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A contradição do real: uma análise exploratória sobre o movimento negro em Sorocaba-
SP
Bolsista: Matheus Henrique Hilário dos Santos Fagundes – RA 203477
Orientadora: Luciana Ferreira Tatagiba (IFCH/Unicamp)
Resumo
Esta pesquisa tem o intuito de discutir os dilemas e obstáculos que o movimento negro, em uma escala
local, enfrenta para se organizar e engajar. Para isso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com
lideranças do movimento negro em Sorocaba-SP, além de etnografias nos circuitos desses atores em
conjunto a uma análise descritiva e exploratória do movimento no contexto entre 2019-2020, observando
as redes, conquistas, perdas e desafios que os atores e organizações tem enfrentado. A justificativa do
tema é a de procurar trazer para a Ciência Política um exame acerca do movimento negro na
contemporaneidade, longe dos grandes centros e com um olhar de reconhecimento às contradições e
dificuldades que permeiam o dia a dia desses ativistas.
1. Introdução
O presente relatório tem como objetivo apresentar os resultados da Iniciação Científica iniciada
em agosto de 2019 com financiamento do SAE-UNICAMP e orientação da Prof.ª Dr. ª Luciana Tatagiba.
A pesquisa foi realizada na cidade de Sorocaba-SP e é a continuação de uma IC anterior com o mesmo
foco, mas diferentes entrevistados. O trabalho se insere em um projeto coletivo realizado no âmbito do
Núcleo de Pesquisa em Participação e Ação Coletiva da Unicamp (NEPAC), que busca pensar, na
perspectiva da Ciência Política, a importância da questão racial dentro dos movimentos sociais para o
debate sobre democracia e participação no Brasil, uma vez que não há uma tradição de estudos sobre
raça na área.
Ao estudar o movimento negro, em geral, temos pesquisas realizadas em capitais, grandes
centros ou uma discussão mais teórica e historiográfica (DOMINGUES, 2007; RIOS, 2010). O foco
desta pesquisa, por sua vez, está em olhar para o movimento negro em escala local, acompanhando seus
circuitos, ouvindo as vozes de quem o integra. Procuramos aqui olhar para os territórios, organizações
e indivíduos observando suas potencialidades e contradições. A análise é descritiva e exploratória, com
abertura aos entrevistados de compartilharem suas impressões e dilemas.
Com isso, procuro contribuir para uma análise sobre como o movimento negro atua em cidades
menores, com problemas reais do dia a dia, trazendo seus obstáculos e desafios. Na verdade, acredito
que o mérito desta pesquisa está em contribuir com uma visão do movimento na forma como ele é e
está, especialmente no atual contexto, onde o avanço conservador, a crise econômica, a crise da
representação e a crise do campo progressista afetam em muito o amplo, mas fragmentado, movimento
negro. Atualmente ele está em um momento defensivo, de busca por garantir o que já foi conquistado,
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sem poder avançar. Tudo isso em um contexto onde, paradoxalmente, o racismo e a luta antirracista
estão na pauta pública, nacionalizada e em disputa.
Procuro trazer enquanto dilemas e obstáculos a questão da fragmentação das redes
historicamente construídas, o desafio do engajamento em meio à luta pela sobrevivência individual, a
difícil relação com o as instituições e os partidos; o dilema entre o fazer cultura e o fazer política - em
meio ao crescimento dos debates interseccionais - que levam também à um dilema geracional, entre
antigos militantes e uma juventude que questiona as velhas noções e formas de disputar o poder. Espero
que com este trabalho, a partir de uma escala local, eu possa contribuir para o entendimento do complexo
movimento negro brasileiro.
2. Configuração do movimento negro em Sorocaba
Atores e organizações
Em primeiro lugar, é importante afirmar aqui que o movimento negro não é um só, mas sim vários
movimentos. É a capoeira, o samba, o hip-hop, clubes, imprensa, academia, educadores, advogados,
organizações sociais, esportistas entre muitos outros atores e instituições. Suas diferentes práticas estão
dentro do guarda-chuva geral que seria o tal do “movimento negro”. Não se pode falar em uma única
organização ou liderança enquanto sinônimo desse movimento, mas sim em diversas, que apontam uma
pluralidade de práticas, noções e espaços, todos com o foco na luta antirracista (DOS PASSOS;
NOGUEIRA, 2014). Em Sorocaba existem diversos atores que se identificam enquanto parte desse
conjunto de movimentos negros, realizando, cada um, uma atividade diferente, mas com o intuito –
direto ou indireto – de dialogar com a história negra, cultura e a política, a fim de transmitir saberes,
posicionamentos, se expressar, oferecer apoios à sobrevivência individual de outros sujeitos, entre
muitas outras ações.
Na pesquisa anterior, cota 2018-2019, foram entrevistados indivíduos mais jovens e de outros
movimentos, mas nesta privilegiou-se conversar com as lideranças e organizações de “maior prestígio”
e que estão atuando há mais tempo.
Em muito, o ponto comum de partida – seja da história geral do movimento ou até dos primeiros
contatos com a temática racial, especialmente os com mais de 30 anos - se dá a partir do clube negro 28
de Setembro1. Pais de militantes atuais, lideranças, histórias e memórias de parte da negritude
sorocabana possuem vínculo profundo com o clube. Pode-se dizer que o 28 foi um marco na cidade,
pois a partir do clube, criou-se uma comunidade negra engajada, estudiosa, orgulhosa e que conseguia
1 Sociedade Cultural e Beneficente 28 de Setembro foi fundada aos 28 de Setembro de 1945 por um grupo de 14 ferroviários. A entidade sem fins lucrativos, que surgiu com a intenção de oferecer recreação para a comunidade negra de Sorocaba, sucedeu a representação local da Frente Negra Brasileira extinta pela ditadura do presidente Getúlio Vargas. Ao longo de 71 anos, a associação tem atuado na defesa e valorização da cultura afro-brasileira e teve seu auge na década de 1970, com os lendários bailes black, desfiles de miss o “Miss Colored”, desfiles da escola de samba e etc.
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apresentar ao público branco suas pautas e reinvindicações. Entretanto, com o tempo, novas
organizações foram surgindo, pulverizando esse ativismo. De um passado não tão distante também,
outra referência comum – que assim como o 28, aparece em praticamente todas as entrevistas – são as
escolas de samba que são tidas como uma resistência cultural e política negra por possuírem uma relação
histórica com a negritude, os bairros populares, a ocupação do espaço público e é claro, com o ritmo
negro do samba. Seja na composição dos seus quadros, filiados, músicos e sambistas, um grupo de
negros e periféricos se divide entre a vida “normal” e a dos ensaios das escolas, ocupando ruas, praças
e galpões. Com as crises econômicas recentes do país, junto à um processo de proibições e
desinvestimentos na cultura e no apoio às escolas; atualmente, dentre as muitas tarefas do movimento,
é colocado a defesa do carnaval enquanto uma luta comum da negritude.
Além disso, outras organizações são referenciadas, com destaque para o NUCAB2 da
Universidade de Sorocaba (Uniso), o MOMUNES3, os grupos de maracatu, o movimento hip-hop e os
terreiros de religiões de matriz africana. O próprio Centro Cultural Quilombinho - entrevistado aqui –
sempre fora citado enquanto um exemplo de orgulho da negritude sorocabana. Os atores acima não são
entrevistados, mas, como dito, citados. Resolvi menciona-los pois são um elo comum com o passado e
possuem um reconhecimento que perdura até os dias atuais, além de serem exemplos dessa pluralidade
de atividades que conformam os movimentos negros a nível local e nacional.
Nesta pesquisa, contudo, quatro personagens serão ouvidos e estudados. São lideranças que
possuem um trabalho reconhecido pela negritude da cidade. A prova disso é que os próprios
entrevistados citam as lideranças aqui trazidas, exibindo a conformação de uma rede e circuitos do
movimento negro. A escolha, portanto, destes atores leva em consideração seu enraizamento na política
negra local, o que traria respostas mais amplas sobre a totalidade das características, demandas e
necessidades do movimento.
Falando sobre os entrevistados, temos Cida Costa, que possuí 63 anos. Ela é avô, mãe e está
cursando Serviço Social pelo EaD da Faculdade Ipanema de Sorocaba. Atualmente sua principal
militância no Conselho de Segurança Pública da Zona Norte (CONSEG) na figura de presidenta.
Militante histórica do movimento negro de Sorocaba, começou na Associação de Moradores da Vila
Nova Sorocaba e passou para o conselho da unidade de saúde do bairro. Esteve na fundação do Conselho
Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Sorocaba e já foi conselheira
do clube negro 28 de Setembro.
2 Núcleo de Cultura Afro-Brasileira (Nucab), da Universidade de Sorocaba (Uniso), fundado em 1979. Desenvolve pesquisas sobre a questão racial, faz formações, palestras e disputas políticas, especialmente da real implementação da lei 10639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de "história e cultura afro-brasileira" dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio. Também estabelece o dia 20 de novembro como o dia da consciência negra no calendário escolar. 3 Movimento de Mulheres Negras de Sorocaba, criado em 1997 é uma organização da sociedade civil voltada para voltada para o protagonismo negro e empoderamento feminino como fundamentação e ferramenta de educação.
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Outra entrevistada é Maria Luiza Alves dos Santos, 35 anos, mais conhecida como Luiza Alves.
Ela é formada em pedagogia e atua enquanto coordenadora do Centro Cultural Quilombinho que é uma
ONG que atende crianças e adolescentes com aulas de capoeira, pintura, maracatu, teatro, canto coral,
reforço escolar e provendo alimentação para os mais pobres. Tudo com foco no resgate e manutenção
das tradições africanas e afro-brasileiras. Luiza trabalhou também durante quatro anos no mandato do
vereador Irineu Toledo (PRB). Ela é filha de Rosângela Alves, que foi fundadora do Quilombinho,
fundadora do Conselho do negro e ex-conselheira do clube 28 de Setembro. Rosângela foi uma militante
histórica e reconhecida na cidade, falecendo em 2017.
Já Jorge, 36 anos, está cursando direito pelo EaD da FGV. É presidente da UNEGRO Sorocaba
e é também cabelereiro há 17 anos, sendo dono do salão Talento Afro. Segundo Jorge, a proposta da
UNEGRO é de unir militantes do movimento negro para articular a luta contra o racismo, a luta de
classes e combater as desigualdades de gênero. Trabalhou até 2019 no mandato do vereador Renan
Santos (PDT).
Por fim, outro entrevistado é Zé Marcos, 48, presidente do Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra de Sorocaba; atuou nos mandatos do ex-vereador Hamilton
Pereira (PT) e da ex-deputada federal Iara Bernardi (PT). Fez parte da direção do sindicato dos
metalúrgicos de Sorocaba e do conselho nacional e estadual de saúde. Militou durante muitos anos no
movimento dos portadores de HIV.
Circuitos
Entende-se circuitos enquanto locais onde as pessoas transitam com isso, compartilham valores,
saberes e informações (MCADAM; TARROW; TILLY, 2009). Quando falamos do movimento negro
de Sorocaba, esses locais de encontro e troca são as batalhas de hip-hop, bem como, a tradicional semana
do hip-hop. Outro circuito é a feira crespa, que ocorre no centro da cidade, reunindo artistas, artesãos e
coletivos. Nela, shows e apresentações são realizadas enquanto vendas de diversos produtos ocorrem.
Os salões de cabelereiro também são pontos de referência, pois como Jorge fala “em Sorocaba tem um
movimento bem forte dos salões” que são pontos de encontro, troca, oportunidade de emprego e até de
fazer artístico. Os bailes funks, que também serão examinados nesta pesquisa, são circuitos da juventude
negra e periférica, além de uma pauta local recorrente no noticiário. E por fim, o tradicional clube 28,
onde ocorre premiações, festas e formações. Nessas ocasiões, pode-se encontrar a maior parte do
conjunto do movimento negro na cidade, o que prova o reconhecimento e importância histórica do clube.
Nesses circuitos, juventude negra e adultos engajados se encontram e circulam.
Redes
A atuação do conjunto do movimento negro envolve um reconhecimento mútuo das diversas
partes que o integram. Esse reconhecimento deriva de uma observação da atuação dos atores em seus
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respectivos espaços e também de um contato em momentos de reinvindicações, protestos e pautas
(DIAS; BARBAI; DA COSTA; 2014). Em Sorocaba, pode-se ver parte desse movimento em conjunto
nos atos do dia 20 de novembro, na feira crespa, na semana do hip-hop e na defesa dos recursos para o
carnaval, por exemplo. Outro motivo que leva à conformação dessas redes é o entrelaçamento de pautas
que são importantes para diferentes atores: a feira crespa é importante por divulgar e movimentar
financeiramente coletivos, empreendedores e artistas negras, mas também importa para aqueles que
defendem uma maior participação da prefeitura no apoio às iniciativas negras, já que festas de outras
comunidades étnico-raciais possuem ampla divulgação e apoios financeiros e de logística, como a
tradicional feira japonesa e a festa italiana.
Luiza pontua que o próprio Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra
é a chave para essa rede do movimento negro na cidade. Sua fala vai mais no sentido de que essa rede
está em contato, o que significa que há um reconhecimento mútuo da situação em que as organizações
estão e que quando é ou foi necessário um apoio mais urgente, não hesitaram em ajudar. Contudo, ela
também reconhece que no momento, a situação não é favorável e essa rede tem se desgastado, tendo
como exemplo e reflexo as dificuldades que o Quilombinho tem vivido:
O conselho do negro é a chave para todos esses movimentos, então acontece alguma
coisa na Câmara é o Conselho do negro que vai estar entrando em contato com todos
os outros conselhos. O pessoal do 28, as pessoas que trabalham lá, eu acho que são
pessoas que precisam de muita garra, porque era um lugar que já era pra estar fechado,
mas sempre tem um. Quando um ta balançando vêm outro e dá a mão e faz o negócio
acontecer. Então eu acho que se conversa sim. Porque assim, mais do 28, quantas
vezes precisou que todo mundo se uniu pra estar ali junto, pra levantar o lugar, pra
fazer acontecer, seja pro almoço, um chá beneficente, mas mais pra algo ficar em pé?
Mas assim, ao mesmo tempo que eu falo que conversam, tinha que ter um, acho que se conversassem mais, se fosse mais casado teria mais pra progredir porque eu vejo
tanta deficiência aqui na a instituição que se o movimento negro realmente fosse tão
unido assim a gente [do Quilombinho] não estaria passando por tanta muita que a
gente tá.
Os entrevistados afirmam que esse número de participantes poderia ser maior e também mais
organizado coletivamente. É aqui nas redes que começam a surgir alguns dilemas envolvendo a real
conexão coletiva desse conjunto de atores. A fala de Zé Marcos abaixo é sintoma disso. Ele trouxe o
reconhecimento de uma rede ampla de atores que possui dificuldades de um engajamento mais unitário
em conjunto à uma dificuldade de trazer as pessoas que não estão na militância para junto dela. Para ele,
o motivo desta última é uma dificuldade individual das pessoas em não reconhecerem sua ancestralidade
negra e, portanto, não se verem enquanto partes de um todo:
[As redes] elas existem, eu acho que sempre existiu uma rede aqui em Sorocaba que
tem como referência de apontamento o 28, (...) a gente se reconhece. A ancestralidade
que a gente defende muito a gente não pratica, ela que é o reconhecimento dos mais
velhos, que é a oralidade e a busca da convergência das nossas narrações. A gente tem
muito no discurso, mas na pratica cotidiana eu não percebo que a gente tem feito esse
movimento de fortalecimento da oralidade, do comunicar e de trazer a questão da
ancestralidade, porque na realidade a gente vive num país de uma falsa democracia
racial onde a gente busca a nossa sobrevivência pessoal como principal motivo da
nossa vivência, e aí eu vou deixando de lado uma série de outros aspectos que são
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extremamente importantes da minha vivência. Isso significa eu ter uma leve
consciência da história, mas eu não me ver parte dessa história
Nesse sentido, Cida Costa também enfatiza o reconhecimento mútuo dos ativistas e
organizações do movimento negro local e afirma que em todos os principais âmbitos da promoção de
políticas públicas existem negros, quando senão, pautas racializadas. O que faltaria, novamente, seria
uma melhor organização e diálogo entre os conselhos, os indivíduos e o movimento com um todo. Ela
afirma:
A relação com o movimento é mais de reconhecimento. Considero sim o CONSEG
parte do movimento sim. Todos os conselhos fazem parte do movimento negro, no
Conselho de Educação onde tem a lei 10639, aonde precisasse incluir na educação a
questão da história da África com outro perfil, não aquele da minha época que era
escravo e acabou, isso vai ser colocado lá, na escola. Na saúde, no conselho de saúde,
a anemia falciforme; a saúde do negro ela é diferenciada, nós temos o sangue mais grosso, pressão alta, a diabete do negro ela é muito mais cruel do que para o branco.
Na segurança pública nós temos muito negros policiais, mas como ela é um leque que
abrange muita coisa nós precisamos estar lá, nós precisamos participar da mesa
redonda. Então nós estamos tomando conta de alguns lugares.
Dentro de sua experiência ela diz que essa rede se conecta nas seguintes temáticas: Partido
político - educação- saúde - segurança pública - faculdades e emenda, “e onde você quer chegar, onde
seu protagonismo pode influenciar”. Finaliza dizendo que o foco dessa rede tem que ser “na política
pois é lá que mora todo o poder e toda a demanda tá lá, não tem outro lugar”.
No início da pesquisa, eu fui conhecer o clube 28. Compareci à uma premiação, chamada Prêmio
Ubuntu, realizada no clube, com o intuito de conhecer lideranças, observar e entender esse movimento.
Eu já possuía uma lista com nomes e foi interessante ver que todos eles estavam nessa premiação,
inclusive recebendo os certificados e troféus. A partir daí minha hipótese de uma rede ampla do
movimento negro se confirmou. Com a festividade, pude perceber que na verdade ele existe, não
enquanto uma coisa só, mas como um corpo com diversos e diferentes braços. O entendimento de que
não falamos em um movimento, mas sim em movimentos negros acredito ser primordial na reflexão
sobre o ativismo negro. Entretanto, após as entrevistas e participações em manifestações e eventos,
pude enxerga-lo e entendê-lo de forma mais crítica e inclusive verdadeira, sem romantismos. O que
ocorre é que essa rede possuí muitos desafios individuais e coletivos que influenciam na boa atuação de
seus membros. Estes desafios podem ser lidos enquanto obstáculos e dilemas e são alguns dos pontos
que influenciam em um enfraquecimento das redes, das atuações coletivas e individuais. Em seguida,
pretendo apresentar essas questões, discutindo-as e relacionando com as entrevistas.
3. Obstáculos e dilemas do movimento negro
Neste tópico gostaria de aprofundar a discussão sobre os obstáculos e dilemas que o movimento
negro em Sorocaba enfrenta, a partir da resposta dos entrevistados. Devo dizer que as pessoas, ao
conversarmos, sempre traziam com muito orgulho suas práticas individuais e com certo otimismo o
crescimento do debate racial no país. Mas isso sempre com um mesmo olhar de preocupação e cansaço.
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O movimento negro, fora das abstrações acadêmicas e das falas publicizadas na televisão e internet –
no dia a dia real – enfrenta muitos desafios para se manter em pé e atuante. Neste tópico abordaremos
alguns que foram descritos pelos entrevistados a mim. Sem a pretensão de oferecer respostas prontas e
perfeitas, procurei aqui apresentar estas discussões para que a reflexão individual e coletiva seja feita.
Obstáculos à atuação coletiva
Zé Marcos, presidente do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra
lutou para trazer para a legalidade um conselho fundado 2006 que ficou onze anos sem atuar
efetivamente mesmo com a presidência e alguns poucos conselheiros empossados. Para ele, o que há
no movimento negro da cidade é uma fragilidade na participação e na incidência política, que reflete
nas próprias possibilidades de atuação do Conselho, criado para ser um espaço de aglutinação dos
diversos movimentos negros com o foco de demandar políticas públicas. O que ele traz muito em sua
fala é a disputa interna e a desmobilização do movimento, especialmente no apoio e participação no
Conselho:
Eu acho o movimento negro em Sorocaba hoje frágil. Acho que individualmente os
pequenos grupos que existem fazem trabalhos maravilhosos, nunca questionei o
trabalho de ninguém, mas acho que coletivamente é péssimo. Você tem várias pessoas
fazendo acontecer disputando entre si inclusive, mas elas do ponto de vista da
incidência política não conseguem incidir para o coletivo, elas conseguem incidir para
aquele micromundo que existe. (...) E se a gente não entender que a gente precisa
superar as nossas diferenças e se juntar, (...) a gente não vai avançar. Agora, se vocês
se unirem ao conselho, fortalecerem o conselho; porque o conselho é o único criado por lei que tem como função principal o interesse da comunidade negra em Sorocaba.
Então a única instituição que pode falar em nome do movimento negro em Sorocaba
é o conselho.
Zé Marcos observa um movimento que sabe o quer, mas que não consegue se organizar
coletivamente para tanto. Essa dificuldade impacta inclusive na forma como os “de fora” veem o
movimento, questionando sua validade. Com isso, ele é incisivo em comentar sobre o quanto a existência
de bolhas sociais enfraquece um movimento que precisa falar para o público amplo:
Voltando, há uma série de temas que são caros ao movimento negro que o movimento
não participou, (...) ele [o movimento] cobra há anos uma “ah a gente tem que ter
saúde da mulher negra, a gente tem que discutir a 10639, a gente tem que discutir a
capoeira no currículo escolar”, mas na hora do debate esse movimento negro não tava
aqui. Não tô falando que tinha que ter os 30 mil negros de Sorocaba não, mas cadê as
lideranças? A gente foi discutir saúde da população negra no Conselho Municipal de
Saúde que é a instância mais importante da saúde. Falei “gente não adianta ficar discutindo saúde da população no sindicato dos metalúrgicos”. Sabe quantas pessoas
foram? Eu. Sabe o que eu ouvi? “Zé Marcos eu acho bonita a apresentação, mas cadê
o movimento negro que vocês tanto falam? Cadê as mulheres negras que vocês tanto
falam? ” Aí como era novembro então arrumei uma desculpa “não, a turma ta toda aí
fazendo as coisas por conta do 20 de novembro e tal quem tá aqui sou eu e eu sou
presidente do conselho”. Então é um tapa na cara que voce recebe. Em Sorocaba de
repente a gente não avança porque a gente não quer, porque a gente não consegue se
ver enquanto movimento.
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Esse ponto acerca da desorganização aparece também na fala de Jorge, que traz a questão da
importância do carnaval para a comunidade. Essa desunião é vista como resultado de perdas e
descontinuidades no campo das reivindicações. Na fala dele, as escolas de samba são atores históricos
que tem seu respaldo na sociedade e na luta mais geral da negritude, mas que ultimamente,
possivelmente por conta da crise econômica nacional - que influencia na localidade - acabam por serem
os elos mais fracos dessa “redução de gastos”, sofrendo com a interrupção de recursos:
Eu acho que cidade de Sorocaba tá precisando de um chacoalhão porque uma coisa
que me incomodou muito no ano passado foi quando o pessoal colocou a fita da
situação da saúde de Sorocaba no carnaval, a gente teve essa movimentação, falaram que iam colocar o dinheiro do carnaval na saúde, como se o carnaval fosse culpado
pelo problema da saúde da cidade e eu discordo disso - o que tem a ver o carnaval
com os postos de saúde? Então se a gente tivesse um movimento realmente organizado
isso não passaria despercebido. Então pra você ver a dificuldade começa por aí, o
carnaval acho que é o maior evento cultural e o pessoal falar isso numa cidade como
Sorocaba que tem escolas tradicionais como a Estrela da Vila, Escola 28, ninguém se
manifesta ninguém falar nada, isso diz que a gente tá desorganizado, a gente não ta
unido. Eu se tivesse uma escola colocaria a escola dentro do gabinete da prefeita.
Cida Costa, em suas militâncias no Conselho de Segurança (CONSEG) também trava um debate
com o movimento negro da cidade acerca do envolvimento coletivo. Da parte dela, os convites são
feitos, mas a presença é diminuta:
Quantas vezes eu já convidei pessoas do nosso movimento negro pra vir participar da
segurança pública? Nenhuma aparece. Em nenhuma reunião minha em quase 8 anos
no conselho apareceu. As vezes aparece por uma coincidência ou outra.
Luiza Alves dos Santos, por sua vez reconhece o trabalho de lideranças do movimento negro
como a de Zé Marcos a frente do Conselho, mas também comenta sobre a “falta de braços” para apoiar
essas pessoas:
Eu acho o Zé Marcos e a Joana que fazia parte da secretaria são pessoas que realmente
fazem acontecer. Hoje se voce pegar o telefone e dizer que tá com um problema em
uma causa você vai ter o que voce precisar. Na realidade, o que eles precisam é de
mais braços políticos
Obstáculos financeiros
A questão financeira é possivelmente o maior desafio para o ativismo negro. Esse ponto é recorrente
na fala dos militantes. Acredito que em todos os movimentos sociais o fator econômico é sinônimo de
preocupação e atenção. No movimento negro, isso não seria diferente, pois também estamos falando
sobre uma parcela da população que possui a menor renda e os piores empregos, afetando em muito
suas possibilidades de engajamento. É interessante que em uma sociedade capitalista, a questão
financeira pode ser motivadora para se ocupar as ruas, mas também para deixa-las.
Nas entrevistas, a fala mais impactante nesse sentido é a de Zé Marcos. Ele observa diferentes
tons dentro dessa mesma questão. Se coloca enquanto alguém que independente desse cenário, irá
continuar a militar pois diz que a luta serve para o conjunto da negritude, ou seja, para além dele.
Entretanto, reconhece que a necessidade individual de sobrevivência é um fator que influencia na adesão
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à um engajamento maior, pois ela está acima da luta antirracista. Anterior à problemática do
engajamento, é preciso garantir a sobrevivência dos militantes:
A necessidade de sobrevivência ela tá acima da luta antirracista, a minha necessidade
de sobrevivência ela ta acima da luta antirracista, por mais que eu fale do
empreendedorismo, até ano passado eu tava achando que eu era empreendedor porque
tava trabalhando de Uber hoje já não acho, acho que sou um explorado, um fudido etc
e tal, mas eu preciso sobreviver, né. Então (...) eu tô sendo afetado pelo capital, eu
preciso pagar luz, preciso beber, comer, preciso ter condições de movimentar, (...),
mas isso não significa que eu vou deixar de ser militante por causa disso.
Aqui, Zé Marcos estava falando sobre como os produtores culturais e artistas negros são um
outro grupo sensível às dinâmicas econômicas. Muitas vezes, na relação com o Conselho, essas pessoas
acabam por ver a instituição enquanto uma “agência de emprego”. O movimento ainda tem uma grande
dependência de apoios financeiros de terceiros, especialmente de instituições mais ligados ao estado,
evidenciando a dificuldade da autossuficiência econômica.
Qual que o nosso grande desafio hoje nosso? É o capitalismo, as pessoas precisam
sobreviver e elas acham que o conselho é uma agência de emprego, elas acham que o
conselho é uma agência de eventos, muita gente que não procura o conselho durante
o ano. Das entidades ditas como lideranças do movimento negro, procuram o conselho
no mês de novembro.
Na fala de Jorge, aparece um contraponto à questão do empreendedorismo que Zé Marcos dizia.
Enquanto Zé critica a forma com a sociedade capitalista justifica exploração com empreendedorismo,
Jorge, por sua vez, enxerga uma potencialidade nessa área. Para ele, a população negra sempre foi
empreendedora justamente por não conseguir empregos facilmente. A partir da sua experiência
individual, Jorge vê que certas iniciativas empreendedoras são possiblidades para a retirada,
especialmente da juventude preta, de caminhos perigosos como o do tráfico de drogas. Para ele, a
consolidação do empreendedorismo negro, seria uma ilha de resistência em meio a um mar de ameaças.
Com uma rede se formando de empreendedores negros, as respostas coletivas poderiam ser maiores.
Esse tema do empreendedorismo é caro atualmente, especialmente em um momento que se fala de
representatividade, empregabilidade, renda e desemprego. Jorge vê nas mulheres negras um
protagonismo nessa questão e no movimento de salões, uma possiblidade de saída.
E no movimento negro eu aprendi que a maioria do nosso povo somos
empreendedores, somos os maiores empreendedores, principalmente as mulheres
negras, quando eu descobri isso falei “pô mano verdade, a gente sempre ta vendendo
alguma coisa, trabalhando no salão” porque antes não tinha outros espaços pra gente ocupar e a gente teve que se virar. A minha profissão a maioria da população negra
também adere à essa profissão e a gente teve uma mudança legal, eu acho que foi
como a gente se virou até hoje, se não fosse isso a gente não teria se virado, desde a
mulher que faz as bijuterias, [até] as roupas né. Eu mesmo só fui parar no salão por
causa disso, eu procurava emprego (...) e não conseguia cara, e na época eu tinha 17
anos. Aí falei “quer saber eu vou fazer um curso de cabeleireiro mesmo”, aí eu fui lá
e paguei meu curso com o dinheiro que eu ia fazer o curso de mecânica, foi bem legal
só que o curso que eu fiz na verdade aprendi nada porque pra linha que eu queria, afro,
não tinha quem ensinava. Na época, a Katia Danda tinha um espaço no 28 de Setembro
falou “vai lá Jorge, você sabe cortar, vai lá fazer um trabalho social com as crianças
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(...), aí eu fui lá fazer um trabalho social, aprendi bastante coisa com eles aí depois
montei meu salão.
Ainda sobre as dificuldades, mas dialogando com o tema da empregabilidade, Jorge traz uma
fala complexa sobre empoderamento e emprego, usando sua prima de exemplo. Em uma sociedade
racista, por mais que se avance no desejo individual de um empoderamento a partir dos cabelos e da
estética, esse movimento que por vezes pode ser libertador pode também ser um empecilho para a
participação no mercado de trabalho. Nilma Lino Gomes já anunciava isso em sua tese (GOMES, 2002).
Ainda ver os cabelos crespos livres é um sinal de dissenso para muitos brancos e é encarado no ambiente
de trabalho como uma inadequação. Para Jorge, essa ação do lado “branco” ainda prejudica em muito o
autoreconhecimento enquanto negro e com isso, a mobilização individual em prol de uma conquista
coletiva:
Galera nossa ficou empoderada, ta com uma visão diferente só que eu acho que as
mulheres ainda sofrem muito, eu tenho o caso da minha prima [que] não tava conseguindo arrumar emprego, aí ela falou “pô Jorge eu vou alisar meu cabelo”, disse
“por que você vai alisar agora que ficou um black legal? ” Ela disse “você não
entendeu ainda porque eu vou alisar, porque eu não conseguindo emprego, todo lugar
que eu vou não tô conseguindo emprego, não estão me contratando desde que eu tô
com o cabelo assim tô desempregada” e aí como que faz? Então é bem complexo
porque não é só a desconstrução nossa, mas a aceitação, porque a gente não tem os
meios de emprego, a gente não tem os meios de produção na nossa mão. Infelizmente
a gente é contratado; a gente quer contratar. Tem a retaliação da sociedade. Agora,
pra elas que tem salão é legal porque elas sai, não depende de entregar um currículo,
a gente tem o nosso próprio negócio e então dá pra gente ficar da forma que a gente
quer ficar (...), mas pra quem tá na rua, como é que a faz, pra conseguir um emprego, fazer uma entrevista? Racismo institucional... A população negra avançou muito, mas
agora falta acabar com a questão estrutural.
Dilema da relação com as instituições e partidos
Outra forte questão que aparece no movimento negro contemporâneo é a questão da disputa eleitoral
e das relações com a institucionalidade. Temos aqui a observação da falta de representantes do
movimento nos diferentes níveis do estado, o fortalecimento das noções de representatividade e a crítica
à falta de espaço nos partidos de direita e de esquerda. A disputa pela efetivação e ampliação de pautas
históricas do movimento negro como a das cotas, da revisão acerca da história e contribuição negra,
bem como a necessidade de políticas públicas com um olhar racializado, evidenciam uma tônica
presente nos discursos das lideranças políticas do movimento: a disputa pelo poder é central e ela
perpassa a disputa das eleições.
Zé Marcos também fala sobre isso, oferecendo uma leitura de como o movimento negro tem sido
cooptado pelos partidos a partir de suas próprias pautas, hoje presente até nos dizeres dos “brancos”. Ele
fala de uma organização dos partidos anterior ao pleito de 2020, de procura de lideranças criando
promessas de eleição, mas chama a atenção para o fato de que em Sorocaba, os candidatos não têm se
mobilizado em conjunto ao Conselho. Zé é sempre muito categórico na afirmação de que o Conselho é
e deve ser o principal instrumento de luta do movimento negro local:
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Então eles já tavam plantando o que eles vão colher agora em 2020, agora eles já
acharam algumas pessoas aqui em Sorocaba, prometendo espaço de poder pra
algumas pessoas, colocando essas pessoas como ícones do movimento negro de
Sorocaba, na realidade essas pessoas não vão ser eleitas. Eu tenho absoluta certeza.
Falei pro Abner [candidato a vereador] “sabe qual que é o nosso mais importante
espaço de representação? Aquele que voce deu as costas”, falei |”o Conselho, nosso
mais importante espaço de poder todos vocês viraram as costas pra ele, porque o
conselho com eleição ou sem eleição, ele continua". Um conselho fortalecido ele faz
um documento, ele chama um debate, ele cobra, ele chama o movimento negro pra
estar junto com ele, agora quando o movimento virar as costas pro nosso mais
importante e legitimo reconhecido espaço de poder criado por lei, não tem espaço de poder pra gente.
Ademais, para ele, o movimento tem olhado muito as discussões nacionalizadas e as repetindo,
mas sem prestar atenção nas pautas locais, como relaciona-las e até em como para isso ocorrer é preciso
uma organização dessas reinvindicações:
No movimento negro ano passado tava falando a gente tem que disputar poder, a
ordem do dia era reverberar Djamila Ribeiro, não existia mais nada no mundo que não
fosse Djamila Ribeiro. Ela tem uma leitura nacional gente, mas e ai qual que é a leitura
aqui? Por mais que Djamila fale, por mais que o Douglas Belchior fale, ele dialogue
com a nossa ancestralidade, com a minha existência, isso não se materializa no meu
território, então a gente se equivoca muito achando que aquilo que é discutido pela
Djamila no programa do Pedro Bial eu vou conseguir transformar a minha realidade,
não vou, porque são realidades completamente diferentes.
Zé Marcos também traz, na análise do nível local, que o movimento negro precisa aprender a se
relacionar com os demais movimentos sociais, seja para atuar conjuntamente ou para impor limites às
exigências colocadas por estes, pois, para ele, o movimento negro se perde apoiando outros grupos e
pautas, renegando suas próprias reinvindicações. A influência dos partidos e do movimento sindical são
os determinantes dessa postura, diz: “Então você tem uma cidade que quando a pauta é puramente de
direitos humanos, de movimento social, você não tem o movimento sindical, você não tem o movimento
partidário junto conosco. Mas quando é pauta de movimento sindical, de movimento partidário, o
movimento negro tá lá, com a bandeira (...) falando que tem que ta lá, ocupando espaço e tal. Mas esses
mesmo não estão conosco nas pautas que nos interessam”.
Já Jorge é um forte defensor das candidaturas negras. Em diversos momentos da conversa ele
trouxe o quanto a UNEGRO hoje está voltada para isso e como essa pauta é imprescindível para realizar
conquistas do movimento negro. Ele também cita exemplos de atividades como o carnaval, a
implementação da lei 10639, a feira crespa e a semana do hip-hop, que são referidas em outros
depoimentos como exemplos de conquista do movimento e que devem ser defendidas. Interessante notar
que, como citado, esses exemplos se repetem na fala de Zé Marcos e apontam para a ausência da criação
de novas pautas, mas sim a continuidade de umas e a efetivação de outras:
E uma das lutas nossa vai ser eleição cara, com certeza. Porque eu acho que o ano é um ano eleitoral, né? (...) A gente quer entrar nessa briga do ano eleitoral e a gente
quer eleger alguém que seja um representante nosso nas pautas nossas. (...) A gente
precisa encontrar alguém e colocar no entendimento da população de Sorocaba que a
gente precisa de uma representação do movimento negro (...) que lute pelas pautas
nossa, pelas questões nossas, que compre a briga nossa né. Então eu acho que é essa
parte de cobrança, falta organizar isso.
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Em nossa conversa, Luiza trouxe um exemplo muito interessante sobre como para ao ativismo
cultural negro é complexa a relação com o estado – ou com a política, como dizem – ao contar sobre
como conseguiu autorizações na prefeitura. Ela diz:
Ó eu tinha, a minha última assistente social que era branca, eu ia conseguir as coisas
lá na prefeitura como? Eu pegava um documento aqui, dava pra ela, que é loira, [ela]
ia lá e resolvia tudo. O mesmo documento que eu peguei que eu fui não é a mesma
coisa você negro estar batendo na porta do que a branca estar falando a nossa história. Eu tô contando a minha história, do que eu tô vivenciando, do meu povo, de tudo; mas
não é a mesma coisa do que uma branca sentar e contar, porque parece que um branco
contando todo mundo consegue enxergar de outra forma. Eu contando, é o que? Então
eu tinha portas abertas porque eu tinha uma assistente social branca que chegava e
fazia acontecer, eu falei assim pra ela: “Marie, eu vou antes de você”. E daí a minha
resposta foi não, foi desfavorável. A mulher chegou lá com a proposta que eu mandei
ela dar e saiu com mais três. Falei “você vai lá, você vai resolver, já achei qual a
chave”. Nisso você já vê o preconceito onde tá, o trabalho é meu, a carta é minha,
tudo é meu, eu só passei pra mão de uma branca e pedi pra resolver.
Essa situação traz à tona o quanto a institucionalidade, aqui encarnada na prefeitura, é de fato
distante e de difícil acesso à negritude. Por mais que o Quilombinho seja reconhecido na cidade e possua
muita legitimidade, um corpo negro no executivo ainda é estranho, uma prática cultural antirracista para
crianças ainda é desinteressante. A relação entre essa negritude e o estado é sempre motivo de dores de
cabeça, desejo, frustação e revolta. Por fim, ela comenta que o Quilombinho é um espaço de cultura que
precisa da política e que por conta das necessidades de ordem econômica, material e burocrática, “a
gente acaba fazendo os dois sem querer querendo”. Alguns espaços do movimento negro não tem a
possibilidade de fazer “escolhas ideológicas” à esquerda ou à direita. Novamente a sobrevivência é a
palavra mais importante. Dando o exemplo, ela diz:
Aqui no Quilombinho a gente costuma dizer que é apartidário porque a gente precisa
do político A, B, C, D, E de todos pra ter portas abertas em todos os lugares. É uma
necessidade você estar andando juntos, de mãos dadas com a política.
Assim como Jorge, Cida Costa quer participar das eleições. Em 2006, ela se candidatou à
vereadora pelo PV, mas não se elegeu. Contudo, a partir daí, começou a fazer uma política que ela chama
de “política preta”. Comentou também sobre o fato de que “muitos negros não acreditam que seria
possível um de nós estar por lá”. Para ela, o sucesso dessas candidaturas depende muito do seu “QI”
(quem indica) mas também da sua organização – onde você vai trabalhar, com quem. “Às vezes tem uns
que passam rasteira e tal”, diz. Em seguida à eleição de 2006 ela foi trabalhar em vários partidos tais
como PCdoB, PSDB e PMDB. Seu foco, fala, foi aprender e observar como que funcionava a política
pois para ela, “nós negros não sabemos como funciona a política justamente pela política ser algo
“branco”:
Por que eu não posso trabalhar a política preta? Eu tenho que aprender a política
branca. Porque eles que mandam, eles que tem o poder. Então trazer para a minha
política preta, mas com certo equilíbrio.
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Cida diz que depois de muitos anos de ativismo, somente agora é que ela vê partidos de esquerda e
de direita acordarem para a questão das candidaturas negras. Neste momento, está filiada e construindo
o PODEMOS, onde comenta que o vice-presidente do partido é um homem negro e uma mulher negra
é presidenta da parte de acessibilidade do grupo enquanto ela está na presidência do setorial de mulheres.
Ela diz: “eu estou me vendo lá”.
Dilemas sobre o lugar da cultura e dos debates interseccionais no movimento negro
A relação entre cultura e política no movimento negro é um debate que mobiliza diversas emoções.
Historicamente, na desautorização do movimento, pensava-se a inexistência de um ativismo negro mais
“político” com fins a influenciar na opinião pública, eleições e políticas públicas. Intelectuais e ativistas
negros têm construído desde o século XX uma outra interpretação alinhada à uma crítica à essas ideias
que não enxergavam a face política do movimento negro (RIOS, 2010; DOMINGUES, 2007)). Nessas
interpretações, retomou-se os exemplos clássicos de movimentos negros mais politizados, trazendo
informações desde os movimentos de libertação de escravos da era colonial chegando até às
organizações como a Frente Negra Brasileira e o Movimento Negro Unificado. A retomada da história
e papel dessas organizações também estiveram alinhadas à defesa da legitimidade de outros espaços na
formação da identidade negra e na formulação de lutas políticas, sendo exemplos o samba, as religiões
de matriz africana, os quilombos e a capoeira. Os intelectuais e ativistas negros procuraram afirmar que
a cultura negra tem um caráter político, especialmente na influência de uma visão positiva sobre a
negritude e de denúncia da falsa democracia racial e da necessidade de uma abolição efetiva
(CARNEIRO, 2005). Esse debate ainda percorre as falas de negros e negras que estão nas lutas
cotidianas, por mais que se reconheça a importância histórica que essas manifestações culturais
possuem. Atualmente procura-se diferenciar o ativismo da cultura negra em relação ao ativismo de uma
militância negra na esfera política (RAPP; SILVA, 2011). Entretanto, essa diferenciação não tem um
caráter de criar hierarquias de valor, mas sim encarar essa pluralidade que passeia do cultural ao político
enquanto constituições de “movimentos negros” nas mais diversas áreas.
Nas falas dos entrevistados essas questões aparecem e fornecem subsídios para a discussão. Zé
Marcos comenta que se preocupa com a maior atenção dada às festividades do que aos protestos e
mobilizações. Sabe da importância da cultura mas acredita que os fomentadores culturais também devem
estar ligados à representação que o Conselho possui na cidade e como este é um instrumento que serve
para uma pressão em prol da área cultural. Ele também entende que de fato há “duas vertentes do
movimento negro”, uma mais ligada a cultura e outra de caráter mais político
Eu acho que o desafio é como que você converge as duas vertentes do Movimento
Negro em busca de um objetivo comum. Eu acho que esse movimento quando ele
consegue trazer a música, a união das escolas de samba, quando ele traz a associação
sorocabana de capoeira, o hip-hop, quando ele traz as outras manifestações de base da
cultura afro-brasileira para dentro do conselho, a gente precisa entender como que a
gente dialoga com todos pra dar sustentação a nosso posicionamento político.
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Já para Jorge, cultura e o que ele chama de “luta política” são coisas diferentes também. Ele
reconhece o caráter político das expressões artísticas, mas acredita que essa união já foi maior no
passado e que no presente, se segmentou e com isso cada grupo defende apenas o seu lado, fora de uma
luta conjunta. Ele também lê algumas dificuldades do movimento negro em um plano da “luta política”
em realizar articulações e de organizar suas pautas:
Eu vi isso na câmara municipal quando eu trabalhei lá, quando foi pra debater o
orçamento da cultura a galera foi lá mano e eles são bem unidos. Eu acho que a gente é ruim de fazer movimentação política, acho que a gente precisa melhorar mais em
articulação política. Esse movimento cultural eu acho que é natural pela origem nossa,
é normal. Mas a movimentação política ela tem que ser junta cara, porque uma coisa
não sai da outra. Então as vezes a dificuldade que eu vejo hoje dessa movimentação
cultural é que ela é segmentada, o cara vai lá ele vai discutir, ele vai ver só o lado da
capoeira, aí junta os capoeiristas. (...) E a luta política ela é geral, então a gente vai
lutar contra o genocídio. Eu acho que a gente perdeu a questão histórica nossa, (...) o
samba era um movimento político-cultural. Porque o samba lutou contra a escravidão,
contra a ditadura, cada letra que saia, cada samba que saia antigamente era de
resistência, era de protesto, então não era só um movimento cultural.
Por sua vez, o Quilombinho se reconhece enquanto parte dessa “aba” mais cultural do
movimento negro. Para Luiza, o espaço mesmo sendo de caráter cultural tem a necessidade da política
institucional para realizar suas atividades e ter apoios. Ao mesmo tempo, ela encara como uma atividade
política o ensinamento da cultura negra para suas crianças. A questão que ela mais traz, por sua vez, é a
da dependência em relação à prefeitura – a política institucional – seja porque a sede física do centro
cultural é uma doação da prefeitura, seja porque eles vivem de doação e editais já que são uma ONG
sem fins lucrativos. Essa é uma dificuldade que aparece, segundo ela, para quem faz da cultura seu
ganha pão ou seu modo de fazer política, fora dos partidos. No Quilombinho, como ela diz “ta todo
mundo aqui ó, na fé e por amor”:
Tudo que hoje a gente faz hoje é política e a gente depende muito dela. A política não
é igual a cultura mas se a gente não tiver esse braço na política, pra ter portas abertas
aí fora, (...) ali pra ter portas ali pra eles poderem te ajudar porque mesmo voce
fazendo as coisas direitinho, é difícil estar trabalhando ali junto com eles [ a política
institucional]. Pra eu conseguir fechar uma rua pra poder fazer um evento, se eu
preciso fazer uma documentação aqui do Quilombinho, pra que saia rápido eu preciso
de um político, se eu preciso de vigilância até bombeiro, tudo é política. A organização
pra ela poder existir é o órgão político que eu tenho que prestar contas da instituição,
então a gente vive dela. Hoje a nossa política é muito nojenta, mas é algo necessário,
infelizmente. Eu me sinto aleijada dos braços que eles tinham que ter com a organização, mas eu espero que com a passagem de tempo esse braço venha estar
junto novamente, mas eu acho que hoje é deficiente a política com o centro cultural
Quilombinho.
Já Cida Costa traz em sua análise que critica a atenção que o movimento negro tem dado à área
cultural. Para ela, nos últimos anos tem crescido o debate da identidade cultural, o que fez com que o
movimento deixasse de reivindicar questões materiais e econômicas, como o aumento salarial e do
emprego. Essa atenção maior dada à pauta “culturalista” fez com que a atenção se dividisse,
enfraquecendo assim espaços como o CONSEG:
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Porque os movimentos sociais deixaram de ir pra rua e reivindicar coisas importantes
como o salário, aumento da passagem? Porque foi justamente foi essa veia que pegou:
a da identidade cultural. Quando voce começa a estudar a identidade cultural, voce
esquece da economia. Hoje a briga se trata disso. O que que abriu? Hoje o negro briga
pela sua identidade cultural aí vêm a questão do gênero porque as mulheres estão
brigando pela questão do seu empoderamento, pela questão do gênero, aí vêm o LGBT
brigando o seu empoderamento, ao mesmo tempo vêm o PCD. Cada um brigando
dentro da sua particularidade, da sua identidade, pro governo tá ótimo. Porque cada
um vai criar pra si uma proteção. Nós estamos com 14 milhões de desempregados,
alguém ta indo na rua brigar por conta disso? Eu acho que acaba até banalizando, a
questão da briga da discussão. Ninguém ta brigando pelo conselho, então vamos brigar pelo baile funk e ta tudo certo. Pra mim tem muito mais pra brigar, que é a
questão econômica do país. Então quando você está aí brigando pelo baile funk toda
semana, o congresso tá lá desconstruindo o brasil e ninguém tá vendo.
Já novamente com Luiza, uma questão que chama a sua atenção é a da representatividade. Ela
vê essa palavra crescendo e reconhece sua importância mas chama a atenção sobre como é preciso olhar
para além das imagens e pessoas que são exibidas na televisão ou na internet. É preciso se reconhecer
no próximo, nas pessoas negras mais próximas, que também precisam se enxergar em outras:
A gente fala de representatividade, sempre tive o meu espelho de mulher negra,
ativista, que representou realmente, que é a minha mãe. (...) esse progresso eu vejo, mas eu acho que falta isso nas escolas, hoje os nossos neguinhos sentem muita falta
disso lá, de representatividade nas falas dos professores. (...) eu tinha sede disso, eu
vi uma amiga da sala falar que a feijoada era um prato maravilhoso dos escravos e a
feijoada antigamente era o que sobrou, e a minha amiga era negra e por ela alisar o
cabelo ela não se sentia negra porque ela tinha cara de índia e aí ela não se via. Meu,
aí essa mina raspou a cabeça, cortou o cabelo, quando eu vi, no meio do ano ela falou
“meu, eu me identifico com você, voce não tem noção que voce ta fazendo com as
pessoas” as vezes com uma fala numa sala de aula represento outras pessoas, na hora
que ela falou da feijoada eu falei “voce já se olhou no espelho, voce já viu que voce é
negra? ” E aquela pessoa engolir aquela coisa, parecia que eu tava ofendendo ela por
eu estar chamando ela de negra, mas ela conseguiu se olhar no espelho e realmente se enxergar como negra. Então as vezes não é uma Maju, uma Tais Araújo que ta nos
representando, as vezes é um coleguinha que tá do seu lado que também é um
representante quando voce tem referência e tem base no que voce faz. Eu tive
referências pra hoje poder falar com propriedade, mas tem muitas negrinhas que não
tem, eu recebo muitas mães aqui que não sabem que é negra, quem dirá ela poder
passar pros filhos dela que eles são. Então eles aprendem aqui que são negros pra
poderem mostrar em casa. A gente faz trabalho de formiguinha em cada um, a gente
planta nas crianças pra poder colher nos adultos.
Dilema geracional.
O entendimento sobre a juventude negra é imperativo. Não somente por conta do fato de esses
sujeitos representarem o futuro do país, mas também por serem vítimas de um processo de genocídio
brutal, do qual o interior do estado de São Paulo também faz parte. No que se refere às suas práticas e
modos de ser, o que chama a atenção na cidade é a questão dos bailes funks. Semanalmente, nos jornais
impressos ou televisionados, a notícia de bailes funks durante a madrugada inteira incomodando os
moradores são comentadas. A questão é tão grande que Sorocaba possuí uma operação única da Polícia
Militar chamada “Operação Pancadão” que é tida como exemplo para a polícia do estado.
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Na análise dos entrevistados, porém, os bailes funks são uma questão e a juventude negra, a que não
está nessas festas, é outra. Isso porque os bailes representam uma situação mais delicada, literalmente
de vida ou morte, de lazer e cultura. Por sua vez, a outra parte dessa juventude é mais discutida em suas
possibilidades de atuação e protagonismo político. Nas falas, percebe-se um tom desolador em relação
à essa última, seguindo uma ideia de que a juventude negra sorocabana - que em um passado recente
estava nas ruas, nos movimentos sociais, estudantis e no movimento hip-hop - hoje saiu delas. E se
permaneceu, está nos bailes, correndo riscos e provocando a ira de muitos moradores das periferias.
O que se evidencia nas falas sobre a juventude, que passam sobre comentários acerca dos bailes
funks, é a questão das faltas que esse grupo possui: falta de espaços lazer, de acesso à cultura, de
educação e de emprego. Entende-se os bailes, por exemplo, não como necessariamente um problema,
mas sim um sintoma e uma novidade que exemplifica a realidade do jovem negro periférico. Zé Marcos
comenta que:
O baile funk é uma mescla de manifestação política porque eles entenderam que já
que não tem espaço pra eles em alguns espaços ele se organizaram pra isso, então eu
acho que é uma manifestação política, devem ter algumas pautas internas algumas
coisas, acho que talvez o problema é que nós o movimento negro mais antigo também
nao conseguem perceber a importância e criar espaços de acolhimento e integração e
isso não signifique interferir na dinâmica própria deles. Talvez o desafio nosso (...), é
onde é que tão essas pessoas, também quando a gente quer fazer a questão da incidência política mais unificada, (...) a unidade tá só no discurso, ela não ta na prática
cotidiana porque a gente sofre aquelas interferências, a questão do capital, do acesso,
do transporte. É claro que é uma manifestação cultural extremamente importante, a
deles é arte e cultura mais de vanguarda que dialoga com o movimento negro jovem,
agora também se a gente não criar oportunidades de oficinas, de workshops, de
seminários e encontros em que eles venham, sintam-se acolhidos dentro da sua
especificidade, dentro do seu universo, claro que eles não vão vir. Acho que o
movimento negro acaba não criando espaços de integração.
Ainda com Zé Marcos, o debate da juventude na cidade poderia ser melhor e mais, especialmente,
participativo. Ele relatou frustações com a organização de eventos voltados para esse público que não
tiveram o público esperado. Além disso, denuncia a omissão do conjunto do movimento negro em
procurar entender e acolher esses jovens. Comenta também que se ouve muito sobre uma juventude “das
quebradas” moderna e “antenada” nas discussões raciais, mas que isso não se realiza na prática, ou pelo
menos ele não vê, o que também o incomoda:
A feira crespa das 3 mil pessoas, é impressionante, jovens dançando passinho. Aí você
vai na semana seguinte discutir genocídio da população preta, aí aparecem 3 brancos.
Se o genocídio da população negra é a maior preocupação, os dados apresentam, voce
tem que fazer um debate né, mas onde que tão esses negros? Porque eles são
formadores de opinião de uma maneira ou de outra, então eu preciso trazer essa
juventude pra dizer o quanto ela ta sendo vítima de um genocídio, de uma limpeza
racial, de um extermínio materializado das mais diversas formas. O genocídio não é
só dar tiro, ele se manifesta das mais diversas formas, inclusive cerceando o direito
do outro à arte, à cultura, isso é uma forma de genocídio né. (...) eu não consigo
entender 6 mil pessoas sambar até meia noite e não consigo ter 50 pessoas na marcha.
Já Jorge traz uma contribuição interessante acerca da juventude ao comentar sobre a questão
dos bailes funks. Na sua própria fala, sem ser perguntado, ele citou a questão dos bailes como uma luta
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que a UNEGRO tem encampado. Em sua fala, Jorge resgata o desmonte da pasta da cultura na cidade,
o que determinaria a diminuição de incentivos culturais à juventude, reconhecendo o quanto esse grupo
está vulnerável em um contexto de crise econômica. Destacou, da mesma que Zé Marcos, que parte do
movimento negro hesita em dar atenção e apoiar essa questão:
Vai ter uma movimentação em Sorocaba pra acabar com os pancadões. O que a gente
fez, teve a criação de um comitê de direitos humanos em Sorocaba, há pouco tempo, aí o pessoal tava lá e aí a gente já foi cobrar no comitê de direitos humanos, vai ter
essa pauta dos pancadões, os cara vão matar a gente pra acabar com o funk ou acabar
com a vida das pessoas? ” Porque quem tem um baile funk na frente da sua casa, é
dor de cabeça, as vezes o trabalhador tem que acordar 5 horas da manhã pra trabalhar,
tá uma barulheira daquela o cara pega, pega ódio do baile funk, só que ele não lembra
que ali tem um sobrinho dele que tá no baile, o primo dele ta al e na hora ali o cara
não pensa, ele quer saber que ele tem que acordar no outro dia e trabalhar, aí essa
organização da prefeitura, o que vai acontecer, não vai acabar com o baile, o baile vai
migrar pra outro lugar, porque eles vão lá, vão bater na molecada, vai morrer gente,
perigoso de acontecer o que aconteceu em Paraisópolis e aí o baile só vai migrar de
lugar e não tem uma política pública pra falar assim ó, vamo acabar com o baile mas a gente vai fazer aqui uma área de lazer. A gente tem um desmonte da cultura em
Sorocaba, (...) é um descaso que tem a cultura na cidade e esses adolescentes não vão
ter pra onde ir, vão pra onde? Outros movimentos, outros movimentos do movimento
negro ainda não perceberam que esse tipo de ação é pra matar gente preta, A gente
perdeu já o Luquinhas no Habiteto, não tinha passagem tinha nada e ele morreu na
virada do ano porque tava curtindo um funk na frente de casa sem fazer nada.
Outro ponto levantado por Jorge advém da sua própria experiência de vida enquanto cabelereiro.
Para ele, o salão é um espaço de transformação social por retirar jovens de situações de vulnerabilidade
e violência, auxiliar com renda e também no crescimento de uma autoestima individual e um
reconhecimento coletivo. Como falado no início da pesquisa, Jorge por muito tempo fez do seu trabalho
um movimento social, ensinando jovens e com isso, os capacitando para exercerem a função e terem
novas oportunidades na vida. Ele se orgulha: “Eu ensinei mais de 40 barbeiros e hoje em dia eles tem
salão esses meninos aí. Acho que uns 15, 20 tava no tráfico de drogas, saiu do tráfico de drogas, tem seu
próprio negócio hoje, é um orgulho que eu tenho”.
A fala de Luiza acerca das juventudes também traz elementos da representatividade que importa
para ela e para sua prática no Quilombinho. Essa retomada da história ancestral, da beleza, do se ver e
se reconhecer é importante, segundo ela, na formação da autoestima, da liberdade e também - numa
disputa ideológica– da tentativa de proteger uma história que é continuamente apagada.
Eu acho que só dessa negadinha estar aparecendo com black power, ela estar se
enxergando, hoje é muito difícil você ver as neguinhas alisando o cabelo. Eu acho que
você tem que ser o que você quiser ser, do cabelo liso do cabelo cacheado, o que for.
Mas acho que eles vão se encontrando e isso tá maravilhoso, pra mim eu enxergo isso,
tanto porque eles sabem o porquê do cabelo, “não tô usando porque tá na moda, mas sim porque eu sou assim e eu sou linda assim”, entendeu? Então isso eu vejo nos
adolescentes de hoje em dia. Eu tô com uma menininha, ela tem 11 anos na turma da
manhã, o cabelo dela tá no cru; quem disse que agora que ia mudar de escola que a
menina queria ir pra escola? Aí minha amiga que é cabeleireira veio aqui fez trancinha
no cabelo dela, a menina se entregou, não saiu da nossa cultura. Ela conseguiu se
enxergar, o quanto ela é linda independente de ela estar com a trancinha, ela é linda.
Então eu acho que hoje as crianças se enxergam mais porque antes a minha referência
(eu não sou tão velha assim também), com os meus 18 anos, a minha aceitação, a
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minha referência eram as minhas amigas. Hoje as neguinhas, tem lá o baile black,
quando que tinha esse tipo de coisa? E as neguinhas ir realmente de negra, “eu não tô
fantasiada de negra, eu sou eu, eu posso chegar aqui e ser eu mesmo” e hoje elas
podem ir em qualquer lugar dizendo que elas são elas mesma que elas vão estar se
sentindo bem, pra branco pode ser moda, mas pra negra você tá ali você tá ali
mostrando “essa sou eu, e eu sou linda maravilhosa desse jeitinho que eu sou”, eu
enxergo assim, eu vejo progresso sim nesse pessoal que tá vindo agora.
Quando perguntada então estética é importante? Luiza sobe levemente o tom e diz com firmeza:
Eu acho assim, não é estética é aceitação, porque hoje as crianças se aceitam como
são. Hoje a criança não precisa passar o relaxamento no cabelo pra achar bonito. Porque
antes você tinha que estar soltando seus cachos de tudo que é jeito pra você poder ser aceita porque o cabelo crespo era o cabelo ruim e hoje não. A gente teve um progresso
a gente evoluiu bastante que só da criança e do adolescente só estar se aceitando (...). A
hora que você fala da sua história, do preconceito; eu entro aqui no face dos ex-
quilombinhos de 17, 18 anos tem uns com 22 com 24 você já vê o embasamento das
falas deles no Facebook quando eles falam da cultura deles, e não é uma coisa assim
que fala só de namoro não, ta falando realmente sobre sua cultura, de tudo que tá
acontecendo no mundo, então já tem postura na fala, referências na fala e isso são
construções que a gente tá fazendo assim , hoje de 5 até 17 anos pra gente ver esses
modelos de jovens. É mais do que estética, é mais do que um cabelo é mais do que uma
coisa, é essa aceitação do que você é, de você olhar pra sua mãe e você aceitar sua mãe
o cabelo da sua mãe e você enxergar aquela mulher linda e maravilhosa natural do jeito
que é, não tem preço.
Já na entrevista com Cida, assim como com Jorge, a própria entrevistada trouxe a questão dos
bailes funks e da juventude. Em sua atuação no CONSEG, ela diz que as principais demandas são os
bailes o tráfico, locais onde a juventude negra pobre está. Mesmo procurando apresentar projetos nessa
área, ela vê que a situação é complexa e exige uma análise da realidade com misto de enfrentamento e
como ela defende, “com prevenção, não com a repressão”.
Acho que é uma nova cultura, como o samba antigamente que nem podia ouvir, a
capoeira – era tudo proibido. É uma nova cultura periférica que surgiu e está aí muito
forte. Mas o maior problema é o tráfico envolvido. A questão da bebida, muitos jovens
envolvidos. Então, esse é o maior cuidado que tem que ter que acho que os pais devem
estar juntos. Ao mesmo tempo, política públicas. Falta um bom lazer na periferia,
esporte, porque? São pessoas carentes, que não tem como pagar uma chácara com piscina, não tem como você estar se transportando para um local porque a maioria
quase não tem carro. Muitos são jovens trabalhadores, antigamente eu ia pro clube,
mas a demanda era muito menor. Agora, como que nós vamos fazer e onde nós vamos
trabalhar e de que forma nós vamos trabalhar? Existe esporte para o jovem? Não.
Existe um bom basquete pro jovem da periferia? Não. Qual é a saída? É realmente a
noite colocar um som bem alto, abre o carro, muita bebida, tudo ao ar livre, não pago
e aí eu vou dançar. Então o que ta faltando? Não é ir lá e partir pra repressão, por isso
eu falo que eu trabalho com a prevenção. É justamente começar a trazer projetos pra
dentro da periferia junto com a secretaria da cultura, secretaria de esporte.
Mas alerta que é dever também do movimento negro dar atenção a esse grupo, pensando na
formação de quadros e lideranças. Ela chama atenção sobre a branquitude sempre estar preparando seus
jovens para serem lideres, exemplificando: “O Rotary prepara jovens brancos para serem lideranças.
Porque não podemos preparar nossos jovens? Como vamos preparar nossos jovens para serem líderes?
” Esse chamado, para ela, é responsabilidade dos mais velhos e daqueles que se formam nas faculdades,
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pela necessidade de se estabelecer uma relação continua entre velhas e novas gerações na luta
antirracista.
Desse modo, no que se refere à juventude, temos por um lado, uma observação dos mais velhos, de
algumas necessidades e desafios que a juventude negra enfrenta. Por sua vez, é preciso refletir sobre os
quanto espaços como conselhos atualmente são interessantes para essa parcela jovem. Não é de se
estranhar que bailes e salões sejam locais onde há uma maior circulação da juventude, já que neles é
possível encontrar lazer, possibilidades de ganhar dinheiro e também de se expressar. O que fazer, não
saberia responder, mas pensando a partir da minha pesquisa anterior, que ouviu e circulou entre a
juventude, hoje há uma forma de militância muito mais ligada à cultura do que necessariamente a luta
política clássica na forma de conselhos e atos. O meio que esses grupos falam sobre o genocídio, por
exemplo, é a partir do funk e do rap muitas vezes ao invés de sentando e debaendo. Entretanto, de fato
é preciso pensar sobre a formação de líderes políticos, já que esse tipo de experiência só se consegue
sentando, discutindo e ouvindo. O que se observa com as entrevistas e etnografias atuais é uma geração
mais velha frustrada, mas com boas intenções e até atenta nas demandas da juventude. Agora, é de se
pensar mais um pouco o porquê desses encontros não estarem ocorrendo de maneira orgânica e como
essa questão deverá ser resolvida pelo movimento negro.
4. Conclusão
Ao terminar as entrevistas, observei que de forma geral, o movimento negro em Sorocaba tem
vivido um momento de tensão entre si. A grande dificuldade é em se mobilizar conjuntamente.
Entretanto, um primeiro ponto que deve ser levado em conta é que, ainda assim, o movimento tem
conseguido manter suas conquistas tais como a feira crespa, que reúne cerca de três mil pessoas
anualmente; a tradicional semana do hip-hop, que é um encontro da periferia no centro; a sustentação
do orçamento do carnaval e a semana de saúde da população negra. Ademais, hoje tem-se um
envolvimento maior de lideranças na disputa eleitoral e uma certa estabilização de um ciclo de protestos,
como o de 20 de novembro; em março e dezembro o ato pelas vidas negras (o primeiro, advindo da
morte de Marielle Franco e o segundo da morte do rapper e locutor Dinho) e em julho o do dia da Mulher
Negra, Latina e Caribenha. Além disso, as pautas da implementação da lei 10639 no currículo escolar,
o protocolo municipal de atendimento às vítimas de racismo e o programa municipal de saúde da
população negra não morreram e estão sendo objetos de disputa pelo movimento. Outra potência desse
movimento, na rua e na internet, é ver adolescentes e crianças expondo seus cabelos, desenvolvendo
amor pela sua negritude e conhecendo sua história.
O que procurei trazer é um entendimento de há uma identidade compartilhada entre esse
movimento, mas que é pulverizada, fragmentada. Tem a sua força constituída tanto por organizações
locais e também pelos novos desdobramentos nacionais e internacionais dessa luta. Isso é uma potência,
agora, se será traduzido em conquistas efetivas no futuro, é preciso esperar e ver.
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Desse modo, a pesquisa permite afirmar que no momento o movimento vive um acúmulo de
perdas e dificuldades para se estruturar. Essas dificuldades são vivenciadas por outros movimentos
sociais também e derivam de um desgaste das formas institucionais e tradicionais de participação, das
necessidades impostas pelo capitalismo, de um embate entre antigas e novas gerações, da dificuldade
em trazer as comunidades locais e de mudanças acerca dos paradigmas de identidade e raça em muito
pelo crescimento do debate interseccional. O movimento negro a nível municipal tem como desafio
conseguir se envolver nas lutas e debates nacionais, relacionando-os às reivindicações locais de modo a
envolver a comunidade e o conjunto do movimento, procurando encontrar formas de engajar a juventude
e também receber suas demandas. O contexto atual abre uma janela de oportunidades para expor as
ideias, mas também fecha outras, exigindo a reinvenção de enquadramentos interpretativos (ALONSO,
2009), circuitos e redes pois como mostrou a pesquisa, neste momento histórico, estes ou estão se
enfraquecendo ou nunca tiveram a força que se esperava.
5. Referências Bibliográficas
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