A Construo Da Musicalidade Do Professor de Educao Infantil

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  UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL   UFRGS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO  Rosangela Duarte A CONSTRUÇÃO DA MUSICALIDADE DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO EM RORAIMA Orientadoras: Profª. Drª. Esther S. W. Beyer Profª. Drª. Maria Luiza R. Becker Porto Alegre, maio de 2010.

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Aula de musica

Transcript of A Construo Da Musicalidade Do Professor de Educao Infantil

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL UFRGS FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Rosangela Duarte

    A CONSTRUO DA MUSICALIDADE DO PROFESSOR DE

    EDUCAO INFANTIL: UM ESTUDO EM RORAIMA

    Orientadoras: Prof. Dr. Esther S. W. Beyer Prof. Dr. Maria Luiza R. Becker

    Porto Alegre, maio de 2010.

  • Rosangela Duarte

    A CONSTRUO DA MUSICALIDADE DO PROFESSOR DE

    EDUCAO INFANTIL: UM ESTUDO EM RORAIMA.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para obteno do ttulo de Doutor em Educao.

    Orientadoras: Prof. Dr. Esther Beyer Prof. Dr. Maria Luiza R. Becker

    Porto Alegre, maio de 2010.

  • Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da UEA

    D812c

    2010

    Duarte, Rosangela.

    A construo da musicalidade do professor de educao infantil: um estudo em Roraima / Rosangela Duarte, 2010.

    211 f. ; 30 cm

    Orientadoras: Esther Beyer e Maria Luiza Becker

    Tese (Doutorado)Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Ps-graduao em Educao, 2010.

    1. Musica na educao. 2. Professor - Formao. 3. Musica Instruo e ensino 4. Musica educao infantil I. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. II.

    Ttulo.

    CDU 78:372.8(811.4)

  • Dedico este trabalho

    minha me Marilene...

    Ao meu pai Maneco...

    Obrigada pelas oportunidades infinitas de ser feliz!

    Ao Flvio, meu esposo...

    Com muito amor!

    Aos meus filhos Enzo e talo...

    Pelo amor e companheirismo de uma vida!

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus pelo renascer a cada dia.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Educao da FACED/UFRGS, em especial

    aos funcionrios da secretaria, pela ateno que sempre prestaram.

    A Pr-reitoria de Ps-graduao e pesquisa da UFRR e ao PICDT pela

    oportunidade da bolsa de estudo por quatro anos.

    Ao Centro de Educao da UFRR pela possibilidade de realizao do curso com

    afastamento total durante os quatro anos.

    A todos da Escola Joo Furtado, do SESI-RR pelo total apoio para a realizao

    desta pesquisa. Em especial aos queridos professores sujeitos desta pesquisa com os

    quais tive o prazer de compartilhar momentos inesquecveis de aprendizagem durante a

    Oficina de Musicalizao.

    minha grande amiga Dr Patrcia Kebach, com quem muito tenho aprendido na

    co-orientao da fase final desse estudo.

    A querida Dr Leda Maffioletti, por contribuir no momento da defesa do projeto

    com sugestes muito pertinentes ao tema pesquisado.

    As verdadeiras amigas e companheiras Elena Fioretti, Hirlndia Milon, Paula

    Pecker e Flvia Rizzon, que contriburam com idias e leituras sobre meus textos.

    Vocs foram indispensveis na construo deste trabalho.

    Ao meu amigo e colega Dr. Celson Gomes e famlia, por todos os momentos que

    apoiou a trajetria destes quatro anos de estudo.

    A minha famlia, Irma, Fernanda, Adriano, Murilo, Luana, pelas oraes,

    incentivos e apoio em todos os momentos.

  • A minha famlia gacha Genoveva, Casemiro, Simone, Betinho e Silvano, pelo

    amor construdo atravs da convivncia, amizade e por terem me acolhido em Porto

    Alegre.

    A Denise e Paulo Pecker pela simpatia e amizade.

    Aos meus queridos filhos talo Duarte De Da, que colaborou no estudo,

    registrando em vdeo os momentos da Oficina de Musicalizao e Enzo Duarte De Da

    que realizou a edio final da gravao do DVD.

    Aos amigos: Jota, por fazer a traduo do resumo; Cludio Lsias, por realizar a

    edio do DVD; Darle Teixeira pela competncia e agilidade na reviso deste trabalho.

    Aos colegas do GEMUS - Grupo de Estudos em Educao Musical, pela troca de

    experincias e contribuies tericas, com reflexes sobre vrios aspectos estudados

    na tese.

    A banca examinadora desta tese Doutora Cludia Bellochio, Doutora Patrcia

    Kebach e Doutor Ricardo Freire e, pelo tempo dedicado leitura deste trabalho e as

    sugestes que enriquecero minha vida profissional e conduta acadmica.

    A querida Doutora Maria Luiza Becker que alm de participar da banca

    examinadora, assumiu prontamente a orientao da edio final da tese, a quem eu

    sou eternamente grata pelos momentos de reflexo e companheirismo diante da

    fatdica realidade.

    E, em especial, a minha Orientadora, Profa. Dra. Esther Beyer (in memrian) que

    de forma incansvel conduziu esta orientao com incentivo, pacincia, demonstrao

    de afeto e carinho durante toda a jornada; por ter permitido a amizade sincera e

    verdadeira que se formou a partir desse estudo; e, porque esteve presente e parte

    integrante de todos os momentos que permeiam a elaborao deste trabalho, figurando

    no final desses agradecimentos para se manter viva na memria.

    Obrigada!

  • RESUMO DUARTE, Rosangela. A construo da musicalidade do professor de educao infantil: um estudo em Roraima. Porto Alegre, 2010. 213 f. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, Porto Alegre, 2010. Com o objetivo de investigar o desenvolvimento da musicalidade na formao e na prtica musical do professor da Educao Infantil, este estudo reflete sobre o papel da msica como um conhecimento a ser construdo e suas aplicaes nas escolas de Boa Vista RR. Optei refletir e analisar como a msica est presente na prtica pedaggica deste, e quais as concepes de msica que norteiam sua ao pedaggica. Observo e discuto como esse profissional da educao entende e dinamiza o conhecimento musical, ao pensar sobre suas possibilidades de trabalhar com a msica na sua prtica pedaggica, atravs de uma ao educativa reflexiva e crtica: a Oficina de Musicalizao. Existem dois focos de anlise: a musicalizao de professores da Educao Infantil e suas prticas pedaggicas na Educao Infantil. O corpo terico que fundamenta esta pesquisa aborda a teoria piagetiana e o pensamento de Paulo Freire, calcada na relao dialgica-dialtica entre educador e educando. Para discutir a formao do professor atuante na educao infantil e a educao musical, adotei os estudos de autores como Bellochio (2000), Kater et al (1998), Penna (2008), Figueiredo (2004), Krobot e Santos (2005). E, a partir das pesquisas de Brito (2003); Fonterrada (2005); Beaumont (2003); Schafer (2001); pude refletir sobre a presena da msica na Educao Infantil como rea de conhecimento. Como metodologia, adotei como referncia a pesquisa-ao caracterizada por Carr & Kemmis (1986), Elliott (1991), Kemmis & Mctaggart (1992), ressaltando: a imerso da pesquisadora nas circunstncias e no contexto da pesquisa, o reconhecimento dos sujeitos participantes como produtores de conhecimentos e prticas e, a busca por resultados como fruto de um trabalho coletivo conseqente da interao entre pesquisador e pesquisado. A presente pesquisa vem contribuir com reflexes e discusses sobre a teoria que permeia as nossas prticas no sentido de privilegiar um espao diferenciado de construo do conhecimento e contribuir para a formao de um professor atuante na educao infantil, que possa agir e refletir na e para a prtica educativa. Palavras-Chave: 1.Musicalizao. 2.Educao Infantil. 3.Formao do Professor. 4.Construtivismo. 5.Pesquisa-ao. 6.Roraima.

  • ABSTRACT DUARTE, Rosangela. A construo da musicalidade do professor de educao infantil: um estudo em Roraima. Porto Alegre, 2010. 213 f. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, Porto Alegre, 2010. Aiming to investigate the development of musicianship training and practice of Music professor of early childhood education, this study reflects on the role of music as a knowledge to be built and its applications in schools of Boa Vista - RR. I chose to reflect and analyze how music is present in this teaching practice, and the conceptions of music that guide the classroom. I observe and discuss how this education professional understands and streamlines the musical knowledge, to think about their ability to work with music in their teaching through an educational and reflective criticism: the Musicalization Workshop. There are two focus of analysis: the musicalization of teacher with a pedagogic background and their teaching practices in early childhood education. The theoretical framework underlying this research addresses the theory of Piaget and the thought of Paulo Freire, based on dialectic-dialogic relationship between teacher and student. To discuss the formation of teachers with a pedagogic background and the music education, I adopted the studies of authors like Bellochio (2000), Kater et al (1998), Penna (2008), Figueiredo (2004), Krobot and Santos (2005). And from the studies of Brito (2003), Fonterrada (2005), Beaumont (2003), Schafer (2001), I did realize the presence of music in early childhood education as an area of knowledge. As methodology I adopted action research, based on the approach suggested by Carr & Kemmis (1986), Elliott (1991), Kemmis & McTaggart (1992), highlighting: the researcher's immersion in the circumstances and context of research, the recognition of the participating subjects as producers of knowledge and practice, and the quest for results as the fruit of a collective consequence of the interaction between researcher and researched. This research is a contribution to debates and discussions on the theory that permeates our practices in order to privilege a distinct area of knowledge building and contribute to the formation of a pre-school teacher, who can act and reflect in and for educational practice. Keywords: 1.Musicalization; 2.Childhood Education; 3.Teacher Training; 4.Construtivism; 5 Action research; 6. Roraima.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ............................................................................................... 11

    1.1 Apresentao do tema ........................................................................... 11

    1.2 Questes de Pesquisa ........................................................................... 20

    2. CONTEXTUALIZAO DO APORTE TERICO .......................................... 25

    2.1 O que Infncia e como a msica vivenciada .................................. 25

    2.1.1 As diversas concepes sobre a infncia .................................. 25

    2.1.2 Estudos sobre a criana e suas implicaes para a Educao

    Musical ...............................................................................................................

    29

    2.2 Aprendizagem e a construo da Musicalidade .................................. 35

    2.3 A msica enquanto componente curricular na Educao Infantil ..... 44

    2.3.1 Em Roraima ................................................................................... 49

    2.4 A Formao do professor de Educao Infantil .................................. 52

    2.4.1 Questes da Educao Infantil e a formao de seus

    professores .......................................................................................................

    54

    2.4.2 Formao de professores da Educao Infantil e o ensino da msica ...............................................................................................................

    62

    3. O CAMINHO METODOLGICO PERCORRIDO .......................................... 68

    3.1 Sujeitos .................................................................................................... 74

    3.1.1 Processo de escolha ..................................................................... 74

    3.1.2 Breve descrio dos sujeitos ....................................................... 77

    3.2 Local ........................................................................................................ 79

    3.3 Buscando Parcerias ............................................................................... 80

    3.4 Elemento de ao: Oficina de Musicalizao ...................................... 81

    3.5 Instrumentos de pesquisa .................................................................... 85

    3.5.1 Dirio de campo ............................................................................ 85

  • 3.5.2 Entrevista ...................................................................................... 87

    3.5.3 Observao ................................................................................... 89

    3.6 Procedimentos de anlise .................................................................... 91

    4. PONTO DE PARTIDA PARA O UNIVERSO MUSICAL ................................ 94

    4.1. Ponto de partida: apresentao do grupo de professores ................ 94

    4.2. O papel da famlia .................................................................................. 97

    4.3. O papel da escola .................................................................................. 102

    4.4. Consideraes sobre as estruturas de partida para o universo

    musical ..............................................................................................................

    106

    5. MSICA NA EDUCAO INFANTIL: O QUE PENSAM OS

    PROFESSORES ................................................................................................

    107

    5.1 A msica como parte integrante do currculo da Educao Infantil.. 108

    5.2 Quem deve ensinar msica na Educao Infantil? ............................. 113

    5.3 Formas de vivenciar a msica na Educao Infantil .......................... 118

    5.4 Consideraes sobre o pensamento do professor ............................. 126

    6. REFLETINDO SOBRE A PRPRIA MUSICALIDADE ................................. 129

    6.1 O que os professores entendem por musicalizao ........................... 130

    6.2 Atividades realizadas na Oficina de Musicalizao ............................ 133

    6.2.1 Integrando som e movimento ....................................................... 136

    6.2.2 O ritmo da msica ......................................................................... 138

    6.2.3 Paisagem sonora da escola .......................................................... 142

    6.2.4 Escutar msicas de estilos diferentes ........................................ 144

    6.2.5 Sonorizao de histrias .............................................................. 152

  • 6.3 Resultado prtico da Oficina de Musicalizao ................................... 158

    6.4 Consideraes sobre o processo de musicalizao .......................... 163

    7. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................... 165

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................. 176

    ANEXOS ............................................................................................................. 196

    ANEXO 1. Ficha de identificao .................................................................... 196

    ANEXO 2. Roteiro da entrevista ...................................................................... 197

    ANEXO 3. Cds de musicas gravados para a Oficina ..................................... 200

    ANEXO 4. Planejamento da Oficina de Musicalizao .................................. 201

    ANEXO 5. Modelo de autorizao de veiculao de imagem e voz ............. 210

    ANEXO 6. Oficina de Musicalizao em DVD ................................................. 211

  • 11

    1. INTRODUO

    1.1 Apresentao do tema

    Ao pensar na formao que um professor precisa ter para ser realmente um

    educador, fez-me sentir como mergulhada num turbilho de informaes. Mediante

    essa reflexo, decidi primeiramente, fazer uma retrospectiva da minha prpria

    formao.

    Desde minha infncia, com apoio de meus pais, fui desenvolvendo experincias

    musicais que me levaram a gostar de msica. Iniciei meus estudos de msica antes

    mesmo de ir para a escola formal. Meu pai me ensinava a ler e a escrever atravs das

    lies de piano escritas por minha primeira professora de msica, Dona Eliane. Na

    Escola de Msica da Dona Eliane, havia aulas de piano e de teoria musical, de um

    modo bem tradicional, ou seja, antes de ir tocar piano, era necessrio saber ler e

    escrever as notas musicais. Ao ingressar na pr-escola, houve um acrscimo em

    minhas atividades musicais, em que pude participar da bandinha da escola, chegando a

    ser regente do grupo. Nas aulas de msica na pr-escola tive a oportunidade de

    experimentar vrios instrumentos e, com isso, as aulas de msica eram sempre bem

    vindas por todos.

    Durante as quatro primeiras sries, o contato com a arte foi cada vez mais se

    distanciando da msica e sendo realizado atravs das poucas atividades plsticas que

    consistiam em pintar figuras carimbadas em nossos cadernos pela professora ou

    desenhos mimeografados, confeco de artesanatos para lembranas nas datas

    comemorativas (dia dos pais, me, etc.). A ausncia do ensino da msica foi se

    consolidando ao longo de meus primeiros quatro anos de escolarizao. Msica

    mesmo, s na hora de cantar os hinos cvicos e religiosos ou no recreio, quando

    brincvamos de roda.

  • 12

    Essas lembranas me fazem refletir tambm que como aluna de uma pr-escola

    e ensino primrio (como era chamado na poca), num colgio particular religioso onde

    ser disciplinado era fundamental, o bom aluno era considerado o mais quieto, o qual

    nada criava e sim reproduzia tudo sem contestao. Imperava uma pedagogia de

    cartilhas e de inmeros exerccios repetitivos. O professor, ou melhor, a professora,

    porque no me recordo de ter nenhum professor do sexo masculino, sabia tudo e no

    gostava de ser interrompida. A sala de aula era um silncio s e se falava apenas

    quando a professora perguntava. Andar pela escola s em fila e, no recreio to

    esperado, as brincadeiras eram dirigidas separadamente para os meninos e para as

    meninas.

    Mais tarde, no ginsio (hoje Ensino Fundamental), mudana de vida, mudana

    de escola. Agora, l estava eu num colgio pblico do estado, com quatro turnos, salas

    cheias e vrios professores e professoras. De repente eu virei um nmero da chamada

    e a maioria dos professores no sabiam meu nome. Entravam e saiam das aulas,

    despejando seus conhecimentos, exigindo todos os exerccios feitos e se sentiam muito

    bem quando eram includos no hall das autoridades mais temidas da escola. Quanto

    presena da msica na escola, apenas durante a quinta srie eu tive uma professora de

    msica que dava aulas de teoria musical bsica, com uma aula por semana, e ensinava

    os hinos ptrios para serem cantados nas solenidades escolares.

    Escrevendo essas linhas, vejo o quanto marcante na formao de uma pessoa

    as experincias vividas na infncia, principalmente quando se tem professores que

    acreditam que o conhecimento contedo - pode ser transmitido, exercendo seu

    monoplio na sala de aula. Segundo BECKER (2001), esta viso empirista a qual

    considera o aluno uma tbula rasa, acredita que todo o conhecimento vem do meio

    fsico e social. Desconsidera a importncia de propiciar que o sujeito estabelea uma

    interao com o objeto (conhecimento), explorando todas as suas possibilidades.

    Essa interao s se d mediante a duas condies, a primeira quando o aluno

    tem a oportunidade de realizar aes sobre o objeto novo (assimilao), apresentado a

    ele pelo professor, o qual deve considerar que este material seja cognitivamente

    interessante e significativo para o aluno. A segunda condio a resposta que o aluno

    d para si mesmo s questes suscitadas pela assimilao do objeto (acomodao),

  • 13

    apropriando-se dos mecanismos das aes que realizou sobre esse material. Isto , as

    questes levantadas pelos alunos e pelo professor desencadeiam momentos de

    reflexes, os quais concretizam esse processo.

    A disciplina agora era "Educao Artstica", mas o contedo sempre foi o de

    Artes Plsticas, no ultrapassando algumas noes de desenho geomtrico (o que no

    entendia ter funo na poca) e, tambm, algumas atividades como prendas

    domsticas, bordados, pintura em tecidos, costura. No mximo, no ambiente escolar,

    sentia prazer em participar da fanfarra, mas sempre fora do horrio para no atrapalhar

    as matrias mais importantes: portugus e matemtica. Este era um momento mgico,

    em que meus conhecimentos de msica podiam ser aplicados dentro da escola.

    Paralelamente aos estudos escolares, meus pais continuavam a me incentivar

    nos estudos da msica, compraram o meu piano para que eu pudesse estudar em

    casa, sem precisar passar horas de estudos na escola de msica. Estudava piano com

    muita dedicao. No faltava s aulas e conseguia boas performances artsticas, mas

    por ter iniciado muito cedo e por ter uma professora muito rgida, no me arriscava a

    brincar com os sons e muito menos a "tocar de ouvido.

    Anos mais tarde, viria a descobrir que eu dominava bem a tcnica de execuo

    musical, mas muito da criatividade que eu tivera na infncia havia sido suplantada por

    teorias e estudos de destreza motora. Em 1975, conclu o curso tcnico de piano no

    Conservatrio1 Carlos Gomes. No tendo conscincia das consequncias reais dessa

    formao baseada na repetio, no treinamento, sentia muita dificuldade em criar

    msica. Aos poucos, durante o perodo de minha formao, pude entender que

    precisava me autorizar a explorar novas sonoridades, brincar com instrumentos

    diferentes, enfim sentir prazer em fazer a minha prpria msica. Ir alm das tcnicas

    estabelecidas pelo sistema do Conservatrio.

    Outras mudanas, de cidade, de Estado, de escola. Outro colgio do Estado,

    agora de Ensino Mdio Tcnico, com mais de 3.000 alunos. Escola conceituada pela

    sua tradio, disciplina, cursos tcnicos e insero de alunos no mercado de trabalho.

    1 Segundo Rosa Fuks (1991) o Conservatrio representou a transformao do ideal de uma preparao musical que se voltava para a elite, num outro democrtico, que alcanava a burguesia, simplificando a linguagem musical a fim de torn-la compreensvel para todos, atravs de mtodos voltados para o ensino da msica europia.

  • 14

    Mas professores e professoras muito diferentes entre si e do prprio grupo de alunos.

    Todos visavam desenvolver ao mximo as habilidades tcnicas para que pudssemos

    atender as exigncias do mercado de trabalho. Nada era perguntado, nem do que se

    gostava, nem o que fazamos fora da escola, e muito menos nossa experincia de vida.

    Trs anos se passaram rapidamente e quando percebi estava frente ao

    vestibular. No cursinho pr-vestibular, os professores s falavam na concorrncia das

    vagas universidade, na necessidade de um nmero mximo de aprovao para

    enaltecer o nome da instituio.

    Ao terminar o 2 Grau, hoje Ensino Mdio, no sabia se prestaria vestibular

    para bacharelado em msica na modalidade instrumento (piano) ou em outro curso.

    Diante do preconceito de que msica no era profisso para se ganhar a vida, eu optei

    por prestar vestibular para Fonoaudiologia, j que seria a primeira turma da PUC e o

    mercado de trabalho estava aberto. No entanto, continuei com atividades na rea da

    msica, lecionando aulas particulares de piano e tocando em casamentos e festas, as

    quais ajudaram a subsidiar meus estudos na referida universidade.

    Finalmente escolhi uma profisso, vou poder tirar todas as dvidas acumuladas

    durante tanto tempo: entrei na Universidade. Na universidade, no primeiro dia de aula,

    o professor entra na sala, se apresenta, fala sobre sua disciplina, plano (que j est

    pronto e fechado), d a bibliografia e marca o 1 texto para a prxima aula. Depois de

    uma semana de aula, lembro que das disciplinas do semestre apenas trs podiam gerar

    debates, questionamentos, trocas de experincias. Nas demais, tudo se repete.

    Terminei a faculdade j trabalhando com a estimulao precoce com deficientes

    mentais, principalmente atendendo crianas de 0 a 4 anos, no Centro de Estimulao

    Precoce da APAE de Curitiba e no Instituto de Assistncia ao Menor do Estado, na

    Clnica de Reabilitao de Deficientes Mentais (abandonados). Foi uma grande

    experincia de vida, pois me deparei com uma realidade a qual no imaginava que

    existisse. Esse perodo foi muito marcante, pois convivia com crianas e com jovens

    que nunca tiveram e nem iriam ter oportunidade de fazerem parte de uma famlia. A

    adoo de crianas abandonadas j difcil, que dir para crianas portadoras de

    necessidades especiais. Suas vidas eram dentro daquela clnica e dependiam

    exclusivamente de todos que l trabalhavam.

  • 15

    Com certeza, foi nesse ambiente de trabalho que descobri o possvel musical

    existente e latente na voz, no instrumento, na fala, no canto, na cultura, enfim, na vida

    humana. Que a musicalidade uma condio humana e depende de uma

    compreenso do que acontece ao nosso entorno, do que entendemos como msica e o

    que a msica significa para cada um de ns (SLOBODA, 1996; BLACKING, 1990). Isto

    porque ao conviver com aquelas crianas, dentro das sesses teraputicas, elas

    sempre pediam para cantar, para ouvir msica. Nas festividades realizadas na clnica e

    tambm na escola, a maioria gostava de apresentar alguma msica cantada individual

    ou em grupo.

    Em 1986, mudei-me para Boa Vista Roraima. No extremo norte, busquei

    entrar no mercado de trabalho, mas a fonoaudiologia ainda era uma rea quase que

    desconhecida em Roraima, foi ento que a msica me conduziu para o trabalho da

    docncia. Nesse lugar to distante, encontrei uma Escola Estadual de Msica, na qual

    a necessidade de professor era urgente frente demanda de alunos. Evidentemente,

    minha vida comeou a girar em torno dos estudos, dos concertos de piano e coral, das

    visitas s escolas de msica e regular, ou seja, minha vida assumiu os rumos da

    Educao e da Msica.

    Atravs de um estudo solitrio, os caminhos da msica e do ensino de msica

    foram se fortalecendo, tanto na minha ao de vida como na ao profissional. Nesse

    perodo, na escola de msica ministrei aulas de piano, teoria musical, montei e regi

    coros infantil, infanto-juvenil, toquei, cantei e estudei muito. Tudo contribuiu para meus

    processos reflexivos sobre o ensino de Msica na escola regular. Ao longo dos anos,

    pude ir amadurecendo a significao dos fatos interiorizados em minha vida e hoje

    posso deline-los com novas perspectivas.

    No perodo de 1988 a 1990, assumi a direo da Escola Estadual Jardim de

    Infncia Diva Lima, em que pude implementar o ensino da msica, atravs de oficinas

    realizadas com as professoras da Educao Infantil que atuavam na escola. Foram trs

    anos de muito trabalho, principalmente no que tange viso errnea de que a msica

    um conhecimento que poucas pessoas tm direito a ter acesso. As professoras da

    Educao Infantil no se sentiam capazes de ensinar msica, mas aos poucos fui

  • 16

    trabalhando esses medos e mostrando que a msica estava presente no nosso dia a

    dia, principalmente na nossa prtica educativa, quando assim se faz uso da msica.

    O trabalho desenvolvido, na escola estadual, mais uma vez, propiciou-me

    reflexes quanto ao ensino de Msica. A partir de tais aes e reflexes e influenciada

    por pressupostos construtivistas, comecei a questionar-me sobre a prtica do professor

    da Educao Infantil, principalmente sobre suas possibilidades de trabalhar com vrios

    campos do conhecimento junto criana e, de forma muito especial, trabalhar com a

    Educao Musical.

    Em junho de 1995, assumi a direo da Escola de Msica de Roraima como um

    grande desafio. A Escola necessitava de estabelecer seu currculo, re-estruturar seus

    cursos e estabelecer projetos que oportunizassem o acesso ao ensino da msica para

    a comunidade. Com uma equipe de 15 professores msicos, mas nem todos com

    formao docente, iniciamos um trabalho instalando um grupo de estudos. O objetivo

    do grupo era discutir principalmente as questes didticas, atravs da prtica de refletir

    sobre suas aes, questionando essas aes e buscando solues para os problemas

    que enfrentvamos como a evaso escolar, a falta de valorizao dessa rea do

    conhecimento pelos pais, fazendo da Escola de Msica um mero passatempo para

    seus filhos.

    Com a sada do ensino da msica dos muros da Escola de Msica atravs do

    Canto Coral, senti que as portas da Escola Regular iam se abrindo cada vez mais para

    a educao musical, porque alm de cantar, os participantes recebiam ensinamentos

    de teoria musical, para poder ler as partituras do repertrio. Procurvamos envolver

    uma professora da escola, sob orientao da Escola de Msica, que se

    responsabilizasse pelo grupo do coral, como parceira do projeto. Assim,

    conquistvamos algum para incentivar a participao dos alunos nessa atividade e,

    tambm, dar continuidade ao trabalho dentro da prpria escola.

    Nas Escolas Pblicas, sempre havia um professor que tocava algum

    instrumento ou gostava de cantar, assim, a cada dia recebia mais pedidos de

    assessoria para a formao de novos Corais, atravs de cursos de musicalizao para

    a formao de professores. O interesse foi tanto que no ano de 2000 foi realizado o I

  • 17

    Painel de Regncia Coral do Norte, com a ajuda da FECORS2. E a partir da realizao

    do Painel, vrios corais foram formados nas escolas e igrejas. O movimento do Canto

    Coral foi crescendo a cada ano. A minha preocupao em coordenar este evento era

    principalmente em oferecer oficinas com profissionais que, alm de competentes,

    estivessem dispostos a trabalhar com msicos, professores de msica, alunos da

    Escola de Msica, mas principalmente com professores da Educao Infantil das

    escolas de ensino regular.

    No ano de 2000, ingressei no curso de Mestrado em Educao, pela

    Universidad Camilo Cienfuego de Matanzas, Cuba. Durante o curso, pude aprofundar

    questes sobre a importncia do ensino da arte para o desenvolvimento humano na

    perspectiva social. A experincia vivenciada na minha estada em Cuba me fez refletir

    sobre a importncia da arte na formao do indivduo, pois a valorizao que aquele

    povo d ao ensino da arte desde os primeiros anos escolares, diante das inmeras

    dificuldades polticas e socioculturais que passam, ensina-nos que possvel e se pode

    fazer com muito pouco. Cuba nos d uma lio de vida, de superao e de que todos

    tm talentos, o que precisam de oportunidade. Desmistifica os discursos errneos do

    senso comum que ainda hoje tratam o ensino da msica como privilgio de seres

    humanos prodgios, que possuem habilidades inatas, que tem o dom para a msica.

    A minha dissertao - Propuesta de recomendaciones para la preparacin del

    profesor de Msica de la Enseanza Fundamental - foi um estudo diagnstico

    desenvolvido junto a Escolas Estaduais do Ensino Fundamental de Boa Vista, com o

    objetivo de detectar como os professores de Arte, que ministravam Msica no Ensino

    Fundamental, eram preparados e qual o seu campo de ao. O diagnstico realizado

    aponta as deficincias e insuficincias dos principais problemas que os professores de

    Arte Msica apresentam, por exemplo, a falta de formao especfica na rea de

    msica, atravs dos resultados contrastantes dos diferentes instrumentos aplicados aos

    sujeitos da pesquisa (alunos, professores, supervisores e diretores). Na anlise dos

    dados sobre a formao dos professores, pude constatar que a situao precria,

    pois ao sobrepor os fatores positivos e negativos, estes ltimos conformam quase que a

    totalidade. A investigao realizada pe de manifesto a necessidade de encontrar, de

    2 Federao de Coros do Rio Grande do Sul presidida, na poca, pelo Prof. Vilson Gavaldo.

  • 18

    imediato, vias de soluo a respeito do ensino da Arte Msica, assim como a

    capacitao dos que a desempenha.

    Aps o mestrado, ingressei no quadro de professores do curso de Pedagogia e

    venho construindo um fazer pedaggico no ensino de Msica, atravs das disciplinas

    Arte e Educao, Criatividade e Expresses Artsticas e Prtica de Ensino I, em que

    acompanho as experincias musicais de futuros professores, compreendendo algumas

    questes especficas do pedagogo em relao Educao Musical, ao longo dos

    trabalhos nas disciplinas.

    A experincia na docncia, como formadora de professores me levou a

    conduzir um projeto de pesquisa3 junto a duas professoras da Educao Infantil, para

    entender como o ensino da msica poderia facilitar o processo de alfabetizao das

    crianas das duas turmas da 1 srie da Escola de Aplicao, como as professoras

    regentes elaboravam aes em Educao Musical e como a escola, representada pela

    coordenao pedaggica e pela direo geral, posicionava-se frente a esse trabalho.

    De forma bastante incipiente, estava adentrando numa nova concepo de

    investigao, transformando a pesquisa em participao, ativa e crtica, junto ao

    trabalho das professoras regentes.

    Como resultado, verificou-se que a formao dos professores deve

    proporcionar a vivncia e o conhecimento da msica, associada a um intenso trabalho

    de sensibilidade, de percepo, observao e estudo, atravs do respeito s diferenas

    e com o prazer de acompanhar cada aluno no seu tempo. E isso instigou a reflexo

    sobre questes de como a atividade musical pode estar vinculada aos contedos

    propostos para cada srie da Educao Bsica; qual a importncia da ao do

    professor em presumir que cada novo objeto de conhecimento a ser apresentado para

    o aluno, seja significativo para ele.

    A investigao possibilitou ampliar o conhecimento das concepes

    pedaggicas e musicais de professoras da rede pblica de ensino, ao mesmo tempo

    em que despertou interesse de agir mais intensamente junto aos professores j

    3 A prtica da musicalizao: uma atitude frente ao processo ensino-aprendizagem na 1 srie do ensino

    fundamental. Projeto de pesquisa realizado em 2002, com as professoras Rosicler Trivelato e Elena Fioretti, no Colgio de Aplicao da UFRR.

  • 19

    atuantes no magistrio da Educao Infantil e das sries iniciais do Ensino

    Fundamental.

    Esta ideia se concretizou quando assumi a coordenao do Plo Arte na Escola

    da UFRR, projeto cujo objetivo promover a formao continuada de professores de

    Artes da Rede Pblica. O trabalho realizado atravs de grupos de estudos compostos

    de professores atuantes na Educao Bsica, promoo de eventos e oficinas,

    realizao de exposies e mostras de trabalhos resultantes dos projetos

    desenvolvidos nas escolas, a partir dos estudos realizados no Plo.

    Mais uma vez a aproximao com a escola vem ao encontro da reflexo da

    minha prtica de professora formadora, com a prtica dos professores atuantes na

    Educao Bsica. Atravs deste projeto, tive a oportunidade de enfocar a msica, artes

    plsticas, dana e teatro, como linguagens para construir sentimentos e conhecimentos

    humanos, e que isto possvel dentro da escola.

    No ano de 2005, tambm estive engajada em eventos da Secretaria do Estado e

    do Municpio de Educao de Boa Vista que buscaram discutir junto comunidade

    educacional os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs-Arte) e o Referencial

    Curricular para a Educao Infantil. Foram encontros em que pude perceber com mais

    clareza como os professores especialistas vm pensando e desenvolvendo suas

    prticas educativas, momento em que ficou evidente a supremacia das Artes Plsticas

    sobre as outras reas artsticas. Poucos ensinavam Msica.

    O conjunto desses trabalhos que expus tem me levado a buscar reflexes de

    novos enfoques e prticas, tanto em minha atuao profissional de professora

    formadora na Universidade Federal de Roraima - UFRR, no Centro de Educao,

    atuando no curso de Pedagogia, como tambm no Colgio de Aplicao da UFRR,

    como professora de Educao Bsica. Acredito que, a partir dessa vivncia, pude

    refletir e rever a prtica educativa na academia em conjunto com a escola,

    principalmente pelo anseio dos alunos de Pedagogia e de professores j atuantes por

    trabalhar com a Msica no cotidiano de suas atividades docentes.

    A partir do curso de mestrado, de novos estudos, pelas discusses nacionais a

    respeito do Ensino da Msica na Escola, pelas reformulaes nacionais dos currculos,

    pelo movimento de implantao de novas Diretrizes Curriculares nos cursos superiores

  • 20

    e pela ampla discusso da Associao Brasileira de Educao Musical surgiram novos

    anseios que se corporificaram na deciso de buscar o ingresso no curso de doutorado.

    Hoje, esses anseios permeiam a temtica dessa tese e pretendem enfatizar a

    prtica educativa do ensino de Msica realizada por professoras no-especialistas na

    rea, mas habilitadas docncia da Educao Infantil.

    1.2 Questes de Pesquisa

    A reflexo que se fez das vises que os professores da Educao Infantil tm da

    Educao Musical na Educao Infantil implica estudar o saber artstico e esttico

    musical da criana, conhecer as vivncias musicais do professor, compreender a

    msica na educao presente em muitas temticas pesquisadas nas ltimas dcadas.

    Dentre elas, optei por buscar responder: Como a msica est presente na prtica

    pedaggica do professor de Educao Infantil, de Boa Vista RR, e quais as

    concepes de msica que norteiam sua ao pedaggica?

    Assim, o trabalho que apresento procura investigar o desenvolvimento da

    musicalidade na formao e na prtica musical do professor da Educao Infantil,

    refletindo sobre o papel da msica como um conhecimento a ser construdo e suas

    aplicaes nas escolas de Boa Vista RR. A partir da inquietude: Qual o lugar que a

    msica ocupa na prtica pedaggica do professor de Educao Infantil?, acredito que

    atravs da formao musical de professores da Educao Infantil, a msica venha a ser

    efetivada neste nvel de ensino.

    As matrizes curriculares dos cursos de Pedagogia, a exemplo de que acontece

    em Boa Vista RR, normalmente contemplam o ensino da arte de maneira

    generalizada. O enfoque proposto ainda se restringe a uma viso sobre artes visuais,

    msica, dana e artes cnica, em que o futuro professor fica limitado a conhecimentos

    superficiais das diversas expresses artsticas e sua aplicao em sala de aula sob

    uma perspectiva terica.

    Os alunos de Pedagogia, hoje com a incumbncia de atender tambm

    Educao Infantil, no recebem formao na rea de msica, a fim de terem acesso

  • 21

    aos seus conceitos e metodologias, para que suas prticas pedaggicas se tornem

    efetivas. Como uma das formas de representao simblica do mundo, a msica, em

    sua diversidade e riqueza, permite-nos conhecer melhor a ns mesmos e ao outro

    prximo ou distante. (BRITO, 2003, p.28) Esta afirmao reflete meu pensamento e me

    leva a desenvolver essas questes em relao Educao Musical, no enfatizando as

    dificuldades encontradas para a sua realizao, mas aceitando o desafio de pensar

    sobre possveis solues para reverter a realidade.

    Como professora do curso de Pedagogia, ouo muitos questionamentos por

    parte dos alunos que gostariam de desenvolver os contedos prprios da educao

    musical, mas no se sentem seguros pela falta de conhecimento especfico na rea.

    Este fato me causou uma inquietao e me fez refletir sobre como esse profissional da

    educao poderia entender, organizar e dinamizar o conhecimento musical na prtica

    escolar cotidiana. Qual a possibilidade de reorganizao dos trabalhos educativos

    junto ao curso de Pedagogia e, ao mesmo tempo, de dinamizar o ensino de Msica nas

    escolas, a partir do trabalho pedaggico de professores no especialistas em Msica,

    mas atuantes na Educao Infantil?

    Desse modo, centralizo o foco da investigao neste trabalho na musicalizao

    de professores da Educao Infantil. Busquei ainda observar como a msica est

    presente na prtica pedaggica do professor de Educao Infantil, de Boa Vista RR,

    atravs de uma ao educativa reflexiva e crtica, com o objetivo de fazer um

    mapeamento para o desenvolvimento da Oficina. Senti tambm a necessidade de

    potencializar o processo do fazer musical do professor, para que este pudesse ampliar

    a sua prtica pedaggica compreendendo o desenvolvimento musical na criana e

    relacionando-o com outras reas do conhecimento.

    O corpo terico desta pesquisa fundamenta-se na teoria piagetiana e no

    pensamento de Paulo Freire, calcado na relao dialgica-educadora que parte sempre

    da realidade, dos conhecimentos e da experincia do sujeito, para construir a partir da

    novos conhecimentos, vinculados ao seu contexto. E tambm na relao dialgica-

    dialtica entre educador e educando, isto , ambos aprendem juntos. Atravs destes

    pensamentos tericos, explico o desenvolvimento da criana e suas implicaes para a

    educao musical a partir do pensamento dos autores: Beyer (1993; 1998; 2000; 2001);

  • 22

    Maffioletti (1998; 2001; 2005); Langer (1981); Blacking (1990); Davidson, Howe e

    Sloboda (1997); Hallam (2006), entre outros.

    Em seguida, discuto teoricamente as perspectivas de aprendizagens presentes

    na Educao Bsica, com o intuito de refletir sobre que postura se quer adotar na

    prtica pedaggica musical, voltada para a Educao Infantil. Defino tambm, o

    conceito de musicalizao adotado nesta tese, com o objetivo de proporcionar um

    ponto de partida para a construo do referido conceito pelos sujeitos desta pesquisa,

    como veremos no captulo seis.

    Para discutir a formao do professor atuante na educao infantil e a educao

    musical, utilizei os estudos de autores como Bellochio (2000, 2001), Kater et al (1998),

    Penna (1995, 2001), Figueiredo (2004), Krobot e Santos (2005), os quais acreditam que

    estes profissionais podem ser importantes multiplicadores do conhecimento musical nos

    anos iniciais da escolarizao. E a partir das pesquisas de Brito (2003); Fonterrada

    (2005); Beaumont (2003); Moraes et al (2004); Schafer (1991, 2001); Loureiro (2003),

    pude refletir que a msica essencial na Educao Infantil por promover a interao

    entre os aspectos sensveis, afetivos, estticos e cognitivos de um mesmo sujeito.

    Nesta pesquisa, a metodologia adotada foi fundamentada na pesquisa-ao,

    tendo como as principais caractersticas: a imerso da pesquisadora nas circunstncias

    e no contexto da pesquisa, o reconhecimento dos sujeitos participantes como

    produtores de conhecimentos e prticas e, a busca por resultados como fruto de um

    trabalho coletivo consequente da interao entre pesquisador e pesquisado. Elegi como

    instrumentos de pesquisa a entrevista, a elaborao de um dirio de campo, a

    observao, os quais me permitiram captar a subjetividade dos participantes,

    favoreceram a interveno destes em sua realidade e iniciaram um processo de criao

    de possibilidades para transformar os contextos estudados.

    Como elemento de ao, optei em realizar uma Oficina de Musicalizao, pois

    somente atravs da experincia vivida se pode construir esquemas que nos faam

    estruturar novos conhecimentos (DUARTE & KEBACH, 2008). E como hiptese, se for

    dada oportunidade a este professor de se musicalizar, provavelmente ele se sentir

    mais capaz em proporcionar atividades especficas da rea de Educao Musical para

    seus alunos. A partir de suas construes musicais, o professor atuante na educao

  • 23

    infantil poder direcionar suas prticas pedaggicas musicais de modo consciente, ativo

    e reflexivo, o que lhe permitir ser mais comprometido com o processo de ensino e de

    aprendizagem da Educao Musical na escola.

    A presente pesquisa vem contribuir com reflexes e discusses sobre a teoria

    que permeia as nossas prticas no sentido de privilegiar um espao diferenciado de

    construo do conhecimento e contribuir para a formao de um professor

    comprometido com a sua prxis para a Educao Infantil, isto , um sujeito que se

    realiza na ao fazendo-se plenamente operatrio, descentrado e, como tal, de plena

    autonomia moral. Um sujeito criativo e co-operativo capaz de operar e cooperar

    (BECKER, 2001, p.110).

    A tese est dividida em cinco captulos. No primeiro captulo apresento o aporte

    terico que norteou esse estudo. A partir do princpio de que necessrio levar em

    considerao a cultura em que cada criana vive ou viveu, o professor da Educao

    Infantil precisa considerar esta realidade em sua prtica pedaggica, sendo um agente

    desafiador do processo de ensino e da aprendizagem. Defendo a ideia de que a

    aprendizagem se d em um processo de construo, assim como o desenvolvimento da

    musicalidade das crianas, ou seja, a partir da construo do conhecimento. Procurei

    refletir sobre a msica enquanto componente curricular da Educao Infantil a partir da

    aprovao da Lei n.11.769, de 18/08/08, que trata da obrigatoriedade da msica na

    Educao Bsica. E, por ltimo, trago a reflexo sobre a formao do professor desse

    nvel de ensino, da qual ele depende para perceber a msica como uma rea de

    conhecimento e no apenas como um instrumento pedaggico. Seus conhecimentos de

    msica e sobre msica necessitam de ser construdos em cursos de msica, ou que

    tenham em suas formaes disciplinas que tragam tona essa discusso.

    No segundo captulo, abordo sobre a metodologia utilizada e apresento os

    elementos de pesquisa e de ao, a partir dos quais realizei a coleta de dados e,

    posteriormente, a sua anlise.

    O terceiro captulo versa sobre a formao musical do grupo de professores de

    Educao Infantil. Proponho ao grupo a experincia de refletirmos e analisarmos as

    nossas vivncias musicais, com o objetivo de reconstruir o percurso de nossa formao

    pessoal e profissional, para conhecermos melhor nossas habilidades e para deixar que

  • 24

    outros possam nos conhecer, j que nos encontramos inseridos em contextos sociais

    coletivos (famlia, escola, trabalho, etc).

    No quarto captulo procurei verificar e analisei atravs da fala do professor, como

    eles veem o papel da Educao Musical nas suas prticas educativas e qual a

    ressonncia dessas, entre os demais profissionais da escola. Assim, busco vincular

    referenciais da sua formao, suas experincias de vida e sua profissionalidade4.

    No quinto captulo, antes das consideraes finais, analiso as atividades e as

    reflexes que levaram o grupo de professores a tomadas de conscincia progressivas

    sobre os elementos da linguagem musical e tambm sobre novas formas de agir em

    sala de aula, durante o processo de musicalizao. Isto , os professores foram levados

    a refletirem sobre suas aes individuais e coletivas, diante do objetivo a ser alcanado:

    ser musicalizado. Assim, descrevo as vivncias prticas e tericas de procedimentos de

    educao musical, atravs de atividades propostas para apreciar, interpretar e criar

    msica, realizadas na Oficina de Musicalizao.

