A contabilidade do Plano Real - FGV EPGE...dou: por outro lado, com tantos trabalha dores no...

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A contabilidade do Plano Real RUBENS PENHA CYSNE C erta vez, em um discurso para trabalhadores argentinos, o pre- sidente Domingo Perón afirmou que, até aquele momento, os sa- lários subiam pelas escadas , e os preços pelo elevador. E que a partir de então, com ele no poder, seria o contrário. Os preços passariam a subir pelas escadas e os salários pelo elevador. Ao olhar para seu ministro da Fazenda e perceber que talvez tivesse ido longe demais, emen- dou: por outro lado, com tantos trabalha- dores no elevador, ele terá que subir mais devagarzinho ... Em junho de 1994, com a introdução do Real, o Brasil trocou, com eficiência, o imposto inflacionário sobre a moeda (na verdade, um confisco, pois não é votado ou aprovado pelo Congresso) por au- mento da dívida pública. Os excessos da oferta sobre a demanda por moeda pas- saram a subir pela escada, e a dívida pú- blica pelo elevador. Contabilizando-se no confisco inflacio- nário não apenas os ganhos do Banco Central com a inflação, mas também as transferências inflacionárias para os bancos públicos, o ganho para o Gover- no (apenas com os juros reais negativos pagos pela base monetária e pelo exces- so dos depósitos à vista sobre as reser- vas fracionárias dos bancos públicos) gi- rava em torno de R$ 22 bilhões ao ano, nos 12 meses antes do Real. Nos 36 me- ses após o Real, esta estatística situou-se em torno de R$ 2,2 bilhões ao ano. Supo- nhamos que o déficit público operacio- nal tivesse se mantido constante após o Real. Neste caso, uma queda do confisco inflacionário de R$ 19 ,8 bilhões ao ano deveria implicar um aumento adicional do passivo líquido do setor público, em relação à situação pré-Real, também da ordem de R$ 19,8 bilhões. Ou seja, se an- tes o passivo líquido do setor público crescia um certo montante de reais ao ano, agora passaria a crescer este mes- mo montante acrescido de R$ 19,8 bi- lhões. Na verdade, entretanto, sabemos que o déficit operacional se elevou após o Real, o que significa que a variação do passivo do Governo, em relação à situa- ção pré-Real, deve superar a queda do confisco inflacionário, fato corroborado pelos dados. Uma pergunta interessante a ser efetuada, entretanto, é a seguinte: quanto do aumento da divida líquida do setor público após o Real se deve à que- da do confisco inflacionário? A estatística fiscal que mais se aproxi- ma do conceito de passivo líquido do se- tor público é dada pela dívida fiscallíqui- da do setor público, publicada pelo Ban- co Central. Sua utilização nos obriga a adotar como definição de governo, na análise aqui efetuada, aquela utilizada pelo FMI e pelo Tesouro, incluindo não apenas as esferas da administração dire- ta federal, estadual e municipal, mas tam- bém as empresas estatais. Esta dívida fis- cal líquida do setor público passou de R$ 145,7 bilhões em junho de 1994 para R$ 269 ,5 bilhões em maio de 1997, apresen- tando, pois, uma variação de R$ 123,8 bi- lhões no período de 35 meses após o Real. Comparando-se os números da dívida fiscal líquida com os números do confis- co inflacionário antes e nos 35 meses após o Real, pode-se dizer que aproxima- damente metade (578/1.238) do aumento da dívida líquida fiscal do setor público, ocorrida após o Real, pode ser explicada pela redução do confisco inflacionário. Esta parte do endividamento público representa a satisfação, efe- tuada pelo Governo, de um desejo que a sociedade co inflacionário, passou a se financiar por poupança externa, ou, equivalente- ment e. por endividamento externo. Em outras palavras, o Plano Real levou a economia brasileira a um outro equilí- brio. onde um confisco presente é troca- do por taxação futura (a alternativa de redução de gastos é remota), sendo tal troca financiada por não residentes. Esta troca apresenta vantagens e desvanta- gens, sendo seu saldo final função do que conseguirmos fazer neste período após o Real. A primeira vantagem, co- mo já salientamos, é que a queria ver atendido. É claro que o ideal teria sido trocar o confisco por redução de despesas. Mas como isto não foi feito, teremos agora que pagar a conta, com mais impostos e menor crescimento. 000 pagar a troca de confisco inflacio- nário por taxação futura traduz um certo respeito à cidadania, pelo fato de que impostos, ao contrário de confiscos, são ao menos vo- tados no Congresso Nacio- nal. Outra vantagem é que impostos podem melhor identificar quem paga, conta, com mais impostos Os números disponíveis mostram também que a poupança externa média e menor crescimento aumentou, em termos anua- Iizados, e extrapolando-se os valores ocorridos nos 12 meses anteriores ao Real para os 36 meses posteriores ao Real, algo em torno de R$ 21,2 bilhões, montante superior aos R$ 19,8 bilhões de queda do confisco inflacionário. Pode-se afirmar daí, grosso modo, desconside- rando-se a desigualdade entre a poupan- ça privada operacional e o investimento privado, que após o Real o déficit público operacional, antes financiado por confis- abrindo-se, desta forma , uma redução dos mecanis- mos de concentração de renda na econo- mia brasileira. Uma terceira vantagem , talvez a mais importante delas, é o au- mento de eficiência e produtividade pro- duzida pela estabilidade de preços. Mas também desvantagens na troca de confisco inflacionário por endivida- mento. A primeira reside na queda da sustentação política necessária para a redução de despesas públicas. Represen- ta este um conhecido problema, já ocor- rido várias vezes no Br asil, desd e 1 986, do doent e febril que apro veita o efeito do analgésico p ara ir à prai a. A diferen\'a é- que agora. além d os investimentos dIre- tos estrang ei ros e das baixas ta xas de ju- ros internacionais, há ainda os analgési- cos, de oferta limitada, da privatiza\ã o e das concessões . A segunda desvanta- gem, esta do ponto de vista fiscal, é que endividamento. ao contrário de confisco, tem que ser pago no futuro. que se pa-' gar o principal, a desconfiança do credo r: (que não é pequena no caso do Governo brasileiro) e o seu custo do tempo (os ros). Trata-se, pois. de um tempo caro ' que precisa ser muito bem apr oveitado: Coisa que precisamos ainda aprender a fazer em ambiente democrático . Curiosamente, o número de R$ 20 bi · lhões oficialmente associado ao "Pacote 51" reflete o montante adicional de re- cursos fiscais, relativamente aos 12 me- ses anteriores à situação vigente em ju- nho de 1994, que o Governo precisaria arrecadar para fechar suas contas não apenas sem o confisco inflacionário, mas' também, o que é fundamental no longo prazo, sem o subterfúgio ao eIldivida- mento externo . Nas condições atuais, en- tretanto, o novo c onjunto de medidas, embora pe rtinente (no atacado), está longe de resolver o problema do obstá- culo fiscal ao cresc i mento sustentado . RUBENS PENHA CYSNE é diretor de pesquisas da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas.

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A contabilidade do Plano Real RUBENS PENHA CYSNE

Certa vez, em um discurso para trabalhadores argentinos, o pre­sidente Domingo Perón afirmou que, até aquele momento, os sa­

lários subiam pelas escadas , e os preços pelo elevador. E que a partir de então, com ele no poder, seria o contrário. Os preços passariam a subir pelas escadas e os salários pelo elevador. Ao olhar para seu ministro da Fazenda e perceber que talvez tivesse ido longe demais, emen­dou: por outro lado, com tantos trabalha­dores no elevador, ele terá que subir mais devagarzinho ...

Em junho de 1994, com a introdução do Real, o Brasil trocou, com eficiência, o imposto inflacionário sobre a moeda (na verdade, um confisco, pois não é votado ou aprovado pelo Congresso) por au­mento da dívida pública. Os excessos da oferta sobre a demanda por moeda pas­saram a subir pela escada, e a dívida pú­blica pelo elevador.

Contabilizando-se no confisco inflacio­nário não apenas os ganhos do Banco Central com a inflação, mas também as transferências inflacionárias para os bancos públicos, o ganho para o Gover­no (apenas com os juros reais negativos pagos pela base monetária e pelo exces­so dos depósitos à vista sobre as reser­vas fracionárias dos bancos públicos) gi­rava em torno de R$ 22 bilhões ao ano, nos 12 meses antes do Real. Nos 36 me­ses após o Real, esta estatística situou-se em torno de R$ 2,2 bilhões ao ano. Supo-

nhamos que o déficit público operacio­nal tivesse se mantido constante após o Real. Neste caso, uma queda do confisco inflacionário de R$ 19,8 bilhões ao ano deveria implicar um aumento adicional do passivo líquido do setor público, em relação à situação pré-Real, também da ordem de R$ 19,8 bilhões. Ou seja, se an­tes o passivo líquido do setor público crescia um certo montante de reais ao ano, agora passaria a crescer este mes­mo montante acrescido de R$ 19,8 bi­lhões.

Na verdade, entretanto, sabemos que o déficit operacional se elevou após o Real, o que significa que a variação do passivo do Governo, em relação à situa­ção pré-Real, deve superar a queda do confisco inflacionário, fato corroborado pelos dados. Uma pergunta interessante a ser efetuada, entretanto, é a seguinte: quanto do aumento da divida líquida do setor público após o Real se deve à que­da do confisco inflacionário?

A estatística fiscal que mais se aproxi­ma do conceito de passivo líquido do se­tor público é dada pela dívida fiscallíqui­da do setor público, publicada pelo Ban­co Central. Sua utilização nos obriga a adotar como definição de governo, na análise aqui efetuada, aquela utilizada pelo FMI e pelo Tesouro, incluindo não apenas as esferas da administração dire­ta federal, estadual e municipal, mas tam­bém as empresas estatais. Esta dívida fis­cal líquida do setor público passou de R$ 145,7 bilhões em junho de 1994 para R$ 269,5 bilhões em maio de 1997, apresen-

tando, pois, uma variação de R$ 123,8 bi­lhões no período de 35 meses após o Real.

Comparando-se os números da dívida fiscal líquida com os números do confis­co inflacionário antes e nos 35 meses após o Real, pode-se dizer que aproxima­damente metade (578/1.238) do aumento da dívida líquida fiscal do setor público, ocorrida após o Real, pode ser explicada pela redução do confisco inflacionário.

Esta parte do endividamento público representa a satisfação, efe-tuada pelo Governo, de um desejo que a sociedade

co inflacionário , passou a se finan ciar por poupança externa, ou , equivalente­mente. por endividamento externo.

Em outras palavras, o Plano Real levou a economia brasileira a um outro equilí­brio. onde um confisco presente é troca­do por taxação futura (a alternativa de redução de gastos é remota), sendo tal troca financiada por não residentes. Esta troca apresenta vantagens e desvanta­gens, sendo seu saldo final função do que conseguirmos fazer neste período após o

Real. A primeira vantagem, co-

mo já salientamos, é que a queria ver atendido. É claro que o ideal teria sido trocar o confisco por redução de despesas. Mas como isto não foi feito, teremos agora que pagar a conta, com mais impostos e menor crescimento.

000 pagar a troca de confisco inflacio­nário por taxação futura traduz um certo respeito à cidadania, pelo fato de que impostos, ao contrário de confiscos, são ao menos vo­tados no Congresso Nacio­nal. Outra vantagem é que impostos podem melhor identificar quem paga,

conta, com

mais impostos

Os números disponíveis mostram também que a poupança externa média

e menor

crescimento

aumentou, em termos anua-Iizados, e extrapolando-se os valores ocorridos nos 12 meses anteriores ao Real para os 36 meses posteriores ao Real, algo em torno de R$ 21,2 bilhões, montante superior aos R$ 19,8 bilhões de queda do confisco inflacionário. Pode-se afirmar daí, grosso modo, desconside­rando-se a desigualdade entre a poupan­ça privada operacional e o investimento privado, que após o Real o déficit público operacional, antes financiado por confis-

abrindo-se, desta forma , uma redução dos mecanis­

mos de concentração de renda na econo­mia brasileira. Uma terceira vantagem , talvez a mais importante delas, é o au­mento de eficiência e produtividade pro­duzida pela estabilidade de preços.

Mas há também desvantagens na troca de confisco inflacionário por endivida­mento. A primeira reside na queda da sustentação política necessária para a redução de despesas públicas. Represen­ta este um conhecido problema, já ocor-

rido várias vezes no Brasil , desd e 1986, do doente febril que aproveita o efeito do analgésico para ir à prai a . A diferen\'a é­que agora. além dos inves timentos dIre­tos estrangei ros e das baixas taxas de ju­ros internacionais , há ainda os analgés i­cos, de oferta limitada, da privati za\ão e das concessões . A segunda desvanta­gem, esta do ponto de vista fiscal , é que endividamento. ao contrário de confisco, tem que ser pago no futuro. Há que se pa-' gar o principal , a desconfiança do credor: (que não é pequena no caso do Governo brasileiro) e o seu custo do tempo (os ju~ ros). Trata-se, pois . de um tempo caro' que precisa ser muito bem aproveitado: Coisa que precisamos ainda aprender a fazer em ambiente democrático .

Curiosamente, o número de R$ 20 bi· lhões oficialmente associado ao "Pacote 51" reflete o montante adicional de re­cursos fiscais , relativamente aos 12 me­ses anteriores à situação vigente em ju­nho de 1994, que o Governo precisaria arrecadar para fechar suas contas não apenas sem o confisco inflacionário, mas' também, o que é fundamental no longo prazo, sem o subterfúgio ao eIldivida­mento externo. Nas condições atuais , en­tretanto, o novo conjunto de medidas, embora pertinente (no atacado), está longe de resolver o problema do obstá­culo fiscal ao crescimento sustentado.

RUBENS PENHA CYSNE é diretor de pesquisas da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas.