel mediante subterfgios ou concesses,

    mas aponta firmemente para aquela direo que representa o norte da tradio neoplatnica: a

    assemelhao a Deus ( ).

    No entanto, como j foi observado, esta reabsoro no implica a negao do mundo, mas

    uma retirada interna, pois o licopolitano, em contraposio tradio grega clssica e

    aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga, especialmente da tradio filosfico-

    religiosa indiana181 afirma que a separao do mundo sensvel e a unificao () ao Bem, ao Belo e Verdade pode ser realizada j nesta vida.

    Convm analisar, depois desta anlise sucinta dos conceitos de processo e retorno na

    filosofia plotiniana, os trs aspectos ou momentos de sua dialtica ascendente, que nada mais so do

    que caminhos de transcendncia. Neste sentido, as perspectivas dialtica, tica e esttica dirigem-se

    igualmente ao mesmo ponto, formando um todo integrado que, encimado pela contemplao,

    pavimenta o caminho de retorno ao Uno.

    180 Enada VI, 9, 3. 181 O Neoplatonismo guarda inmeras correlaes, ainda pouco exploradas, com a filosofia indiana, particularmente com a Escola Vedanta Advaita (no-dual), mas tambm com a Filosofia do Yoga, como pode ser constatado na excelente sntese intitulada As Filosofias da ndia, do indlogo Heinrich Zimmer (So Paulo: Palas Athena, 1986).

  • 36

    3 A CONVERGNCIA DIALTICA

    Quem capaz de ver o todo, filsofo; quem no capaz, no o . (Plato)

    A ausncia de atributos face qual o prprio termo Uno soa inadequado corrobora a unidade da Primeira Hipstase, ao passo que prejudica toda a sua conceituao. Incondicionado e,

    portanto, insuscetvel de apropriao lingustica, o Uno est alm da razo discursiva e do

    conhecimento notico. Ao fracassarem todas as expresses que almejam uma definio precisa,

    restar a linguagem metafrica e a expresso tantas vezes repetida ao longo das Enadas, tomada de

    emprstimo de A Repblica, referindo-se ao Uno como o alm do Ser ( )182.

    Dada a insuficincia das caracterizaes positivas, ser mais apropriada a abordagem

    regressiva, a partir dos seus efeitos183, pois o Uno184 no o Ser nem o Pensamento, no a Ideia

    nem o Intelecto, mas deles a origem; no a Alma divina nem a razo, mas o fundamento ltimo

    de toda a racionalidade; no nenhuma das coisas sensveis, mas a fonte inesgotvel da qual provm

    toda a criao. No obstante tais dificuldades, a dialtica ascendente bastante pretensiosa: seu

    objetivo chegar ao Bem e ao Primeiro Princpio185.

    O xito da ascenso dialtica, no entanto, somente ser possvel, quando o homem descobrir

    em sua prpria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligveis, erguendo-se

    internamente a todos esses nveis. Nessa perspectiva, a convergncia dialtica est ligada

    experincia186 ascensional desde a dimenso sensvel at inteligvel; no universo inteligvel, essa

    expanso ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva inteleco intuitiva, culminando

    na via apoftica ou negativa preconizada pelo afasta-te de tudo ( )187 que conduz unificao (). Em todos os nveis, sobressai a importncia do autoconhecimento, pois o ser humano o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas.

    182 Enada V, 5, 6. A Repblica 509 b. 183 Cf. Enada V, 3, 14. 184 Plotinus was fully conscious of the inadequacy of the term One to express all he meant to convey by his description of this First Principle. He denies passionately any intention to limit it, to make any positive statement about it by using this name (ARMSTRONG, 1967, p. 27). 185 Enada I, 3, 1. 186 Knowledge, for Plotinus, is always experience, or rather it is an inner metamorphosis. What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality, but that we internally raise ourselves up to these levels, and feel them within us as two different tones of spiritual life (HADOT, 1998, p. 48). 187 Enada V, 3, 17.

  • 37

    A analogia da linha utilizada por Plato em A Repblica188 um excelente ponto de partida

    para a dialtica plotiniana, pois tanto o fundador da Academia quanto o filsofo de Licpolis

    propem um refinamento epistemolgico constante at ao objetivo final, dividindo a via ascendente

    em duas etapas, a dimenso sensvel e a inteligvel, na forma em que se encontra no tratado Sobre a

    Dialtica: A primeira a que parte das regies inferiores; e a segunda para os que de certo modo

    j colocaram seus ps ali, mas ainda devem trabalhar muito at terem alcanado o limite superior

    desse mundo. O fim da jornada se d quando atingem o cume do Inteligvel189.

    Com efeito, cada uma das quatro divises da linha segmentada alude a determinado grau de

    conhecimento: a conjectura () e a crena (), que compem a opinio (); a razo discursiva () e a razo intuitiva (), que integram a cincia (). O licopolitano associa os dois primeiros sensao (), pois eles tm lugar na dimenso sensvel, enquanto os outros dois so relacionados ao inteligvel, por estarem ligados, respectivamente, s atividades da

    Alma divina () e do Intelecto (). Plotino acrescentar ainda um nvel de conhecimento ao ensinamento platnico: