A CONVERGÊNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENÉADAS...estão radicadas no Uno – a fonte inexaurível...
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RUDINEI DOS SANTOS MARQUES
A CONVERGEcircNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENEacuteADAS
Dissertaccedilatildeo de Mestrado na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Reinholdo Aloysio Ullmann
Porto Alegre
2010
RUDINEI DOS SANTOS MARQUES
A CONVERGEcircNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENEacuteADAS
Dissertaccedilatildeo de Mestrado na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Reinholdo Aloysio Ullmann
Aprovada em ___ de ___________ de 2010
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof Dr Reinholdo Aloysio Ullmann (Orientador) ndash PUCRS
____________________________
Prof Dr Felipe de Matos Muller ndash PUCRS
_____________________
Profordf Dr Margaret Marchiori Bakos - PUCRS
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar a partir das Eneacuteadas o que satildeo e como se
articulam os dois momentos da filosofia plotiniana processatildeo e retorno analisando o processo
dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo os trecircs caminhos ascensionais que reconduzem da
multiplicidade agrave unidade bem como a importacircncia do autoconhecimento para o caminho de retorno
enfatizando que o sistema de Plotino forjado a partir da filosofia precedente e de sua proacutepria
experiecircncia existencial tem como propoacutesito central a reunificaccedilatildeo com o Uno
Palavras-chave Plotino Neoplatonismo Metafiacutesica Eneacuteadas Processatildeo Retorno ao Uno
ABSTRACT
This work aims to investigate based on the Enneads which are and how the two moments of
the Plotinian philosophy procession and return articulate themselves analyzing the deductive
process from which the One becomes many the three paths that bring ascension from multiplicity to
unity and the importance of self-knowledge for the return path emphasizing that the system of
Plotinus forged from the previous philosophy and his own existential experience centers the
attention on the unification with the One
Keywords Plotinus Neoplatonism Metaphysics Enneads Procession Return to the One
SUMAacuteRIO
RESUMO 03
ABSTRACT 03
1 INTRODUCcedilAtildeO 05
2 PROCESSAtildeO E RETORNO NA FILOSOFIA PLOTINIANA 08 3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA 36 4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA 51 5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA 66 6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 81 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 83
5
1 INTRODUCcedilAtildeO
Este trabalho tem como objetivo investigar o que satildeo e como se articulam os dois momentos
da filosofia plotiniana processatildeo (πρόοδος) e retorno (ἐπιστροφή) Em relaccedilatildeo ao primeiro seraacute
necessaacuterio explicitar o surgimento do universo inteligiacutevel a partir da unidade indiferenciada
denominada simplesmente de ldquoUnordquo (τὸ ἕν) ou Primeira Hipoacutestase a qual por sua vez daacute origem
ao Intelecto (νοῦς) ou Segunda Hipoacutestase e agrave Alma (ψυχή) ou Terceira Hipoacutestase que estaacute
diretamente ligada agrave formaccedilatildeo do universo sensiacutevel
Para tanto o sistema plotiniano seraacute apresentado com um todo orgacircnico em que cada esfera
inteligiacutevel manteacutem suas caracteriacutesticas proacuteprias enquanto dela procede algo inferior ateacute ao ponto de
maacuteximo afastamento da origem qual seja a mateacuteria um dos conceitos mais complexos em Plotino
ateacute mesmo com certas inconsistecircncias cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho Entre
o ponto mais elevado e a base da concepccedilatildeo plotiniana de mundo encontra-se o ser humano que
apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensiacutevel traz consigo a certeza de um destino
divino que cedo ou tarde o reconduziraacute agrave origem
Discorrer sobre o processo dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo seraacute o objetivo do
capiacutetulo inicial intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno na Filosofia Plotinianardquo Sabe-se que dessa
articulaccedilatildeo entre o Uno e o muacuteltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade
tanto no Oriente quanto no Ocidente A soluccedilatildeo de Plotino natildeo pretende ser inovadora pois ele
proacuteprio dizia-se um mero exegeta de Platatildeo mas procura harmonizar a filosofia precedente em um
todo coerente mesclado-a com sua experiecircncia existencial
Haacute em Plotino uma verdadeira sede de retorno ao Princiacutepio de todas as coisas Pode-se
dizer que toda a sua filosofia eacute um chamado para uma realidade mais plena e duradoura De fato o
licopolitano natildeo se deteacutem nas coisas particulares nem em aspectos sociais ou poliacuteticos mas mira
sempre aquilo que eacute mais elevado vale dizer os niacuteveis internos da existecircncia O Uno eacute a Suprema
realidade em torno da qual tudo gravita daiacute ser inevitaacutevel o retorno agrave origem
6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
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natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
12
incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
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O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
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portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
32
perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
35
posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
36
3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
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A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
42
Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
43
inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
44
observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
45
aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
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dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
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impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
49
de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
50
Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
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Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
54
De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
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expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
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As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
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satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
68
Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
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Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
74
Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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RUDINEI DOS SANTOS MARQUES
A CONVERGEcircNCIA AO UNO NO CONTEXTO DAS ENEacuteADAS
Dissertaccedilatildeo de Mestrado na aacuterea de Eacutetica e Filosofia Poliacutetica apresentada ao Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Reinholdo Aloysio Ullmann
Aprovada em ___ de ___________ de 2010
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof Dr Reinholdo Aloysio Ullmann (Orientador) ndash PUCRS
____________________________
Prof Dr Felipe de Matos Muller ndash PUCRS
_____________________
Profordf Dr Margaret Marchiori Bakos - PUCRS
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar a partir das Eneacuteadas o que satildeo e como se
articulam os dois momentos da filosofia plotiniana processatildeo e retorno analisando o processo
dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo os trecircs caminhos ascensionais que reconduzem da
multiplicidade agrave unidade bem como a importacircncia do autoconhecimento para o caminho de retorno
enfatizando que o sistema de Plotino forjado a partir da filosofia precedente e de sua proacutepria
experiecircncia existencial tem como propoacutesito central a reunificaccedilatildeo com o Uno
Palavras-chave Plotino Neoplatonismo Metafiacutesica Eneacuteadas Processatildeo Retorno ao Uno
ABSTRACT
This work aims to investigate based on the Enneads which are and how the two moments of
the Plotinian philosophy procession and return articulate themselves analyzing the deductive
process from which the One becomes many the three paths that bring ascension from multiplicity to
unity and the importance of self-knowledge for the return path emphasizing that the system of
Plotinus forged from the previous philosophy and his own existential experience centers the
attention on the unification with the One
Keywords Plotinus Neoplatonism Metaphysics Enneads Procession Return to the One
SUMAacuteRIO
RESUMO 03
ABSTRACT 03
1 INTRODUCcedilAtildeO 05
2 PROCESSAtildeO E RETORNO NA FILOSOFIA PLOTINIANA 08 3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA 36 4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA 51 5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA 66 6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 81 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 83
5
1 INTRODUCcedilAtildeO
Este trabalho tem como objetivo investigar o que satildeo e como se articulam os dois momentos
da filosofia plotiniana processatildeo (πρόοδος) e retorno (ἐπιστροφή) Em relaccedilatildeo ao primeiro seraacute
necessaacuterio explicitar o surgimento do universo inteligiacutevel a partir da unidade indiferenciada
denominada simplesmente de ldquoUnordquo (τὸ ἕν) ou Primeira Hipoacutestase a qual por sua vez daacute origem
ao Intelecto (νοῦς) ou Segunda Hipoacutestase e agrave Alma (ψυχή) ou Terceira Hipoacutestase que estaacute
diretamente ligada agrave formaccedilatildeo do universo sensiacutevel
Para tanto o sistema plotiniano seraacute apresentado com um todo orgacircnico em que cada esfera
inteligiacutevel manteacutem suas caracteriacutesticas proacuteprias enquanto dela procede algo inferior ateacute ao ponto de
maacuteximo afastamento da origem qual seja a mateacuteria um dos conceitos mais complexos em Plotino
ateacute mesmo com certas inconsistecircncias cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho Entre
o ponto mais elevado e a base da concepccedilatildeo plotiniana de mundo encontra-se o ser humano que
apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensiacutevel traz consigo a certeza de um destino
divino que cedo ou tarde o reconduziraacute agrave origem
Discorrer sobre o processo dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo seraacute o objetivo do
capiacutetulo inicial intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno na Filosofia Plotinianardquo Sabe-se que dessa
articulaccedilatildeo entre o Uno e o muacuteltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade
tanto no Oriente quanto no Ocidente A soluccedilatildeo de Plotino natildeo pretende ser inovadora pois ele
proacuteprio dizia-se um mero exegeta de Platatildeo mas procura harmonizar a filosofia precedente em um
todo coerente mesclado-a com sua experiecircncia existencial
Haacute em Plotino uma verdadeira sede de retorno ao Princiacutepio de todas as coisas Pode-se
dizer que toda a sua filosofia eacute um chamado para uma realidade mais plena e duradoura De fato o
licopolitano natildeo se deteacutem nas coisas particulares nem em aspectos sociais ou poliacuteticos mas mira
sempre aquilo que eacute mais elevado vale dizer os niacuteveis internos da existecircncia O Uno eacute a Suprema
realidade em torno da qual tudo gravita daiacute ser inevitaacutevel o retorno agrave origem
6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
10
natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
11
metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
12
incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
13
encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
14
os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
15
das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
30
O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
31
portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
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perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
35
posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
36
3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
37
A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
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A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
42
Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
43
inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
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aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
46
Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
48
impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
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de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
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Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
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Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
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As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
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satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
68
Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
70
Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar a partir das Eneacuteadas o que satildeo e como se
articulam os dois momentos da filosofia plotiniana processatildeo e retorno analisando o processo
dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo os trecircs caminhos ascensionais que reconduzem da
multiplicidade agrave unidade bem como a importacircncia do autoconhecimento para o caminho de retorno
enfatizando que o sistema de Plotino forjado a partir da filosofia precedente e de sua proacutepria
experiecircncia existencial tem como propoacutesito central a reunificaccedilatildeo com o Uno
Palavras-chave Plotino Neoplatonismo Metafiacutesica Eneacuteadas Processatildeo Retorno ao Uno
ABSTRACT
This work aims to investigate based on the Enneads which are and how the two moments of
the Plotinian philosophy procession and return articulate themselves analyzing the deductive
process from which the One becomes many the three paths that bring ascension from multiplicity to
unity and the importance of self-knowledge for the return path emphasizing that the system of
Plotinus forged from the previous philosophy and his own existential experience centers the
attention on the unification with the One
Keywords Plotinus Neoplatonism Metaphysics Enneads Procession Return to the One
SUMAacuteRIO
RESUMO 03
ABSTRACT 03
1 INTRODUCcedilAtildeO 05
2 PROCESSAtildeO E RETORNO NA FILOSOFIA PLOTINIANA 08 3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA 36 4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA 51 5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA 66 6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 81 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 83
5
1 INTRODUCcedilAtildeO
Este trabalho tem como objetivo investigar o que satildeo e como se articulam os dois momentos
da filosofia plotiniana processatildeo (πρόοδος) e retorno (ἐπιστροφή) Em relaccedilatildeo ao primeiro seraacute
necessaacuterio explicitar o surgimento do universo inteligiacutevel a partir da unidade indiferenciada
denominada simplesmente de ldquoUnordquo (τὸ ἕν) ou Primeira Hipoacutestase a qual por sua vez daacute origem
ao Intelecto (νοῦς) ou Segunda Hipoacutestase e agrave Alma (ψυχή) ou Terceira Hipoacutestase que estaacute
diretamente ligada agrave formaccedilatildeo do universo sensiacutevel
Para tanto o sistema plotiniano seraacute apresentado com um todo orgacircnico em que cada esfera
inteligiacutevel manteacutem suas caracteriacutesticas proacuteprias enquanto dela procede algo inferior ateacute ao ponto de
maacuteximo afastamento da origem qual seja a mateacuteria um dos conceitos mais complexos em Plotino
ateacute mesmo com certas inconsistecircncias cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho Entre
o ponto mais elevado e a base da concepccedilatildeo plotiniana de mundo encontra-se o ser humano que
apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensiacutevel traz consigo a certeza de um destino
divino que cedo ou tarde o reconduziraacute agrave origem
Discorrer sobre o processo dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo seraacute o objetivo do
capiacutetulo inicial intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno na Filosofia Plotinianardquo Sabe-se que dessa
articulaccedilatildeo entre o Uno e o muacuteltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade
tanto no Oriente quanto no Ocidente A soluccedilatildeo de Plotino natildeo pretende ser inovadora pois ele
proacuteprio dizia-se um mero exegeta de Platatildeo mas procura harmonizar a filosofia precedente em um
todo coerente mesclado-a com sua experiecircncia existencial
Haacute em Plotino uma verdadeira sede de retorno ao Princiacutepio de todas as coisas Pode-se
dizer que toda a sua filosofia eacute um chamado para uma realidade mais plena e duradoura De fato o
licopolitano natildeo se deteacutem nas coisas particulares nem em aspectos sociais ou poliacuteticos mas mira
sempre aquilo que eacute mais elevado vale dizer os niacuteveis internos da existecircncia O Uno eacute a Suprema
realidade em torno da qual tudo gravita daiacute ser inevitaacutevel o retorno agrave origem
6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
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2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
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natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
14
os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
27
holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
30
O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
31
portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
32
perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
33
Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
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posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
36
3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
37
A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
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dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
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Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
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aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
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impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
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de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
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Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
54
De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
56
As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
61
nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
62
satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
63
ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
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sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
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Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
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Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
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natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
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Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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SUMAacuteRIO
RESUMO 03
ABSTRACT 03
1 INTRODUCcedilAtildeO 05
2 PROCESSAtildeO E RETORNO NA FILOSOFIA PLOTINIANA 08 3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA 36 4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA 51 5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA 66 6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 81 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 83
5
1 INTRODUCcedilAtildeO
Este trabalho tem como objetivo investigar o que satildeo e como se articulam os dois momentos
da filosofia plotiniana processatildeo (πρόοδος) e retorno (ἐπιστροφή) Em relaccedilatildeo ao primeiro seraacute
necessaacuterio explicitar o surgimento do universo inteligiacutevel a partir da unidade indiferenciada
denominada simplesmente de ldquoUnordquo (τὸ ἕν) ou Primeira Hipoacutestase a qual por sua vez daacute origem
ao Intelecto (νοῦς) ou Segunda Hipoacutestase e agrave Alma (ψυχή) ou Terceira Hipoacutestase que estaacute
diretamente ligada agrave formaccedilatildeo do universo sensiacutevel
Para tanto o sistema plotiniano seraacute apresentado com um todo orgacircnico em que cada esfera
inteligiacutevel manteacutem suas caracteriacutesticas proacuteprias enquanto dela procede algo inferior ateacute ao ponto de
maacuteximo afastamento da origem qual seja a mateacuteria um dos conceitos mais complexos em Plotino
ateacute mesmo com certas inconsistecircncias cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho Entre
o ponto mais elevado e a base da concepccedilatildeo plotiniana de mundo encontra-se o ser humano que
apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensiacutevel traz consigo a certeza de um destino
divino que cedo ou tarde o reconduziraacute agrave origem
Discorrer sobre o processo dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo seraacute o objetivo do
capiacutetulo inicial intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno na Filosofia Plotinianardquo Sabe-se que dessa
articulaccedilatildeo entre o Uno e o muacuteltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade
tanto no Oriente quanto no Ocidente A soluccedilatildeo de Plotino natildeo pretende ser inovadora pois ele
proacuteprio dizia-se um mero exegeta de Platatildeo mas procura harmonizar a filosofia precedente em um
todo coerente mesclado-a com sua experiecircncia existencial
Haacute em Plotino uma verdadeira sede de retorno ao Princiacutepio de todas as coisas Pode-se
dizer que toda a sua filosofia eacute um chamado para uma realidade mais plena e duradoura De fato o
licopolitano natildeo se deteacutem nas coisas particulares nem em aspectos sociais ou poliacuteticos mas mira
sempre aquilo que eacute mais elevado vale dizer os niacuteveis internos da existecircncia O Uno eacute a Suprema
realidade em torno da qual tudo gravita daiacute ser inevitaacutevel o retorno agrave origem
6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
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natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
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O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
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portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
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perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
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posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
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3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
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A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
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Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
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Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
45
aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
48
impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
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de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
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Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
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4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
56
As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
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ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
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satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
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De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
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5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
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sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
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Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
69
Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
70
Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
74
Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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5
1 INTRODUCcedilAtildeO
Este trabalho tem como objetivo investigar o que satildeo e como se articulam os dois momentos
da filosofia plotiniana processatildeo (πρόοδος) e retorno (ἐπιστροφή) Em relaccedilatildeo ao primeiro seraacute
necessaacuterio explicitar o surgimento do universo inteligiacutevel a partir da unidade indiferenciada
denominada simplesmente de ldquoUnordquo (τὸ ἕν) ou Primeira Hipoacutestase a qual por sua vez daacute origem
ao Intelecto (νοῦς) ou Segunda Hipoacutestase e agrave Alma (ψυχή) ou Terceira Hipoacutestase que estaacute
diretamente ligada agrave formaccedilatildeo do universo sensiacutevel
Para tanto o sistema plotiniano seraacute apresentado com um todo orgacircnico em que cada esfera
inteligiacutevel manteacutem suas caracteriacutesticas proacuteprias enquanto dela procede algo inferior ateacute ao ponto de
maacuteximo afastamento da origem qual seja a mateacuteria um dos conceitos mais complexos em Plotino
ateacute mesmo com certas inconsistecircncias cujo estudo aprofundado foge ao escopo deste trabalho Entre
o ponto mais elevado e a base da concepccedilatildeo plotiniana de mundo encontra-se o ser humano que
apesar de estar ligado momentaneamente ao universo sensiacutevel traz consigo a certeza de um destino
divino que cedo ou tarde o reconduziraacute agrave origem
Discorrer sobre o processo dedutivo a partir do qual o Uno se faz muacuteltiplo seraacute o objetivo do
capiacutetulo inicial intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno na Filosofia Plotinianardquo Sabe-se que dessa
articulaccedilatildeo entre o Uno e o muacuteltiplo evolvem os grandes sistemas de pensamento da humanidade
tanto no Oriente quanto no Ocidente A soluccedilatildeo de Plotino natildeo pretende ser inovadora pois ele
proacuteprio dizia-se um mero exegeta de Platatildeo mas procura harmonizar a filosofia precedente em um
todo coerente mesclado-a com sua experiecircncia existencial
Haacute em Plotino uma verdadeira sede de retorno ao Princiacutepio de todas as coisas Pode-se
dizer que toda a sua filosofia eacute um chamado para uma realidade mais plena e duradoura De fato o
licopolitano natildeo se deteacutem nas coisas particulares nem em aspectos sociais ou poliacuteticos mas mira
sempre aquilo que eacute mais elevado vale dizer os niacuteveis internos da existecircncia O Uno eacute a Suprema
realidade em torno da qual tudo gravita daiacute ser inevitaacutevel o retorno agrave origem
6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
10
natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
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O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
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portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
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perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
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posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
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3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
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A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
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A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
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Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
45
aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
46
Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
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impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
49
de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
50
Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
56
As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
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satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
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De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
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Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
70
Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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6
Os capiacutetulos subsequentes tratam das trecircs perspectivas ascensionais que se encontram ao
longo das Eneacuteadas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica Como elas tendem ao mesmo ponto a unificaccedilatildeo
(ἕνωσις) tomou-se da geometria um termo que evoca tal confluecircncia intitulando esses capiacutetulos
respectivamente de ldquoA Convergecircncia Dialeacuteticardquo ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo e ldquoA Convergecircncia
Esteacuteticardquo Cada um deles privilegia um aspecto do sistema plotiniano ao passo que todos enfatizam
a perspectiva ascendente caracteriacutestica da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Evidencia-se desta forma sob
muacuteltiplos enfoques o tema que monopoliza as atenccedilotildees do licopolitano
Escrever sobre Plotino representa uma tentativa necessariamente arbitraacuteria de abordar a sua
obra pois vaacuterios autores observaram a maneira assistemaacutetica em que a filosofia plotiniana ela
proacutepria marcadamente sistemaacutetica estaacute disposta nas Eneacuteadas1 Existem diversas razotildees para que
isto ocorra conta-nos Porfiacuterio o editor dos tratados que Plotino escrevia de um soacute focirclego como se
estivesse copiando de um livro sem efetuar revisotildees2 herdeiro de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que
remonta aos pitagoacutericos muitas teses foram tomadas como verdades filosoacuteficas sem necessidade de
justificaccedilatildeo3 elementos de sua experiecircncia pessoal natildeo se enquadram em sistemas filosoacuteficos4 a
exemplo da iacutentima associaccedilatildeo entre razatildeo e miacutestica5
Dado o caraacuteter primordial conferido por Plotino agrave sua Primeira Hipoacutestase nada menos do
que a realidade primeira e uacuteltima da qual tudo proveacutem e agrave qual tudo converge optou-se pelo
esquema tradicional de abordar as Eneacuteadas primeiramente desde a perspectiva dedutiva das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute agrave esfera sensiacutevel e a seguir empreendendo-se o caminho inverso de
acordo com as trecircs perspectivas de retorno explicitando-se a via ascendente desde o universo
sensiacutevel ateacute ao Uno o poderoso atrator para o qual todas as coisas confluem
Conta-nos Porfiacuterio em sua A Vida de Plotino que o licopolitano tinha em vista a filosofia
praticada pelos persas e hindus Contudo foram poucas as iniciativas ateacute o momento de investigar
as possiacuteveis conexotildees entre tais sistemas Assim ao longo deste trabalho seratildeo feitas algumas
referecircncias a obras que poderatildeo auxiliar os interessados em um estudo comparado entre o
neoplatonismo e as noccedilotildees centrais da Escola Vedanta seguramente a que apresenta maior
correlaccedilatildeo com o ensinamento plotiniano
1 ldquoThey give us therefore an extremely unsystematic presentation of a systematic philosophyrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p viii) ldquoPlotino eacute num certo sentido um pensador muito sistemaacutetico mas o modo como expotildee o proacuteprio pensamento eacute o mais assistemaacutetico que se possa imaginarrdquo (REALE 2001 v IV p 433) 2 Porfiacuterio A Vida de Plotino 8 3 GERSON 1998 p xvi REALE 2001 v IV p 419 4 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xiv 5 BREacuteHIER 1999 p 33
7
Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
10
natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
11
metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
12
incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
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O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
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portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
32
perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
33
Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
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posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
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3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
37
A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
42
Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
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aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
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dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
48
impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
49
de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
50
Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
52
interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
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Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
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expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
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As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
62
satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
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De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
68
Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
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Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
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Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
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nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
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Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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_____ Traiteacutes 22-26 Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-Franccedilois Pradeau Paris Flammarion 2004
_____ Eneacuteada III8 [30] Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterio de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior Campinas Editora da UNICAMP 2008
PRINI Pietro Plotino e la fondazione dellrsquoumanesimo interiore 3ed Milano Vita e Pensiero 1992
RAVINDRA R amp ARMSTRONG A H Dimensions of the Self In Yoga and The Teaching of Krishna Ravi RAVINDRA Chennai The Theosophical Publishing House 1998
REALE Giovanni O Saber dos Antigos Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999
_____ Histoacuteria da Filosofia Antiga 2ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 v II
_____ Histoacuteria da Filosofia Antiga 4ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 v III
_____ Histoacuteria da Filosofia Antiga 2ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2001 v IV
_____ Histoacuteria da Filosofia Antiguidade e Idade Meacutedia 7ed Satildeo Paulo Paulus 2002
RICKEN Friedo O Bem-Viver em Comunidade Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008
STAAL J F Advaita and Neoplatonism Madras University of Madras 1961
The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995
ULLMANN Reinholdo Aloysio Plotino um estudo das Eneacuteadas Porto Alegre EDIPUCRS 2002
_____ Epicuro o filoacutesofo da alegria 3ed Porto Alegre EDIPUCRS 2006
VERRA Valerio Dialettica e filosofia in Plotino 3ed Milano Vita e Pensiero 1993
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Como sugere o tiacutetulo da dissertaccedilatildeo este trabalho tomou por base fundamentalmente o
conteuacutedo das Eneacuteadas maacutexime na ediccedilatildeo biliacutengue grego-inglecircs de A H Armstrong com apoio nas
ediccedilotildees de Jesuacutes Igal (espanhol) e Luc Brisson (francecircs) Foi de grande valia tambeacutem uma das
poucas traduccedilotildees das Eneacuteadas em portuguecircs contemplando apenas doze tratados de Ameacuterico
Sommerman da qual foi extraiacuteda boa parte das citaccedilotildees Utilizou-se ainda a recente publicaccedilatildeo da
traduccedilatildeo do tratado Sobre a natureza a contemplaccedilatildeo e o Uno de Joseacute Carlos Baracat Juacutenior
Subsidiariamente recorreu-se a renomados inteacuterpretes do pensamento plotiniano Com isso espera-
se ter cumprido o intento de adentrar nesse universo tatildeo rico da histoacuteria da filosofia
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2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
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hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
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natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
14
os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
16
proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
27
holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
28
aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
30
O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
31
portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
32
perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
33
Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
34
Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
35
posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
36
3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
37
A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
42
Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
45
aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
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impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
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de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
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Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
56
As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
61
nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
62
satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
63
ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
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sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
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Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
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Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
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natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
82
Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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8
2 PROCESSAtildeO E RETORNO DA FILOSOFIA PLOTINIANA
Uma ideia abarca a imensidatildeo (W Blake)
O ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuteriordquo6 na traduccedilatildeo poeacutetica desta que talvez seja a passagem mais
conhecida das Eneacuteadas trata-se de uma poderosa siacutentese da filosofia plotiniana Todas as coisas
estatildeo radicadas no Uno ndash a fonte inexauriacutevel da qual tudo proveacutem ndash e ao Uno se dirigem No
entanto esta fuga7 como jaacute foi observado8 natildeo significa a negaccedilatildeo do mundo mas uma retirada
interna pois como afirma Plotino ldquocada um de noacutes eacute um universo inteligiacutevelrdquo9
A passagem em tela encerra os dois momentos da filosofia do licopolitano o primeiro um
movimento descendente no qual o ldquomundo sensiacutevel eacute inteiramente lsquodeduzidorsquo do suprassensiacutevelrdquo10
o segundo o caminho de retorno ldquouma reunificaccedilatildeo plena e total com o princiacutepiordquo11 uma retirada
ldquoda multiplicidade agrave unidaderdquo12 Traz impliacutecita ainda a proposta filosoacutefica e existencial que
inaugura a tradiccedilatildeo neoplatocircnica a assemelhaccedilatildeo ao Uno (ἕνωσις)
A investigaccedilatildeo acerca do Uno (τὸ ἕν) nos remete ao cerne da filosofia plotiniana onde a
doutrina das trecircs hipoacutestases inteligiacuteveis desempenha um papel determinante do Uno anterior a tudo
procede o Intelecto (νοῦς) unidade de ser e pensamento deste a Alma do mundo (ψυχή) princiacutepio
ordenador do universo sensiacutevel Tudo traz em si a marca do Uno razatildeo pela qual se pode
empreender o caminho inverso pois ldquoeacute na uniatildeo com o Uno que o homem voltando assim agrave sua
origem alcanccedila a uniatildeo miacutestica o conhecimento pleno a felicidade e a perfeiccedilatildeordquo13
Como a metafiacutesica plotiniana estaacute centrada na doutrina das trecircs hipoacutestases14 a sua
reconstituiccedilatildeo impotildee a anaacutelise cuidadosa do esquema de processotildees por meio do qual do Uno
proveacutem o muacuteltiplo O proacuteprio Plotino reconhece a excelecircncia do Parmecircnides na distinccedilatildeo das
6 Eneacuteada VI 9 11 ldquoφυγὴ μόνου πρὸς μόνονrdquo 7 Φυγή eacute o termo grego utilizado na passagem citada 8 ldquoHis withdrawal from the world was primarily an inner withdrawalrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 88) 9 Eneacuteada III 4 3 Eacute notaacutevel o paralelo cristatildeo ldquoO Reino de Deus estaacute dentro de voacutesrdquo (Lucas 1721) 10 REALE 2001 v IV p 426 11 Ib loc cit 12 Eneacuteada VI 9 3 13 CIRNE-LIMA Sobre o Uno e o Muacuteltiplo em Plotino In Amor Scientiae 2002 p 95 14 ὑπόστασις fundamento ou realidade subjacente Do gr ὑπό (sob por baixo de) e τίθημι (colocar pocircr)
9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
10
natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
11
metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
30
O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
31
portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
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perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
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posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
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3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
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A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
38
Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
39
A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
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Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
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inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
45
aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
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Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
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dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
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impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
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de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
50
Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
52
interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
56
As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
61
nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
62
satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
68
Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
70
Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
71
natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
76
nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
77
Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
78
Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
79
medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
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Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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9
hipoacutestases pois ali Platatildeo identifica a primeira ldquoque eacute mais adequadamente denominada Uno a
segunda que ele denomina lsquoUno-Muacuteltiplordquo e a terceira ldquoUno-e-Muacuteltiplordquo15
Reinholdo Aloysio Ullmmann aduz16 ainda a influecircncia dos trecircs reis da Segunda Carta
notadamente antecipadora citada por Plotino em um dos seus uacuteltimos tratados ldquoAgrave volta do Rei de
todas as coisas todas existem elas satildeo em funccedilatildeo dele e soacute ele eacute a causa de absolutamente tudo o
que haacute de belo depois eacute agrave volta do lsquosegundorsquo que se encontram as coisas de segunda ordem e agrave
volta do lsquoterceirorsquo as que satildeo de terceira importacircnciardquo17
Na verdade a doutrina das trecircs hipoacutestases adveacutem da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica herdada por
Plotino que se estende aos primoacuterdios da filosofia grega18 mormente agrave vertente pitagoacuterico-
platocircnica Nesta perspectiva eacute bastante eloquente o fato de que em auxiacutelio agrave caracterizaccedilatildeo negativa
do Uno Plotino recorra aos ldquopitagoacutericos que o designaram entre si com o nome simboacutelico de
lsquoApolorsquo negando assim toda a multiplicidaderdquo19
Como sentencia Giovanni Reale ldquoeacute impossiacutevel entender Plotino fora do fundo e da
perspectiva histoacuterica em que estaacute situadordquo20 Deveras sugestiva nesta linha eacute a proposiccedilatildeo de
Anthony Kenny que natildeo olvidou das devidas ressalvas de que ldquoo Uno eacute um Deus platocircnico que o
Intelecto () eacute um Deus aristoteacutelico e a Alma eacute um Deus estoicordquo21 Com efeito se a Primeira
Hipoacutestase descende do Uno do Parmecircnides da Ideacuteia do Bem de A Repuacuteblica ou simplesmente do
ldquoUmrdquo das Doutrinas natildeo-escritas o Intelecto assemelha-se agrave dualidade essecircncia-inteligecircncia do
movente natildeo-movido aristoteacutelico ao passo que a Alma do mundo sugere o panteiacutesmo estoico
Observe-se por oportuno a distinccedilatildeo entre a trindade cristatilde e a triacuteade plotiniana enquanto o
Deus uno e trino cristatildeo admite conumeraccedilatildeo em Plotino haacute subordinacionismo22 pois o
licopolitano refere-se a distintos graus de unidade entre as trecircs hipoacutestases Assim a Alma do mundo
que ao exercer funccedilatildeo demiuacutergica confere unidade agraves coisas sensiacuteveis tambeacutem a recebe de um
princiacutepio superior o Intelecto Este por sua vez ldquose eacute aquilo que pensa e eacute pensado seraacute duplo e
15 Eneacuteada V 1 8 ldquoτὸ πρῶτον ἕν ὃ κυριώτερον ἕν καὶ δεύτερον ἓν πολλὰ λέγω καὶ τρίτον ἓν καὶ πολλάrdquo 16 ULLMANN 2002 p 17 17 Carta II Platatildeo Eneacuteada I 8 2 (a 51ordf na ordem cronoloacutegica) 18 ldquoPlotinus in many ways continues along lines laid down by his predecessors But he was an original philosophical genius the only philosopher in the history of later Greek thought who can be ranked with Plato and Aristotlerdquo (The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy 1995 p 197) 19 Eneacuteada V 5 6 Cp com ldquoThe number one they called Apollo because of its rejection of plurality and because of the singleness of unityrdquo (Plutarco Isis e Osiacuteris 381F) 20 REALE 2001 v IV p 428 21 KENNY 2008 p 356 22 ULLLMANN 2002 p 29
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natildeo simples e portanto natildeo seraacute o Unordquo23 Faz-se necessaacuterio entatildeo recorrer agrave unidade primeira ao
Uno pelo qual todos os seres satildeo seres24
Tem-se aqui aquela que foi considerada ldquoa parte mais desconcertante da filosofia de Plotino
o seu conceito de Unordquo25 A H Armstrong propotildee trecircs razotildees principais para que isto ocorra a) a
tentativa de expressar o inexprimiacutevel b) as dificuldades comuns a todos os pensadores que estejam
tentando penetrar nas profundezas do Ser c) a complexidade da tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada por
Plotino Nesta perspectiva torna-se bastante compreensiacutevel o fato de ao longo das Eneacuteadas o
licopolitano chamar a atenccedilatildeo para tais dificuldades utilizando frequentemente expressotildees do tipo
ldquopor assim dizerrdquo26
A par dessas ressalvas a reconstituiccedilatildeo do pensamento plotiniano e a articulaccedilatildeo entre os
principais conceitos por ele utilizados decorrem necessariamente de sua Primeira Hipoacutestase o
absolutamente simples (ἁπλόος) que em sua autonomia (αὐτάρκεια) ldquoeacute aquilo de que tudo depende
mas que natildeo depende de nada assim ele eacute a realidade pela qual tudo aspira Deve permanecer
imoacutevel enquanto tudo circula ao seu redor como uma circunferecircncia ao redor de um centro do qual
todos os seus raios provecircmrdquo27
De vaacuterias maneiras Plotino sublinha a absoluta autossuficiecircncia do Uno Se como estaacute
expresso no tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoadmirar e buscar alguma coisa significa
inferioridade em relaccedilatildeo a elardquo28 o objeto par excellence do sistema plotiniano eacute a Suprema
Realidade o veacutertice de sua escala de valores O Uno poreacutem basta-se a si mesmo pois ldquonada existe
pelo qual possa ser atraiacutedordquo29 Ademais ldquoum princiacutepio natildeo tem necessidade das coisas que vecircm
depois delerdquo30 Entatildeo o Uno como primeiro princiacutepio natildeo depende de nada enquanto tudo o mais
tem nele a sua fonte Como uma nascente ldquoque de si mesma provecirc todos os rios sem se esgotarrdquo31 o
Uno natildeo se empobrece nem se diminui ao dar origem a todas as coisas
Eacute preciso no entanto certa cautela na interpretaccedilatildeo das imagens utilizadas pelo filoacutesofo de
Licoacutepolis tomando-as mais como analogias do que em sua literalidade As mais conhecidas
23 Eneacuteada VI 9 2 24 Eneacuteada VI 9 1 ldquoπάντα τὰ ὄντα τῷ ἑνὶ ἐστιν ὄνταrdquo 25 ARMSTRONG 1967 p 1 26 Eneacuteadas I 2 6 II 3 18 VI 7 12 VI 8 13 VI 8 16 27 Eneacuteada I 7 1 28 Eneacuteada V 1 1 29 Eneacuteada VI 8 13 30 Eneacuteada VI 9 6 31 Eneacuteada III 8 10
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metaacuteforas comparam o Uno ao Sol32 fonte inesgotaacutevel de luz e calor que irradia incessantemente
sem se diminuir Contudo o proacuteprio Plotino adverte que o Sol e a substacircncia dos demais astros satildeo
partes e natildeo cada qual o conjunto e o todo portanto sua permanecircncia diz respeito unicamente agrave
indestrutibilidade da Ideia33
Como jaacute foi largamente demonstrado34 a natildeo-observacircncia deste preceito fez com que muitos
inteacuterpretes fossem levados a erros associando os conceitos de ldquoemanaccedilatildeordquo e ldquopanteiacutesmordquo agrave filosofia
plotiniana quando efetivamente o licopolitano insiste em que o Uno ldquotranscende todas as coisas de
que eacute a causa natildeo sendo nenhuma delasrdquo35 e ainda que o Uno ldquopermanece em si mesmo e natildeo se
diminui ao criarrdquo36 Trata-se em verdade de uma processatildeo (πρόοδος) de vieacutes panenteiacutesta37
A absoluta transcendecircncia do Uno fica patente quando Plotino o faz criador de si mesmo (τὸ
ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) tornando inadmissiacutevel a existecircncia de qualquer causa anterior pois desta
maneira ele deixaria de ser o primeiro princiacutepio O filoacutesofo de Licoacutepolis para tanto unifica a
vontade e a essecircncia do Uno ldquoPorque se sua vontade proveacutem de si mesmo e se identifica com sua
atividade e o seu querer eacute o mesmo que a sua existecircncia entatildeo ele natildeo eacute um resultado casual mas o
que ele desejourdquo38
O Uno eacute a Suprema Realidade anterior a tudo (πρὸ πάντων) o que eacute manifestado ou
condicionado eacute o princiacutepio sem princiacutepio a causa sem causa de tudo o que se seguiu a ele Eacute ldquoa
potecircncia criadora de todas as coisas (δύναμις τῶν πάντων)rdquo39 Enquanto tudo o que existe originou-
se de uma causa o Uno natildeo admite causa precedente Por conseguinte predicar algo da Primeira
Hipoacutestase do sistema plotiniano seria uma tentativa inadequada de nomear o inominaacutevel uma vez
que o Uno eacute desprovido de qualquer atributo
Com efeito a predicaccedilatildeo pressupotildee a existecircncia de dois termos quais sejam o sujeito do
qual se afirma ou nega alguma coisa e o predicado que se atribui a ele Ocorre que esta divisatildeo eacute
totalmente incompatiacutevel com a absoluta simplicidade do Uno Na perspectiva plotiniana a rigor
32 ARMSTRONG (1967 p 49-62) destaca o importante papel que o sol ocupa nas Eneacuteadas provavelmente devido agrave influecircncia de A Repuacuteblica o Timeu e as Leis bem como dos escritos hermeacuteticos e do meacutedio estoicismo 33 Eneacuteada II 1 1 34 REALE 2001 v IV ps 453 e 456 ULLMANN 2002 ps 22 34 41 ARMSTRONG 1967 p 52 35 Eneacuteada V 5 13 36 Eneacuteada VI 9 5 37 ldquoΝοῦς and ψυχή are produced by a spontaneous and necessary efflux or power from the One which leaves their source undiminishedrdquo (ARMSTRONG 1967 p 52) 38 Eneacuteada VI 8 13 39 Eneacuteada III 8 10
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incorreriacuteamos em erro ao afirmar que ldquoo Uno eacute o Bemrdquo pois teriacuteamos de um lado o Uno e de outro
o Bem como uma propriedade que se lhe atribui40
O Uno plotiniano estaacute aleacutem do ser e da essecircncia pois ldquotodos os seres satildeo seres em virtude do
Uno tanto os seres que satildeo seres num sentido originaacuterio como aqueles dos quais se diz que num
sentido qualquer satildeo contados entre os seresrdquo41 Por conseguinte tudo o que ldquoeacuterdquo soacute o ldquoeacuterdquo em virtude
de sua unidade o que eacute extensiacutevel ao ser agrave essecircncia ao Inteligiacutevel e agrave Alma Como esclarece Reale
ldquoa raiz da unidade eacute portanto algo que transcende o proacuteprio Νοῦς algo livre de qualquer
pluralidade eacute o Uno em sirdquo42
Afirmar que o Uno natildeo seja o ser natildeo equivale a dizer que o Uno seja o natildeo-ser Por
paradoxal que seja pode-se afirmar com Plotino que o Uno eacute ldquonem serrdquo e ldquonem natildeo-serrdquo ou nos
termos plotinianos que o Uno eacute ldquoSuper-Serrdquo43 uma expressatildeo que nos remete a um niacutevel ontoloacutegico
que ultrapassa a loacutegica linear a discursividade racional e ateacute mesmo o conhecimento noeacutetico Ao
longo das Eneacuteadas Plotino procura enfatizar a transcendecircncia do Uno recorrendo inuacutemeras vezes agrave
expressatildeo ldquoaleacutem do ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo44 proveniente do livro sexto de A Repuacuteblica
Deve-se questionar entatildeo como eacute possiacutevel que do Uno esta absoluta simplicidade tenha
surgido a multiplicidade infinda de todas as coisas ao que o filoacutesofo de Licoacutepolis responde ldquoO
Uno perfeito porque nada busca nada possui e de nada necessita transborda por assim dizer e sua
superabundacircncia produz algo distinto de si mesmordquo45 pois ldquotodas as coisas que chegam agrave perfeiccedilatildeo
produzem o Uno eacute sempre perfeito entatildeo produz incessantemente e o que produz eacute menos do que
ele proacutepriordquo46
Valendo-se de um raciociacutenio analoacutegico questiona Plotino se tudo o que eacute perfeito produz
algo diferente de si ldquocomo o Primeiro o perfeitiacutessimo Bem poderia permanecer em si mesmo natildeo
querendo dar de si ou incapaz de dar de si se eacute o poder produtor de todas as coisas Como ele ainda
seria o Princiacutepiordquo47 Assim a perfeiccedilatildeo da Suprema Realidade pressupotildee uma δύναμις energia
criadora que estaacute no coraccedilatildeo de todas as coisas impulsionando-as agrave unidade mas que tambeacutem se
40 ldquoNatildeo haacute mister usar o verbo lsquoserrsquo dizendo lsquoEle eacute o Bemrsquo Uno e Bem satildeo convertiacuteveis e constituem perfeiccedilotildees simplesrdquo (ULLMANN 2002 p 34) 41 Eneacuteada VI 9 1 42 REALE 2001 v IV p 441 43 Eneacuteada VI 8 20 44 Eneacuteadas I 7 1 III 8 10 IV 4 16 VI 7 40 VI 8 19 Cf Repuacuteblica 509 b 45 Eneacuteada V 2 1 46 Eneacuteada V 1 6 47 Eneacuteada V 4 1
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encontra aleacutem de todas as coisas qual poderoso atrator ao qual tudo converge Nesta linha como
propotildee Ullmann ldquologra-se falar em transcendecircncia entitativa e imanecircncia operativardquo48
Armstrong entretanto demonstra que muitas das caracterizaccedilotildees positivas conferidas ao
Uno49 fazem dele ldquoinevitavelmente uma οὐσία por mais que ele possa transcender os seres que
conhecemos se uma οὐσία entatildeo um Uno-muacuteltiplo Ele se torna um ser ao qual predicados podem
ser aplicados e sobre o qual distinccedilotildees loacutegicas podem ser feitasrdquo50 Ou seja entendido desta maneira
o Uno assumiria caracteriacutesticas de substacircncia e essecircncia
O autor destaca contudo que a via apofaacutetica ou negativa na qual o Uno eacute apresentado como
uma unidade impredicaacutevel incondicionada e insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguumliacutestica sobre a qual
ldquonatildeo haacute qualquer conceito ou conhecimentordquo51 de sorte que soacute podemos falar dela a partir dos seus
efeitos52 salvaguarda a absoluta simplicidade do primeiro princiacutepio Como destaca Armstrong as
duas perspectivas uma positiva e a outra negativa ldquoocorrem inextricavelmente entrelaccediladas ao
longo das Eneacuteadasrdquo53
Em siacutentese o Uno eacute o nuacutecleo do universo inteligiacutevel de Plotino assim como o universo
inteligiacutevel eacute o nuacutecleo do universo sensiacutevel54 O recurso didaacutetico aos gecircneros inteligiacutevel e sensiacutevel
presente tanto nas Eneacuteadas quanto nos Diaacutelogos natildeo significa contudo que a filosofia plotiniana ndash
assim como a platocircnica da qual o filoacutesofo de Licoacutepolis se denomina mero inteacuterprete55 ndash apresente
um irreconciliaacutevel dualismo entre niacuteveis ontoloacutegicos completamente desconexos
Recorrendo a uma analogia semelhante agrave da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica56
Plotino manifesta certamente uma concepccedilatildeo filosoacutefica natildeo-dualista ao sugerir a existecircncia de algo
ldquocomo uma longa vida estendida longitudinalmente cada parte eacute diferente da seguinte mas o todo eacute
contiacutenuo consigo mesmo mas com partes diferenciadas das outras sem que a anterior pereccedila na
seguinterdquo57 Em outro tratado o licopolitano eacute mais expliacutecito afirmando que ldquotodos os seres tanto
48 ULLMANN 2002 p 44 49 ldquoHe takes the decisive step when he makes the One ἐνέργεια and gives it will makes it eternally create itself and return eternally upon itself in loverdquo (ARMSTRONG 1967 p 3) 50 ARMSTRONG 1967 p 3 51 Eneacuteada V 4 1 52 Cf Eneacuteada V 3 14 53 ARMSTRONG 1967 p 14 54 Cf Eneacuteada IV 3 17 55 ldquoPlotino ha interpretato la sua attivitagrave filosofica in modo del tutto consapevole come una sequela di Platonerdquo (BEIERWALTES 1993 p 29) 56 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 57 Eneacuteada V 2 2
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os inteligiacuteveis como os sensiacuteveis constituem uma cadeia contiacutenua os inteligiacuteveis existem por si
mesmos enquanto os sensiacuteveis sempre recebem sua existecircncia participando dos primeirosrdquo58
Deste nuacutecleo do inteligiacutevel proveacutem uma diferenciaccedilatildeo primaacuteria conhecida como diacuteade
indefinida (ἀόριστος δυάς) termo de inspiraccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica59 que designa o princiacutepio da
alteridade e da multiplicidade pois ldquonatildeo existiria coisa alguma se o Uno permanecesse imoacutevel em si
mesmordquo60 Tambeacutem em Platatildeo o eixo Um-muacuteltiplo assume um papel determinante61 O tema requer
atenccedilatildeo redobrada pois como jaacute foi observado ldquoa conexatildeo entre o Uno e Νοῦς eacute o ponto mais vital
na estrutura do sistema de Plotinordquo62
Ao voltar-se agrave origem a diacuteade indefinida tambeacutem denominada ldquomateacuteria espiritualrdquo ou
ldquomateacuteria inteligiacutevelrdquo encontra limites vale dizer eacute determinada pelo Uno Nas palavras do
licopolitano ldquoo Uno eacute anterior agrave dualidade portanto a diacuteade eacute secundaacuteria e originando-se do Uno
tem-no como um limite mas pela sua proacutepria natureza eacute indeterminadardquo63 O Uno em sua perfeiccedilatildeo
e absoluta simplicidade natildeo encerra qualquer diversidade poreacutem desde sua plenitude daacute origem a
algo diferente de si mesmo a diacuteade que ldquoao surgir volta-se ao Uno e eacute preenchida tornando-se o
Intelecto ao contemplaacute-lordquo64
Na verdade este momento de contemplaccedilatildeo eacute duplo primeiro verifica-se a contenccedilatildeo da
diacuteade indefinida frente ao Uno e dessa limitaccedilatildeo surge o Ser depois o ato de contemplaccedilatildeo daacute
origem ao Intelecto No tratado Sobre a Origem e a Ordem dos Seres que Vecircm Depois do Primeiro
Plotino procura esclarecer a questatildeo tanto quanto possiacutevel ldquoAo deter-se e voltar-se ao Uno
constitui o Ser ao contemplar o Uno o Intelecto Por conseguinte ao deter-se para contemplaacute-lo
torna-se ao mesmo tempo Intelecto e Serrdquo65
No entanto em seu retorno contemplativo ao Uno o Intelecto eacute incapaz de captaacute-lo
inteiramente percebendo-o entatildeo em si mesmo como uma multiplicidade dando origem ao mundo
58 Eneacuteada IV 8 6 59 Dioacutegenes Laeacutercio cita o seguinte fragmento pitagoacuterico ldquoA mocircnada eacute o princiacutepio de todas as coisas da mocircnada nasce a diacuteade indefinida que serve de substrato material agrave mocircnada sendo esta a causa da mocircnada e da diacuteade indefinida nascem os nuacutemerosrdquo (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 25) 60 Eneacuteada IV 8 6 61 O tema teria sido abordado na miacutetica conferecircncia Sobre o Bem proferida na fundaccedilatildeo da Academia (cf DUMONT 2004 p 287) sendo tratado nos diaacutelogos Filebo Parmecircnides e Timeu 62 ARMSTRONG 1967 p 49 63 Eneacuteada V 1 5 64 Eneacuteada V 2 1 Cf Eneacuteada II 4 5 65 Eneacuteada V 2 1
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das Ideias66 Deste movimento inteligiacutevel de convergecircncia agrave origem surgem em ritmo numeacuterico67
os pares de opostos articulados pela diacuteade como alteridade e identidade movimento e repouso
multiplicidade e unidade pois enquanto o absolutamente simples natildeo admite atributos na esfera
noeacutetica eles tornam-se imprescindiacuteveis
Como ensina Reale esta atividade contemplativa de volver-se ao princiacutepio embora muitas
vezes negligenciada pelos inteacuterpretes ldquorepresenta um dos eixos em torno dos quais gira a metafiacutesica
plotinianardquo68 De fato esta chave interpretativa eacute imprescindiacutevel para a compreensatildeo de Plotino
pois todas as vias ascensionais propostas pelo licopolitano pressupotildeem a contemplaccedilatildeo das
realidades superiores das quais o universo sensiacutevel representa apenas a imagem
A contemplaccedilatildeo resguarda o elo entre as hipoacutestases enquanto a alteridade as torna distintas
o reencontro propiciado pelo retorno agrave origem as assemelha assegurando a conexatildeo entre elas
Assim como o Intelecto traz a marca do Uno a Alma carrega os traccedilos do Intelecto e em sentido
inverso como escreve Plotino ldquoa Alma eacute uma expressatildeo e um tipo de atividade do Intelecto assim
como o Intelecto o eacute do Unordquo69
Desta forma a atividade contemplativa confere ao Intelecto uma unidade de segunda ordem
Pode-se mesmo dizer que o Intelecto eacute uma unidade em dois sentidos o primeiro decorre do
retorno ao Uno pela contemplaccedilatildeo o segundo adveacutem do encontro consigo mesmo quando se daacute a
integraccedilatildeo entre sujeito e objeto Daiacute decorrem respectivamente a unidade orgacircnica do Intelecto e a
unidade ontoloacutegica de Ser e Pensamento
Inobstante considerar o Intelecto um todo orgacircnico Plotino atribui-lhe um caraacuteter dual natildeo
apenas pela coexistecircncia do Uno-muacuteltiplo onde a perfeiccedilatildeo do Uno daacute origem a uma miriacuteade de
Ideais que ldquofluem dele como a luz do Solrdquo70 mas porque em seu proacuteprio patamar ontoloacutegico como
observou Breacutehier a Segunda Hipoacutestase congrega natildeo somente as Formas Ideais de Platatildeo mas o
66 ldquoThe Forms number the internal multiplicity of the One-Being are the way in which the One is apprehended by and informs Νοῦς The incurable multiplicity of the Divine Mind causes the One itself to be mirrored in it no in its own simplicity but as multiformrdquo (ARMSTRONG 1967 p 70) 67 Os Nuacutemeros Ideais foram ldquocaracterizados por Plotino como a forccedila que divide o ser e faz nascer a multiplicidade no ser a regra segundo a qual nascem do ser os muacuteltiplos seres e nesse sentido como fundamento e raiz dos seresrdquo (REALE 2001 v IV p 470) 68 REALE 2001 v IV p 459 69 Eneacuteada V 1 6 70 Eneacuteada V 3 12
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proacuteprio sujeito que as conhece por serem idecircnticas a si71 Na mesma linha seguem Reale ao notar
em Plotino ldquoa complexa e grandiosa teoria do Νοῦς como siacutentese de ser e pensamentordquo72 e Werner
Beierwaltes ao constatar a relevacircncia da autorreflexatildeo no acircmbito do pensamento absoluto73
Assim enquanto a unidade absoluta eacute a marca do Uno com a Segunda Hipoacutestase tem-se um
Uno-muacuteltiplo representado na harmonia do mundo das Ideias Trata-se do Cosmo Noeacutetico (κόσμος
νοητός) expressatildeo tomada de Filo de Alexandria que possivelmente tenha sido o primeiro pensador
a referir-se agraves Ideias como pensamentos de Deus74 Em Plotino no entanto a doutrina das Ideias eacute
reformulada assumindo concepccedilotildees distintas em relaccedilatildeo ao platonismo e ao meacutedio-platonismo
principalmente devido agrave coincidecircncia entre pensante e pensado As Ideias natildeo satildeo apenas
pensamentos na mente divina mas ao mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia
O Cosmo Noeacutetico eacute o mundo arquetiacutepico das verdadeiras realidades onde todas as coisas do
universo sensiacutevel satildeo reconhecidas em sua dimensatildeo ldquointeligiacutevel e eterna com sua proacutepria
consciecircncia e vida todas elas sendo governadas pela pura Inteligecircncia e pela imensa Sabedoriardquo75
Ali a singularidade de cada Ideia encontra-se em iacutentima comunhatildeo com todas as outras
constituindo uma unidade na diversidade pois ldquotodas as coisas estatildeo juntas e nem mesmo a menor
delas estaacute separadardquo76
Em diversas passagens das Eneacuteadas ndash frequentemente fazendo uso de analogias ndash Plotino
enfatiza o entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias onde a muacutetua implicaccedilatildeo entre elas faz com que cada
uma tenha todas as outras em si e vice-versa ldquoO Sol ali eacute todas as estrelas e cada estrela o Sol e
todas as outrasrdquo77 Portanto na esfera inteligiacutevel pode-se dizer com Plotino que a beleza tem sua
singularidade mas tambeacutem eacute verdade que a verdade ao tempo que manteacutem sua tocircnica particular
tambeacutem eacute justiccedila bem assim a justiccedila que traz consigo a Ideia da beleza
Com a Segunda Hipoacutestase tem-se a positivaccedilatildeo do sistema plotiniano Enquanto o Uno eacute
ldquoanterior a todas as coisasrdquo78 sendo sua condiccedilatildeo de possibilidade pois todas as coisas soacute satildeo o que
71 ldquoLrsquoecirctre universel nacuteest donc plus connu comme un objet mais comme identique au moirdquo (BREacuteHIER 1999 p 129) Ver tambeacutem Armstrong ldquoIntellect is for Plotinus also the Platonic World of Forms the totality of real beings it is both thought and the object of its thoughtrdquo (ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xx) 72 REALE 2001 v IV p 410 73 ldquoUn pensiero assoluto a-temporale una autorelazione riflessiva di una entitagrave pensante (Νοῦς) che ad un tempo egrave puro essere ecco questa egrave unrsquoidea centrale del filosofare di Plotinordquo (BEIERWALTES 1993 p 30) 74 REALE 2001 v IV p 253 75 Eneacuteada V 1 4 76 Eneacuteada V 9 6 77 Eneacuteada V 8 4 ldquoκαὶ ἥλιος ἐκεῖ πάντα ἄστρα καὶ ἕκαστον ἥλιος αὖ καὶ πάνταrdquo 78 Eneacuteada V 3 11
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satildeo em virtude da unidade o Intelecto eacute todas as coisas em sua verdadeira dimensatildeo imaterial ldquoeacute o
puro Ser em eterna atualidade nela natildeo haacute lugar para futuro nem para passado algum pois todas as
coisas permanecem num eterno agora idecircnticas a si mesmas no lugar que receberam para si como
identidades satisfeitas em serem o que satildeordquo79
A plenitude da Segunda Hipoacutestase eacute a perfeiccedilatildeo de um Uno-muacuteltiplo de um todo orgacircnico
que se expressa na diversidade das Ideias concebidas como realidades vivas e frequentemente
divinizadas ao longo das Eneacuteadas a exemplo da seguinte passagem ldquoLaacute todas as coisas satildeo
celestes a terra o mar as plantas os animais e os homens satildeo celestes todas as coisas que
pertencem agravequele elevado ceacuteu satildeo divinasrdquo80
Agrave semelhanccedila do Hiperuracircnio de Platatildeo o lugar das Ideias em Plotino eacute visto como uma
dimensatildeo imaterial de gloacuteria e resplendor ilimitados de pura luz ldquopois laacute todas as coisas satildeo
transparentes e natildeo haacute nada escuro ou opaco todas as coisas satildeo claras para a parte mais iacutentima de
tudo pois a luz eacute transparente agrave luzrdquo81 Com efeito no Cosmo Noeacutetico desaparecem as concepccedilotildees
ordinaacuterias de tempo e espaccedilo porque ldquohaacute eternidade em vez de tempo E o lugar laacute existe de
maneira intelectual a presenccedila de uma coisa em outrardquo82
Outro aspecto deve ser enfatizado a respeito da Segunda Hipoacutestase ela eacute a esfera do
conhecimento verdadeiro o conhecimento imediato e autoevidente que prescinde quaisquer
intermediaccedilotildees Como escreve Plotino o Intelecto ldquodeve saber sempre e nunca esquecer qualquer
coisa e o seu conhecimento natildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou proveniente de terceiros
Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo83 Por oacutebvio esse conhecimento natildeo estaacute ligado agravequele
decorrente da percepccedilatildeo sensorial que nada mais eacute do que o conhecimento das imagens externas
reflexos de reflexos e natildeo das coisas em si nem ao conhecimento inferencial originaacuterio do
raciociacutenio linear que evolui de premissa em premissa e estaacute sujeito ao transcurso do tempo
O verdadeiro conhecimento do qual nos fala Plotino ocorre na dimensatildeo atemporal do
Cosmo Noeacutetico Natildeo se daacute por meio do raciociacutenio discursivo (διάνοια) mas pela faculdade proacutepria
do Intelecto (νόησις) que eacute ldquoa atividade de visatildeo mental direta ou compreensatildeo imediata do objeto
de pensamento ou uma mente que alcanccedila seu objeto desta maneira direta e natildeo como a conclusatildeo
79 Eneacuteada V 1 4 80 Eneacuteada V 8 3 81 Eneacuteada V 8 4 82 Eneacuteada V 9 10 83 Eneacuteada V 5 1
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de um processo discursivo da razatildeordquo84 Trata-se do conhecimento noeacutetico que representa a
culminacircncia da dialeacutetica ascendente da filosofia platocircnica em Plotino poreacutem ainda restaraacute um
degrau ateacute o aacutepice a proacutepria ἕνωσις
Fatores como a muacutetua implicaccedilatildeo das Ideias a coincidecircncia entre Ser e Pensamento85 e o
caraacuteter atemporal da Segunda Hipoacutestase conferem a esse conhecimento direto poder-se-ia dizer
intuitivo o poder de apreender realidades que ldquocertamente natildeo satildeo lsquopremissasrsquo ou lsquoaxiomasrsquo ou
lsquoexpressotildeesrsquordquo86 No Intelecto haacute perfeita uniatildeo ou assimilaccedilatildeo reciacuteproca entre conhecedor
conhecido e conhecimento87 portanto natildeo haacute possibilidade de erro ou de crenccedilas irreais88 Jaacute os
objetos sensiacuteveis carecem de autoevidecircncia necessitando o auxiacutelio da razatildeo discursiva89 (ou
conhecimento indireto) que por sua vez estaacute sujeita a toda a sorte de ilusotildees
Concepccedilatildeo nitidamente platocircnica na qual ldquoo tempo eacute a imagem moacutevel da eternidaderdquo90 este
caraacuteter atemporal e natildeo-espacial das Ideias eacute assumido por Plotino ao estabelecer uma diferenccedila
fundamental entre a terceira e a segunda hipoacutestases enquanto as Ideias satildeo perfeitas porque natildeo
requerem complementaccedilatildeo ou acreacutescimo isto eacute por serem o que satildeo sem estarem sujeitas ao devir
com a Alma nasce o tempo91 pois ela eacute a vida que anima todas as coisas e as faz avanccedilar no
processo do vir-a-ser Para o licopolitano ldquoo jorro da vida envolve tempo o progresso contiacutenuo da
vida envolve a continuidade do tempo () o tempo eacute a vida da alma em um movimento de passagem
de um modo de vida para outrordquo92
Quando se aborda o conceito de Alma em Plotino um aspecto fundamental a destacar diz
respeito agrave vastidatildeo da esfera de suas atividades pois ldquoa Alma eacute composta de uma parte que estaacute
acima ligada ao mundo superior mas que ao mesmo tempo desce a esta regiatildeo inferior como um
raio proveacutem de um centrordquo93 Este excerto do segundo tratado Sobre a Essecircncia da Alma assinala
uma inovaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves hipoacutestases precedentes uma vez que o Uno e o Intelecto
permanecendo na perfeiccedilatildeo e plenitude de seus respectivos niacuteveis ontoloacutegicos natildeo se dirigem ao
84 ARMSTRONG Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xviii 85 Invocando Parmecircnides Plotino diz que ldquopensar e ser satildeo a mesma coisardquo (Eneacuteada V 1 8 16) 86 Eneacuteada V 5 1 87 ldquoEm outras palavras no Νοῦς o pensar o pensante e o pensado satildeo idecircnticosrdquo (ULLMANN 2002 p 26 Nota 54) 88 Eneacuteada V 5 1 89 Eneacuteada V 5 1 90 Timeu 37 d Eneacuteada III 7 11 91 ldquoThe ἀρχή Soul is eternal just as the ἀρχή Intellect is It is in the soul of the universe that time originatesrdquo (GERSON 1998 p 63) 92 Eneacuteada III 7 11 93 Eneacuteada IV 2 15
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que lhes eacute inferior ao passo que dentre as vaacuterias atividades da Alma encontra-se a de interagir com
o universo sensiacutevel seja organizando-o seja dirigindo-o
A passagem em tela aponta ao menos duas dimensotildees da Terceira Hipoacutestase a primeira diz
respeito agrave sua transcendecircncia pois a Alma ou as Almas jaacute que se trata de um Uno e muacuteltiplo eacute
tambeacutem um habitante no divino e eterno mundo das Ideias (ψυχαὶ δὲ κἀκεῖ)94 e enquanto tal natildeo se
envolve com o mundo material a segunda agrave sua imanecircncia pois a Alma estaacute diretamente ligada agraves
atividades de organizaccedilatildeo e direccedilatildeo do universo sensiacutevel As duas dimensotildees satildeo denominadas
respectivamente a Alma universal e a Alma do todo Entre elas como sublinhou Breacutehier95 tem
lugar a dimensatildeo humana da alma com todas as suas faculdades psicoloacutegicas
A existecircncia de niacuteveis hieraacuterquicos no acircmbito da Alma eacute um dos fatores que contribuem
significativamente para a complexidade do conceito96 Reale reconhecendo a existecircncia de
divergecircncias entre os estudiosos assim identificou estes trecircs niacuteveis ldquoa) Em primeiro lugar estaacute a
Alma suprema a Alma universal ou seja a Alma na sua inteireza e pureza () b) Existe em
seguida a Alma do todo que eacute a Alma do mundo e do universo sensiacutevel () c) Finalmente haacute as
almas particularesrdquo97
Segundo Plotino a primeira ou a Alma divina ldquosempre governa o sistema celeste mantendo
em relaccedilatildeo a ele uma ininterrupta transcendecircncia de suas potecircncias mais elevadas e enviando ao
interior do mundo as suas potecircncias mais baixasrdquo98 a segunda ldquocuida do mundo supervisionando o
geral conduzindo-o agrave ordem mediante um incessante comando de sua soberania real e cuidando do
individual o que implica uma accedilatildeo direta um contato imediato no qual ela se contamina com a
natureza do objeto sobre o qual agerdquo99
Quanto agraves almas particulares Plotino recorre uma vez mais agrave metaacutefora do Sol ao dizer que
elas ldquotecircm um desejo intelectivo de retornar ao princiacutepio de que provieram mas ao mesmo tempo
tecircm uma potecircncia voltada para a administraccedilatildeo deste mundo inferior ndash como a luz estaacute ligada ao Sol
na regiatildeo superior mas natildeo deixa de lanccedilar-se na regiatildeo inferiorrdquo100 Enfatiza contudo a
94 Eneacuteada IV 2 2 95 ldquoEntre ces deux points trouve sa place ce que nous appelons proprement psychologie lrsquoeacutetude des faculteacutes humaines de lrsquoentendement de la meacutemoire de la sensation et des passions ces faculteacutes humaines apparaissent agrave un certain niveau de la vie de lrsquoacircmerdquo (BREacuteHIER 1999 p 49) 96 ldquoThe variations in his use of terms also make a good deal of difficultyrdquo (ARMSTRONG 1967 p 83) 97 REALE 2001 v IV p 480 98 Eneacuteada IV 8 2 99 Eneacuteada IV 8 2 100 Eneacuteada IV 8 4
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transcendecircncia da alma humana ldquoNem mesmo a nossa alma humana entra inteiramente no corpo
mas haacute algo nela que sempre permanece na regiatildeo inteligiacutevelrdquo101
Esta polivalecircncia e mais especificamente o fato de considerar que a Alma do todo estaacute para
a Alma universal assim como a Alma universal estaacute para o Intelecto fez com que Armstrong
conferisse agrave primeira o status de uma quarta hipoacutestase102 o que natildeo parece adequado jaacute que o
proacuteprio autor reconhece que a vida da Alma eacute como um todo que se estende da mais iacutenfima porccedilatildeo
de mateacuteria agraves mais elevadas regiotildees do suprassensiacutevel103 Ademais como sentencia Ullmann ldquodela
procedem as almas e todas as formas dos seres sensiacuteveis ab aeterno desde a planta ateacute o homem
tudo constituindo uma admiraacutevel harmonia e belezardquo104
Possivelmente e de forma ainda mais acentuada que nas hipoacutestases anteriores a
complexidade do conceito de alma em Plotino esteja associada agrave incorporaccedilatildeo de elementos das
vaacuterias tradiccedilotildees filosoacutefico-religiosas que o precederam nem sempre compatiacuteveis entre si Ravindra e
Armstrong identificaram ali a existecircncia de traccedilos homeacutericos oacuterficos e pitagoacutericos assim como as jaacute
conhecidas influecircncias platocircnicas aristoteacutelicas e estoicas105 Natildeo se pode olvidar aleacutem disto a
crenccedila geralmente sustentada pelos leitores de Plotino de que muitos de seus conceitos filosoacuteficos
advieram de suas proacuteprias experiecircncias espirituais106
Plotino incorpora muitos desses elementos e especialmente a partir da influecircncia platocircnica
confere agrave Alma do mundo primordialmente um papel demiuacutergico107 Ela eacute a inteligecircncia que plasma
ordena e conduz o mundo sensiacutevel a partir da contemplaccedilatildeo das realidades superiores Eacute oportuno
lembrar que em Platatildeo a accedilatildeo do Demiurgo torna possiacutevel ldquoque as Ideias inteligiacuteveis possam agir
101 Eneacuteada IV 8 8 102 ARMSTRONG 1967 p 86 103 ldquoThe life of psycheacute is a continuum reaching from living rock to living godsrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 104 ULLMANN 2002 p 27 105 ldquoTo oversimplify crudely the concept of psycheacute which he inherited results from a combination of the oldest Greek conception of psycheacute known to us the Homeric in which it is the breath of life which leaves the body at death as a mindless ghost and the Pithagorean-Orfic belief that the psycheacute was a spiritual being fallen from a higher sphere into the cycle of birth and death capable of wisdom and good conduct or the reverse and able to eventually return to its original state by the exercise of wisdom and virtue (or the appropriate ritual way of life in the Orphic version)rdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 85) 106 Cf Eneacuteada IV8 (Nota Introdutoacuteria de A H Armstrong) 107 ldquoΝοῦς for Plotinus is not really the Demiurgerdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) ldquoSoulrsquos function is rather lsquodemiurgicrsquo operating as a kind of efficient causerdquo (GERSON 1998 p 60)
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sobre o receptaacuteculo sensiacutevel para que do caos surja o cosmo sensiacutevelrdquo108 estabelecendo assim o
nexo entre o modelo eterno e as suas imagens temporais
A propoacutesito Reale ensina que na teologia platocircnica ldquodevemos distinguir entre o lsquodivinorsquo
impessoal por um lado e Deus e os deuses pessoais por outro lado Divino eacute o mundo das Ideias
em todos os seus planos Divina eacute a Ideia do Bem mas natildeo eacute Deus-pessoardquo e o autor complementa
esclarecendo que o Demiurgo encontra-se situado ldquoem posiccedilatildeo inferior ao mundo das Ideacuteias uma
vez que natildeo o cria mas dele dependerdquo109 Da mesma forma a Alma do mundo em Plotino em
posiccedilatildeo imediatamente inferior agrave da Segunda Hipoacutestase produz anima e dirige o universo sensiacutevel a
partir das Ideias eternas que contempla no Intelecto
O licopolitano por sua vez sugere que assim como ldquoa Inteligecircncia natildeo eacute apenas uma mas
Una e muacuteltipla ao mesmo tempo tambeacutem devem existir muitas almas e uma Alma e as diversas
almas brotando da Alma como as diversas espeacutecies provecircm de um uacutenico gecircnerordquo110 Sendo Una e
muacuteltipla a Alma pode exercer papeis diversos na esfera inteligiacutevel e sensiacutevel ldquoQuando olha para o
que eacute anterior a ela a Alma intelige quando olha para si mesma conserva seu ser particular e
quando olha para o que lhe eacute posterior o ordena o governa e o administrardquo111
Portanto em que pese a diversidade destas funccedilotildees a Alma ldquoem si mesma natildeo estaacute dividida
nem se dividiu pois permanece inteira consigo mesma mas estaacute dividida nos corpos porque os
corpos por sua peculiar divisibilidade natildeo satildeo capazes de recebecirc-la de modo indivisiacutevel Portanto a
divisatildeo eacute uma afeiccedilatildeo proacutepria dos corpos natildeo da Almardquo112 Na conclusatildeo deste mesmo tratado
Plotino esclarece que a Alma tem de ser ldquoUna e muacuteltipla dividida e indivisiacutevel () muacuteltipla porque
os seres satildeo muitos e una a fim de manter a coesatildeo do conjunto por sua unidade muacuteltipla a Alma
daacute vida a todas as partes e mediante sua unidade indivisiacutevel as conduz com sabedoriardquo113
No universo inteligiacutevel do licopolitano onde Uno eacute concebido como o absolutamente
simples o surgimento da Segunda Hipoacutestase representa a quebra desta simplicidade primordial
devido agrave dualidade sujeito-objeto e agrave multiplicidade das Ideias No entanto com a Terceira
Hipoacutestase tem-se uma complexidade bem mais expressiva seja do ponto de vista estrutural seja no
acircmbito funcional pois com sua atividade a partir da contemplaccedilatildeo das Ideias a Alma daacute origem ao
108 REALE 2002 p 142 109 REALE 1990 paacuteg 145 110 Eneacuteada IV 8 3 111 Eneacuteada IV 8 3 112 Eneacuteada IV 1 [2] 1 113 Eneacuteada IV 1 [2] 2
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drama da existecircncia gerando o universo sensiacutevel uma vez que ldquoela proacutepria criou todas as coisas
vivas insuflando-lhes vidardquo114
Segundo Reale como uacuteltima hipoacutestase inteligiacutevel ldquoa alma constitui o momento extremo no
processo de expansatildeo da infinita potecircncia do Uno a hipoacutestase cosmogocircnica que coincide com o
momento no qual como uacuteltimo dom de si o incorpoacutereo gera o corpoacutereo manifestando-se na
dimensatildeo do sensiacutevelrdquo115 Resta investigar no entanto como foi possiacutevel que a Alma que em seu
niacutevel mais elevado manteacutem-se eternamente a contemplar o Intelecto abdicasse por assim dizer de
sua origem divina dando iniacutecio desta forma aos sucessivos processos de geraccedilatildeo e transformaccedilatildeo
de todas as coisas no espaccedilo e no tempo
Em resposta Plotino recorre novamente a um termo de origem pitagoacuterica a vontade proacutepria
ou a audaacutecia (τόλμα) que representa a resoluccedilatildeo da Alma em experimentar uma vida diferente
daquela do Intelecto caracterizada pela eternidade e simultaneidade das Ideias Segundo Plotino
esta foi a origem do mal para as almas ldquoa audaacutecia a entrada na esfera da alteridade e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias Estando satisfeitas com sua proacutepria independecircncia moveram-se por si
mesmas tomando o caminho contraacuterio e afastando-se tanto quanto possiacutevel esquecendo-se ateacute
mesmo de sua origemrdquo116
No tratado Sobre a Eternidade e o Tempo onde eacute dito que a eternidade eacute inerente agrave natureza
do Intelecto assim como o tempo o eacute em relaccedilatildeo agrave Alma atribui-se justamente a este desejo de
independecircncia a origem tempo simultaneamente ao efetivo ingresso da Alma no processo do vir-a-
ser ldquoHavia uma natureza inquieta que desejava governar a si mesma e ser ela mesma tendo optado
por buscar mais do que seu presente estado pocircs-se em movimento e o tempo moveu-se consigo
sempre se movendo em direccedilatildeo ao lsquoproacuteximorsquo e ao lsquodepoisrsquo e ao que natildeo eacute o lsquomesmorsquordquo117 Tem iniacutecio
assim o Universo Sensiacutevel construiacutedo agrave imagem e semelhanccedila das realidades superiores que a Alma
contempla no Intelecto
Na relaccedilatildeo que assim se estabelece entre a Alma e o universo sensiacutevel encontra-se a
tentativa do filoacutesofo de Licoacutepolis de reconciliar duas perspectivas platocircnicas aparentemente
114 Eneacuteada V 1 2 ldquoαὐτὴ μὲν ζῷα ἐποίησε πάντα ἐμπνεύσασα αὐτοῖς ζωήνrdquo 115 REALE 2001 v IV p 477 116 Eneacuteada V 1 1 117 Eneacuteada III 7 11
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antiteacuteticas118 a primeira na qual o fundador da Academia ldquodespreza o mundo sensiacutevel reprova o
consoacutercio da alma com o corpo diz que a alma lsquoestaacute acorrentadarsquo e lsquosepultadarsquo nele e ainda exalta
a verdade exposta nos misteacuterios de que a alma aqui lsquoestaacute numa prisatildeorsquordquo119 vivendo agrilhoada na
caverna120 onde caiu devido agrave perda de suas asas121 a segunda proveniente do Timeu onde Platatildeo
ldquoelogia o universo sensiacutevel qualifica-o de lsquoDeus bem-aventuradorsquo e diz que a alma lhe foi dada pela
lsquobondade do Criadorrsquo para que este mundo fosse dotado de inteligecircncia porque ele tinha de ser
inteligente o que natildeo seria possiacutevel sem Almardquo122
Entre o pessimismo da primeira perspectiva e a visatildeo do Timeu Plotino parece optar pela
hipoacutetese de que este eacute o melhor dos mundos possiacuteveis e que a descida da alma eacute necessaacuteria para a
atualizaccedilatildeo de todas as suas potencialidades visto que ldquoo processo de exteriorizaccedilatildeo natildeo poderia
terminar no niacutevel das almas pois cada coisa deve produzir o que se segue a ela bem como
desenvolver-se a partir de um princiacutepio central como de uma semente ateacute chegar ao universo
sensiacutevelrdquo123 No sistema plotiniano este processo de desdobramento ou processatildeo a partir de uma
realidade transcendente eacute produzido por uma forccedila que ldquotem de prosseguir incessantemente ateacute o
universo realizar a uacuteltima de suas potencialidadesrdquo124
Apesar dessa perspectiva predominante125 alguns tratados parecem privilegiar a visatildeo da
imperfeiccedilatildeo do mundo material Mas como alerta Armstrong natildeo haacute que confundir tais
perspectivas pois ldquoPlotino sempre sustenta que o universo sensiacutevel eacute bom e que sua existecircncia eacute a
conclusatildeo necessaacuteria da ordem universalrdquo126 e soacute poderia ser considerado uma prisatildeo se contrastado
com as elevadas esferas inteligiacuteveis a que a alma humana pode ascender Some-se a isto o fato de
natildeo se encontrarem na leitura das Eneacuteadas passagens onde o mundo material seja categoricamente
considerado supeacuterfluo pois mesmo quando apresentado como um jogo de imagens estas refletem
as verdadeiras realidades inteligiacuteveis de que satildeo coacutepias
Portanto seja como possibilidade uacuteltima da processatildeo desde o Uno seja como conclusatildeo
necessaacuteria da ordem coacutesmica o universo fiacutesico eacute real e a sua existecircncia tem a natureza de uma 118 ldquoIt is the old struggle of ideas that appears in Plato () between the intense desire for escape from the body in the Phaedo and the equally intense conviction of the goodness of the material world in the Timaeusrdquo (ARMSTRONG 1967 p 87) 119 Eneacuteada IV 8 1 Feacutedon 62 b 65 a-c Craacutetilo 400 c 120 Repuacuteblica 515 a ndash 519 d 121 Fedro 246 c-d 248 c-d 122 Eneacuteada IV 8 1 Timeu 29 a 30 b 34 b 123 Eneacuteada IV 8 6 124 Eneacuteada IV 8 6 125 Eneacuteadas I 8 7 II 3 17 III 4 1 126 ARMSTRONG 1967 p 83
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imagem ou de um reflexo do universo inteligiacutevel ndash eacute o niacutevel mais denso da cosmogonia plotiniana
no qual cada fragmento traz consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma realidade mais plena e duradoura
No universo sensiacutevel como sugere Plotino mesmo os ldquonossos corpos satildeo somente traccedilos das partes
e poderes do universordquo127 ou seja satildeo o microcosmo e como tal contecircm em si todas as hierarquias
celestes
Como imagem o universo fiacutesico eacute composto de mateacuteria (ὕλη) sensiacutevel e forma Assim como
as formas corpoacutereas provecircm das Ideias que a Alma contempla no Cosmo Noeacutetico tambeacutem a mateacuteria
sensiacutevel eacute deduzida de causas anteriores e tem seu paradigma na divina e eterna mateacuteria
inteligiacutevel128 Sobre estas duas mateacuterias Plotino diz que ambas provecircm de causas anteriores satildeo
simples ilimitadas e indeterminadas e soacute alcanccedilam definiccedilatildeo quando se voltam agrave sua origem
assumindo entatildeo uma forma diferenciam-se no entanto ldquocomo o arqueacutetipo difere da imagemrdquo129
A origem da mateacuteria sensiacutevel a partir da extremidade inferior da Alma quando entatildeo surgem
as condiccedilotildees para a existecircncia de corpos sensiacuteveis eacute abordada no primeiro tratado Sobre os
Problemas quanto agrave Alma ldquoSe natildeo houvesse um corpo a Alma natildeo poderia seguir adiante porque
natildeo haacute outro lugar onde sua natureza permita-lhe situar-se Mas se a Alma pretende seguir adiante
deveraacute produzir um lugar para si mesma e entatildeo um corpordquo130 Com efeito esta passagem faz
referecircncia ao processo dedutivo por meio do qual a partir do incorpoacutereo origina-se o universo
sensiacutevel
Na sequecircncia do excerto acima Plotino afirma que desde a sua estabilidade no Universo
Inteligiacutevel ldquoa Alma irradia uma grande luz e nos confins desta chama torna-se trevas (σκότος) A
Alma vecirc estaacute obscuridade e confere-lhe uma forma jaacute que havia surgido um substrato para a
formardquo131 Igal chama a atenccedilatildeo para o esquema bifaacutesico contido nesta passagem ldquoa) em uma
primeira fase ocorre a gecircnese da mateacuteria agrave maneira de um substrato obscuro b) em uma segunda
fase ocorre a estruturaccedilatildeo da mateacuteria pela Alma mediante a imposiccedilatildeo de um logosrdquo132 Outro
tratado ratifica este entendimento ldquoNo que eacute engendrado por uacuteltimo haacute total indeterminaccedilatildeo que
127 Eneacuteada IV 4 36 128 ldquoLa multipliciteacute des Formes implique lrsquoexistence drsquoune matiegravere car il doit y avoir un substrat qui reccediloit chacune de ces Formes particulegraveres () le monde sensible est une copie drsquoun modegravele intelligible Srsquoil existe une matiegravere ici-bas dit Plotin le monde intelligible doit eacutegalement en posseacuteder unerdquo (Nota Introdutoacuteria de Luc Brisson agrave Eneacuteada II 4) 129 Eneacuteada II 4 15 130 Eneacuteada IV 3 9 131 Eneacuteada IV 3 9 132 Notas 95 e 96 de J Igal agrave Eneacuteada IV 3 9
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por sua vez se aperfeiccediloa tornando-se um corpo e recebendo uma forma correspondente agravequela que
tinha em potecircnciardquo133
No iniacutecio do tratado Sobre os Dois Tipos de Mateacuteria Plotino faz referecircncia aos conceitos de
mateacuteria como substrato (ὑποκείμενον) e receptaacuteculo (ὑποδοχή) associados respectivamente a
Aristoacuteteles e Platatildeo Ao longo do texto poreacutem propotildee retificaccedilotildees a ambos os termos Afirma neste
sentido que para ser um receptaacuteculo natildeo eacute necessaacuterio que a mateacuteria tenha massa mas que seja
capaz de receber atributos quantitativos uma vez que tenha acolhido a magnitude anteriormente134
Sustenta ainda que a mateacuteria tambeacutem ldquoeacute um substrato ainda que seja invisiacutevel e sem dimensatildeordquo135
distanciando-se do conceito aristoteacutelico de substacircncia Afasta-se tambeacutem por oacutebvio do
materialismo estoico ao propor a incorporeidade da mateacuteria
Nesta perspectiva a mateacuteria sensiacutevel distingue-se inteiramente das formas que acolhe pois eacute
justamente o elemento comum entre os corpos sensiacuteveis e ldquoum requisito tanto para a qualidade
quanto para a grandeza e portanto para os corposrdquo136 natildeo podendo ser confundida com eles
Destituiacuteda de qualidades e de grandeza logo privada de atributos a mateacuteria sensiacutevel foi considerada
o ldquoesgotamento total e portanto privaccedilatildeo extrema da potecircncia do Uno e por conseguinte do
proacuteprio Uno ou em outros termos privaccedilatildeo do Bem (que coincide com o Uno)rdquo137
Note-se que esta privaccedilatildeo maacutexima natildeo afeta as hipoacutestases inteligiacuteveis que permanecem
hierarquicamente estruturadas cada qual subordinada agrave que lhe eacute superior ateacute o topo onde o Uno
permanece em sua absoluta independecircncia Pois bem a mateacuteria sensiacutevel ocupa o uacuteltimo lugar nesta
hierarquia em posiccedilatildeo diametralmente oposta agrave Primeira Hipoacutestase ateacute mesmo porque nada se
segue a ela enquanto o Uno eacute a energia criadora de todas as coisas a mateacuteria eacute passividade pura que
nada produz apenas recebe daiacute Plotino consideraacute-la um natildeo-ser relativo e o mal referindo-se
respectivamente agrave carecircncia do Ser e do Uno-Bem138
Na ceacutelebre metaacutefora dos ciacuterculos concecircntricos onde Uno eacute comparado agrave fonte da luz o
Intelecto ao primeiro ciacuterculo de luz e a Alma ao segundo ciacuterculo luz da luz (φῶς ἐκ φωτός)139 a
mateacuteria sensiacutevel seria tomada como a escuridatildeo total inteiramente dependente de iluminaccedilatildeo 133 Eneacuteada III 4 1 134 Cf Eneacuteada II 4 11 135 Eneacuteada II 4 12 136 Eneacuteada II 4 12 137 REALE 2001 v IV p 487 138 Eneacuteada II 4 16 ldquoI suggest that when he says that evil has nothing of the Good what he means is that matter in itself has no form which is the only way that anything can participate in the Goodrdquo (GERSON 1998 p 197) 139 Eneacuteada IV 3 17
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externa Todavia o fato de receber luz do exterior isto eacute uma forma natildeo implica aprisionamento do
Inteligiacutevel no sensiacutevel porque a mateacuteria sensiacutevel como foi visto natildeo tem espessura proacutepria Em
uma metaacutefora corrente ao longo das Eneacuteadas140 Plotino compara-a a um espelho sugerindo que a
mateacuteria sensiacutevel representa infinita e ilimitada capacidade de receber formas
A partir dessas definiccedilotildees a mateacuteria sensiacutevel soacute poderaacute ser entendida como proposto por
Platatildeo no Timeu a partir de um ldquoraciociacutenio bastardordquo141 Ocorre que sendo indeterminada e
destituiacuteda de forma privada de qualidades e de magnitude a mateacuteria sensiacutevel torna-se
incognosciacutevel No tratado Sobre a Natureza e a Origem do Mal no qual mateacuteria sensiacutevel e mal
sinonimizam haacute uma passagem bastante elucidativa ldquoComo satildeo Ideias e tecircm uma inclinaccedilatildeo natural
em direccedilatildeo a elas o Intelecto e a Alma produziriam apenas conhecimento de Ideias Mas como
algueacutem poderia imaginar que o mal eacute uma Ideia quando ele surge apenas na ausecircncia de qualquer
tipo de bemrdquo142 Resta entatildeo a possibilidade de compreender a mateacuteria (e portanto o mal) a partir
do que se segue a ela isto eacute do universo sensiacutevel
Cabe notar aqui a forte inspiraccedilatildeo platocircnica na compreensatildeo do mundo a partir de um
processo analoacutegico ou de correspondecircncia pois o universo sensiacutevel eacute tomado como coacutepia ou
imagem do modelo inteligiacutevel Com efeito nos extremos do sistema plotiniano encontra-se o
simples aquilo que eacute destituiacutedo de atributos o Uno no centro do inteligiacutevel e a mateacuteria sensiacutevel no
polo oposto Tem-se ainda a diacuteade indefinida ou mateacuteria inteligiacutevel substrato das Ideias como
arqueacutetipo da mateacuteria sensiacutevel receptaacuteculo das formas Tambeacutem as formas corpoacutereas satildeo imagens
das Ideias refletidas na mateacuteria fiacutesica Aleacutem disso como tratado a seguir a alma superior projeta sua
imagem no animal corpoacutereo
Tendo-se analisado a cosmogecircnese plotiniana que evidencia um universo animado nas
miriacuteades de formas que o compotildeem resta investigar a antropogecircnese do licopolitano ndash a origem o
desenvolvimento e o destino reservado ao ser humano Observe-se contudo que o universo
plotiniano natildeo encerra uma perspectiva eminentemente antropocecircntrica pois ldquoexiste uma vida
ocultardquo143 no coraccedilatildeo de todas as coisas vale dizer todas as formas corpoacutereas estatildeo vivas e
portanto satildeo partiacutecipes da harmonia universal Seria mais apropriado referir-se a uma concepccedilatildeo
140 Eneacuteadas I 1 8 II 9 4 III 6 7 IV 3 11 141 Eneacuteada IV 4 10 12 Cf Timeu 52 b 142 Eneacuteada I 8 1 143 Eneacuteada IV 4 36
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holista pois na medida em que o ser humano experimenta niacuteveis mais profundos ou internos do seu
proacuteprio Ser haacute uma progressiva integraccedilatildeo com a essecircncia de todas as coisas
No universo sensiacutevel os homens satildeo vistos como deuses no desterro apesar de serem
habitantes incorpoacutereos e eternos do divino mundo das Ideias encontram-se consorciados agrave escuridatildeo
da mateacuteria pois a necessidade decorrente da ordem coacutesmica a vontade proacutepria e o desejo de
pertencerem a si proacuteprias concorreram para a descida das almas humanas no universo sensiacutevel
Nestas circunstacircncias os homens distanciaram-se e esqueceram-se da sua origem divina e de si
mesmos ldquoToda a sua reverecircncia e admiraccedilatildeo foi dirigida agraves coisas que lhes eram exteriores e
apegando-se a tais coisas romperam seus laccedilos originais tanto quanto isso eacute possiacutevel a uma
Almardquo144
No entanto este rompimento nunca eacute total e definitivo uma vez que em sua multiplicidade
a parte mais nobre da Alma aquela que ldquoeacute perfeita e dirige-se ao Intelecto permanece sempre pura e
vira as costas agrave mateacuteria e nem olha nem se aproxima do que eacute indeterminado sem medida e mal
Permanece assim pura completamente definida pelo Intelectordquo145 Isto se torna possiacutevel devido agrave
ambivalecircncia do conceito de alma em Plotino pois ldquoas almas particulares satildeo dotadas de um
impulso de natureza espiritual em seu movimento de voltar-se ao Ser de onde nasceram mas
possuem tambeacutem um poder que exercem sobre que estaacute sobre a terrardquo146
No penuacuteltimo tratado da ordem cronoloacutegica ndash mas o primeiro na ordenaccedilatildeo de Porfiacuterio ndash
intitulado Sobre o que eacute o Animal e o que eacute o Homem Plotino discorre sobre a distinccedilatildeo entre a
natureza divina e a animal no homem Trata-se de uma investigaccedilatildeo profunda ainda que concisa
sobre a natureza humana analisando sob vaacuterios acircngulos aquilo que se convencionou chamar de
ldquoeurdquo o sujeito das emoccedilotildees pensamentos e accedilotildees bem como aquele niacutevel da alma que se manteacutem
imperturbaacutevel admitindo tatildeo-somente uma atividade imanente
Plotino em sintonia com Platatildeo recorre aos mitos para elucidar aspectos relevantes de sua
filosofia O deus-marinho Glauco eacute tomado de A Repuacuteblica como alusatildeo agrave natureza dual da alma
humana livre das incrustaccedilotildees purificada pela sabedoria e dirigindo seu olhar agrave sua verdadeira
essecircncia poderaacute divisar o deus interior que permanece incoacutelume agraves vicissitudes da vida material
Resgata ainda a histoacuteria do heroacutei e semideus Heacutercules reconciliando sua natureza divina com seu
144 Eneacuteada V 1 1 145 Eneacuteada I 8 4 146 Eneacuteada IV 8 4
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aspecto mortal ao sustentar que a dimensatildeo superior da alma manteacutem-se imperturbaacutevel mesmo em
meio agraves accedilotildees do homem no mundo ldquoEle estaacute acima mas tambeacutem existe uma parte dele abaixordquo147
As questotildees centrais desse tratado dispostas jaacute no primeiro capiacutetulo datildeo a tocircnica da
investigaccedilatildeo quem eacute o sujeito dos sentimentos da razatildeo das opiniotildees e da intelecccedilatildeo Quem eacute o
sujeito dos desejos e aversotildees quem incide no erro e experimenta o sofrimento Afinal no que diz
respeito agrave natureza humana o que eacute eminentemente subjetivo e o que pode ser objetivado no
processo do autoconhecimento Em outras palavras o licopolitano estaacute interessado em descobrir
quem eacute o observador ndash que permanece impassiacutevel diante de quaisquer circunstacircncias ndash e quem ou o
que eacute a coisa observada esta sim sujeita agraves afecccedilotildees corpoacutereas
Primeiramente ao investigar a alma e a sua essecircncia com Plotino conclui-se que caso sejam
idecircnticas natildeo haveraacute a alma de ser corrompida em sua excelsitude uma vez que natildeo receberaacute nada
do que lhe seja exterior apenas dos princiacutepios superiores que a antecedem aos quais permanece
eternamente ligada por meio da contemplaccedilatildeo Portanto nem prazeres nem dores nem aversatildeo ou
apego nada poderaacute prejudicar a serenidade da alma superior pois ldquoo que eacute essencialmente simples eacute
autossuficiente porque permanece em sua proacutepria essecircncia tal como eacuterdquo148 Como sintetiza o filoacutesofo
de Licoacutepolis ldquoo essencial eacute puro (ἢ τὸ οὐσιῶδες ἄμικτον)rdquo149 e neste caso a alma seria uma espeacutecie
de Ideia admitindo tatildeo somente uma atividade imanente
Como entatildeo a alma tomaria conhecimento das impressotildees externas Para resolver tal
questatildeo o licopolitano concebe a existecircncia de um terceiro elemento o composto ou o corpo
animado proveniente da interaccedilatildeo entre os poderes da alma e o animal propriamente dito Satildeo os
poderes da alma eles proacuteprios assim como a alma imperturbaacuteveis que transmitem ao animal o
poder de agir e de receber impressotildees sensoacuterias150 Com efeito natildeo haacute coincidecircncia entre a vida da
alma e a vida do corpo animado151 pois a alma daacute ao corpo apenas ldquouma imagem do que ela mesma
possui ndash portanto ela daacute ao corpo somente uma imagem de vida ndash e uma forma corpoacutereardquo152
Desta forma preserva-se o caraacuteter impassiacutevel da alma uma vez que eacute tatildeo-somente o
composto que recebe as impressotildees sensoacuterias que eacute o sujeito das emoccedilotildees e demais afecccedilotildees
corpoacutereas em decorrecircncia da presenccedila dos poderes emitidos pela alma como uma espeacutecie de luz que
147 Eneacuteada I 1 12 148 Eneacuteada I 1 2 149 Eneacuteada I 1 2 150 Eneacuteada I 1 6 151 Eneacuteada I 1 6 152 Eneacuteada IV 3 10
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produz algo distinto dotado de sensibilidade153 Plotino esclarece assim quem eacute o sujeito das
emoccedilotildees e das paixotildees ao passo que ratifica a doutrina da imperturbabilidade da alma pois ela toma
conhecimento do mundo apenas de forma indireta por meio de uma imagem criada por seu proacuteprio
brilho
Estabelecida essa distinccedilatildeo Plotino introduz uma questatildeo de suma importacircncia que prepara o
desenvolvimento de sua siacutentese antropoloacutegica ldquoMas como somos noacutes que sentimos (ἀλλὰ πῶς ἡμεῖς
αἰσθανόμεθα)rdquo154 Em resposta o licopolitano sustenta que o homem eacute constituiacutedo por uma
multiplicidade e ademais os poderes intelectivos da alma natildeo se confundem com os da percepccedilatildeo
sensiacutevel mas antes ldquodevem ser de receptividade agraves impressotildees produzidas pela sensaccedilatildeo no ser vivo
satildeo entatildeo entidades inteligiacuteveis Logo a sensaccedilatildeo externa eacute a imagem desta percepccedilatildeo da alma e
esta sendo essencialmente mais verdadeira eacute contemplaccedilatildeo impassiacutevel exclusivamente das
formasrdquo155
Em resumo Plotino distingue as sensaccedilotildees das percepccedilotildees da seguinte maneira sensaccedilotildees
satildeo as impressotildees produzidas no corpo animado consistindo de um aspecto material e de outro
formal Jaacute as percepccedilotildees consistem na contemplaccedilatildeo impassiacutevel da alma unicamente no que tange agraves
formas natildeo se admitindo a interferecircncia direta de elementos corpoacutereos Torna-se entatildeo possiacutevel
divisar o homem real (ldquonoacutesrdquo) da sua imagem (que eacute ldquonossardquo) enquanto a imagem estaacute sujeita agraves
emoccedilotildees e sensaccedilotildees o verdadeiro homem o homem interno comeccedila com o exerciacutecio do
pensamento e estende-se por toda a dimensatildeo inteligiacutevel
O homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) portanto natildeo deve ser tomado exclusivamente como
a alma imortal Jaacute que ldquonada se separa completamente do que o antecederdquo156 o ser humano traz em
si um esplendor que natildeo tem limites Deve-se considerar por conseguinte o Intelecto e o proacuteprio
Uno na constituiccedilatildeo total do homem No Intelecto estaacute a essecircncia da alma humana que se manteacutem
eternamente ligada a ele por meio da contemplaccedilatildeo Segundo Plotino o Intelecto estaacute presente no
homem tanto em seu caraacuteter comum quanto particular ldquoComum porque eacute sem partes e onde quer
que seja eacute sempre o mesmo particular para noacutes mesmos porque cada qual o tem inteiro na parte
mais elevada da almardquo157
153 Eneacuteada I 1 7 154 Eneacuteada I 1 7 155 Eneacuteada I 1 7 156 Eneacuteada V 2 1 157 Eneacuteada I 1 8
30
O Intelecto por sua vez depende do Uno e soacute se define ao contemplaacute-lo O Uno em sua
absoluta simplicidade e autossuficiecircncia eacute o fundamento uacuteltimo de todas as coisas ldquoeacute todas as
coisas e natildeo eacute nenhuma delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo158 isto eacute eacute todas as coisas
inclusive o proacuteprio homem em sua dimensatildeo transcendente mas nenhuma delas em especiacutefico Eacute o
poderoso atrator para o qual converge toda a filosofia plotiniana cuja finalidade uacuteltima eacute essa
experiecircncia rara e extraordinaacuteria mas possiacutevel de identificaccedilatildeo agrave Suprema Realidade
Fundamental aleacutem disso para a compreensatildeo da visatildeo antropoloacutegica do licopolitano eacute saber
como a Alma do mundo que se daacute inteira ao universo sem deixar de manter sua unidade tambeacutem
se daacute a cada indiviacuteduo em particular Deve-se lembrar que ela traz em si as razotildees seminais (λόγοι
σπερματικοί) como um reflexo das Ideias que contempla no Intelecto enquanto seu aspecto inferior
a Alma do mundo exerce um papel demiuacutergico ao plasmar essas ldquosementesrdquo na mateacuteria dando
origem aos corpos particulares Eacute justamente essa ambivalecircncia onde a Alma do mundo preserva
sua unidade enquanto se particulariza que faz dela um Uno-e-Muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Plotino sustenta que isto ocorre devido a um jogo de imagens no qual a Alma do mundo sem
abdicar de sua unidade multiplica-se em inumeraacuteveis reflexos permanecendo em si mesma
indivisa ldquocomo uma face vista em muitos espelhos (ὥσπερ πρόσωπον ἐν πολλοῖς κατόπτροις)rdquo159
Em siacutentese existe uma dimensatildeo mais elevada da alma que preserva sua inteireza ao mesmo tempo
que projeta na mateacuteria uma contraparte inferior e seus poderes descendo nos corpos e conferindo-
lhes todas as suas faculdades como as de sensaccedilatildeo de reproduccedilatildeo e de crescimento
Da mesma forma a parte mais nobre da alma humana permanece incoacutelume agraves afliccedilotildees da
vida agraves accedilotildees e aos resultados decorrentes destas accedilotildees vale dizer ldquoa alma superior estaraacute livre de
culpas pelos males que o homem pratica e sofrerdquo160 A quem entatildeo atribuir a responsabilidade
pelos erros humanos se a alma justamente a natureza racional do homem estaacute isenta de erro Natildeo
estaria Plotino incorrendo numa aporia irresoluacutevel ao penalizar aquela dimensatildeo do homem ndash a alma
inferior ndash que natildeo estaacute no pleno exerciacutecio de suas faculdades racionais Agrave primeira vista portanto a
resposta do licopolitano de que eacute o composto que erra e sofre natildeo parece de todo satisfatoacuteria
Plotino torna o problema mais complexo ao afirmar que apenas na esfera do Intelecto o
homem estaacute em contato direto com as realidades superiores ldquoO Intelecto ou toca ou natildeo toca
158 Eneacuteada V 2 1 159 Eneacuteada I 1 8 160 Eneacuteada I 1 9
31
portanto eacute impecaacutevel vale dizer ou noacutes estamos em contato com o inteligiacutevel no Intelecto ou natildeo
estamos em contato com o inteligiacutevel em noacutes mesmos pois podemos tecirc-lo sem que o tenhamos agrave
disposiccedilatildeordquo161 Daiacute infere-se que mesmo a alma humana no estrito exerciacutecio da razatildeo estaraacute sujeita
a julgamentos equivocados pois o raciociacutenio loacutegico-discursivo eacute ainda imperfeito se comparado ao
conhecimento intuitivo que entra em contato direto com a essecircncia das coisas
Como entatildeo o licopolitano pode afirmar que a alma superior estaacute isenta de erro Aqui se
deve recordar uma das chaves mais importantes para a compreensatildeo da filosofia plotiniana a saber
a contemplaccedilatildeo Eacute por meio dela que a alma superior por assim dizer faz-se una com o Intelecto
consistindo no caso dos seres humanos na Ideia de um indiviacuteduo Soacute assim poderaacute haver a
coincidecircncia entre observador e coisa observada eliminando desta forma as possibilidades de
engano que a mera opiniatildeo ou o raciociacutenio linear ensejam
Unificando-se com o Intelecto dado o entrelaccedilamento dinacircmico e a simultaneidade das
Ideias a alma humana sem perder sua singularidade traz em si todo o Cosmo Noeacutetico pois ali eacute a
esfera do Uno-muacuteltiplo onde reina uma verdadeira unidade na diversidade como se lecirc na seguinte
passagem ldquoNo Universo Inteligiacutevel toda inteligecircncia constitui uma unidade natildeo eacute algo separado
nem dividido e em tal mundo de unidade todas as almas estatildeo unidas sem distanciamento espacial
num mundo que eacute eternidaderdquo162
Natildeo obstante esse esclarecimento o problema persiste como penalizar a alma inferior do
homem se ela natildeo estaacute no pleno exerciacutecio da razatildeo e portanto do livre-arbiacutetrio Plotino amplia
entatildeo sua concepccedilatildeo de ser humano afirmando que ldquopraticamos o mal quando somos guiados pelo
que eacute pior em noacutes ndash pois somos muitos ndash pelo desejo ou paixatildeo ou falsas imagensrdquo163 Se a alma
superior estaacute isenta de erro como afirma Plotino o mesmo natildeo ocorre com sua imagem projetada no
mundo Logo incide-se no pecado (ἁμαρτία) porque a natureza inferior da alma erra o alvo e eacute
absorvida pelo viacutecio e pelo engano ao inveacutes de voltar sua atenccedilatildeo para as coisas superiores e assim
ascender ao campo da virtude e da verdade
Ao tomar o universo sensiacutevel como a realidade uacuteltima o homem esquece sua verdadeira
natureza volta-se ao exterior e passa a apreciar as coisas terrenas Foi assim que os homens conclui
Plotino ldquotomando o caminho contraacuterio e afastando-se cada vez mais dos princiacutepios acabaram por
161 Eneacuteada I 1 9 162 Eneacuteada IV 4 2 163 Eneacuteada I 1 9
32
perder ateacute mesmo a lembranccedila de sua origem divina () Como natildeo mais conheciam a sua origem
dirigiram seu respeito a coisas erradas e honraram a tudo o mais que a si mesmosrdquo164
Compreendida a dialeacutetica descendente do licopolitano pode-se perscrutar o sentido e a
natureza daquela ldquofugardquo que sintetiza sua filosofia ao mesmo tempo que constitui sua proposta
filosoacutefica e existencial Para explicitaacute-la Plotino recorre ao Teeteto ldquoFugir dessa maneira eacute tornar-
se o mais possiacutevel semelhante a Deus e tal semelhanccedila consiste em ficar algueacutem justo e santo com
sabedoriardquo165 De fato esta passagem encerra uma praacutexis que procura ldquoalcanccedilar a Inteligecircncia e a
Sabedoria e mediante a Sabedoria o supremo Bemrdquo166
Na libertaccedilatildeo do senhorio exercido pelas coisas terrenas e no desvelamento das camadas
mais profundas de si mesmo consiste o opus magnum destinado a cada ser humano Para tanto
concorrem a praacutetica da virtude a contemplaccedilatildeo da beleza e o exerciacutecio da sabedoria As virtudes
porque conduzem ao domiacutenio da mente e das emoccedilotildees e assim ao equiliacutebrio na proacutepria conduta e
na vida social A contemplaccedilatildeo da beleza exterior porque esta nos remete agrave beleza imaterial
existente em noacutes mesmos167 Tambeacutem o conhecimento aproxima o homem do objetivo final na
medida em que confere a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso entre o certo do
errado e sobretudo de agir a partir de tal compreensatildeo168
De fato como ensina Reale ldquoas virtudes natildeo satildeo o uacutenico caminho que leva agrave uniatildeo com o
Divino () Plotino valoriza igualmente a eroacutetica169 e a dialeacutetica que satildeo embora a tiacutetulo diverso e
em medida diferente modos distintos com os quais a alma se desapega se liberta e se purifica do
corpoacutereo avizinhando-se do Absolutordquo170 Observe-se contudo que as vias ascensionais conduzem
tatildeo-somente ao limiar da meta pois a unificaccedilatildeo requer a superaccedilatildeo de toda a dualidade como
sugere a conhecida maacutexima plotiniana ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo171
164 Eneacuteada V 1 1 165 Teeteto 176 a-b 166 Eneacuteada VI 9 11 167 ldquoO belo sensiacutevel constitui uma forccedila motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia simplesmente a si mesmo mas eacute revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevelrdquo (ULLMANN 2002 p 165) 168 ldquoIn generale conoscere significa agire La conoscenza non egrave una semplice raprresentazione ma unrsquoazione lrsquoazione di una potenza (δύναμις) () lrsquointelligenza egrave unrsquoattivitagrave una vitta e non un ricettacolo inerte di forme astratte (ARNOU 1997 ps 74 e 82) 169 Em Plotino a eroacutetica estaacute associada agrave sua concepccedilatildeo esteacutetica 170 REALE 2001 v IV p 515 171 Eneacuteada V 3 17
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Nessa direccedilatildeo aponta a via apofaacutetica ou negativa Se jaacute eacute difiacutecil a aproximaccedilatildeo e a posterior
descriccedilatildeo do Intelecto do Ser e da Ideia que satildeo ldquoalgordquo em relaccedilatildeo ao Uno que estaacute antes do
Intelecto que natildeo eacute ldquoalgordquo e nem o Ser enfim que natildeo se confunde com as coisas que gera172 essa
dificuldade aumenta Em direccedilatildeo agrave unificaccedilatildeo todo o conhecimento preacutevio que enseja a
caracterizaccedilatildeo positiva ou a possibilidade de comparaccedilatildeo deve ser transcendido173
Ainda assim Plotino afirma que ldquosomente depois de nos termos tornado o Intelecto devemos
olhar para o Uno pois eacute pelo puro Intelecto e pelo que haacute de mais nobre nele que devemos
contemplar a mais pura das realidadesrdquo174 Na senda ascendente portanto mesmo depois de a alma
haver-se recolhido inteiramente ao Intelecto a meta final requer um passo decisivo pois a
consciecircncia de si mesmo ndash o que encerra uma dualidade ndash deve ser superada
O ideal plotiniano portanto eacute uma reabsorccedilatildeo integral ao Intelecto e a partir dele a
assemelhaccedilatildeo Uno Logo o apelo de retorno (ἐπιστροφή) agrave unidade primordial torna-se uma
constante no discurso do licopolitano Se o movimento de processatildeo foi marcado pela diferenciaccedilatildeo
alteridade e crescente complexidade ateacute a formaccedilatildeo do universo fiacutesico percebido pelos sentidos o
movimento inverso o retorno ou a ascensatildeo requer progressiva purificaccedilatildeo e simplificaccedilatildeo pois
apenas ldquoo semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo175
Segundo Plotino aqueles que pretendem empreender a via ascensional devem considerar
dois aspectos estreitamente ligados ao esquema de processotildees por meio do qual o Uno se faz
muacuteltiplo ldquoDevem primeiro considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia satildeo desprovidas
de valor () A segunda coisa que devem considerar eacute a origem e a dignidade da alma E esta
consideraccedilatildeo eacute mais importante do que a primeira pois exposta com clareza torna oacutebvia a
primeirardquo176
O primeiro aspecto diz respeito a uma certa indiferenccedila ou desapego pelos prazeres terrenos
Natildeo se trata de desleixo em relaccedilatildeo agraves obrigaccedilotildees decorrentes da vida em sociedade muito menos
de negligecircncia para com as necessidades de subsistecircncia jaacute que o escorccedilo bibliograacutefico do
licopolitano elaborado por Porfiacuterio quase uma hagiografia retrata uma conduta irrepreensiacutevel177
172 Eneacuteada VI 9 3 173 ldquoLa negazione universale rivela lrsquoUno stesso come cio che egrave in se stesso libero da ogni differenzardquo (BEIERWALTES 1993 p 52) 174 Eneacuteada VI 9 3 175 Eneacuteada II 4 10 176 Eneacuteada V 1 1 177 Na obra Porfiacuterio sustenta que a vida de Plotino estava em perfeita consonacircncia com a filosofia que professava
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Em verdade o desapego preconizado por Plotino busca alcanccedilar a imperturbabilidade da alma uma
condiccedilatildeo imprescindiacutevel aos que estejam trilhando o caminho de retorno
Eacute oacutebvio que a atraccedilatildeo por coisas terrenas ndash prazer poder e reconhecimento pessoal por
exemplo ndash soacute pode encontrar satisfaccedilatildeo no proacuteprio mundo sensiacutevel Ora isto implica na oacutetica
plotiniana depreciaccedilatildeo e perturbaccedilatildeo da alma em sua senda ascendente na medida em que a
felicidade eacute condicionada a fatores externos transitoacuterios e sujeitos agrave ilusatildeo Aleacutem disso o desejo por
experiecircncias sensoacuterias diz respeito exclusivamente ao composto mormente ao proacuteprio animal cujas
aspiraccedilotildees nem sempre coincidem com a vontade da alma
Por outro lado depreende-se da passagem em tela que apenas a ausecircncia de desejos
isoladamente natildeo conduz agrave via ascensional Em verdade o licopolitano sustenta que eacute mais
importante recordar-se da natureza e da dignidade da alma Logo o caminho de retorno natildeo se
caracteriza por uma violenta luta contra as paixotildees terrenas mas pela percepccedilatildeo das potecircncias
divinas na proacutepria alma isto eacute de que o ser humano eacute o microcosmo Assim agrave luz do ensinamento
socraacutetico178 Plotino reconhece que a ignoracircncia fundamental eacute a ignoracircncia de si mesmo179
A equaccedilatildeo existencial do filoacutesofo de Licoacutepolis poderia ser resumida na seguinte foacutermula por
desconhecer a si mesmo o homem identifica-se com os aspectos materiais e transitoacuterios da
existecircncia vale dizer aferra-se agrave existecircncia terrena e toma o irreal pelo Real Essa supervalorizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis incessante causa de atraccedilotildees e repulsotildees produz um estado de dependecircncia
e apego ao mundo exterior em detrimento das realidades inteligiacuteveis que restam no esquecimento
Como antiacutedoto Plotino propotildee um gradual distanciamento dos prazeres mundanos de forma
a atenuar a atraccedilatildeo que os objetos externos exercem sobre a alma humana Para tanto deve-se
considerar o valor relativo ou mesmo a ausecircncia de valor das coisas terrenas que a alma tanto
aprecia Dado esse primeiro passo eacute preciso recordar a ascendecircncia divina da alma primeiramente
de que eacute um reflexo da luz todo abarcante da Alma Divina a seguir que esta eacute uma imagem do
Intelecto e por fim que o Intelecto procede do Uno
Tem-se aqui o objetivo supremo da filosofia plotiniana o retorno ao Uno ldquoEacute necessaacuterio
que subamos ao princiacutepio que estaacute em noacutes mesmos e nos recolhamos da multiplicidade agrave unidade
178 Eacute bem conhecida a inscriccedilatildeo no frontispiacutecio do Oraacuteculo de Delfos tomada por Soacutecrates como divisa ldquoHomem conhece-te a ti mesmo e conheceraacutes o universo e os deusesrdquo 179 ldquoLa filosofia dellrsquoepoca neoplatonica stabilisce un parallelismo rigoroso tra la conoscenza di Dio e quella di se stesso chi conosce seacute conosce Diordquo (ARNOU 1997 p 160)
35
posto que queremos contemplar o Princiacutepio e o Unordquo180 Apenas quando se eleva aos princiacutepios
superiores ao Intelecto e ao Uno o homem eacute verdadeiramente livre Plotino natildeo pretende portanto
equacionar a relaccedilatildeo entre o entre o inteligiacutevel e o sensiacutevel mediante subterfuacutegios ou concessotildees
mas aponta firmemente para aquela direccedilatildeo que representa o norte da tradiccedilatildeo neoplatocircnica a
assemelhaccedilatildeo a Deus (ὁμοίοσις τῷ Θεῷ)
No entanto como jaacute foi observado esta reabsorccedilatildeo natildeo implica a negaccedilatildeo do mundo mas
uma retirada interna pois o licopolitano em contraposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grega claacutessica ndash e
aproximando-se mais da vertente oriental da sabedoria antiga especialmente da tradiccedilatildeo filosoacutefico-
religiosa indiana181 ndash afirma que a separaccedilatildeo do mundo sensiacutevel e a unificaccedilatildeo (ἕνωσις) ao Bem ao
Belo e agrave Verdade pode ser realizada jaacute nesta vida
Conveacutem analisar depois desta anaacutelise sucinta dos conceitos de ldquoprocessatildeordquo e ldquoretornordquo na
filosofia plotiniana os trecircs aspectos ou momentos de sua dialeacutetica ascendente que nada mais satildeo do
que caminhos de transcendecircncia Neste sentido as perspectivas dialeacutetica eacutetica e esteacutetica dirigem-se
igualmente ao mesmo ponto formando um todo integrado que encimado pela contemplaccedilatildeo
pavimenta o caminho de retorno ao Uno
180 Eneacuteada VI 9 3 181 O Neoplatonismo guarda inuacutemeras correlaccedilotildees ainda pouco exploradas com a filosofia indiana particularmente com a Escola Vedanta Advaita (natildeo-dual) mas tambeacutem com a Filosofia do Yoga como pode ser constatado na excelente siacutentese intitulada As Filosofias da Iacutendia do indoacutelogo Heinrich Zimmer (Satildeo Paulo Palas Athena 1986)
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3 A CONVERGEcircNCIA DIALEacuteTICA
Quem eacute capaz de ver o todo eacute filoacutesofo quem natildeo eacute capaz natildeo o eacute (Platatildeo)
A ausecircncia de atributos face agrave qual o proacuteprio termo ldquoUnordquo soa inadequado corrobora a
unidade da Primeira Hipoacutestase ao passo que prejudica toda a sua conceituaccedilatildeo Incondicionado e
portanto insuscetiacutevel de apropriaccedilatildeo linguiacutestica o Uno estaacute aleacutem da razatildeo discursiva e do
conhecimento noeacutetico Ao fracassarem todas as expressotildees que almejam uma definiccedilatildeo precisa
restaraacute a linguagem metafoacuterica e a expressatildeo tantas vezes repetida ao longo das Eneacuteadas tomada de
empreacutestimo de A Repuacuteblica referindo-se ao Uno como o ldquoaleacutem do Ser (ἐπέκεινα τῆς οὐσίας)rdquo182
Dada a insuficiecircncia das caracterizaccedilotildees positivas seraacute mais apropriada a abordagem
regressiva a partir dos seus efeitos183 pois o Uno184 natildeo eacute o Ser nem o Pensamento natildeo eacute a Ideia
nem o Intelecto mas deles eacute a origem natildeo eacute a Alma divina nem a razatildeo mas o fundamento uacuteltimo
de toda a racionalidade natildeo eacute nenhuma das coisas sensiacuteveis mas a fonte inesgotaacutevel da qual proveacutem
toda a criaccedilatildeo Natildeo obstante tais dificuldades a dialeacutetica ascendente eacute bastante pretensiosa seu
objetivo eacute chegar ldquoao Bem e ao Primeiro Princiacutepiordquo185
O ecircxito da ascensatildeo dialeacutetica no entanto somente seraacute possiacutevel quando o homem descobrir
em sua proacutepria natureza aquilo que se assemelha a cada uma das esferas inteligiacuteveis erguendo-se
internamente a todos esses niacuteveis Nessa perspectiva a convergecircncia dialeacutetica estaacute ligada agrave
experiecircncia186 ascensional desde a dimensatildeo sensiacutevel ateacute agrave inteligiacutevel no universo inteligiacutevel essa
expansatildeo ou aprofundamento evolui da racionalidade discursiva agrave intelecccedilatildeo intuitiva culminando
na via apofaacutetica ou negativa preconizada pelo ldquoafasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo187 que conduz agrave
unificaccedilatildeo (ἕνωσις) Em todos os niacuteveis sobressai a importacircncia do autoconhecimento pois o ser
humano eacute o microcosmo e traz em si todas as hierarquias divinas
182 Eneacuteada V 5 6 A Repuacuteblica 509 b 183 Cf Eneacuteada V 3 14 184 ldquoPlotinus was fully conscious of the inadequacy of the term lsquoOnersquo to express all he meant to convey by his description of this First Principle He denies passionately any intention to limit it to make any positive statement about it by using this namerdquo (ARMSTRONG 1967 p 27) 185 Eneacuteada I 3 1 186 ldquoKnowledge for Plotinus is always experience or rather it is an inner metamorphosis What matters is not that we know rationally that there are two levels of divine reality but that we internally raise ourselves up to these levels and feel them within us as two different tones of spiritual liferdquo (HADOT 1998 p 48) 187 Eneacuteada V 3 17
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A analogia da linha utilizada por Platatildeo em A Repuacuteblica188 eacute um excelente ponto de partida
para a dialeacutetica plotiniana pois tanto o fundador da Academia quanto o filoacutesofo de Licoacutepolis
propotildeem um refinamento epistemoloacutegico constante ateacute ao objetivo final dividindo a via ascendente
em duas etapas a dimensatildeo sensiacutevel e a inteligiacutevel na forma em que se encontra no tratado Sobre a
Dialeacutetica ldquoA primeira eacute a que parte das regiotildees inferiores e a segunda eacute para os que de certo modo
jaacute colocaram seus peacutes ali mas ainda devem trabalhar muito ateacute terem alcanccedilado o limite superior
desse mundo O fim da jornada se daacute quando atingem o cume do Inteligiacutevelrdquo189
Com efeito cada uma das quatro divisotildees da linha segmentada alude a determinado grau de
conhecimento a conjectura (εἰκασία) e a crenccedila (πίστις) que compotildeem a opiniatildeo (δόξα) a razatildeo
discursiva (διάνοια) e a razatildeo intuitiva (νόησις) que integram a ciecircncia (ἐπιστήμη) O licopolitano
associa os dois primeiros agrave sensaccedilatildeo (αἴσθησις) pois eles tecircm lugar na dimensatildeo sensiacutevel enquanto
os outros dois satildeo relacionados ao inteligiacutevel por estarem ligados respectivamente agraves atividades da
Alma divina (ψυχή) e do Intelecto (νοũς) Plotino acrescentaraacute ainda um niacutevel de conhecimento ao
ensinamento platocircnico o conhecimento absoluto a proacutepria ἕνωσις
Obviamente no sistema plotiniano o conhecimento que se daacute no acircmbito da realidade sensiacutevel
eacute bastante limitado pois estaacute associado agraves imagens externas e natildeo agraves coisas em si Por mais que os
objetos materiais em particular e conjuntamente tragam consigo os vestiacutegios (ἴχνοι) de uma
realidade mais significativa eles ainda satildeo vistos como ilusoacuterios e passageiros se comparados agraves
realidades inteligiacuteveis que representam Por isso Plotino natildeo se deteacutem nos objetos particulares mas
toda a sua filosofia mira o Absoluto190
Enganam-se portanto aqueles que pensam que as formas corpoacutereas sejam a realidade
uacuteltima191 ldquoEles agem como algueacutem sonhando que pensa existirem de fato as coisas que vecirc quando
elas satildeo apenas sonhosrdquo192 O sistema plotiniano estaacute estruturado em niacuteveis de realidade desde o
universo sensiacutevel ateacute a Suprema Realidade numa hierarquia em que ldquoa sensaccedilatildeo representa o niacutevel
mais baixo do conhecimento por registrar apenas os dados do exteriorrdquo193
188 A Repuacuteblica 509 d ndash 511 e 189 Eneacuteada I 3 1 190 ldquoIl particolare non ha alcun valore per Plotino anche quando ammira lrsquouniverso non si occupa delle cose della natura e riconduce sempre il particolare al generale Si puograve anche dire che questo sia il suo metodo () Plotino sostiene che tutta la dignitagrave di un essere consiste nel tendere a Diordquo (ARNOU 1997 ps 31 e 82) 191 ldquoLes reacutealiteacutes vraies ne sont pas des objets inertes de connaissance mais des attitudes spirituelles subjectivesrdquo (BREacuteHIER 1999 p 152) 192 Eneacuteada III 6 6 193 ULLMANN 2002 p 63
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Segundo Plotino ldquoaquilo que eacute conhecido por meio da percepccedilatildeo sensoacuteria eacute uma imagem das
coisas e a percepccedilatildeo sensoacuteria natildeo apreende as coisas mesmas que permanecem do lado de forardquo194
Sendo a sensaccedilatildeo (αἴσθησις) uma afecccedilatildeo corpoacuterea ela apenas transmite agrave mente do observador as
impressotildees causadas nos sentidos pelas formas externas dos objetos Essas impressotildees satildeo captadas
como percepccedilotildees sensoacuterias na alma Enquanto a sensaccedilatildeo eacute uma atividade relacionada ao corpo a
percepccedilatildeo estaacute associada ao inteligiacutevel De toda forma ambas tecircm origem no transitoacuterio mundo
material estando sujeitas a toda a sorte de ilusotildees Logo conclui o licopolitano ldquonatildeo existe verdade
nos sentidos apenas opiniatildeordquo195
Para afastar-se da vulnerabilidade associada ao conhecimento sensiacutevel mas sobretudo com
o intuito de avanccedilar na esfera inteligiacutevel sem se deter nos niacuteveis inferiores do conhecimento seraacute
necessaacuterio valer-se da dialeacutetica a ldquociecircncia que pode se pronunciar a respeito da verdade final da
natureza e da relaccedilatildeo de todas as coisasrdquo que se manifesta sobre ldquoo que eacute eterno e o que natildeo eacute
eterno natildeo como uma mera opiniatildeo mas como uma ciecircncia autecircnticardquo e assim ldquoalimentar a nossa
alma como diz Platatildeo lsquonas pradarias da Verdadersquordquo196
Deve-se investigar no entanto precisamente em que consiste a dialeacutetica plotiniana e em que
sentido ela pode contribuir ao caminho de retorno (ἐπιστροφή) Segundo Reale ela emprega o
mesmo meacutetodo utilizado na especulaccedilatildeo platocircnica e deve ser ldquoentendida no seu sentido originaacuterio
metafiacutesico e ontoloacutegico e natildeo no sentido loacutegico-metodoloacutegico aristoteacutelico nem evidentemente no
sentido estoicordquo197 Se por um lado o processo dialeacutetico permite a compreensatildeo da fugacidade do
universo sensiacutevel por outro conduz a alma agraves realidades superiores das quais proveacutem
Longe de ser apenas um procedimento cerebral ou um meacutetodo de pesquisa a dialeacutetica
plotiniana pretende alcanccedilar a perfeita imobilidade e a calma da contemplaccedilatildeo inteligiacutevel198 Eacute na
verdade uma via efetiva de acesso agraves hipoacutestases superiores pois somente com a ascensatildeo ao
Intelecto elimina-se a distacircncia entre sujeito e objeto chegando-se agrave esfera do conhecimento
autecircntico mais aleacutem cumpre-lhe remover um uacuteltimo obstaacuteculo pois a unificaccedilatildeo natildeo se conclui
enquanto houver qualquer dualidade
194 Eneacuteada V 5 1 195 Eneacuteada V 5 1 196 Eneacuteada I 3 4 Cf Fedro 248 b 197 REALE 2001 v IV p 428 198 ldquoPlotino sottolinea come il compimento del processo diairetico consista non solo nel raggiungimento del lsquoprincipiorsquo ma soprattutto di uno stato di perfetta quiete e tranquillitagrave nellrsquointelligibilerdquo (VERRA 1993 p 65)
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A esse respeito vale observar que Plotino alerta quanto agrave insuficiecircncia do raciociacutenio
discursivo referindo-se agravequele que ascendeu agrave contemplaccedilatildeo noeacutetica como algueacutem que ldquotendo
chegado agrave unidade e agrave contemplaccedilatildeo natildeo mais especula abandona o que eacute chamado de atividade
loacutegica que trata de proposiccedilotildees e silogismos como pode abandonar a arte da escritardquo pois ldquoa
dialeacutetica considera algumas mateacuterias da loacutegica como preliminares necessaacuterias mas se coloca como
juiz delas como de tudo o mais e considera parte dela uacutetil e parte supeacuterflua de modo que as deixa agrave
disciplina a que pertencemrdquo199
A criacutetica plotiniana no tratado Sobre a Dialeacutetica dirige-se justamente agraves loacutegicas aristoteacutelica e
estoica200 pois as proposiccedilotildees e os silogismos que orientam o raciociacutenio discursivo tecircm uma
abrangecircncia restrita ao acircmbito da razatildeo formal e satildeo simplesmente uma introduccedilatildeo agrave dialeacutetica
platocircnica agrave qual se filia o licopolitano que almeja superar o mero conhecimento inferencial e
atingir as essecircncias arquetiacutepicas das coisas Para o filoacutesofo de Licoacutepolis ldquoa dialeacutetica eacute a parte mais
nobre da filosofia Natildeo se deve pensar que ela seja apenas uma ferramenta empregada pelo filoacutesofo
que seja apenas um conjunto de teorias e regras Ela diz respeito a realidades e sua mateacuteria satildeo os
seresrdquo201
Em linguagem contemporacircnea poder-se-ia propor que enquanto a loacutegica estaacute associada ao
contexto da justificaccedilatildeo valendo-se de proposiccedilotildees para reconstruir racionalmente o conhecimento
estando assim sujeita ao fluxo do tempo que transcorre durante o processo de anaacutelise criacutetica
comparaccedilatildeo de premissas e estruturaccedilatildeo loacutegica a dialeacutetica plotiniana em seus niacuteveis mais
elevados estaria ligada ao contexto da descoberta conhecimento suprarracional que ocorre por meio
da intuiccedilatildeo direta a qual prescinde da estrutura normativa e formalista do primeiro caso ou apenas o
toma como ponto de partida
Em siacutentese como ensina Reale a dialeacutetica plotiniana ldquonatildeo consiste como para Aristoacuteteles e
para a escola estoica na determinaccedilatildeo de meros procedimentos racionais ou do modo correto de
proceder nas perguntas e respostas mas num processo de pensamento que como em Platatildeo capta
imediatamente o ser e a realidaderdquo202 Corroborando essa interpretaccedilatildeo o licopolitano chega ao
extremo de afirmar que ldquoa teoria das proposiccedilotildees natildeo passa de um amontoado de palavras mas a
199 Eneacuteada I 3 4 200 ldquoSempre nel trattato sulla dialettica Plotino si preoccupa infatti di distinguere nettamente la dialettica da ogni forma di processo logico in polemica contro le concezioni dominanti nella filosofia precedenterdquo (VERRA 1993 p 66) 201 Eneacuteada I 3 5 202 REALE 2001 v IV p 430
40
dialeacutetica conhece a verdade e nesse conhecimento conhece o que as Escolas chamam de
proposiccedilotildeesrdquo203
Do mesmo modo que a importacircncia da loacutegica eacute relativizada quando comparada agrave apreensatildeo
imediata dos objetos do pensamento tambeacutem a escrita eacute vista com reservas pois encontramos em
Plotino certo ceticismo em relaccedilatildeo agraves palavras ou mais propriamente a convicccedilatildeo de que todo o
condicionamento representado por nomes e formas deve ser transcendido no esforccedilo ascensional
Aleacutem disso a palavra escrita e os discursos proferidos muitas vezes satildeo apenas a repeticcedilatildeo de um
conhecimento de segunda matildeo enquanto a ascensatildeo inteligiacutevel eacute uma experiecircncia pessoal e
intransferiacutevel
Note-se uma vez mais a influecircncia platocircnica da criacutetica agrave escrita pois eacute dito no Fedro que o
saacutebio semearaacute nos jardins literaacuterios apenas por brincadeira204 Todavia como relativizar a
importacircncia da escrita se tanto Platatildeo quanto Plotino muito escreveram legando uma extensa obra
para a posteridade A resposta talvez esteja na Carta VII na qual Platatildeo recusa-se a escrever sobre
os primeiros princiacutepios afirmando que sobre eles natildeo existiam e jamais existiriam quaisquer escritos
seus pois assuntos tatildeo elevados dependeriam de uma compreensatildeo de outra natureza205 De fato
como reitera o fundador da Academia as definiccedilotildees que se compotildeem de nomes e verbos natildeo satildeo
bastante seguras206
Ademais como registra Dioacutegenes Laeacutercio o apreccedilo pela tradiccedilatildeo oral e pela vida
contemplativa remonta agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica207 que juntamente com o platonismo exerce forte
influecircncia na filosofia plotiniana Segundo Porfiacuterio o licopolitano tambeacutem privilegiava o diaacutelogo
vivo e a dialeacutetica da contemplaccedilatildeo elaborando mentalmente todos os seus tratados antes de vertecirc-los
em palavras escritas208 Conveacutem lembrar ainda que Plotino comeccedilou a escrever com idade
avanccedilada209 preservando por longo tempo seu voto de silecircncio sobre o ensinamento de seu mestre
Amocircnio Sacas ele proacuteprio um adepto do ensinamento oral210
203 Eneacuteada I 3 5 204 Cf Fedro 276 d 205 Cf Carta VII 341 c-d 206 Cf Carta VII 343 b 207 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VIII 1 7 e 15 208 Porfiacuterio Vida de Plotino 8 e 13 209 Segundo Porfiacuterio Plotino dedicou-se agrave filosofia a partir dos 28 anos aos 40 estabeleceu sua Escola em Roma sem nada escrever no primeiro dececircnio de suas aulas (Porfiacuterio Vida de Plotino 3) 210 Como ensina Reale ldquoAmocircnio natildeo quis escrever nada reservando para a palavra viva e para o viacutenculo espiritual que nasce do consenso iacutentimo entre mestre e disciacutepulo a comunicaccedilatildeo de sua mensagemrdquo (REALE 2001 v IV p 405)
41
Para a compreensatildeo dessas ressalvas quanto ao papel do raciociacutenio discursivo e da escrita
deve-se relembrar o esquema de processotildees do sistema plotiniano a Alma divina acircmbito da
racionalidade proveacutem do Intelecto esfera do conhecimento intuitivo e portanto eacute inferior a
ele enquanto o proacuteprio Intelecto representa uma perda se comparado ao esplendor do Uno uacutenica
hipoacutestase verdadeiramente autocircnoma
O vieacutes gnosioloacutegico do esquema processional sobressai nesta passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Iniciais ldquoComo a existecircncia da Alma procede do Intelecto ela eacute intelectiva mas
sua intelecccedilatildeo tem o modo do raciociacutenio discursivo Para ser perfeita ela deve olhar para o Intelecto
que deve ser considerado como um pai que conduz o filho agrave maturidade aquele filho que gerou
imperfeito em comparaccedilatildeo a si mesmordquo211
Poreacutem mesmo que o Intelecto esteja fora do alcance da linguagem e da razatildeo linear que
satildeo recursos insuficientes para a consecuccedilatildeo da via ascensional estas exercem um importante
papel preliminar pois conduzem ao primeiro degrau inteligiacutevel212 Para transpocirc-lo no entanto seraacute
necessaacuterio atualizar as capacidades superiores da alma pois ldquoa compreensatildeo do Uno natildeo pode se dar
nem pelo raciociacutenio nem pela percepccedilatildeo intelectual como ocorre com outros objetos de
pensamento mas por uma presenccedila que eacute superior a qualquer raciociacuteniordquo213 Essa presenccedila diz
respeito agrave essecircncia da proacutepria alma que natildeo se encontra no campo da multiplicidade mas no elo
comum que une todas as coisas ao Princiacutepio a proacutepria unidade
Por certo Plotino subscreveria o ensinamento platocircnico de que ldquotudo o que eacute objeto de
nossos discursos por forccedila teraacute de ser imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeordquo214 pois para ele o verdadeiro
conhecimento se daacute na dimensatildeo atemporal do Intelecto ldquonatildeo deve ser conjectural ambiacuteguo ou
proveniente de terceiros Tampouco dependeraacute de demonstraccedilotildeesrdquo215 vale dizer natildeo seraacute mera
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo mas o fruto de uma ascensatildeo real ao Intelecto quando entatildeo natildeo haveraacute
espaccedilo para a duacutevida pois nesse niacutevel o conhecimento natildeo admite intermediaacuterios eacute imediato e
autoevidente
211 Eneacuteada V 1 3 212 ldquoPlotinus never seems very enthusiastic about discursive reason (diaacutenoia) though he admits its necessity and place in the hierarchy of mental activitiesrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 90) 213 Eneacuteada VI 9 4 214 Criacutetias 107 b 215 Eneacuteada V 5 1
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Como eacute enfatizado no tratado Sobre a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno a autoevidecircncia
do conhecimento no acircmbito da Segunda Hipoacutestase decorre da unidade que ali se estabelece entre o
sujeito cognoscente e os objetos de cogniccedilatildeo pois ldquose forem dois o cognoscente seraacute uma coisa e o
conhecido outra eacute como se eles estivessem justapostos sem que a alma tivesse conciliado esse
parrdquo216 As Ideias por conseguinte natildeo satildeo percebidas como algo alheio ao sujeito que as conhece
mas como a vida pulsante da proacutepria inteligecircncia divina217 Ademais dada a muacutetua implicaccedilatildeo e o
entrelaccedilamento dinacircmico das Ideias conhecer uma delas significa conhecer todas as outras portanto
na esfera do Intelecto o autoconhecimento eacute total
Esse eacute um traccedilo marcante da Segunda Hipoacutestase os objetos do pensamento natildeo estatildeo fora do
Intelecto pois se o Intelecto os contemplasse como algo externo a si natildeo haveria certeza a respeito
da verdade que contempla e poderia enganar-se sobre tudo o mais218 Essa posiccedilatildeo afasta o
licopolitano ligeiramente das reverenciadas doutrinas platocircnicas das quais pretende ser mero
exegeta porque reformula a doutrina das Ideias conferindo-lhe uma nova significaccedilatildeo face agrave
coincidecircncia entre pensante e pensado isto eacute uma verdadeira unificaccedilatildeo entre o Ser e a Ideia
enquanto em Platatildeo essas satildeo realidades independentes
De fato em diversos diaacutelogos219 Platatildeo alude ao fato de que a alma ldquoviurdquo anteriormente as
realidades superiores e agora por meio da reminiscecircncia pode ter acesso cognoscitivo ao
inteligiacutevel Ocorre que para Plotino a alma humana nunca deixou nem mesmo temporariamente a
esfera inteligiacutevel apenas se vale de um corpo fiacutesico durante o periacuteodo de uma vida em sua relaccedilatildeo
com a realidade material Logo internamente ela traz em si desde sempre todo o universo
inteligiacutevel sendo o microcosmo do esquema processional O conhecimento de que a alma se
recorda portanto natildeo eacute algo que foi visto como uma coisa exterior a si mas sua proacutepria vida no
acircmbito do Intelecto divino
Nesse aspecto o Intelecto plotiniano estaacute mais proacuteximo do movente natildeo-movido aristoteacutelico
pois este eacute pensamento de pensamento (νόησις νοήσεως) ou seja o pensamento que tem a si mesmo
como objeto Conforme expresso na Metafiacutesica ldquoo pensamento que assim eacute em maacuteximo grau tem
por objeto o que eacute excelente em maacuteximo grau A inteligecircncia pensa a si mesma captando-se como
216 Eneacuteada III 8 6 217 ldquoSo according to Plotinus there exists a type of cognition that is identical with its object or in other words cognition in which the activity constituting the object of cognition and the one constituting the subject are one and the same Moreover the objects known in this cognition are what Plotinus considers the real beingsrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 235) 218 Cf Eneacuteada V 5 1 219 Feacutedon 74 a ndash 75 e Fedro 249 c - d Mecircnon 80 c ndash 81 e
43
inteligiacutevel de fato ela se torna inteligiacutevel intuindo e pensando a si de modo a coincidirem
inteligecircncia e inteligiacutevelrdquo220 Armstrong ao reconhecer a profunda influecircncia aristoteacutelica sobre a
concepccedilatildeo da Segunda Hipoacutestase plotiniana diz que nessa regiatildeo de perfeito conhecimento a
mente torna-se aquilo em que ela pensa221
Aleacutem da autorreflexatildeo haacute outra importante semelhanccedila entre a Segunda Hipoacutestese plotiniana
e o Deus aristoteacutelico a atividade de ambos natildeo se dirige ao que lhes eacute inferior mas opera no niacutevel
da sua proacutepria realidade ontoloacutegica Segundo Ullmann para Plotino ldquoa verdade realiacutessima eacute o Νοῦς
Natildeo lhe eacute necessaacuterio andar por aiacute (perieacuterchesthai) agrave procura da verdade pois a verdade estaacute nele (hecirc
alecirctheia en autocirc)rdquo222 Todavia no caso do licopolitano a verdade que o Intelecto traz em si tem
origem no que lhe eacute superior no proacuteprio Uno ao qual se volta por meio da contemplaccedilatildeo em sua
apiraccedilatildeo agrave Suprema Realidade enquanto a dualidade essecircncia-inteligecircncia do movente natildeo-movido
constitui a realidade uacuteltima para o estagirita
No sistema plotiniano tudo o que proveacutem dos princiacutepios superiores aspira a esse
conhecimento autecircntico que a unificaccedilatildeo com a origem proporciona seja a natureza como um todo
seja a proacutepria alma individual conforme explicitado na seguinte passagem ldquoAo elevar-se a
contemplaccedilatildeo da natureza agrave alma e desta ao Intelecto as contemplaccedilotildees se tornam sempre mais
iacutentimas e unificadas aos contemplantes e na alma saacutebia os objetos conhecidos caminham para a
identificaccedilatildeo com o sujeito que conhece pois aspiram ao intelecto eacute evidente que no Intelecto
ambos satildeo umrdquo223 Em siacutentese como leciona Reale ldquotoda a realidade portanto eacute lsquocontemplaccedilatildeorsquo e
lsquosilecircnciorsquo Nesse contexto o lsquoretornorsquo ao Uno por meio do ecircxtase natildeo eacute outra coisa senatildeo o retorno
ao Uno por meio da contemplaccedilatildeordquo224
Logo quando Plotino questiona se algueacutem poderia afirmar que o Intelecto o verdadeiro e
real Intelecto incidiria alguma vez no erro ou acreditaria no irreal sua resposta negativa natildeo deixa
duacutevidas ldquopois como poderia ainda ser o Intelecto quando natildeo estivesse sendo inteligente O
Intelecto deve entatildeo sempre saber e nunca esquecer algo e o seu conhecimento natildeo deveraacute ser
conjectural ambiacuteguo ou o de algueacutem que ouviu de terceiros o que saberdquo225 No entanto como
220 Metafiacutesica Λ 7 1072 b apud REALE 2002 v II p 368 221 ldquoIt is the region of perfect knowledge in which according to the Aristotelian psychology which deeply affected Plotinus the mind becomes what it thinksrdquo (ARMSTRONG 1967 p 2) 222 ULLMANN 2002 p 74 223 Eneacuteada III 8 8 224 REALE 2001 v IV p 532-3 225 Eneacuteada V 5 1
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observa Ullmann ldquoa verdade no Νοῦς tem sua origem em uacuteltima instacircncia no Uno Por isso o
Νοῦς natildeo eacute o objetivo final da aspiraccedilatildeo humanardquo226
Se a Segunda Hipoacutestase pode ser associada a um todo orgacircnico que congrega tanto as Ideias
quanto o sujeito que as contempla como idecircnticas a si entatildeo como jaacute foi observado nessa esfera
impera uma verdadeira unidade na multiplicidade Eacute preciso entretanto avanccedilar no reino inteligiacutevel
para descobrir aquilo que eacute absolutamente simples como sugere a seguinte passagem ldquoSe entatildeo o
Intelecto eacute o Intelecto porque eacute muacuteltiplo e pensar a si proacuteprio mesmo que isto derive do Intelecto eacute
um tipo de acontecimento interno que o torna muitos aquilo que eacute absolutamente simples e primeiro
de todas as coisas deve estar aleacutem do Intelectordquo227 De fato no tratado Sobre o Bem ou o Uno eacute dito
que o Uno ldquonatildeo pensa porque nele natildeo haacute alteridade e natildeo se move pois eacute anterior ao movimento e
ao pensamentordquo228
Ora uma vez que o Intelecto eacute um Uno-muacuteltiplo (ἓν πολλά) por mais que tenha sido
considerado como no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel a morada da sabedoria e da beleza divinas
na qual as Ideias satildeo realidades vivas e radiantes229 ainda assim o licopolitano considera que o
pensamento implica imperfeiccedilatildeo em decorrecircncia da multiplicidade das Ideias e da dualidade entre
conhecedor e conhecido230 Visto de outro acircngulo como ldquoo Uno eacute todas as coisas e natildeo eacute nenhuma
delas em particular (τὸ ἓν πάντα καὶ οὐδὲ ἕν)rdquo231 nele natildeo se admite qualquer alteridade Logo fica
descartada a sua identificaccedilatildeo com o reino da multiplicidade seja com o Intelecto seja com a Alma
divina que eacute um Uno-e-muacuteltiplo (ἓν καὶ πολλά)
Eis um ponto decisivo na dialeacutetica plotiniana por meio do incremento do saber no campo do
conhecimento positivo a alma jamais chegaraacute agrave apreensatildeo da Primeira Hipoacutestase devendo
portanto valer-se de um recurso de outra natureza qual seja um tipo negativo de dialeacutetica232 pois
em relaccedilatildeo ao Uno ldquonatildeo haacute discurso nem percepccedilatildeo nem conhecimento porque eacute impossiacutevel
predicar algo dele como presente nelerdquo233 Com Plotino chega-se agrave desconcertante conclusatildeo de que
o pensamento que transita na esfera condicionada dos nomes e das formas natildeo eacute capaz de revelar
226 ULLMANN 2002 p 66 227 Eneacuteada V 3 11 228 Eneacuteada VI 9 6 229 Cf Eneacuteada V 8 3-6 230 ldquoPlotinus insists that the One does not think because thought for him always implies a certain duality of thinking and its object and it is this that he is concerned to exclude in speaking of the Onerdquo (Armstrong Prefaacutecio agraves Eneacuteadas p xvi) 231 Eneacuteada V 2 1 232 A via apofaacutetica ou a teologia negativa que seraacute posteriormente desenvolvida por Proclo Dioniacutesio Areopagita Nicolau de Cusa e Satildeo Joatildeo da Cruz dentre outros 233 Eneacuteada VI 7 41
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aquilo que eacute sem forma e sem substacircncia Sem atributos aleacutem da linguagem e do pensamento uma
vez que ldquonada pode ser comparado a elerdquo234 o Uno eacute inefaacutevel
Com efeito a natureza afirmativa do conhecimento tanto aquele inerente agrave experiecircncia
sensoacuteria quanto o que diz respeito agrave razatildeo discursiva tem seu limite maacuteximo na intuiccedilatildeo intelectiva
esfera suprarracional do Cosmo Noeacutetico onde o Ser volta-se agraves Ideias contemplando-as como a si
mesmo Quanto ao Uno segundo Plotino o seu valor natildeo decorre do conhecimento positivo mas de
sua proacutepria unidade cuja perfeiccedilatildeo prescinde do pensamento235 Desse modo como nem o
raciociacutenio discursivo nem a intuiccedilatildeo intelectiva alcanccedilam a Primeira Hipoacutestase natildeo seraacute possiacutevel
dizer o que ela eacute mas apenas o que natildeo eacute236
Portanto mesmo que a integraccedilatildeo entre sujeito e objeto de pensamento no acircmbito da
Segunda Hipoacutestase represente o aacutepice do conhecimento afirmativo o que torna possiacutevel estender-lhe
a afirmaccedilatildeo relativa agraves Ideias platocircnicas que como ensina Cirne-Lima ldquodizem e contecircm a
Verdaderdquo237 eacute forccediloso reconhecer que o Princiacutepio de todas as coisas natildeo se assemelha agravequilo a que
daacute origem pois estaacute aleacutem da substacircncia e da essecircncia e eacute anterior a tudo (πρὸ πάντων)
Incondicionado absolutamente simples e causa de si mesmo o Uno transcende qualquer
determinaccedilatildeo positiva pois o conhecimento o pensamento e a autopercepccedilatildeo satildeo nada quando
comparados agrave autossuficiecircncia do Primeiro Princiacutepio238
Sobre a impossibilidade de uma apreensatildeo exata acerca da Primeira Hipoacutestase o proacuteprio
licopolitano adverte que natildeo se deve afirmar que o Uno ldquoeacute lsquoissorsquo ou lsquoaquilorsquo pois tais definiccedilotildees natildeo
passam de nossas proacuteprias percepccedilotildees e estados que tentamos exprimir noacutes que circulamos
exteriormente ao seu redor agraves vezes nos aproximando agraves vezes nos afastando dele devido ao
enigma no qual estaacute envolvidordquo239 O problema refere-se agraves dificuldades de ascensatildeo agrave unidade a
partir da multiplicidade pois apesar de todas as coisas terem a mesma origem somente no proacuteprio
Uno verifica-se a coincidentia oppositorum240
234 Eneacuteada VI 7 32 235 Cf Eneacuteada VI 7 37 236 Cf Eneacuteada V 3 14 237 CIRNE-LIMA 2002 p 124 238 Cf Eneacuteada VI 7 41 239 Eneacuteada VI 9 3 240 No sentido conferido por Nicolau de Cusa em A Douta Ignoracircncia
46
Sendo autossuficiente e possuidor de uma magnitude em relaccedilatildeo agrave qual nada poderaacute rivalizar
em poder241 o Uno natildeo se inclina para qualquer coisa aleacutem de si nem mesmo agrave autorreflexatildeo pois
isso implicaria limitaccedilatildeo e dualidade mas permanece eternamente em sua atividade voltada a si
proacuteprio e as duas atividade e autocontemplaccedilatildeo satildeo uma coisa soacute e o proacuteprio Uno242 Pois bem
como a assemelhaccedilatildeo em cada niacutevel inteligiacutevel eacute o criteacuterio do conhecimento presente ao longo das
Eneacuteadas243 restaraacute apenas uma alternativa para a ascensatildeo agrave Suprema Realidade do sistema
plotiniano a maacutexima simplificaccedilatildeo interior que culmina com a ἕνωσις244 Como o proacuteprio termo
sugere a ldquounificaccedilatildeordquo pressupotildee uma experiecircncia natildeo-dual na qual foi restabelecida a identidade
com o Princiacutepio
Nesse sentido eacute pertinente a observaccedilatildeo de Marcelo Aquino de que Plotino rompe com a
ontologia claacutessica que via o universo como um todo ordenado da substacircncia inovando ao propor
a autocausaccedilatildeo e a absoluta transcendecircncia do Primeiro Princiacutepio ldquoA metafiacutesica plotiniana daacute iniacutecio
a um novo tipo de questionamento sobre o ser ateacute entatildeo desconhecido em toda a histoacuteria da filosofia
grega e que pode ser entendida como uma ruptura definitiva com a ontologia grega claacutessicardquo245 De
fato a henologia constituiu uma inovaccedilatildeo tatildeo significativa em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica grega que
Breacutehier chegou a buscar na especulaccedilatildeo filosoacutefica indiana particularmente na escola Vedanta as
possiacuteveis fontes da filosofia plotiniana246
Ao sentenciar que o Uno eacute criador de si mesmo (τὸ ἓν ἐποίησε σrsquoαὐτό) e dessa maneira
eliminar qualquer dualidade no acircmbito da Primeira Hipoacutestase Plotino inviabiliza os meios
tradicionais de investigaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave Causa Primeira pois qualquer recurso porventura utilizado
com tal intuito seria necessariamente posterior ao Uno e assim diferente e inferior a ele Somente
a experiecircncia direta e indelegaacutevel da simplificaccedilatildeo absoluta conduziraacute entatildeo agrave identificaccedilatildeo ao
Uno Daiacute a observaccedilatildeo de que o sistema plotiniano sugere um deslocamento das perspectivas
241 Cf Eneacuteada VI 7 32 242 Cf Eneacuteada VI 8 16 243 Cf Eneacuteada I 8 1 244 ldquoA culminacircncia da dialeacutetica plotiniana eacute a uniatildeo miacutestica com o Uno () Pela heacutenocircsis eacute superada a distacircncia entre a alma pura e a divindade e alcanccedila-se a perfeita unificaccedilatildeo com Deus jaacute nesta vidardquo (ULLMANN 2002 p 1712) 245 AQUINO Marcelo F A questatildeo filosoacutefica da autocausaccedilatildeo na Ciecircncia Loacutegica In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz 2003 p 90-1 246 ldquoJe suis ainsi conduit agrave rechercher la source de la philosophie de Plotin plus loin que lrsquoOrient proche de la Gregravece jusque dans la speacuteculation religieuse de lrsquoInde qui agrave lrsquoeacutepoque de Plotin eacutetait deacutejagrave fixeacutee depuis des siegravecles dans les Upanishads et avait gardeacute toute sa vitaliteacuterdquo (BREacuteHIER 1999 p 118) Satildeo notaacuteveis os paralelos entre o neoplatonismo e a Vedanta Advaita (natildeo-dual) como pode ser constatado por exemplo nos excelentes trabalhos de J F Staal Advaita and Neoplatonism ndash A Critical Study in Comparative Philosophy e ainda no capiacutetulo ldquoNeoplatonism and the Upanishadic-Vedantic Traditionrdquo do livro The Shape of Ancient Thought de Thomas Mcevilley
47
dialeacutetico-filosoacuteficas para as condiccedilotildees psicoloacutegicas do saber isto eacute que o pensamento do
licopolitano converge para uma culminacircncia miacutestico-religiosa247
Essa ruptura conduz na linguagem metafoacuterica do licopolitano a um oceano sem praias na
medida em que a alma natildeo encontra qualquer ponto de apoio para esse derradeiro mergulho no
desconhecido em relaccedilatildeo ao qual qualquer afirmaccedilatildeo soaraacute falsa Esse aspecto eacute mencionado por
Plotino no tratado Sobre o Bem ou o Uno onde ele reconhece que jaacute natildeo eacute faacutecil manifestar-se em
relaccedilatildeo ao Ser e agraves Ideias poreacutem mais difiacutecil ainda seraacute pronunciar-se em relaccedilatildeo ao Princiacutepio de
todas as coisas pois ldquona medida em que a alma avanccedila em direccedilatildeo ao sem forma (ἀνείδεον) sendo
entatildeo totalmente incapaz de apreendecirc-lo por ele natildeo ter limite algum nem determinaccedilatildeo alguma ela
escorrega e teme natildeo apreender absolutamente nadardquo248
Restaraacute entatildeo como jaacute foi observado a aproximaccedilatildeo pela via apofaacutetica ou negativa que se
tornaria fundamental para a filosofia medieval pois se a impossibilidade de uma definiccedilatildeo
positiva eacute sabida a priori com a aproximaccedilatildeo negativa segue-se a prescriccedilatildeo do proacuteprio Plotino
uma vez que o ldquoafasta-te de tudordquo elevado em grau maacuteximo sugere o desapego natildeo apenas em
relaccedilatildeo a coisas mundanas ou ao proacuteprio corpo material mas tambeacutem quanto agraves proacuteprias sensaccedilotildees e
pensamentos e ateacute mesmo agrave noccedilatildeo de um sujeito conhecedor
Esse parece ser o caminho que o licopolitano percorre ao afirmar que do Uno ldquonatildeo se pode
dizer nem que ele eacute alguma coisa nem que eacute qualificado ou quantificado nem que eacute o Intelecto ou a
Alma Ele natildeo eacute movido mas tampouco estaacute em repouso natildeo estaacute em lugar algum nem no
tempordquo249 Ora se nada pode ser afirmado em relaccedilatildeo ao Uno surge outra dificuldade no caminho
ascensional posto que seraacute necessaacuterio renunciar ao conhecido em favor daquilo que eacute em princiacutepio
o desconhecido250
Poreacutem eacute preciso lembrar que o Uno natildeo eacute totalmente estranho ao homem visto que constitui
seu fundamento uacuteltimo e como observou Breacutehier somente ele ldquonos revela a noacutes mesmosrdquo251
Portanto aplicando-se agrave Primeira Hipoacutestase o ceticismo demonstrado no Menon quanto agrave 247 ldquoIn tal modo il discorso sembra perograve esser scivolato impercettibilmente dal piano del rapporto tra dialettica e filosofia a quello delle semplici condizioni psicologiche del sapere dellrsquoinadeguatezza della discorsivitagrave e quindi del linguaggio in cui essa vive () Prevale cioegrave lrsquoaspetto etico-catartico della dialettica e la filosofia assume lrsquoaspetto di un itinerario interiore verso una forma di sapere piugrave mistico-religioso che filosoficordquo (VERRA 1993 p 778) 248 Eneacuteada VI 9 3 249 Eneacuteada VI 9 3 250 GERSON 1998 p 191 251 ldquoLoin de pouvoir ecirctre consideacutereacute comme une chose eacutetrangegravere agrave nous crsquoest donc au contraire lui seul qui nous reacutevegravele agrave nous-mecircmes Il faut avant tout cesser de juxtaposer lrsquoUn et les choses comme deux reacutealiteacutes drsquoordre diffeacuterentrdquo (BREacuteHIER 1999 p 176)
48
impossibilidade de o homem procurar tanto o que jaacute conhece quanto o que ainda natildeo conhece ldquopois
nem procuraria aquilo precisamente que conhece ndash pois conhece e natildeo eacute de modo algum preciso
para tal homem a procura ndash nem o que natildeo conhece ndash pois nem sequer sabe o que deve procurarrdquo252
Plotino responderia de pronto a Suprema Realidade jaacute estaacute em cada indiviacuteduo carece apenas de
atualizaccedilatildeo
Sendo por um lado aquilo que transcende o Ser e as Ideias e por outro a vida interna
comum a todas as coisas o Uno ldquosoacute estaacute presente para os que satildeo capazes e estatildeo preparados para
recebecirc-lo de modo a poderem coincidir com ele a poderem estar em contato com ele a poderem
tocaacute-lo graccedilas agrave sua semelhanccedila isto eacute agravequela potecircncia que tem em si que tem parentesco com ele
posto que proveacutem delerdquo253 Se o Uno eacute a δύναμις de toda a criaccedilatildeo tudo carrega consigo a marca
dessa divina presenccedila Poreacutem como houve um afastamento da origem eacute necessaacuterio empreender o
caminho inverso recolhendo-se da multiplicidade agrave unidade254
Ora para Plotino o autoconhecimento tambeacutem eacute o conhecimento de todos os niacuteveis da
realidade eacute um movimento desde o universo material ateacute ao cume do inteligiacutevel pois o ser humano
em que pese o seu eventual consoacutercio com a mateacuteria traz em si todas as hierarquias divinas255
Assim como o conhecimento que se inicia com o exerciacutecio dos sentidos e com o reconhecimento das
formas corpoacutereas eacute o niacutevel mais baixo do conhecimento ou apenas seu ponto de partida o
conhecimento mais profundo como enfatiza Breacutehier exige um mergulho no interior de si mesmo
uma gradual interiorizaccedilatildeo256
A ausecircncia de identificaccedilatildeo com a proacutepria forma corpoacuterea com as sensaccedilotildees e com a razatildeo
discursiva levaraacute Plotino como observou Hadot a uma conclusatildeo caracteriacutestica da tradiccedilatildeo
platocircnica a essecircncia do homem natildeo eacute deste mundo257 Na medida em que reconhece esse fato e
progride na esfera inteligiacutevel o homem poderaacute dar-se conta do quanto fora estranho a si mesmo e
assim desvelar o universo inteligiacutevel que traz em si Natildeo se trata aqui de construir algo novo mas
252 Menon 81 e 253 Eneacuteada VI 9 4 254 Cf Eneacuteada VI 9 3 255 ldquoEverything is within us and we are within all things Our lsquoselfrsquo extends from God to matter since we are up above at the same time as we are down here on earthrdquo (HADOT 1998 p 27) 256 ldquoLrsquoIntelligence pas plus que lrsquoacircme ne sont donc des choses ou des objets exteacuterieurs Elles sont les eacutetapes drsquoune vie qui devient de plus en plus inteacuterieure agrave elle-mecircme de plus en plus autonome de plus en plus librerdquo (BREacuteHIER 1999 p 174) Essa concepccedilatildeo exerceria um importante papel na filosofia cristatilde a partir de Santo Agostinho que propotildee em De Vera Religione ldquoNoli foras ire in te ipsum redi in interiore hominis habitat veritasrdquo 257 ldquoLike the Gnostic no doubt Plotinus felt at the very moment when he was inside his body that he was still identical with what he was before he entered the body His self ndash his true self ndash was not of this worldrdquo (HADOT 1998 p 25)
49
de descerrar todos os veacuteus que encobrem o homem interno (ὀ ἔνδον ἄνϑρωπος) desde sempre um
habitante do universo inteligiacutevel258
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacutestases Iniciais Plotino aborda a situaccedilatildeo da alma que apesar
de pertencer ao mundo inteligiacutevel em decorrecircncia da vontade proacutepria (τόλμα) esqueceu
momentaneamente sua origem divina ignorando tanto a si mesma quanto a nobreza de sua
ascendecircncia ldquoComo uma crianccedila que eacute retirada de casa quando ainda muito pequena e permanece
longe por muitos anos natildeo saberaacute quem satildeo seus pais nem que ela mesma eacute assim tambeacutem as
almas natildeo mais vendo seu Pai nem a si mesmas caiacuteram na autodepreciaccedilatildeordquo259 Deve entatildeo
voltar-se para as coisas superiores recuperando sua proacutepria identidade
Como observa Reale ldquodespojar-se de tudo significa o retorno da alma a si mesma e o
encontrar o viacutenculo metafiacutesico que a une natildeo somente ao Ser e ao Espiacuterito (ou seja agrave Segunda
Hipoacutestase) mas ao proacuteprio Uno (ou seja agrave Primeira Hipoacutestase)rdquo260 Esse despojamento absoluto
que agrave primeira vista poderia suscitar o total aniquilamento da individualidade na verdade aponta
para a reunificaccedilatildeo com o Supremo ldquoRejeitando tudo aumentaraacutes a ti mesmo e a partir de tal
rejeiccedilatildeo o Todo se faraacute presenterdquo261 Entatildeo natildeo haveraacute mais distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto de
contemplaccedilatildeo tampouco a noccedilatildeo de um ldquoeurdquo que contempla mas apenas a unidade
Na ceacutelebre passagem do tratado Sobre a descida da alma nos corpos em que Plotino narra
sua proacutepria experiecircncia ascensional vislumbra-se a um tempo o fundamento e o norte de toda a sua
filosofia ldquoMuitas vezes ocorreu-me de ser retirado de meu corpo e conduzido a mim mesmo ser
retirado das coisas externas e introduzido em mim mesmordquo e entatildeo como culminacircncia dessa
maacutexima interiorizaccedilatildeo ldquover uma Beleza maravilhosa tornando-se ainda maior a certeza de que
pertenccedilo agrave ordem superior dos seres por ter realizado em ato a mais nobre forma de vida ter-me
identificado com a divindade ter-me estabelecido nela ter vivido o seu ato e me situado acima de
tudo quanto eacute inteligiacutevel exceto o Supremordquo262
Como ensina Ullmann ldquoJaacute que o Uno eacute transcendente e ao mesmo tempo imanente a tudo
o que vale dizer que Plotino eacute panenteiacutesta a experiecircncia estaacutetica natildeo pode ser dita totalmente
nova mas haacute que ser considerada como manifestaccedilatildeo inesperada de quem jaacute estava presente (= o
258 Cf Eneacuteada V 2 1 ldquoThe individual human psycheacute at its highest is an inhabitant of the world of Νοῦς and thinks intuitively not discursivelyrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 89) 259 Eneacuteada V 1 1 260 REALE 2001 v IV p 520 261 Eneacuteada VI 5 12 262 Eneacuteada IV 8 1
50
Uno) dada sua onipresenccedilardquo263 A alusatildeo eacute ao reencontro com algo desde sempre presente nas
profundezas da proacutepria alma A partir dessa experiecircncia de retorno ao Princiacutepio haveraacute uma nova
perspectiva na relaccedilatildeo com todas as coisas264
Assim se a dialeacutetica platocircnica ldquojaacute terminava na intuiccedilatildeo do Bem ou seja numa apreensatildeo
imediata do incondicionado Plotino acentua com extremo vigor a natureza extraordinaacuteria desse
momento final a ponto de contrapocirc-lo agrave ciecircncia e chega ateacute mesmo a falar de contato assimilaccedilatildeo
identificaccedilatildeo e ecircxtaserdquo265 Entretanto a experiecircncia uacuteltima da unificaccedilatildeo somente seraacute possiacutevel se a
mesma ordem ontoloacutegica estiver presente tanto no Uno quanto no homem pois apenas ldquoo
semelhante conhece o semelhante (τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον)rdquo266
263 ULLMANN 2002 p 77 264 Impotildee-se aqui dada a correlaccedilatildeo com a filosofia plotiniana uma breve referecircncia agrave metafiacutesica poeacutetica de Eliot ldquoWe shall not cease from explorationAnd the end of all our exploringWill be to arrive where we startedAnd know the place for the first timerdquo (T S Eliot Little Gidding) 265 REALE 2001 v IV p 431 266 Eneacuteada II 4 10
51
4 A CONVERGEcircNCIA EacuteTICA
Misteriosa eacute a senda da accedilatildeo (B Gītā)
Os dois extremos do sistema plotiniano emolduram o universo moral das Eneacuteadas No centro
estaacute o Bem (τὸ ἀγαϑόν)267 o Sol do qual ldquotodas as coisas dependem e ao qual todas as coisas
aspiram tendo-o por princiacutepio e dele necessitando Ele poreacutem de nada carece basta-se a si mesmo
de nada necessita eacute a medida e o limite de todas as coisas dando de si mesmo o Intelecto o Ser a
Alma a vida e a inteligecircnciardquo268 na periferia a escuridatildeo da mateacuteria ou simplesmente o mal (τὸ
κακόν) e mesmo o mal absoluto em decorrecircncia da completa privaccedilatildeo do Ser e do Bem269
O mal natildeo existiria se o universo estivesse circunscrito agrave esfera inteligiacutevel pois Plotino eacute
categoacuterico ao referir-se agrave vida das trecircs hipoacutestases ldquoEsta eacute a vida dos deuses sem tristeza e
abenccediloada aqui o mal natildeo existe em parte alguma e se as coisas tivessem parado aqui natildeo haveria
mal algum apenas o primeiro e o segundo e terceiro bensrdquo270 Por outro lado reconhece as
dificuldades em pronunciar-se sobre o mal ldquoNatildeo haveria meios de decidir sobre as faculdades em
noacutes por meio das quais conhecemos o mal uma vez que o conhecimento de cada coisa proveacutem de
uma semelhanccedilardquo271 Resta entatildeo a alternativa de referir-se ao mal enquanto deficiecircncia e mesmo
como completa ausecircncia de limite medida e forma
Entre tais extremos encontra-se o homem (ἄνϑρωπος) com sua alma e seu Ser
profundamente enraizados no universo inteligiacutevel embora circunstancialmente revestido de mateacuteria
e apartado da sua natureza transcendente Ao centralizar suas preocupaccedilotildees no mundo sensiacutevel e
identificar-se com o corpo272 o homem afasta-se da sua origem divina e de si mesmo273 incide no
erro e na ilusatildeo Ao inveacutes uma relativa indiferenccedila agraves coisas deste mundo somada ao progressivo
267 ldquoUno Absoluto Deus ou Bem sinonimizam nas Eneacuteadas de Plotinordquo (ULLMANN 2002 p 33) 268 Eneacuteada I 8 2 269 Eneacuteada I 8 3-5 270 Eneacuteada I 8 2 271 Eneacuteada I 8 1 272 ldquoHaving a body then does not unqualifiedly necessitate the presence or at least the realization of evil It would seem that only the sort of soul that is susceptible to corruption already is likely to experience it when incarnated A person experiences evil just to the extent that he identifies with the animate bodyrdquo (GERSON 1998 p 193) 273 ldquoSuch is the paradox of the human condition When we are up above we are ourselves but we no longer belong to ourselves because this state has been bestowed upon us and we are not in control of it In this world we think we belong to ourselves but we know that we no longer really are ourselvesrdquo (HADOT 1998 p 65)
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interesse nas realidades inteligiacuteveis propicia o retorno a si mesmo ao Ser e ao Bem Neste sentido
observa Ullmann ldquoAgrave alma partindo da realidade sensiacutevel cumpre libertar-se das peias deste mundo
e tender ao cosmo inteligiacutevel A libertaccedilatildeo do mundo sensiacutevel natildeo constitui desprezo mas renuacutencia
por um bem maiorrdquo274
A par deste teacutelos humano deve-se considerar de antematildeo que o sistema plotiniano carece
de uma rigorosa filosofia moral Como ressaltou Reale para o licopolitano ldquoa eacutetica natildeo possui uma
espessura proacutepria e nem mesmo uma autonomia relativa Em Plotino a eacutetica torna-se o caminho de
lsquoretornorsquo ao Uno e somente sob esse aspecto nosso filoacutesofo se interessa pelos problemas do
homemrdquo275 A concepccedilatildeo filosoacutefica plotiniana desta maneira enquadra-se na descriccedilatildeo de Pierre
Hadot de que ldquoa filosofia de Platatildeo e posteriormente todas as filosofias da antiguidade mesmo as
mais distantes do platonismo teratildeo em comum a particularidade de vincular estreitamente nessa
perspectiva discurso e modo de vida filosoacuteficordquo276
Na abordagem plotiniana sobre a eacutetica e as virtudes a preocupaccedilatildeo central portanto natildeo
seraacute tanto a informaccedilatildeo mas a transformaccedilatildeo do homem Aplica-se nesse caso tambeacutem a
observaccedilatildeo de Roger-Pol Droit acerca da filosofia antiga ldquoTornar-se filoacutesofo era praticar uma
mudanccedila profunda pactuada voluntaacuteria em sua maneira de ser no mundo Era uma conversatildeo
paciente e contiacutenua que engajava todo o indiviacuteduo uma maneira de viver que implicava um longo e
constante exerciacutecio sobre sirdquo277 Em Plotino poreacutem essa mudanccedila tem um propoacutesito bem definido
que ultrapassa o acircmbito da tradiccedilatildeo grega claacutessica isto eacute ela tem por objetivo a progressiva
reaproximaccedilatildeo e por fim a assemelhaccedilatildeo ao Uno
Seria um exagero contudo dizer que se trata apenas de ldquouma eacutetica para o saacutebio da
Antiguidade tardia que natildeo oferece muita orientaccedilatildeo praacutetica para o homem comumrdquo278 pois como
salientou Reale os problemas morais do homem de hoje tecircm uma raiz comum ldquoA cultura
contemporacircnea perdeu o sentido daqueles grandes valores que na era antiga e medieval e tambeacutem
nos primeiros seacuteculos da era moderna constituiacuteam pontos de referecircncia essenciais e em ampla
medida irrenunciaacuteveis no pensamento e na vidardquo279
274 ULLMANN 2002 p 135 275 REALE 2001 v IV p 436 276 HADOT 1999 p 89 277 DROIT 2002 p 28 278 DILLON John M An ethic for the late antique sage In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 318 279 REALE 1999 p 17
53
Em Plotino essas referecircncias satildeo uma constante a saber a) a existecircncia de um princiacutepio
primeiro e de um fim uacuteltimo b) a existecircncia do Ser do Bem e da Verdade Como bem observou
Ullmann o licopolitano ldquosem duacutevida tambeacutem tem algo a dizer ao homem de hoje que vive
disperso mergulhado na mateacuteria antimetafiacutesico dilacerado interiormente e esquecido do seu
destinordquo280
Dessarte a transformaccedilatildeo aludida natildeo se refere agrave adequaccedilatildeo ou agrave conformaccedilatildeo do ser
humano a uma determinada regra de conduta proveniente do costume do consenso ou mesmo de
qualquer autoridade Em Plotino as virtudes satildeo uma via de matildeo dupla por um lado possibilitam a
ascensatildeo agraves elevadas esferas inteligiacuteveis por outro permitem a expressatildeo espontacircnea dessas
realidades na vida diaacuteria de um indiviacuteduo encarnado Trata-se assim mais de um despertar para as
realidades internas do que a adoccedilatildeo de um padratildeo exterior de conduta
Essa concepccedilatildeo torna-se evidente logo no iniacutecio do tratado Sobre as Virtudes um dos
principais escritos de Plotino sobre o tema onde eacute ratificado o ideal platocircnico de fuga deste mundo
pela assemelhaccedilatildeo ao Bem mediante a virtude281 Todavia ao investigar a natureza das virtudes e
esclarecer em que sentido precisamente elas propiciam a assemelhaccedilatildeo o enfoque plotiniano
assume matizes peculiares uma vez que as virtudes ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) prudecircncia ou
sabedoria praacutetica (φρόνησις) coragem (ἀνδρεία) temperanccedila (σωφροσύνη) e justiccedila (δικαιοσύνη)
preconizadas em A Repuacuteblica mostram-se insuficientes ao ideal de retorno ao Uno
Isso ocorre porque em Platatildeo natildeo haacute dissociaccedilatildeo entre a conduta moral do cidadatildeo e a vida
em comunidade Jaacute em Plotino haacute um deslocamento e uma ampliaccedilatildeo do pano de fundo da accedilatildeo
moral natildeo mais a vida da poacutelis senatildeo a dimensatildeo inteligiacutevel com todos os seus pressupostos e
desdobramentos282 assume este papel fundamental Por conseguinte a preocupaccedilatildeo poliacutetica do
fundador da Academia cede lugar agrave perspectiva cosmoloacutegica da filosofia plotiniana283 Neste
sentido como inteacuterprete de Platatildeo Plotino deve ser considerado muito mais um devedor do Timeu
do que de A Repuacuteblica
280 ULLMANN 2002 p 81 281 Eneacuteada I 2 1 Cf Teeteto 176 a-b 282 ldquoThe ideal state of an individual is for Plotinus a discarnate one And the community of discarnate contemplators is decidedly not political Hence political philosophy if not exactly irrelevant is definitely subordinate to ethicsrdquo (GERSON 1998 p 185) 283 ldquoThe Enneads () set human thought action and being in the largest cosmological contextrdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 73)
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De fato a expressatildeo das virtudes cardeais requer o contexto da vida puacuteblica e pelo simples
fato de viverem em comunidade os homens hatildeo de observaacute-las Em A Vida de Plotino biografia
escrita por Porfiacuterio editor das Eneacuteadas encontram-se diversas passagens que atestam o apreccedilo e a
estrita observacircncia das virtudes morais pelo licopolitano apresentando-o como detentor de um
caraacuteter irretocaacutevel permeado pela modeacutestia retidatildeo compaixatildeo e gentileza Segundo Porfiacuterio
Plotino nunca fizera qualquer inimigo poliacutetico e tendo sido reconhecido como um benfeitor da
comunidade muitas vezes fora nomeado como tutor de oacuterfatildeos viuacutevas e bens284
Poreacutem como na filosofia plotiniana o universo sensiacutevel natildeo eacute mais do que a imagem das
realidades incorpoacutereas as virtudes devem ser reencontradas em sua contraparte inteligiacutevel Daiacute
Plotino referir-se a existecircncia de virtudes inferiores e superiores procurando estabelecer a
correspondecircncia entre as primeiras e seus respectivos paradigmas inteligiacuteveis a partir de uma
perspectiva analoacutegica de acordo com o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que
caracteriza o platonismo e pode ser encontrada ao longo das Eneacuteadas
Nesse sentido ao questionar como a Alma do mundo poderia apresentar virtudes como a
temperanccedila e a coragem quando ela proacutepria eacute a origem de todas as coisas e portanto nada poderia
temer e da mesma forma natildeo poderia desejar aquilo que jaacute possui Plotino sustenta que as
verdadeiras virtudes originam-se no universo inteligiacutevel285 onde existem como arqueacutetipos e natildeo
propriamente como virtudes286 Aleacutem disso como estatildeo no Intelecto natildeo se trata de meros
conceitos mas de realidades vivas como se depreende desta conhecida passagem ldquoSem a
verdadeira virtude Deus eacute apenas uma palavrardquo287
Valendo-se de um engenhoso raciociacutenio Plotino sustenta que Platatildeo ao adjetivar de
ldquociacutevicasrdquo apenas algumas virtudes jaacute pressupunha a existecircncia de outra classe de virtudes
denominando-as a todas de ldquopurificaccedilotildeesrdquo logo o fundador da Academia natildeo considerava que as
virtudes ciacutevicas por si mesmas fossem capazes de propiciar a assemelhaccedilatildeo288 Nessa linha o
licopolitano designa esta segunda classe de virtudes purificativas (καθαρτικαὶ ἀρεταί) pois sua
284 A Vida de Plotino e o Ordenamento de seus Escritos (in ULLMANN 2002 p 241) 285 Eneacuteada I 2 1 286 Eneacuteada I 2 2 287 Eneacuteada II 9 15 288 Eneacuteada I 2 3 Cf Repuacuteblica 430 c Feacutedon 69 b-c
55
expressatildeo requer o progressivo desapego das paixotildees terrenas e assim a eliminaccedilatildeo dos obstaacuteculos
que dificultam ou mesmo impedem a alma de voltar-se agraves realidades internas289
Livre das impurezas decorrentes do consoacutercio com a mateacuteria ldquoa Alma age por si mesma e
isto eacute inteligecircncia e prudecircncia e natildeo compartilha as experiecircncias corpoacutereas isto eacute temperanccedila e
natildeo teme separar-se do corpo e isto eacute coragem e eacute guiada pela razatildeo e inteligecircncia sem conflito
ndash e isto eacute justiccedilardquo290 Eis entatildeo a contraparte das virtudes ciacutevicas no acircmbito da razatildeo discursiva da
Terceira Hipoacutestase onde cada parte da alma torna-se semelhante agrave sua essecircncia291 poreacutem este eacute
apenas o primeiro estaacutegio de assemelhaccedilatildeo na dimensatildeo inteligiacutevel pois a perfeiccedilatildeo almejada soacute
viraacute ao final do processo de purificaccedilatildeo (κάϑαρσις)292
Neste primeiro estaacutegio a alma humana adquire certa estabilidade e assim estaraacute protegida
das perturbaccedilotildees ambientes e das afliccedilotildees internas que causam distraccedilatildeo e impedem a reorientaccedilatildeo
para o centro do seu proacuteprio Ser Todavia tatildeo somente a ldquoproximidade ao Uno sob o aspecto do
Bem eacute o criteacuterio objetivo de avaliaccedilatildeo moralrdquo293 Logo mesmo ao sustentar que com a purificaccedilatildeo o
homem afasta-se do erro (ἁμαρτία) estabelecendo-se na retidatildeo moral Plotino sentencia ldquoA
aspiraccedilatildeo humana no entanto natildeo deveria limitar-se a estar livre de erro mas em ser Deusrdquo294 Eis
aiacute a ldquopaacutetria queridardquo agrave qual feito Ulisses cada indiviacuteduo haacute de retornar295
Deve-se entatildeo perseverar na busca e reencontrar as virtudes no campo da contemplaccedilatildeo
noeacutetica e depois disso alcanccedilar a fonte e origem de todas as virtudes e de todos os princiacutepios o
proacuteprio Bem Neste sentido agrave aproximaccedilatildeo ao fundador da Academia eacute indiscutiacutevel como se vecirc
nesta passagem onde Platatildeo diz que no extremo do inteligiacutevel ldquoestaacute a ideia do Bem dificilmente
perceptiacutevel mas que uma vez apreendida impotildee-nos de pronto a conclusatildeo de que eacute a causa de
tudo o que eacute belo e direito () e que precisaraacute ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria
tanto na vida puacuteblica como na particularrdquo296
289 ldquoLa liberazione dai fantasmi ossessivi della passione e il raccoglimento dellrsquoanima con se stessa nellrsquoesercizio della meditazione solitaria sono i grandi temi dellrsquoumanesimo interiorerdquo (PRINI 1992 p 68) 290 Eneacuteada I 2 3 291 Eneacuteada III 6 2 292 Eneacuteada I 2 4 293 GERSON 1998 p 186 294 Eneacuteada I 2 6 295 Eneacuteada I 6 8 296 A Repuacuteblica 517 b-c
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As virtudes superiores resultam desse processo de purificaccedilatildeo na forma de contemplaccedilatildeo do
divino mundo das Ideias297 como virtudes contemplativas (θεορετικαὶ ἀρεταί) e para aleacutem delas
como as proacuteprias virtudes noeacuteticas (παραδειγματικαὶ ἀρεταί) quando a alma reencontra as virtudes
em forma de princiacutepios isto eacute em sua origem arquetiacutepica assemelhando-se a eles Portanto as
virtudes superiores satildeo formas de uniatildeo da alma ao Intelecto senatildeo vejamos ldquoA sabedoria teoacuterica e
praacutetica consiste na contemplaccedilatildeo daquilo que o Intelecto conteacutem () A justiccedila superior eacute a
atividade em direccedilatildeo ao Intelecto a temperanccedila eacute conversatildeo interior ao Intelecto a coragem eacute a
impassibilidade em alcanccedilar a assemelhaccedilatildeordquo298
Deve-se observar neste ponto que o processo de purificaccedilatildeo nada mais eacute do que a evoluccedilatildeo
da multiplicidade perifeacuterica agrave unidade central com a superaccedilatildeo de toda a alteridade Assim como agrave
purificaccedilatildeo segue-se a contemplaccedilatildeo quando as realidades do Cosmo Noeacutetico satildeo atualizadas na
Alma tornando-se ativas e presentes agrave contemplaccedilatildeo segue-se a assemelhaccedilatildeo ao Uno a resultante
de um longo processo iniciado com a ldquoconversatildeordquo mais um termo platocircnico que nas palavras de
Werner Jaeger significa ldquovolver ou fazer girar lsquotoda a almarsquo para a luz da ideacuteia do Bem que eacute a
origem de tudordquo299
Jaacute foi visto que a alma humana em seu niacutevel mais profundo eacute um habitante do divino e
eterno mundo das Ideias onde residem os arqueacutetipos de todas as virtudes e a proacutepria Ideia de cada
ser humano em particular Ascender ao Intelecto unificando-se com as virtudes paradigmaacuteticas
projeta o homem interno no limiar da meta a um passo da Suprema Realidade que representa a
culminacircncia existencial da metafiacutesica neoplatocircnica Como sintetiza Hadot ldquoA virtude plotiniana
quer ver nada aleacutem do que a divina presenccedila em si em torno de si mesmo e atraveacutes de todas as
coisasrdquo300
Por conseguinte a anaacutelise do desenvolvimento das virtudes permite uma conclusatildeo
surpreendente a purificaccedilatildeo que teve iniacutecio no tempo e no espaccedilo conduz agrave dimensatildeo atemporal do
Intelecto e do Uno quando o homem redescobre sua essecircncia divina e eterna Em um dos poucos
relatos sobre a proacutepria experiecircncia de unificaccedilatildeo Plotino afirma que mesmo sendo um
acontecimento excepcional e momentacircneo ele produz um resultado indeleacutevel na alma ldquoDepois
dessa estadia na regiatildeo divina quando desccedilo do Intelecto ao raciociacutenio pergunto-me perplexo como
297 ldquoWe must detach ourselves from life down here to such an extent that contemplation can become a continuous staterdquo (HADOT 1993 p 65) 298 Eneacuteada I 2 6 299 JAEGER 2001 p 888 300 HADOT 1993 p 71
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eacute possiacutevel a minha alma estar neste corpo sendo ela mesmo estando no corpo essa coisa elevada
que se revelou a mimrdquo301
Contudo natildeo obstante este desfecho apoteoacutetico que tem lugar a partir dos sucessivos graus
de refinamento ou desdobramento das virtudes inferiores o licopolitano natildeo as despreza enquanto
tais Ao contraacuterio considera que elas desempenham um papel decisivo no progressivo caminho de
assemelhaccedilatildeo como se lecirc nesta passagem ldquoTornam-nos efetivamente ordenados e melhores porque
impotildeem limite e medida aos nossos desejos eliminam as falsas opiniotildees pelo que tecircm de mais
excelente e pela proacutepria limitaccedilatildeo e pela exclusatildeo do que eacute sem medida e indefinido de acordo com
sua proacutepria medidardquo302
No tratado Sobre o Daiacutemocircn que nos Coube ao analisar o destino das almas humanas apoacutes a
morte Plotino ratifica a importacircncia relativa das virtudes inferiores ldquoAqueles que praticaram as
virtudes ciacutevicas tornam-se homens de novo mas aqueles que praticaram menos as virtudes ciacutevicas
tornam-se insetos que vivem em comunidade como a abelha ou algum outrordquo303 Natildeo eacute preciso
adentrar na concepccedilatildeo palingeneacutesica do licopolitano para depreender do excerto que a) natildeo
observar as virtudes ciacutevicas prejudica o caminho de retorno b) o fato de observaacute-las por si soacute natildeo
assegura o acesso agrave esfera inteligiacutevel Logo como sintetiza Reale as virtudes ciacutevicas ldquosatildeo um ponto
de partida natildeo de chegadardquo304
E o porto de chegada ou a meta suprema da filosofia plotiniana eacute unicamente o Bem305 Para
ele concorrem todas as virtudes mas somente as superiores podem ser identificadas com a
verdadeira felicidade (εὐδαιμονία) pois conduzem agrave perfeiccedilatildeo da vida do Intelecto e agrave assemelhaccedilatildeo
ao Uno Como observa Gerson a associaccedilatildeo entre virtude e felicidade eacute frequente na filosofia grega
claacutessica natildeo obstante algumas diferenccedilas materiais e formais bem assim a concepccedilatildeo de felicidade
como um bem uacuteltimo do que Plotino natildeo se afasta apesar de considerar que a eacutetica estaacute
subordinada agrave metafiacutesica306
Portanto a felicidade em Plotino distancia-se sobremaneira das noccedilotildees geralmente aceitas
de que ela resulta da ausecircncia de dor e da obtenccedilatildeo de prazer isto eacute de que depende de
301 Eneacuteada IV 8 1 302 Eneacuteada I 2 2 303 Eneacuteada III 4 2 304 REALE 2001 v IV p 514 305 ldquoAleacutem dele natildeo existe outro pois cabe-lhe o nome de hyperagathoacuten Ele representa o ponto de chegada de todo o desenvolvimento loacutegico e especulativo da metafiacutesica e da eacuteticardquo (ULLMANN 2002 p 135) 306 GERSON 1998 p 186
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circunstacircncias externas ou de fatores emocionais ou afetivos Para o licopolitano o universo sensiacutevel
com suas imensas possibilidades e mesmo a felicidade fundada na sabedoria praacutetica ou em qualquer
das outras virtudes satildeo incapazes de assegurar a satisfaccedilatildeo real e duradoura que apenas a vida
interna proporciona Alinhado com o Feacutedon o filoacutesofo sustenta que nem mesmo a morte pode
afligir o indiviacuteduo estabelecido no Bem
Essa concepccedilatildeo encontra-se no tratado Sobre o Primeiro Bem e os outros bens o uacuteltimo
escrito por Plotino segundo a ordem cronoloacutegica transmitida por Porfiacuterio No texto que encerra a
essecircncia do ensinamento moral e espiritual do filoacutesofo de Licoacutepolis lecirc-se que ldquose a vida e a alma
existem apoacutes a morte entatildeo a morte eacute um bem para a alma uma vez que sem o corpo ela tem mais
liberdade para exercer o ato que lhe eacute proacutepriordquo307
No tratado em tela eacute dito que ldquopara cada ser o bem eacute uma vida que estaacute em conformidade
com seu ato natural No caso de um ser composto de muitas partes seu bem eacute o ato natural e natildeo
deficiente da melhor destas partesrdquo308 Logo para o homem encarnado o bem eacute a atividade da sua
proacutepria alma para a alma a vida do Intelecto enquanto este tem o Uno como o Bem Supremo O
Bem Absoluto no entanto ldquonatildeo dirige seu ato para nenhum outro ser mas eacute o objeto para o qual o
ato de todos os outros se dirige por ser ele o melhor de todos os seres e transcender a todos os
seresrdquo309
Sobressai nesse tratado a concepccedilatildeo transcendente de felicidade uma vez que ldquoos seres
podem participar do Bem Absoluto de duas maneiras tornando-se semelhantes a ele ou dirigindo os
atos de seus seres em direccedilatildeo a elerdquo310 Em ambos os casos encontra-se a perspectiva ascendente da
eacutetica plotiniana pois a assemelhaccedilatildeo se daacute em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis bem assim o
direcionamento de todas as accedilotildees que devem estar voltadas ao Bem como estaacute consignado na
passagem final do texto ldquoA alma participa do Bem pela virtude natildeo vivendo uma vida composta
mas mantendo-se apartada do corpo mesmo aquirdquo311
Restam prejudicadas nessa perspectiva as concepccedilotildees de felicidade que prescindam da ideia
de transcendecircncia e ateacute mesmo a vida teoreacutetica aristoteacutelica que ldquoconduz o eu individual a
307 Eneacuteada I 7 3 308 Eneacuteada I 7 1 309 Eneacuteada I 7 1 310 Eneacuteada I 7 1 311 Eneacuteada I 7 3
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ultrapassar-se em um eu superior a elevar-se a um ponto de vista universal e transcendenterdquo312 dado
o caraacuteter episoacutedico de tal experiecircncia e sobretudo devido agraves diferenccedilas estruturais313 em relaccedilatildeo ao
sistema plotiniano Ademais ao considerar que a comunidade poliacutetica eacute o mais importante de todos
os bens314 o estagirita claramente subordina a eacutetica agrave poliacutetica o que decididamente natildeo eacute o caso
em Plotino onde as virtudes ciacutevicas satildeo relativizadas
No iniacutecio do tratado Sobre a Felicidade Plotino opotildee-se agraves noccedilotildees de felicidade que se
encontram em Aristoacuteteles em Epicuro e entre os estoacuteicos principalmente devido agrave ambiguidade dos
conceitos por eles utilizados Em relaccedilatildeo ao primeiro o licopolitano questiona ldquoSe identificamos a
felicidade com o bem viver deveremos entatildeo permitir aos demais animais a participaccedilatildeo em ambas
as coisasrdquo315 Nota-se realmente que a proposta aristoteacutelica permite a interpretaccedilatildeo que lhe eacute
atribuiacuteda pelo licopolitano ainda que o estagirita natildeo admitisse a extensatildeo da felicidade a todos os
animais pois considerava que apenas os seres humanos estavam aptos agrave contemplaccedilatildeo teoreacutetica
Plotino rebate tambeacutem agraves concepccedilotildees epicuristas e estoacuteicas de felicidade Estas Escolas
como se sabe caracterizaram-se pela ausecircncia do sentido de transcendecircncia e adoccedilatildeo de categorias
eminentemente imanentistas fisicistas e materialistas316 contrastando sobremodo com a metafiacutesica
plotiniana A criacutetica no entanto eacute semelhante agrave anterior ldquoSe o prazer eacute o fim e a boa vida eacute
determinada pelo prazer seria um absurdo negar a boa vida aos outros animais o mesmo se aplica agrave
ataraxia e ainda se a vida de acordo com a natureza for considerada como a boa vidardquo317
Apesar de natildeo ser nomeado explicitamente nesse excerto sabe-se que o prazer (ἡδονή)
ocupava o lugar central na filosofia de Epicuro assim como a imperturbabilidade (ἀταραξία) fora
concebida como condiccedilatildeo de felicidade entre epicuristas e estoacuteicos Mesmo considerando as
necessaacuterias retificaccedilotildees agrave concepccedilatildeo hedonista geralmente atribuiacuteda ao mestre do Jardim318 eacute
forccediloso reconhecer o distanciamento que Plotino toma do materialismo e do niilismo epicurista319
312 HADOT 1999 p 122 313 ldquoPara ele [Aristoacuteteles] o intelecto humano estaacute distante de possuir essa perfeiccedilatildeo da qual soacute se aproxima em certos instantesrdquo (HADOT 1999 p 132) 314 Cf Poliacutetica 1252 a 315 Eneacuteada I 4 1 316 REALE 2006 v III p 11 317 Eneacuteada I 4 1 318 ULLMANN 2006 ps 75-97 Dioacutegenes Laeacutercio cita um trecho esclarecedor ldquoPor prazer entendemos a ausecircncia de sofrimento no corpo e a ausecircncia de perturbaccedilatildeo na alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 131) 319 ldquoPara o mestre do Jardim a vida se desenrola entre dois polos ndash o nascimento e a morte Evidencia-se com clareza a declaraccedilatildeo de niilismo () Assim como o cosmo se originou de aacutetomos tambeacutem os seres vivos tecircm sua gecircnese a partir de aacutetomos Nada foi planejado por ningueacutem Tudo eacute casual Natildeo haacute criador natildeo haacute causa eficiente nem causa finalrdquo (ULLMANN 2006 ps 49 e 73)
60
ainda que alguns preceitos das Maacuteximas Principais320 estejam em sintonia com o espiacuterito das
Eneacuteadas e com a Vita Plotini
Em relaccedilatildeo aos estoicos que propugnavam ldquoa vida de acordo com a naturezardquo e associavam
a felicidade agrave ldquovida racionalrdquo Plotino questiona a relaccedilatildeo destas duas perspectivas ou a razatildeo eacute
necessaacuteria apenas como instrumento para conquistar as necessidades primaacuterias ou possui um valor
intriacutenseco Se for apenas um instrumento os animais irracionais tambeacutem seratildeo felizes se puderem
satisfazer suas necessidades primaacuterias e neste caso a razatildeo seraacute dispensaacutevel no segundo caso
Plotino afirma que os estoacuteicos natildeo satildeo capazes de explicar a honorabilidade de uma razatildeo natildeo-
instrumental321 Apesar disto a eacutetica plotiniana e a estoacuteica tecircm vaacuterios pontos em comum pois ambas
satildeo indiferentes agraves circunstacircncias externas valorizam a austeridade e o autocontrole e ainda
consideram que somente a razatildeo e a virtude conduzem agrave felicidade
Plotino no entanto natildeo se limita agraves criacuteticas referidas acima mas procura esclarecer sua
proacutepria concepccedilatildeo de felicidade intimamente associada aos conceitos de processatildeo e retorno Para
tanto primeiramente observa que o termo ldquovidardquo natildeo deve ser entendido de forma uniacutevoca ldquopois eacute
usado em diversos sentidos diferenciando-se segundo o niacutevel das coisas ao qual eacute aplicado
primeiro segundo e assim sucessivamente E lsquoviverrsquo significa diferentes coisas em diferentes
contextos () e o mesmo se aplica ao termo lsquoboa vidarsquordquo322 A hierarquizaccedilatildeo destes conceitos seraacute
decisiva para a concepccedilatildeo plotiniana de felicidade pois ldquose uma vida eacute a imagem de outra vida eacute
evidente que uma boa vida seraacute por sua vez imagem de outra boa vidardquo323
A felicidade eacute entatildeo definida em termos de autossuficiecircncia e perfeiccedilatildeo e a boa vida
conferida a quem de forma alguma seja carente da proacutepria vida mas que a possua em profusatildeo Os
motivos parecem claros quanto maior a autossuficiecircncia maiores a excelecircncia e a perfeiccedilatildeo e
menor a dependecircncia de fatores externos pois a felicidade eacute concebida como a plenitude da vida o
que no sistema plotiniano ocorre no acircmbito da razatildeo e da inteligecircncia independentemente das
circunstacircncias externas
Em verdade na perspectiva ascendente da filosofia plotiniana que evolve desde o universo
sensiacutevel em progressivo refinamento existe apenas um elemento do qual tudo depende e que de
320 Destacamos as sentenccedilas relativas agrave limitaccedilatildeo das posses ao destemor diante da morte ao autodomiacutenio agrave moderaccedilatildeo agrave prudecircncia e agrave justiccedila (Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro X 139-154) 321 Eneacuteada I 4 2 322 Eneacuteada I 4 3 323 Eneacuteada I 4 3
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nada necessita o proacuteprio Bem o poderoso atrator para o qual tudo converge pois eacute autossuficiecircncia
absoluta pura perfeiccedilatildeo criadora inesgotaacutevel fonte de vida que transborda e daacute origem a todas as
coisas Sendo a alma humana imortal natildeo eacute concebiacutevel sua desintegraccedilatildeo ou perdiccedilatildeo irremediaacutevel
e eterna cedo ou tarde deve retornar agrave origem e agrave felicidade divina Em uacuteltima anaacutelise para o
licopolitano todas as almas estatildeo fadadas ao Bem pois ldquoo fim da jornada se daacute quando atingem o
cume do inteligiacutevelrdquo324
No tratado Sobre o Daimocircn que nos coube haacute uma metaacutefora muito eloquente acerca da
condiccedilatildeo humana Plotino compara a alma humana ao passageiro de um navio ldquoComo o passageiro
do navio eacute movido pelo movimento do navio e tambeacutem pelos seus proacuteprios movimentos segundo a
natureza do seu caraacuteter entatildeo mesmo em condiccedilotildees idecircnticas cada um se move deseja e age de
maneira diferenterdquo325 Neste caso a liberdade do ser humano coexiste com sua predestinaccedilatildeo pois
cada passageiro possui liberdade para movimentar-se dentro do navio ainda que todos se dirijam ao
mesmo destino
E esse destino irrenunciaacutevel eacute a felicidade e o Bem Supremo Plotino contudo no tratado
Sobre a Felicidade mesmo concordando que o Bem eacute a causa par excellence de todas as coisas
inclusive da felicidade e o fim uacuteltimo ao qual elas convergem adverte que natildeo estaacute buscando a
origem do bem senatildeo o bem imanente sustentando entatildeo que ldquoa vida perfeita a vida real e
verdadeira eacute a vida do Intelecto e que as demais satildeo incompletas traccedilos de vida destituiacutedas de
perfeiccedilatildeo e pureza e natildeo mais do que ausecircncia de vidardquo326
Com efeito no acircmbito da Segunda Hipoacutestase natildeo haacute que estabelecer diferenccedila entre a
felicidade ou a boa vida e o sujeito que as experimenta em forma de contemplaccedilatildeo No tratado Sobre
a Natureza a Contemplaccedilatildeo e o Uno no qual eacute reafirmada a identidade entre Pensamento e Ser
proposta por Parmecircnides Plotino afirma que no Intelecto sujeito e objeto natildeo satildeo coisas distintas
ldquoAmbas as coisas devem pois ser realmente esta coisa uacutenica Mas isto eacute a vida contemplativa natildeo
um objeto de contemplaccedilatildeo como o que existe em um sujeito distinto Porque o que existe em um
sujeito distinto vive graccedilas a ele natildeo por si proacutepriordquo327
A identidade entre sujeito e objeto na dimensatildeo noeacutetica da Segunda Hipoacutestase conduz o
licopolitano a um desfecho surpreendente ao investigar a felicidade do ser humano todos os homens
324 Eneacuteada I 3 1 325 Eneacuteada III 4 6 326 Eneacuteada I 4 3 327 Eneacuteada III 3 8
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satildeo felizes em potecircncia porque em uacuteltima anaacutelise satildeo Alma e Intelecto aqueles para quem a
felicidade existe em potecircncia tecircm-na parcialmente mas aqueles que a tecircm em ato vivem a vida
perfeita e satildeo a proacutepria felicidade328 A felicidade jaacute natildeo eacute mais possuiacuteda como um bem alheio mas
eacute a proacutepria vida perfeita de quem a desvelou em si
Essa concepccedilatildeo sugere um grau extremo de autossuficiecircncia Para Plotino ldquoo homem neste
estado natildeo busca coisa alguma O que poderia buscar Certamente nada inferior e a melhor de todas
a tem consigo O homem que tem uma vida assim possui tudo o que necessita na vidardquo329 Trata-se
de uma descriccedilatildeo muito semelhante agrave da imperturbabilidade estoacuteica principalmente na sequecircncia
deste excerto onde eacute dito que o homem que atingiu tal estado por meio da virtude de nada
necessita mantendo-se indiferente agraves circunstacircncias externas mesmo em meio a desventuras a
enfermidades e agrave perda de amigos ou parentes
De fato a descriccedilatildeo plotiniana daquele que atingiu a felicidade mostra que coisa alguma eacute
capaz de perturbaacute-lo ldquoMesmo se ocorrer algo indesejaacutevel ao homem feliz ele permanece o mesmo
nada de sua felicidade eacute suprimida Caso contraacuterio a cada dia sofreria mudanccedilas e decairia de sua
felicidaderdquo330 O relato suscita um niacutevel de vida quase sobre-humano pois nem a ocorrecircncia de
grandes desastres nem a perda de fortunas ou impeacuterios nem o aprisionamento pessoal ou de
familiares nem o sofrimento proacuteprio ou alheio tampouco a morte alheia ou a proacutepria morte nada
das coisas terrenas pode perturbar o bem final conquistado331
Neste ponto a identidade entre felicidade e virtude atinge o seu aacutepice pois eacute dito que
embora a adversidade natildeo seja desejada pelo homem feliz se ela sobrevier ele contrapotildee-lhe a
virtude o que o torna imune a afliccedilotildees e inquietudes332 Estabelecer-se desta maneira na virtude na
virtude superior vale lembrar significa natildeo apenas contemplar o Intelecto mas ser o proacuteprio
Intelecto333 quando entatildeo estatildeo presentes todas as condiccedilotildees necessaacuterias agrave felicidade e agrave perfeiccedilatildeo e
o homem manteacutem-se impassiacutevel diante dos ventos da sorte
Juntamente com esta proverbial imperturbabilidade outro aspecto da descriccedilatildeo plotiniana da
vida perfeita do Intelecto eacute deveras inesperado e impactante Ele surge com a afirmaccedilatildeo de que a
vida do Intelecto independe e precede a sua percepccedilatildeo consciente Esta somente ocorreraacute quando
328 Eneacuteada I 4 4 329 Eneacuteada I 4 4 330 Eneacuteada I 4 7 331 Eneacuteada I 4 7-8 332 Eneacuteada I 4 8 333 Eneacuteada I 4 9
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ldquoaquilo em nossa alma que eacute como um espelho em que se refletem a razatildeo e a inteligecircncia estiver
em perfeita calma noacutes entatildeo vemos e sabemos de maneira semelhante agrave percepccedilatildeo-sensiacutevel que a
inteligecircncia e a razatildeo estatildeo atuandordquo334 De outro modo se natildeo estatildeo presentes as condiccedilotildees
requeridas a atividade do Intelecto natildeo produz as correspondentes imagens mentais
Talvez a chave para a compreensatildeo dessa questatildeo esteja no tratado intitulado Sobre Se a
Felicidade Aumenta com o Tempo no qual Plotino sustenta que a passagem do tempo natildeo afeta a
felicidade porque ela eacute a vida do Intelecto e do Ser e portanto pertence ao domiacutenio da
eternidade335 Ora a percepccedilatildeo consciente para refletir a divina e eterna vida do Cosmo Noeacutetico
deve apresentar alguma afinidade com ele tornando-se o quanto possiacutevel imune agraves influecircncias
espaccedilo-temporais vale dizer livrando-se de memoacuterias de antecipaccedilotildees e enfim de qualquer
movimento do pensamento soacute entatildeo poderaacute fixar-se inteiramente no momento presente e refletir a
vida eterna da Segunda Hipoacutestase
Em siacutentese segundo Plotino a felicidade natildeo estaacute relacionada agrave natureza corpoacuterea do
homem mas consiste na boa vida que tem sua origem na parte mais nobre da alma336 aquela estaacute
desde sempre ligada ao Intelecto atraveacutes da contemplaccedilatildeo Uma vida assim seraacute estaacutevel em prazer
contentamento e serenidade337 e nada do que eacute exterior poderaacute subtrair-lhe o equiliacutebrio Quem quer
que viva essa vida manteraacute sempre consigo ldquoo mais elevado conhecimentordquo338 e aspirando agrave
sabedoria e agrave felicidade ldquodeve tomar o sumo Bem e olhar para ele e assemelhar-se a ele e viver em
conformidade com elerdquo339
Neste contexto torna-se perfeitamente compreensiacutevel a conhecida maacutexima que
consubstancia a prescriccedilatildeo moral das Eneacuteadas ldquoAfasta-te de tudo (ἄφελε πάντα)rdquo340 Para Plotino eacute
imprescindiacutevel ldquofugir do mundo isto eacute abstrair dos prazeres de tudo que eacute efecircmero contingente
ilusoacuterio e viver a vida interiorrdquo341 Este exerciacutecio asceacutetico conduz natildeo apenas agrave verdadeira
felicidade mas tambeacutem agrave mais elevada liberdade a que pode aspirar o gecircnero humano iniciando
com a superaccedilatildeo das restriccedilotildees corpoacutereas evoluindo para a identificaccedilatildeo com as realidades
inteligiacuteveis e culminando na assemelhaccedilatildeo ao Uno
334 Eneacuteada I 4 10 335 Eneacuteada I 5 7 336 Eneacuteada I 4 14 337 Eneacuteada I 4 12 338 Eneacuteada I 4 12 Cf A Repuacuteblica 427 d Banquete 212 a Teeteto 176 b 339 Eneacuteada I 4 16 340 Eneacuteada V 3 17 341 ULLMANN 2002 p 200
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Plotino aborda o tema da liberdade no tratado intitulado Sobre o Voluntaacuterio e a Vontade do
Uno cujo objetivo principal eacute demonstrar a liberdade absoluta da Suprema Realidade No entanto
por considerar que natildeo haacute melhor ponto de partida para o assunto o licopolitano inicia o texto com
uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo ordinaacuteria de liberdade humana para entatildeo avanccedilar no campo das
hipoacutestases inteligiacuteveis ateacute o topo reconhecendo que somente o Uno eacute verdadeiramente livre Parte
assim das realidades conhecidas ao desconhecido valendo-se neste uacuteltimo caso da via apofaacutetica ou
negativa que caracteriza a culminacircncia da via ascensional
Nesse tratado a primeira constataccedilatildeo eacute a de que os objetos e acontecimentos externos podem
suprimir o livre-arbiacutetrio ldquoTenho para mim que quando somos pressionados pelas adversidades
compulsotildees e violentas investidas das paixotildees que se apoderam da nossa alma reconhecemos todas
estas coisas como nossos mestres e somos escravizados e arrastados por elas para todo o lugar que
nos conduzamrdquo342 diz Plotino Atos dessa natureza natildeo satildeo livres uma vez que satildeo ditados por
circunstacircncias externas O cenaacuterio descrito comprometeria decisivamente o ideal de
autossuficiecircncia para o qual aponta toda a filosofia plotiniana
Plotino traz entatildeo agrave reflexatildeo outra questatildeo relacionada ao livre-arbiacutetrio Trata-se do
conhecimento a respeito das circunstacircncias envolvidas no ato livre Sugere por exemplo o caso de
algueacutem ser capaz de matar mas desconhecer que a viacutetima seria seu proacuteprio pai Ora neste caso
apesar de existir a capacidade para realizar o ato o desconhecimento involuntaacuterio da situaccedilatildeo levaria
ao erro comprometendo a liberdade do ato Daiacute entatildeo a conclusatildeo plotiniana de que somente seraacute
ldquovoluntaacuterio o ato que esteja ao nosso arbiacutetrio por termos capacidade de concretizaacute-lo ocorra sem
coaccedilatildeo e com conhecimentordquo343
A concepccedilatildeo eacutetica plotiniana estaacute sintetizada em uma breve passagem do tratado Sobre as
Trecircs Hipoacutestases Principais ldquoPosto que exista a alma que raciocina sobre o que eacute justo e bom e a
razatildeo discursiva que questiona sobre a retidatildeo e a bondade desta ou daquela coisa em particular
deve existir algo justo que seja estaacutevel do qual surge a razatildeo discursiva na almardquo344 O que Plotino
investiga nesta passagem eacute a fundamentaccedilatildeo cosmoloacutegica da eacutetica daiacute dizer-se que sua eacutetica estaacute
fundada na metafiacutesica
342 Eneacuteada V 8 1 343 Eneacuteada V 8 1 344 Eneacuteada V 1 11
65
De acordo com o excerto e a investigaccedilatildeo subsequente as accedilotildees nobres e justas tecircm sua
contraparte inteligiacutevel estatildeo presentes na Alma divina enquanto razatildeo discursiva no Intelecto
enquanto princiacutepios e em uacuteltima anaacutelise originam-se como tudo o mais no Uno Some-se a isso a
esfera sensiacutevel e tem-se a superestrutura caracteriacutestica do sistema plotiniano Neste contexto a
liberdade estaraacute associada agrave descoberta e realizaccedilatildeo em ato dos princiacutepios ordenadores de todas as
coisas Tanto mais livre justo virtuoso e feliz seraacute algueacutem quanto mais sua vida for a expressatildeo
desses princiacutepios coacutesmicos345
A virtude entatildeo deixa de ser adequaccedilatildeo a determinado padratildeo moral a justiccedila natildeo seraacute
apenas a observacircncia das regras sociais e a felicidade natildeo estaraacute condicionada agraves circunstacircncias
externas Tudo passa necessariamente pelo criteacuterio da harmonia em relaccedilatildeo aos princiacutepios
superiores o que demanda natildeo soacute uma compreensatildeo racional mas uma ascensatildeo real Somente
quando o ser humano estiver em sintonia com a ordem coacutesmica poderaacute gozar do verdadeiro e
incondicionado estado de liberdade346
Assim a concepccedilatildeo eacutetica da metafiacutesica plotiniana assume dimensotildees bem mais profundas do
que o vieacutes descritivo ou normativo347 elevando-se ao momento filosoacutefico-existencial que antecede a
contemplaccedilatildeo pura Ao grande pensador da eacutetica no mundo ocidental Immanuel Kant em sua
maacutexima ldquoage de tal modo que a maacutexima da tua accedilatildeo possa ser considerada lei universalrdquo Plotino
responderia ldquoAge de tal modo que a perfeiccedilatildeo do Bem Supremo se expresse em todos os teus atosrdquo
345 ldquoThe ideal state for Plotinus seems to be one in which the individual psycheacute behaves as like cosmic psycheacute as possiblerdquo (Ravindra R amp Armstrong A H Dimensions of the Self In RAVINDRA 1998 p 87) 346 ldquoDeacutecouvrir le principe des choses ce qui est le but de la recherche philosophique crsquoest en mecircme temps pour Plotin la lsquofin du voyagersquo crsquoest-agrave-dire lrsquoaccomplissement de la destineacuteerdquo (BREacuteHIER 1999 p 23) 347 ldquoIllustrata la metafisica di Plotino si puograve studiarne lrsquoetica Ma questa parola non va presa al modo di Kant come unrsquoanalisi del dovere bensigrave al modo di Aristotele come una ricerca di ciograve che noi chiamiamo lsquovalorersquo mediante la virtugrave (ossia in Greco capacitagrave di ottenere una qualsiasi forma di bene) Dal punto di vista di Plotino la virtugrave saragrave una capacitagrave di ritornare per quanto possibile verso lrsquoIntelligibile che ci ha dato lrsquoessererdquo (MATHIEU 1992 p 89)
66
5 A CONVERGEcircNCIA ESTEacuteTICA
Toda coisa bela eacute uma janela atraveacutes da qual podemos investigar a sempre presente Realidade (S Ram)
A concepccedilatildeo esteacutetica de Plotino desenvolvida basicamente nos tratados Sobre o Belo348 e
Sobre a Beleza Inteligiacutevel ainda que esteja presente em diversas passagens ao longo das Eneacuteadas
estende-se desde a Beleza Absoluta fonte inesgotaacutevel e pura de todas as coisas belas ateacute a
obscuridade da mateacuteria a total privaccedilatildeo de beleza e forma349 enfatizando a experiecircncia esteacutetica da
alma humana que se movimenta entre tais extremos350 Para o filoacutesofo de Licoacutepolis o Bom o Belo e
o Verdadeiro equivalem-se e assim como ldquoa beleza eacute a existecircncia real ou a verdadeira realidade a
feiura eacute o princiacutepio contraacuterio agrave existecircncia eacute o primeiro malrdquo351
Deve-se observar de antematildeo que Plotino encontra-se consideravelmente distante de uma
concepccedilatildeo esteacutetica sistemaacutetica Natildeo se acha nas Eneacuteadas uma criacutetica agrave arte nem uma investigaccedilatildeo
pormenorizada acerca do juiacutezo de gosto tampouco uma anaacutelise detida sobre a produccedilatildeo artiacutestica ou
mesmo qualquer sugestatildeo de engajamento artiacutestico352 Nos tratados referidos haacute um distanciamento
das tradicionais noccedilotildees gregas de beleza enquanto simetria preservando-se a perspectiva ascendente
da filosofia platocircnica presente em O Banquete O licopolitano enfatiza ainda os requisitos
psicoloacutegicos e existenciais propiciatoacuterios agrave contemplaccedilatildeo esteacutetica Em siacutentese o belo eacute visto como
algo em si e como uma meta a ser alcanccedilada
Por outro lado mesmo considerando o fato de que ldquoa filosofia antiga e medieval natildeo conhece
nenhuma disciplina chamada lsquoesteacuteticarsquo mas somente tratados sobre a aiacutesthesis a percepccedilatildeo dos
sentidosrdquo353 vale lembrar que o termo grego αἴσθησις ldquoindica a percepccedilatildeo das qualidades dos
objetos sensiacuteveis e tambeacutem a faculdade de perceber em geral e em particularrdquo354 Plotino no
entanto no tratado Sobre o que eacute o animal e o que eacute o homem distingue claramente esses dois
348 ldquoIt has been perhaps the best known and most read treatise in the Enneads both in ancient and modern timesrdquo (ARMSTRONG nota agrave Eneacuteada I 6) 349 Eneacuteada I 6 2-3 350 ldquoPlotinus expresses his inner experience in terms consonant with the Platonic tradition He situates himself and his experience within a hierarchy of realities which extends from the supreme level God to the opposite extreme the level of matterrdquo (HADOT 1998 p 26) 351 Eneacuteada I 6 6 352 Contudo haacute correlaccedilotildees com as concepccedilotildees esteacuteticas de Hegel e Schopenhauer pois os objetos belos tambeacutem satildeo vistos como um meio para atingir algo mais elevado 353 RICKEN 2008 p 50 354 REALE 2001 v V p 235
67
sentidos mostrando que a sensaccedilatildeo exterior eacute uma afecccedilatildeo corpoacuterea enquanto a percepccedilatildeo sensiacutevel
estaacute relacionada agrave atividade da alma na esfera inteligiacutevel
Os tratados em tela encerram os temas fundamentais da filosofia plotiniana metafiacutesica e
miacutestica Para tanto ambos realccedilam o caraacuteter transcendente da Ideia assim como a via ascensional
que conduz da beleza corpoacuterea aos sucessivos niacuteveis de beleza inteligiacutevel Como o universo sensiacutevel
eacute composto de mateacuteria e forma e as formas corpoacutereas tecircm sua origem nas Ideias que a Alma
contempla no Cosmo Noeacutetico seraacute possiacutevel mediante a abstraccedilatildeo dos aspectos materiais da
realidade sensiacutevel ascender agrave beleza incorpoacuterea
Retomando-se a oacutetica dedutiva do sistema plotiniano observa-se que a beleza arquetiacutepica
procede da Suprema Realidade Esta eacute a ldquoBeleza que tambeacutem eacute o Bem e deve ser colocada como a
primeira realidade Imediatamente depois dela vem o Intelecto que eacute uma manifestaccedilatildeo
proeminente da Belezardquo355 Novamente o Uno eacute alccedilado ao patamar maacuteximo da escala plotiniana de
valores eacute a fonte inexauriacutevel de todas as coisas que transborda em sua perfeiccedilatildeo e eternamente daacute
origem a tudo o que existe como uma substacircncia aromaacutetica que sem cessar dimana seu perfume
sem sofrer diminuiccedilatildeo356
Natildeo se trata aqui de um princiacutepio abstrato de beleza nem de algo que tenha a beleza como
um atributo mas sim de um poder de uma beleza e de uma perfeiccedilatildeo sem limites que cria beleza
em decorrecircncia da forccedila e da superabundacircncia de sua proacutepria beleza como evidencia esta passagem
do tratado Como subsiste a multiplicidade das ideias e sobre o Bem ldquoA potecircncia criadora de todas
as coisas eacute a Flor da Beleza a Beleza que produz beleza (δύναμις οὖν παντὸς καλοῦ ἄνθος ἐστί
κάλλος καλλοποιόν)rdquo357
Com efeito o Uno ldquoeacute perfeito o mais perfeito entre tudo e eacute o princiacutepio de todo poder e tem
de ser mais poderoso do que todas as coisas e todos os outros poderes devem imitaacute-lo na medida de
sua capacidaderdquo358 Em uacuteltima anaacutelise portanto todas as coisas tecircm na Primeira Hipoacutestase do
sistema plotiniano o seu fundamento e tatildeo mais belas seratildeo quanto mais refletirem essa unidade
primeira pois ldquosoacute haacute beleza se a natureza do Uno domina as partesrdquo359
355 Eneacuteada I 6 6 356 Cf Eneacuteada V 1 6 357 Eneacuteada VI 7 32 358 Eneacuteada V 4 1 359 Eneacuteada VI 9 1
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Da perfeiccedilatildeo incessantemente criadora e produtiva do Uno que em si mesmo no entanto eacute
anterior a qualquer determinaccedilatildeo surge a multiplicidade das Ideias a beleza arquetiacutepica que eacute a
matriz de todas as coisas geradas e agrave qual tudo o que vem depois aspira Para Plotino uma flor uma
melodia ou mesmo um gratildeo de areia carregam uma beleza imanente decorrente de um lado de sua
unidade e de outro das formas imateriais das quais satildeo reflexos do mesmo modo em que se
aperfeiccediloam ao se voltarem agrave beleza metafiacutesica da qual provecircm
A rigor portanto de acordo com a concepccedilatildeo natildeo-dualista da Primeira Hipoacutestase melhor
seria dizer que o Uno eacute a Beleza Absoluta incondicionada e pura que se manifesta como a beleza
incorruptiacutevel das Ideias conforme se depreende da seguinte passagem ldquoPara aleacutem da beleza estaacute o
que chamamos de lsquoa natureza do Bemrsquo que irradia de si a beleza Se quisermos dividir os
inteligiacuteveis diremos numa foacutermula sinteacutetica que o primeiro princiacutepio eacute o Belo e que a beleza
inteligiacutevel eacute o lugar das Ideiasrdquo360
O Uno eacute o princiacutepio da beleza logo ldquosua beleza seraacute de outro tipo seraacute a beleza que
transcende toda beleza (κάλλος ὑπὲρ κάλλος) pois sendo nada que beleza poderia serrdquo361 Em
relaccedilatildeo ao Intelecto eacute-lhe conferido um caraacuteter transcendente e primaacuterio de beleza Em verdade a
identificaccedilatildeo da beleza com a Ideia eacute o traccedilo caracteriacutestico da concepccedilatildeo esteacutetica plotiniana Todas
as coisas belas tecircm seu modelo no mundo das Ideias delas derivam e portanto satildeo belezas de uma
ordem inferior por mais encantadoras que sejam agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Os diversos graus de beleza
dependem da proximidade agrave origem pois ldquoalgo eacute mais fraco do que aquilo que permanece na
unidade na proporccedilatildeo em que se expande em direccedilatildeo agrave mateacuteriardquo362
Para o licopolitano ldquoa simples beleza de uma cor proveacutem de uma unificaccedilatildeo de uma Ideia
que domina a obscuridade da mateacuteria mediante a presenccedila de uma luz que eacute incorpoacuterea que eacute um
princiacutepio inteligiacutevel e uma Ideiardquo363 Esta Ideia eacute o modelo e o elemento comum entre todas as
coisas belas pois as belas ldquoaccedilotildees e ocupaccedilotildees provecircm do fato de a Alma imprimir nelas a sua
Forma a qual tambeacutem eacute responsaacutevel por toda a beleza que haacute no mundo sensiacutevel pois sendo um
ente divino um fragmento da beleza primordial ela torna belas todas as coisas que toca e domina
contanto que ela mesma participe da belezardquo364
360 Eneacuteada I 6 9 361 Eneacuteada VI 7 32 362 Eneacuteada V 8 1 363 Eneacuteada I 6 3 364 Eneacuteada I 6 6
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Visto a beleza sensiacutevel advir dessa beleza incorpoacuterea ou metafiacutesica que eacute mais intensa e
verdadeira do que aquela captada pelos sentidos mas sobretudo por considerar que a beleza
tambeacutem se encontra em coisas simples e em valores imaterias Plotino descarta a tradicional
concepccedilatildeo grega de beleza como simetria que perdurou ateacute aos estoicos Restam prejudicadas da
mesma forma a noccedilatildeo platocircnica de beleza enquanto medida e proporccedilatildeo bem como a noccedilatildeo
aristoteacutelica de beleza como ordem e grandeza
Com efeito no Filebo Platatildeo afirma que ldquoeacute na medida e na proporccedilatildeo que sempre se
encontram a beleza e a virtuderdquo365 Apesar de contestar essa visatildeo a esteacutetica plotiniana reproduz em
grande medida a concepccedilatildeo de beleza presente na eroacutetica platocircnica Nesse sentido como ensina
Ullmann a respeito da atraccedilatildeo amorosa da eroacutetica plotiniana ldquoo Uno kaloacuten em si eacute ao mesmo
tempo algueacutem que chama kaleĩn em grego Pela eroacutetica a alma transcende o belo corpoacutereo com
funccedilatildeo iniciaacutetica e se eleva ao Belo em sirdquo366
Jaacute as divergecircncias em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo aristoteacutelica de beleza satildeo mais significativas pois
o estagirita restringe o belo agraves coisas empiacutericas tambeacutem se valendo da categoria quantitativa como
estabelece a seguinte passagem ldquoO belo seja um ser animado seja qualquer outro objeto desde que
igualmente constituiacutedo de partes natildeo soacute deve apresentar nessas partes certa ordem proacutepria mas
tambeacutem deve ter e dentro de certos limites uma grandeza proacutepria de fato o belo consta de
grandeza e de ordemrdquo367
No entanto a criacutetica plotiniana agrave concepccedilatildeo de beleza enquanto simetria estaacute mais voltada
aos estoicos natildeo apenas porque eles ldquoqualificam o belo de bem perfeito porque estaacute repleto de
todos os fatores requeridos pela natureza ou porque tem proporccedilotildees perfeitasrdquo368 mas
principalmente pelo fato de negarem os resultados da ldquosegunda navegaccedilatildeordquo platocircnica o que os
distancia sobremaneira da metafiacutesica plotiniana Mas apesar de marcadamente panteiacutestas e
racionalistas eles tambeacutem associam o belo ao bom ldquoPara os estoicos somente o belo eacute bom () o
que equivale a afirmar que todo bem eacute belo e que a palavra lsquobelorsquo tem o mesmo significado da
palavra lsquobemrsquo porquanto um eacute igual ao outrordquo369
365 Filebo 64 e 366 ULLMANN 2002 p 169 367 Poeacutetica 7 1450 b apud REALE 2002 v II p 491 368 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 100 369 Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres Livro VII 1 101
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Para Plotino a simples possibilidade de haver simetria entre objetos destituiacutedos de beleza
demonstra que esta natildeo eacute uma questatildeo quantitativa Tambeacutem o fato de existir beleza entre objetos
simples como medir a beleza do inesperado relacircmpago que corta a noite escura Ademais seria
uma insensatez valer-se de qualquer medida para avaliar a beleza moral que eacute uma virtude da alma
bem assim a beleza do conhecimento e das ciecircncias370 Por conseguinte seria um absurdo reduzir a
beleza ao acircmbito da percepccedilatildeo sensoacuteria ou agraves categorias da medida e da quantidade Para o filoacutesofo
de Licoacutepolis a verdadeira beleza pertence a um niacutevel ontoloacutegico distinto
Esse eacute mais um aspecto marcante da esteacutetica plotiniana a beleza existe por si soacute
independentemente de sua materializaccedilatildeo e portanto de apreensatildeo sensiacutevel371 por oacutebvio o centro
da preocupaccedilatildeo esteacutetica de Plotino estaacute na beleza metafiacutesica Todas as Ideias em si mesmas satildeo
belas pois a muacutetua implicaccedilatildeo ou o entrelaccedilamento dinacircmico entre elas faz com que a Ideia da
beleza esteja presente em todas as outras e vice-versa no Intelecto a beleza acompanha tanto a Ideia
de justiccedila quanto a Ideia de verdade assim como todas as outras
O Intelecto depende uacutenica e exclusivamente do Uno natildeo sendo afetado pelo que se segue a
ele seja a Alma divina as formas corpoacutereas ou o proacuteprio homem Nesse sentido o tratado Sobre a
Beleza Inteligiacutevel eacute em grande medida uma tentativa de apresentar racionalmente a beleza natildeo-
discursiva da Segunda Hipoacutestase em toda a sua vivacidade esplendor e relativa autonomia As
Ideias satildeo a essecircncia viva da beleza precedendo a arte e a proacutepria natureza e moldam todas as
coisas belas e as potildeem em afinidade umas com as outras
Procede portanto a observaccedilatildeo de Friedo Ricken sobre a filosofia grega claacutessica o que eacute
extensiacutevel agrave filosofia plotiniana de que ldquoo conceito do belo eacute mais amplo do que o belo
apresentado pela arte portanto numa reflexatildeo sobre o belo ainda natildeo eacute necessaacuteria uma reflexatildeo
sobre a arterdquo372 Da mesma forma o belo antecede a beleza que a natureza confere agraves suas obras
pois estas seguem o paradigma da beleza incorpoacuterea que lhes antecede Em ambos os casos arte e
370 Cf Eneacuteada I 6 1 371 ldquoIn questo modo anche il concetto di simmetria contro un accordo meramente formale ed esteriore di parti materiali viene ripensato in una definizione del bello pienamente accetabile La bellezza intelligibile pertanto non egrave niente altro che lrsquoautocorrispondenza riflessiva dello Spirito stesso che dispone lsquoarmonicamentersquo ed illumina lrsquoessere intelligibilerdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 372 RICKEN 2008 p 50
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natureza concorrem para trazer a beleza inteligiacutevel ao plano concreto formando o primeiro degrau
daquela escada373 que conduz agrave beleza celeste
Eacute por meio do acesso agraves Ideias que o artista concebe suas obras No exemplo claacutessico
apresentado por Plotino tomado da escultura dois blocos de pedra diferenciam-se quando a arte
incide sobre um deles infundindo-lhe uma forma captada na esfera inteligiacutevel enquanto o outro
permanece em estado bruto No caso a mateacuteria bruta natildeo tinha a forma que lhe foi conferida mas
esta estava na mente do artiacutefice antes de atingir a pedra porque ele participava da arte portanto natildeo
decorre unicamente de suas habilidades manuais374
Plotino vecirc essa participaccedilatildeo como um acesso direto da mente do artista ao Cosmo Noeacutetico
independentemente do pensamento loacutegico-discursivo o que ateacute poderaacute ocorrer num segundo
momento quando da utilizaccedilatildeo de determinada teacutecnica para materializar o objeto exterior O fato de
ser reconhecida ldquoao primeiro olharrdquo ou ldquoimediatamenterdquo375 indica que nesse niacutevel a experiecircncia
esteacutetica eacute suprarracional376 Segundo Plotino isso explica o fato de que os saacutebios do Egito
utilizavam-se de imagens ou siacutembolos em vez de caracteres palavras ou proposiccedilotildees que pudessem
ensejar discursividade ou deliberaccedilatildeo377
O artista eacute entatildeo alccedilado por Plotino a uma condiccedilatildeo diversa e bem mais favoraacutevel do que
aquela conferida por Platatildeo uma vez que para o licopolitano satildeo apenas homens de estirpe que tecircm
acesso agraves elevadas esferas inteligiacuteveis colhendo ali as melhores impressotildees da dimensatildeo noeacutetica
enquanto o fundador da Academia condena a arte enquanto mera imitaccedilatildeo (μίμησις) da natureza
ela proacutepria um simulacro das Ideias dizendo que ldquoa arte de imitar estaacute muito afastada da
verdaderdquo378 Portanto jaacute que suas obras seriam apenas a reproduccedilatildeo de uma ilusatildeo379 essa arte natildeo
contribuiria para a educaccedilatildeo dos jovens e seria nociva agrave cidade ideal preconizada em A Repuacuteblica
373 A escada do amor de que nos fala Platatildeo em O Banquete cujas ideias centrais satildeo retomadas por Plotino no tratado Sobre o Amor 374 Cf Eneacuteada V 8 1 375 Eneacuteada I 6 2-3 376 ldquoLet us briefly mention the notion of nondiscursive thought which often is associated with the Plotinian Intellect The characteristics usually ascribed to this kind of thought are the following subject and object of nondiscursive thought are identical nondiscursive thought is supposed to be intuitive that is not based on reasoning it is nonpropositional and a grasp of the whole at once totum simulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 241) 377 Cf Eneacuteada V 8 6 378 A Repuacuteblica 598 b 379 Reale sintetiza a concepccedilatildeo platocircnica de arte ldquo1) a arte natildeo desvela mas oculta o verdadeiro porque natildeo conhece 2) natildeo melhora o homem mas o corrompe porque eacute mentirosa 3) natildeo educa mas deseduca porque se dirige agraves faculdades irracionais da alma que satildeo nossas partes inferioresrdquo (REALE 2002 v II p 171)
72
Para Plotino tambeacutem ldquoa natureza cria tendo em vista o Belordquo380 pois traz em si um
ldquoprinciacutepio racional (λόγος) que eacute o arqueacutetipo da beleza corpoacuterea ainda que o princiacutepio racional na
alma seja mais belo do que aquele existente na natureza pois dele proveacutem aquele que estaacute na
naturezardquo381 Logo do mesmo modo que o artista ascende ao Intelecto daiacute trazendo as impressotildees
que seratildeo materializadas em suas obras tambeacutem a Alma divina busca no Intelecto as Ideias que
seratildeo introduzidas na mateacuteria por meio de sua potecircncia inferior a natureza382 Com efeito ldquoa
natureza tem sua origem no alto isto eacute no Bem portanto no Belordquo383
Em ambos os casos tanto a arte quanto a natureza recorrem agrave realidade interior agrave ldquobeleza
que eacute seguramente maior e mais bela do que aquela que estaacute no objeto exteriorrdquo384 Poreacutem assevera
Plotino ldquopor natildeo estarmos acostumados a ver as coisas internas e natildeo as conhecermos perseguimos
o exterior ignorando que eacute o interior que nos moverdquo385 A visatildeo direta dessas realidades internas ou
seja das essecircncias que povoam a esfera do Intelecto experiecircncia que Plotino descreve com o vigor
do testemunho pessoal traz consigo a convicccedilatildeo de que dali surgem ldquotodas as coisas que satildeo
geradas sejam elas produtos da arte ou da natureza uma inteligecircncia que governa a criaccedilatildeo por toda
a parterdquo386
Ainda que a razatildeo discursiva seja insuficiente para transmitir um niacutevel ontoloacutegico diverso
Plotino empreende um grande esforccedilo para superar o tempo e o espaccedilo em que se movimenta o
pensamento linear e alcanccedilar a dimensatildeo atemporal e natildeo-espacial do Intelecto pois as coisas de laacute
ldquonatildeo derivam de uma sucessatildeo de proposiccedilotildees nem de um projeto mas vecircm antes da consequecircncia e
do projeto jaacute que todas estas coisas satildeo posteriores seja o raciociacutenio seja a demonstraccedilatildeo seja a
convicccedilatildeordquo387 Refere-se agraves Ideias entatildeo como entes vivos ldquoimagens natildeo-pintadas mas reais que
foram denominadas pelos antigos como realidades e substacircnciasrdquo388
Satildeo essas Ideias que a Alma divina por meio da contemplaccedilatildeo traz em si no modo de razotildees
seminais (λόγοι σπερματικοί) introduzindo-as na mateacuteria (ὕλη) e gerando os corpos (σώματα)
Dessa maneira eacute composto o universo fiacutesico como uma modificaccedilatildeo da mateacuteria primordial 380 Eneacuteada III 5 1 381 Eneacuteada V 8 3 382 ldquoLrsquoimitazione della natura attraverso lrsquoarte non deve pertanto essere biasimata come un qualcosa di superficiale o decettivo giaccheacute la natura stessa nella realizzazione del suo essere proprio imita le Idee o Logoi come tracce dellrsquoUno che opera in leirdquo (BEIERWALTES 1993 p 94) 383 Eneacuteada III 5 1 384 Eneacuteada V 8 1 385 Eneacuteada V 8 2 386 Eneacuteada V 8 5 387 Eneacuteada V 8 7 388 Eneacuteada V 8 5
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decorrente de sua associaccedilatildeo com os atributos que Alma divina carrega eternamente consigo desde o
universo inteligiacutevel Se o Uno foi considerado a fonte da beleza e o Intelecto uma beleza primaacuteria a
Alma divina seraacute tomada como uma beleza secundaacuteria que preenchida pela contemplaccedilatildeo do
Intelecto empreende um movimento contraacuterio gerando tambeacutem a sua imagem no universo
sensiacutevel389
No tratado Sobre as Trecircs Hipoacuteteses Iniciais Plotino sugere um exerciacutecio meditativo em
alusatildeo ao papel demiuacutergico que a Alma divina exerce iluminando todas as formas desde o interior
do mesmo modo que ldquoos raios do Sol iluminam as escuras nuvens fazendo-as brilhar como o ouro
assim tambeacutem a Alma entrando no corpo do ceacuteu daacute-lhe vida e imortalidade e desperta o que estaacute
inerte E o ceacuteu movido incessantemente pela saacutebia conduccedilatildeo da Alma torna-se um lsquoafortunado ser
viventersquo e adquire seu valor pela Alma que o habitardquo390
Compreende-se entatildeo a afirmaccedilatildeo de que ldquono mundo a riqueza das maravilhosas obras do
exterior nos encanta pelo fato de ser a manifestaccedilatildeo dos tesouros do mundo interiorrdquo391 O filoacutesofo
de Licoacutepolis alerta no entanto quanto agrave complexidade do universo material assim gerado porque
ele eacute do iniacutecio ao fim composto de formas primeiramente das formas dos elementos que a seguir
agregam-se na composiccedilatildeo de outras formas que se sobrepotildeem umas agraves outras numa sucessatildeo
crescente de modo que a mateacuteria fica escondida sob tantas formas392 e as proacuteprias formas imateriais
tornam-se encobertas
A mateacuteria sem forma (ἄμορφος) eacute privaccedilatildeo absoluta pois estaacute destituiacuteda do Ser e do Bem
representando a ausecircncia total de beleza Com efeito Plotino diz que ldquotodas as coisas privadas de
Forma e destinadas a receber uma Forma ou uma Ideia permanecem feias e estranhas ao pensamento
divino enquanto natildeo comungarem com um pensamento ou uma Ideia A feiura absoluta consiste
nisso Tudo o que natildeo eacute dominado por uma Forma eacute algo feiordquo393 Observe-se contudo que essa
feiura absoluta trata-se tatildeo-somente de uma deduccedilatildeo do sistema plotiniano natildeo podendo ser captada
pela percepccedilatildeo sensoacuteria em decorrecircncia de sua incorporeidade e da absoluta ausecircncia de atributos da
mateacuteria indiferenciada
389 Cf Eneacuteada V 2 1 390 Eneacuteada V 1 2 391 Eneacuteada IV 8 5 392 Cf Eneacuteada V 8 7 393 Eneacuteada I 6 2
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Somente quando recebe uma forma a mateacuteria seraacute passiacutevel de apreensatildeo sensoacuteria Quando
isso ocorre surge nela primeiramente um grau iacutenfimo de beleza em decorrecircncia do reflexo da luz
inteligiacutevel que recebe Progressivamente entatildeo na medida em que a mateacuteria informe eacute dominada e
organizada a Ideia pela mediaccedilatildeo da Alma divina ldquocombinando as vaacuterias partes das quais ela eacute
composta as reduz a um todo convergente e colocando-as de acordo entre si cria a unidade ()
Quando algo eacute conduzido agrave unidade a beleza entroniza-se ali pois ela se difunde por cada uma de
suas partes individualmente e pelo conjuntordquo394
ldquoMero belo de empreacutestimordquo como ensina Ullmann ldquoo belo sensiacutevel constitui uma forccedila
motriz capaz de conduzir a alma ao belo incorpoacutereo Para Plotino o belo natildeo anuncia ou enuncia
simplesmente a si mesmo mas eacute a revelaccedilatildeo de algo que o transcende de algo inteligiacutevel A beleza
tem pois funccedilatildeo iniciaacuteticardquo395 Ao reconhecer a beleza presente nos corpos ldquonasce nas almas o
desejo de se unirem a alguma coisa belardquo396 e este eacute o iniacutecio de uma longa jornada que as conduz ao
inteligiacutevel e a si mesmas
Seraacute necessaacuterio entatildeo a partir da contemplaccedilatildeo esteacutetica elevar-se desde a beleza sensiacutevel agrave
beleza inteligiacutevel da Alma divina e do Intelecto e por fim agrave uniatildeo miacutestica trilhando a senda que
ficou conhecida como a ldquoesteacutetica da ascensatildeordquo Eis uma passagem do tratado Sobre o Belo que
ilustra esse vieacutes programaacutetico do sistema plotiniano ldquoEacute preciso subir em direccedilatildeo ao Bem que eacute
aquilo para o qual tende toda alma Quem quer que o tenha visto sabe o que quero dizer quando
digo que ele eacute belordquo397 Registre-se no entanto que os termos de caraacuteter espacial como ldquosubidardquo
ldquoascensatildeordquo e ldquointeriorrdquo por exemplo tecircm sentido conotativo pois modificam seu sentido no
acircmbito do incorpoacutereo
Essa concepccedilatildeo ascensional surge jaacute no primeiro paraacutegrafo do tratado Sobre o Belo que
imprime a tocircnica de todo o texto na escala inferior da hierarquia esteacutetica plotiniana encontra-se a
beleza sensiacutevel ndash aquela que se dirige principalmente agrave visatildeo mas tambeacutem agrave audiccedilatildeo aleacutem dos
sentidos estaacute a beleza que se expressa na conduta de vida e no conhecimento mais aleacutem como
sugere Plotino encontra-se o reino da verdadeira beleza a essecircncia ou a Ideia da beleza por fim a
fonte imarcesciacutevel de toda as coisas belas a Beleza Absoluta398
394 Eneacuteada I 6 2 395 ULLMANN 2002 p 165 396 Eneacuteada III 5 1 397 Eneacuteada I 6 7 398 Cf Eneacuteada I 6 1
75
Portanto as belezas sensiacuteveis natildeo devem ser desprezadas pois trazem a marca os vestiacutegios
(ἴχνοι) da verdadeira beleza que reside no mundo inteligiacutevel e em uacuteltima anaacutelise do ldquoseu Pai que
estaacute aleacutem do Intelectordquo399 A beleza corpoacuterea passa a ser entendida entatildeo como um indicativo de
uma beleza mais profunda e significativa Eacute uma janela sempre aberta agrave contemplaccedilatildeo da beleza
metafiacutesica das Ideias pois ldquotudo o que haacute de mais belo no Mundo Sensiacutevel eacute uma imagem ou
manifestaccedilatildeo do que haacute de mais nobre no Mundo Inteligiacutevelrdquo400
Em siacutentese considerando o esquema de processotildees em que ldquodo primeiro ao uacuteltimo princiacutepio
haacute uma exteriorizaccedilatildeo na qual cada princiacutepio manteacutem seu proacuteprio lugar enquanto o que eacute gerado de
cada um assume um lugar inferior embora mantenha identidade com o que o gerou enquanto
mantiver contato com elerdquo401 deve-se empreender o caminho inverso um olhar penetrante sobre a
beleza mais densa poderaacute entatildeo remeter agrave beleza anterior que lhe daacute origem e assim em sucessivos
desdobramentos conduzir da multiplicidade agrave unidade primeira
Em verdade aqueles que estatildeo trilhando a senda da beleza ldquoveneram tanto a beleza terrena
como a Beleza arquetiacutepica pois veem a beleza daqui debaixo como um efeito e um reflexo da
Beleza do altordquo402 procurando encontrar a Ideia que estaacute encoberta pela mateacuteria sensiacutevel O desafio
do ser humano seraacute o de natildeo se deixar encantar com as imagens sensoacuterias compreendendo sua
importacircncia relativa e seu propoacutesito ascensional tomando-as como degraus que conduzem a um
niacutevel mais elevado de beleza
Nesse sentido eacute bastante eloquente o fato de Plotino recorrer ao mito de Narciso nos dois
tratados sobre o belo403 Como a etimologia sugere404 o indiviacuteduo natildeo se deve deixar entorpecer ou
inebriar pelos apelos sensoacuterios Agravequele que naturalmente se deleita com a beleza sensiacutevel Plotino
sugere que deve ldquoser ensinado a natildeo se arrebatar por uma forma corporal mas deve ser levado por
uma disciplina mental a ver a beleza em toda parte e discernir que ela eacute algo diverso das formas
corporais que ela vem de outro lugarrdquo405
Mais do que isso aleacutem da abstraccedilatildeo dos objetos sensoacuterios que propiciam a contemplaccedilatildeo
esteacutetica o proacuteprio exerciacutecio mental prescrito que sugere a segregaccedilatildeo da beleza inteligiacutevel presente
399 Eneacuteada V 8 1 3 400 Eneacuteada IV 8 6 401 Eneacuteada V 2 2 402 Eneacuteada III 5 1 403 Eneacuteadas I 6 8 e V 8 2 404 Do gr vάρκη entorpecimento daiacute a palavra ldquonarcoacuteticordquo 405 Eneacuteada I 3 2
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nas formas corporais deve ser superado como bem ilustra a seguinte passagem ldquoEacute necessaacuterio se
afastar do conhecimento racional e dos objetos desse conhecimento e de qualquer objeto de
contemplaccedilatildeo por mais belo que ele seja Pois tudo o que eacute belo estaacute abaixo do Uno e proveacutem do
Uno como toda a luz do dia proveacutem do Solrdquo406 Vale lembrar nesse sentido a conhecida maacutexima
que consubstancia a prescriccedilatildeo existencial das Eneacuteadas ἄφελε πάντα
Ater-se exclusivamente agrave beleza sensiacutevel como no caso do jovem heroacutei beoacutecio significa
deixar-se dominar pelas imagens transitoacuterias em detrimento das realidades inteligiacuteveis que
representam407 O licopolitano no entanto como sugere a passagem anterior alerta para outro tipo
de ilusatildeo aquele associado ao conhecimento meramente conceitual Com efeito a razatildeo
movimenta-se na periferia da verdadeira beleza podendo ter a falsa impressatildeo de ter atingido as
realidades noeacuteticas que os conceitos buscam representar408
Em contrapartida a experiecircncia esteacutetica no contexto das Eneacuteadas como jaacute foi observado ldquoeacute
um caminho para a miacutestica para a experiecircncia do transcendenterdquo409 que natildeo se deteacutem nas
representaccedilotildees da beleza mas pressupotildee um movimento em direccedilatildeo agrave origem visando encontrar o
princiacutepio que confere beleza a todas as formas belas ldquoSem duacutevida esse princiacutepio existe Eacute algo
perceptiacutevel ao primeiro olhar algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e ao
reconhececirc-lo acolhe-o e entra em ressonacircncia com elerdquo410
A questatildeo decisiva para a ascese esteacutetica surge no iniacutecio do primeiro tratado da ordem
cronoloacutegica ldquoO que faz com que a visatildeo vislumbre a beleza do corpo e a audiccedilatildeo seja tocada pela
beleza dos sonsrdquo411 O que a pergunta introduz natildeo eacute tanto a questatildeo da anamnese platocircnica como
alguns inteacuterpretes acentuaram mas a questatildeo da ressonacircncia ou mais propriamente a da identidade
pois sendo o ser humano o microcosmo ele reconheceraacute a beleza exterior a partir da beleza inata
que traz em si mesmo
406 Eneacuteada VI 9 4 407 ldquoLrsquoautentico pensiero di Plotino egrave che il mondo egrave bello ma che esiste ancora qualcosa di piugrave bellordquo (ARNOU 1997 p 31) 408 ldquoThe intelligibility of any image depends on the thinkerrsquos possession of a primary intelligible which the image expresses The image necessarily expresses the primary intelligible lsquoin something elsersquo that is some matter or potentiality which expresses but is not identical with the intelligible content of image This does not mean that we always ascend to Intellect in every mundane cognitive activity We normally understand the world around us by means of concepts or images belonging to the order of soulrdquo (EMILSSON Eyjoacutelfur K Cognition and its object In The Cambridge Companion to Plotinus 1996 p 240) 409 RICKEN 2008 p 68 410 Eneacuteada I 6 2 411 Eneacuteada I 6 1
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Isto ocorre porque se em Platatildeo a reminiscecircncia eacute fundamental para que se atualize aquilo
que outrora foi conhecido na esfera incorpoacuterea do inteligiacutevel em Plotino a alma humana eacute desde
sempre um habitante do divino mundo das Ideias Como se vecirc natildeo se trata de lembrar o que foi
vivido anteriormente ateacute mesmo porque Plotino questiona e minimiza o valor da memoacuteria que
depende do tempo e portanto eacute imperfeita ao passo que acentua o valor transcendente e atemporal
das Ideias inclusive da Ideia de homem
Ao investigar o princiacutepio que confere beleza aos objetos sensoacuterios quando Plotino refere-se
a um ldquoantigo conhecimentordquo a questatildeo do ldquoantigordquo deve ser entendida mais propriamente como a
existecircncia de um conhecimento desde sempre presente na alma como se lecirc nesta passagem do
tratado Sobre o amor ldquoA alma tem uma tendecircncia inata agrave beleza em si que se deve ao fato de
originalmente ter conhecido a beleza ter afinidade com ela e ter consciecircncia de tal afinidade pois a
feiura eacute contraacuteria agrave natureza e a Deusrdquo412
Por conseguinte como microcosmo o ser humano traz em si todas as potecircncias inteligiacuteveis
estando assim habilitado a reconhecer a beleza imaterial presente nas formas corpoacutereas De outro
modo seria impossiacutevel o reconhecimento imediato da beleza pois natildeo haveria um elemento de
comparaccedilatildeo Dessa forma ao associar a faculdade interna que possui agraves formas corpoacutereas que a
rodeiam ldquoa alma se pronuncia imediatamente atestando a beleza onde encontra algo de acordo com
a Ideia que estaacute nela mesma usa essa Ideia para julgar como nos servimos de uma reacutegua para
avaliar se uma coisa eacute retardquo413
Aconselha entatildeo Plotino ldquoPosto que aquilo que buscamos eacute o Uno e posto que eacute para o
Princiacutepio de todas as coisas que dirigimos o nosso olhar isto eacute ao Bem e ao Primeiro natildeo devemos
nos afastar das coisas que estatildeo ao redor das primeiras realidades e nos deixar escorregar para as
realidades inferioresrdquo414 Como sublinha Gerson o amor pelas imagens eacute um primeiro passo no
despertar para as realidades imateriais que elas refletem quando entatildeo esse amor eacute transferido para
o acircmbito metafiacutesico415
412 Eneacuteada III 5 1 413 Eneacuteada I 6 3 414 Eneacuteada VI 9 3 415 ldquoThe superiority of the immaterial beauty of soul to the sensible beauty produced by soul is owing to their relative proximity to the paradigm of beauty Intellect Souls become beautiful by being in love with Intellect And the inculcation of love for a beautiful soul is the beginning of love for that which made the soul beautiful First one loves the image Second one recognizes it to be an image and transfers the love to the real thingrdquo (GERSON 1998 p 212-3)
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Aferrar-se agraves coisas sensiacuteveis significa atrasar a proacutepria senda de retorno (ἐπιστροφή)
apegando-se agraves imagens transitoacuterias do vir-a-ser sem perceber as realidades eternas que lhes satildeo o
modelo Todavia o regresso agrave origem eacute inevitaacutevel conforme a doutrina da apocataacutestase subscrita
pelo licopolitano segundo a qual todos ascenderatildeo ao Uno416 Poreacutem quanto antes a alma despojar-
se das coisas exteriores tanto mais cedo seraacute conduzida a si mesma ao Ser e ao Bem Ao mito de
Narciso entatildeo eacute contraposto o de Ulisses o heroacutei que natildeo se deixou deter pelos encantamentos de
Circe e Calipso em seu retorno agrave paacutetria amada417
Plotino sustenta que ao divisar a Ideia que ldquomolda e domina a mateacuteria informe como uma
Ideia que se destaca e subordina as outras formas apreendemos num uacutenico olhar a unidade que
emerge da multiplicidade a remetemos agrave unidade interior e indivisiacutevel e entre ambas haacute concoacuterdia e
comunhatildeordquo418 Surge uma vez mais o paralelismo entre microcosmo e macrocosmo que eacute a marca
do sistema plotiniano reconhecer as realidades internas que a beleza exterior representa significa
desvelar a proacutepria beleza
O esforccedilo pessoal para reconhecer a Ideia presente nas formas corpoacutereas eacute imprescindiacutevel
Para tanto eacute necessaacuterio um certo grau de purificaccedilatildeo pois como foi visto o criteacuterio do juiacutezo
esteacutetico em Plotino eacute a ressonacircncia entre a beleza exterior e aquela que cada ser humano traz dentro
de si Como se vecirc trata-se de um criteacuterio eminentemente subjetivo natildeo de uma medida capaz de
verificar o quantum de beleza determinado objeto apresenta vale dizer a beleza deveraacute ser
descoberta em seu aspecto de qualidade e esplendor metafiacutesico que remete sempre a um niacutevel
superior ateacute agrave Beleza Absoluta
Por isso foi dito que a filosofia plotiniana ldquopara todos os niacuteveis de realidade conduz a uma
ascese e a uma experiecircncia interiores que satildeo o verdadeiro conhecimento pelo qual o filoacutesofo eleva-
se para a Suprema Realidade alcanccedilando progressivamente niacuteveis mais e mais elevados e mais e
mais interiores da consciecircncia de sirdquo419 Fica salvaguardada dessa maneira a valoraccedilatildeo positiva dos
diversos niacuteveis de realidade pois quaisquer que sejam eles sempre representaratildeo uma possibilidade
de elevaccedilatildeo a um patamar superior de consciecircncia Em outro sentido como ressaltou Reale na
416 Cf ULLMANN 2002 p 173 417 Cf Eneacuteada I 6 8 418 Eneacuteada I 6 3 419 HADOT 1999 p 236
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medida em que deriva da Alma divina que eacute a imagem do Intelecto e este proveacutem do Uno deve-se
concluir que o universo sensiacutevel nasceu sob o signo do bem420
Cada um desses niacuteveis de realidade corresponde no ser humano a um grau interno de beleza
que lhe eacute semelhante daiacute a importacircncia de divisar a beleza interna sem o que natildeo haveraacute paracircmetro
adequado para avaliar a beleza exterior Por isso Plotino recomenda ldquoEacute necessaacuterio que o olhar se
torne semelhante ao objeto que deve ser visto para ser capaz de contemplaacute-lo Jamais um olho
poderia contemplar o Sol se natildeo fosse semelhante a ele e jamais uma alma poderia contemplar a
Beleza Suprema se antes natildeo se tornasse belardquo421
Como existe apenas uma essecircncia ou Ideia que molda todas as coisas belas a verdadeira
contemplaccedilatildeo representa a fusatildeo ou absorccedilatildeo reciacuteproca entre a beleza existente nas coisas externas e
aquela que reside no proacuteprio sujeito que as contempla identificaccedilatildeo que culmina naquela siacutentese
entre ser e pensamento que se daacute no acircmbito da Segunda Hipoacutestase ldquoPor meio desse encontro a alma
torna-se consciente de si mesma a experiecircncia de um objeto na verdade eacute algo que se torna
consciente em noacutes a alma eacute lembrada de sua proacutepria essecircnciardquo422
Essa correspondecircncia entre o Ser e a Ideia da Beleza que se estabelece no Intelecto eacute
claramente aludida por Plotino no tratado Sobre a Beleza Inteligiacutevel ldquoTanto o ser eacute desejaacutevel porque
eacute o mesmo que o belo quanto o belo eacute amaacutevel porque eacute o ser Mas por que eacute preciso buscar qual dos
dois eacute causa do outro se a natureza eacute una () De fato a Beleza ilumina todas as coisas e sacia
aqueles que estatildeo laacute ao ponto que tambeacutem esses se tornam belosrdquo423
Chegar assim agrave beleza interna na esfera da Segunda Hipoacutestase significa atingir aquela
identidade entre ser e pensamento que caracteriza o Intelecto plotiniano onde as Ideias satildeo ao
mesmo tempo inteligiacutevel e inteligecircncia Aleacutem disso a assemelhaccedilatildeo a qualquer Ideia como jaacute foi
visto daacute acesso a todas as outras aquele que desvelou a beleza primaacuteria em si tambeacutem conheceu a
verdade pois ambas coincidem nos domiacutenios do Intelecto Como ensina Beierwaltes essa
identidade permite a seguinte proposiccedilatildeo ldquoverdade eacute belezardquo424 Eis entatildeo o conhecimento noeacutetico
420 Cf REALE 2001 v IV p 495-6 421 Eneacuteada I 6 9 422 RICKEN 2008 p 66 423 Eneacuteada V 8 9-10 424 ldquoQuesta proposizione egrave pertanto rovesciabile in lsquobelleza egrave veritagraversquo in quanto nel contesto dellrsquounitagrave in seacute differenziata delle componenti fondamentali del νοῦς i due caratteri possono certamente avere una prioritagrave lrsquouno sullrsquoaltro nel pensiero umano ma non nella realtagrave riflessa ed espressa dello Spirito stessordquo (BEIERWALTES 1993 p 94)
80
que representa a culminacircncia da convergecircncia esteacutetica aleacutem do qual restaraacute apenas a unificaccedilatildeo
com o proacuteprio Uno a ἕνωσις
Em uma das passagens mais belas das Eneacuteadas talvez em alusatildeo a sua terra natal agraves
margens do Nilo Plotino trata dessa fusatildeo entre sujeito e objeto culminacircncia da contemplaccedilatildeo
noeacutetica quando o vermelho dourado do entardecer banha os caminhantes do deserto tornando-os
semelhantes agrave terra sobre a qual caminham425 Nesse momento ldquojaacute natildeo haacute uma coisa e outra
diferente pois neste caso novamente haveraacute algo outro que natildeo mais seraacute um e outro Portanto
ambos devem ser realmente um isso eacute contemplaccedilatildeo viva natildeo um objeto de contemplaccedilatildeo como o
que estaacute em algo diferenterdquo426
425 Cf Eneacuteada V 8 10 426 Eneacuteada III 8 8
81
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Neste trabalho procurou-se sistematizar e apresentar o pensamento plotiniano a partir dos
dois momentos que o caracterizam processatildeo e retorno No primeiro caso foi necessaacuterio
demonstrar como a unidade indiferenciada consubstanciada na Primeira Hipoacutestase daacute origem ao
universo inteligiacutevel e agrave miriacuteade de formas corpoacutereas que povoam o universo sensiacutevel No segundo
discorreu-se sobre os caminhos que reconduzem da multiplicidade agrave unidade primaacuteria enfatizando-
se o vieacutes metafiacutesico e existencial tiacutepico da tradiccedilatildeo neoplatocircnica Em ambos tratou-se da concepccedilatildeo
antropoloacutegica do licopolitano e da importacircncia do autoconhecimento haja vista a correlaccedilatildeo
existente entre o micro e o macrocosmo
A filosofia plotiniana foi abordada em sua organicidade na qual os vaacuterios niacuteveis da realidade
mantecircm-se vinculados agrave causa que lhes deu origem na perspectiva ascendente que se estende desde
o universo sensiacutevel ateacute ao aacutepice do inteligiacutevel no qual estaacute situado o Uno a potecircncia criadora de
todas as coisas aquilo que a tudo antecede e que portanto representa a uacutenica realidade
verdadeiramente independente A partir da demonstraccedilatildeo da articulaccedilatildeo entre as hipoacutestases
inteligiacuteveis e destas com o mundo sensiacutevel ou seja do elo existente entre unidade e multiplicidade
foi possiacutevel explicitar as trecircs vias de retorno presentes ao longo das Eneacuteadas a do conhecimento a
da eacutetica e a da contemplaccedilatildeo esteacutetica
Se no capiacutetulo intitulado ldquoProcessatildeo e Retorno da Filosofia Plotinianardquo o processo dedutivo
foi dominante nos trecircs capiacutetulos subsequentes ganhou destaque o caminho de retorno ldquoA
Convergecircncia Dialeacuteticardquo destacou a insuficiecircncia do conhecimento formal enfatizando a natureza
ascensional da dialeacutetica plotiniana a qual evolui desde o conhecimento sensiacutevel ateacute agrave via apofaacutetica
ou negativa que conduz agrave unificaccedilatildeo Em ldquoA Convergecircncia Eacuteticardquo foi demonstrada a insuficiecircncia
da retidatildeo moral na consecuccedilatildeo do objetivo final pois somente o sucessivo refinamento das virtudes
inferiores proporciona a assemelhaccedilatildeo ao Bem Jaacute em ldquoA Convergecircncia Esteacuteticardquo foram ressaltadas
as concepccedilotildees de beleza metafiacutesica e de experiecircncia esteacutetica destacando-se o fato de que a beleza
sensiacutevel eacute apenas um reflexo da beleza imaterial
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Tratou-se ainda que ligeiramente da vasta heranccedila filosoacutefico-religiosa presente nas
Eneacuteadas pois eacute sabido que o licopolitano incorporou elementos oacuterfico-pitagoacutericos platocircnicos
aristoteacutelicos e estoicos dentre outros com as quais estaacute em permanente diaacutelogo concordando com
os argumentos ou refutando-os Foi abordado sobretudo o vieacutes fortemente platocircnico que exala das
Eneacuteadas uma vez que Plotino dizia-se mero inteacuterprete do pensamento de Platatildeo citando trechos de
diversos Diaacutelogos tomados principalmente de o Banquete Feacutedon Fedro Parmecircnides A Repuacuteblica
Teeteto e Timeu
Ao longo desta dissertaccedilatildeo deu-se especial relevo ao objetivo central da filosofia plotiniana
qual seja a unificaccedilatildeo com o Uno pois na linguagem metafoacuterica do filoacutesofo de Licoacutepolis a
Primeira Hipoacutestase eacute o Sol do qual se irradiam todas as coisas do qual tudo depende em torno do
qual tudo gravita e ao qual tudo aspira Trata-se sem duacutevida do poderoso atrator para o qual
convergem todos os tratados das Eneacuteadas que preconizam nada menos do que o retorno ao
Absoluto por meio daquele ldquovoo do solitaacuterio ao Solitaacuterio (φυγὴ μόνου πρὸς μόνον)rdquo427 que
pressupotildee a superaccedilatildeo de toda a dualidade
Por fim se ldquoa tarefa e as pretensotildees da atividade filosoacutefica determinam-se hoje a partir de um
novo contexto epistemoloacutegico que se caracteriza primariamente pela criacutetica ao procedimento
analiacutetico que marcou a ciecircncia moderna e conduziu a uma visatildeo fragmentada do mundordquo428 a
filosofia plotiniana representa um poderoso antiacutedoto contra essa visatildeo parcial e fragmentaacuteria Com
Plotino aprendemos a ver o mundo e as relaccedilotildees desde um pano de fundo de uma unidade que
integra todas as coisas e todos os seres A Verdade uacuteltima para o licopolitano aponta para um
mundo sem divisotildees no qual fundamentalmente natildeo existem ldquooutrosrdquo mas apenas a vida una que
tudo permeia
427 Eneacuteada VI 9 11 428 OLIVEIRA Manfredo Arauacutejo Subjetividade e totalidade In Cirne-Lima Carlos Rohden Luiz Helfer Inaacutecio 2004 p 86
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