    4 Refiro-me profissionalidade quando falo sobre a ao do professor exercendo a sua profisso, desenvolvendo propostas educacionais no cotidiano de uma escola.

  • 25

    2. CONTEXTUALIZAO DO APORTE TERICO

    2.1 O que infncia e como a msica vivenciada.

    Neste primeiro captulo senti a necessidade de refletir sobre questes que

    perpassam a teoria e a prtica da educao atualmente. Primeiramente, o que

    infncia e como a msica vivenciada nesta fase da vida? Isto porque tendo como foco

    deste trabalho a formao de professores da Educao Infantil, acredito que cada

    professor deva estar consciente da importncia que essa fase representa para o

    desenvolvimento do sujeito.

    Em segundo lugar, na Educao Infantil, a criana o foco do nosso trabalho.

    Cabe ao professor a responsabilidade, como profissional, em estar preparado para

    assumir seu papel de educador, e saber quem essa criana e o que necessrio

    para ajud-la a se desenvolver. As ideias expostas neste captulo serviro de base para

    a anlise do captulo seis.

    2.1.1 As diversas concepes sobre a infncia.

    Sempre que me remeto a pensar na vida, as lembranas mais marcantes trago

    da infncia. incrvel como essa etapa da vida pode marcar tanto, ao ponto de muitas

    vezes trazer aos meus sentidos: sons, cheiros, sabores, sensaes que esto gravadas

    na memria e as quais nunca esqueo. Segundo KOHAN (2003), atravs dessas

    lembranas as pessoas comeam a narrar a prpria histria, acreditando que a infncia

    condio da experincia, da linguagem e da historicidade humana.

  • 26

    As experincias vividas na infncia fazem formar um conceito do que ser

    criana, que vai se modificando medida que se constri novos conhecimentos, de

    acordo com os interesses pessoais ou profissionais. Como exemplo, cito a minha

    experincia, a qual me fez vivenciar ser criana numa famlia de classe mdia, na

    cidade de Santos-SP, e mais tarde, ser professora de msica de crianas na cidade de

    Boa Vista RR. Estava inserida em uma realidade em que a diversidade sociocultural

    se faz presente de maneira inacreditvel. ndios, negros, migrantes de quase todos os

    estados brasileiros, alm de venezuelanos e guianenses (Guiana Inglesa) compem a

    sociedade local.

    Ento, diante dessa nova realidade que suscitou vrios questionamentos do que

    considero como infncia, do que ser criana e como a msica se faz presente nessa

    fase da vida, busquei retomar na histria esses conceitos e seus reflexos na atualidade.

    O conceito de infncia como um perodo importante do desenvolvimento, durante o qual

    o indivduo deve ser cuidado e protegido, muito recente quando se considera a

    histria da cincia.

    Primeiramente, as crianas conviviam com os adultos compartilhando do seu

    cotidiano. A criana crescia vendo as atividades que eram desenvolvidas pelos adultos

    e aos poucos ia participando delas, uma vez que, para garantir o sustento da famlia,

    todos eram envolvidos na produo buscando melhores condies de sobrevivncia

    (RIES, 1981). Nesse contexto, as crianas tinham acesso msica quando praticada

    por suas famlias, em que a atividade musical era estendida a todos, no importando a

    existncia de um conhecimento formal sobre msica.

    At o sc. XVII, a criana era tratada como um adulto em miniatura. Somente no

    Iluminismo, J.J. Rousseau (1712-1778) contribuiu de modo original para a valorizao

    da infncia como uma das etapas do processo de formao do homem. A partir dele, a

    criana no mais considerada como um adulto em miniatura, ela passa a ter um

    mundo prprio que preciso ser compreendido pelo adulto. ROUSSEAU (1992)

    considera que a criana nasce boa e o adulto quem a perverte com sua falsa

    concepo da vida. A educao na infncia no deveria reprimir, modelar ou instruir,

    mas sim, permitir que a natureza se desenvolvesse na criana.

  • 27

    Essa ideia de educao na infncia de Rousseau est muito presente nas

    comunidades indgenas existentes em Roraima, nas quais a educao est fundada no

    exemplo dos mais velhos. A criana cuidada com afeto e com proteo, possibilitando

    um perodo de total liberdade, sem aulas ou punies severas.

    Mais tarde, dois grandes pedagogos do sculo XVIII que seguiram as ideias de

    Rousseau, Pestalozzi (1746-1827) e Froebel (1782-1852), acabaram dando uma

    grande contribuio para a educao na infncia. Pestalozzi tinha como ideal reformar

    a sociedade atravs da educao das classes populares. Diante do caos deixado pela

    primeira guerra, criou um orfanato para crianas abandonadas. Acreditava que a

    educao deveria partir do conhecimento do aluno, partindo do mais simples para o

    mais complexo, do conhecido para o desconhecido, do concreto para o abstrato. Por

    isso, dava nfase s atividades de desenho, canto, educao fsica, escrita, entre

    outras.

    Idealizador dos jardins de infncia, FROEBEL (2001) considerava que a

    essncia do homem se fundamenta na relao entre a religio, a natureza e o prprio

    homem. Valorizava a expresso corporal, o gesto, o desenho, o brinquedo, o canto e a

    linguagem. E quanto educao da criana, destacava o jogo como a forma mais pura

    da atividade intelectual da criana.

    [...] porque a manifestao espontnea do interno, imediatamente provocada por uma necessidade do interno mesmo. , ao mesmo tempo, modelo e reproduo da vida total, da ntima e misteriosa vida da natureza no homem e em todas as coisas. Por isso engendra alegria, liberdade, satisfao e paz, harmonia com o mundo (Idem, p.47).

    Desde ento, as crianas passam a ser cuidadas por outra me, com o intuito

    de no serem mimadas, sendo afastadas da famlia. Com esse fato, a msica tambm

    perde seu espao como propriedade de todos, j que as famlias agora dedicam a

    maior parte do tempo para o trabalho nas indstrias.

    De modo muito semelhante, o fato de as crianas serem cuidadas por outra me

    tambm um fator relevante na sociedade roraimense, no pelo fato das famlias se

    dedicarem ao trabalho nas indstrias, mas sim, na lida com o campo, realidade de uma

  • 28

    grande parte da populao do interior do Estado. Assim, as mes confiam a educao

    dos filhos s madrinhas ou aos parentes que vivem na cidade.

    Retornando histria, cada vez mais a msica dos adultos foi sendo distanciada

    do cotidiano dessas crianas, tornando-se acessvel apenas para os adultos. Com

    Pestalozzi e Froebel, a msica infantil torna-se componente importante nas atividades

    dirias, como elemento ldico e instrutivo, de um mtodo de trabalho com crianas

    rfs e abandonadas.

    Essa nova forma de falar sobre o que fazer com as crianas, em favor da

    comodidade dos adultos e da comunidade, ganhou espaos para serem discutidas nos

    sculos XIX e XX (GHIRALDELLI, 2001). Surge ento, Montessori na Itlia, Decroly na

    Blgica, Claparde e Desceudres na Sua, que renovaram por meio de seus trabalhos

    as tcnicas de educao especial, estendendo posteriormente a todas as crianas. A

    msica includa nestas propostas como elemento humanizador das crianas, para

    despertar sua sensibilidade esttica e ampliar seu universo de conhecimentos

    (BEYER,1998, p.31).

    Passou-se a falar sobre a prpria ideia de infncia natural como algo

    historicamente criado. Philippe Aris no incio dos anos 60, um dos pioneiros a estudar

    este assunto e em sua obra clssica, A histria social da criana e da famlia (1981),

    mostra como o conceito de infncia tem evoludo atravs dos sculos. Ele trata a noo

    de infncia como algo que vai sendo montado, criado a partir das novas formas de falar

    e sentir dos adultos em relao ao que fazer com as crianas. Conforme a sociedade

    vai modificando sua concepo de infncia, vai modificando o modo de conceber a

    educao da criana.

    Hoje, a infncia um modo particular e no universal de pensar a criana,

    considerando-a como um ator social, no sentido de que possa atuar na sociedade

    recriando-a a todo o momento. Essa ideia foi sendo elaborada ao longo do tempo a

    partir das mudanas na composio familiar, nas noes de maternidade e paternidade

    e no cotidiano e na vida das crianas, inclusive por sua institucionalizao pela

    educao escolar (COHN, 2005, p.21-22). A criana passa a ser considerada um sujeito

    construtor das suas relaes sociais, no sendo passiva na incorporao de papis e

    comportamentos sociais e ocupando um lugar de dignidade e respeito nas leis

  • 29

    nacionais. A infncia conceituada como uma experincia inaugural aberta novidade,

    aberta criao, aberta transformao de si mesma e das relaes que se

    estabelecem na experincia coletiva.

    Vive-se uma concepo de infncia que est voltada para a formao de atitudes

    intelectuais e morais envolvendo toda a personalidade e o comportamento social, sob

    todos seus aspectos, de um indivduo a se educar. A contribuio de PIAGET (1998,

    p.244) para a construo de um plano de ao da UNESCO, concerne

    simultaneamente s precondies da educao para a compreenso internacional, no

    qual considera dois fundamentos essenciais:

    1. Relativo Atividade pessoal do indivduo A conquista de uma autonomia intelectual e moral suficiente, permitindo o exerccio de um pensamento livre, o desenvolvimento do esprito crtico e a capacidade de resistir s mltiplas presses do meio e s propagandas de todo tipo; 2. Relativo ao seu comportamento social A formao de uma atitude social de reciprocidade, suscetvel de ser generalizada por etapas progressivas desde as relaes elementares da criana pequena com seus colegas at as relaes entre grupos sociais cada vez mais amplos.

    Por entender que existe uma enorme diversidade cultural, considero que exista

    um tipo de infncia para cada cultura e o seu significado pertence, portanto, ao modo

    de cada um conceber a vida. A msica, como um dos elementos culturais, faz-se

    presente no cotidiano de qualquer sociedade. As crianas existem e, a partir das

    observaes sobre as interaes entre elas e os adultos, pode-se comparar suas

    experincias e vivncias nas mais diversas linguagens, procurando entend-las em seu

    contexto sociocultural. Sendo assim, a questo o que Infncia e como a msica

    vivenciada no tem uma resposta nica e muito menos homognea.

    2.1.2 Estudos sobre a criana e suas implicaes para a educao musical

    A partir do momento em que o professor se coloca diante das questes da

    Educao Infantil tem como protagonista do seu trabalho a criana. Mas o que ele sabe

    sobre essa criana com a qual ele se depara no seu convvio? Quem essa criana? O

    que pais e educadores precisam saber para ajud-la a se desenvolver? Estes so

  • 30

    questionamentos que perpassam a teoria e a prtica da educao atualmente. muito

    importante que os professores compreendam as condutas musicais infantis como ponto

    de partida para a realizao da suas prticas pedaggicas.

    Aqui vou considerar a concepo de criana, fundamentada pelo Referencial

    Curricular Nacional para a Educao Infantil - RCN-EI: A criana como todo ser

    humano, um sujeito social e histrico e faz parte de uma organizao familiar que

    est inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura, em um determinado

    momento histrico (RCN-EI, 1998, p.21).

    A criana constitui uma natureza singular, sentindo e pensando o mundo de um

    jeito prprio. Em qualquer etapa de sua existncia, a criana no apenas o resultado

    das experincias vividas. As mudanas que nela ocorrem produzem tambm alteraes

    no seu meio que, por sua vez, passam a afet-la, e assim sucessivamente. Nas

    interaes que estabelece desde cedo com o meio que a cerca, a criana revela seu

    esforo para compreender o mundo e, por meio de brincadeiras, explicitam os seus

    desejos e as suas condies de vida.

    Para compreender as necessidades fundamentais ligadas a essas

    manifestaes, numa explicao didtica, posso dizer que a vida afetiva da criana o

    combustvel do pensamento, isto , o fator afetivo est sempre presente no

    pensamento, de maneira indissocivel. De um lado, a realidade cultural que exige da

    criana uma adaptao, impondo ao seu pensamento regras e seus meios de

    expresso e, de outro, seus desejos, seus conflitos, suas alegrias, vividas pelo seu eu.

    Esse modo de se expressar, quase que totalmente criado individualmente jogo

    simblico possibilita a realizao dos desejos, as satisfaes das necessidades

    subjetivas, enfim a expresso do prprio eu, interdependente da realidade cultural,

    alm de construir seu pensamento (PIAGET, 1998).

    Entre a expresso do eu e a submisso do real (...) a criana procura

    simultaneamente satisfazer suas necessidades e adaptar-se aos objetos bem como aos

    outros sujeitos (idem, p.189). Alm de expressar o que sente e em que pensa, tenta

    inserir-se no mundo social do qual faz parte. No processo de construo do

    conhecimento, a criana utiliza-se das mais diferentes linguagens e exerce a

    capacidade que possui de ter ideias originais sobre aquilo que busca desvendar.

  • 31

    Segundo a teoria piagetiana, o desenvolvimento da criana acontece em uma

    sequncia de estgios de complexidade crescente, que abrange tanto graduais

    modificaes do organismo quanto a permanente construo de estruturas do

    pensamento. Cada estgio significa uma nova conquista para o desenvolvimento da

    criana, no sentido da ampliao da sua capacidade de interagir com o mundo. Nessa

    perspectiva, o conhecimento no se constitui em cpia da realidade, mas resulta de um

    intenso trabalho de criao, significao e re-significao. Assim, a criana consegue

    exteriorizar espontaneamente sua personalidade e suas experincias interindividuais

    graas aos diversos meios de expresso sua disposio: o canto, o simbolismo do

    jogo, a representao teatral, etc. (ibidem).

    Quando se fala em educao musical ou musicalizao para a maioria das

    pessoas, principalmente pais e professores, logo so manifestados os desejos de que

    as crianas aprendam um determinado instrumento ou se transformem em pequenos

    cantores. Essa uma viso limitada que ainda se tem sobre o ensino da msica para

    crianas pequenas.

    A presena da msica est nas diversas situaes do cotidiano da criana desde

    muito cedo. Ela convive com a msica desde que nasce quando cantada, tocada ou

    apreciada em suas famlias (TOMATIS, 1991). O primeiro momento, chamado por

    Piaget de sensrio-motor, tem como principal caracterstica a construo dos esquemas

    de ao iniciais, originrios dos reflexos e instintos, e que iro preparar a base para

    esquemas mais complexos, integrando novas coordenaes s estruturas j existentes.

    O que caracteriza a produo musical das crianas nesse momento sensrio-

    motor a explorao do som e de suas qualidades. A nfase dada nos aspectos

    afetivos e pela explorao (sensrio-motora) dos materiais sonoros. As crianas

    passam a ampliar os modos de expresso musical pelas conquistas vocais e corporais

    que adquirem, produzindo um maior nmero de sons da lngua materna, sons

    onomatopaicos, batendo palmas, ps etc.

    Segundo os estudos de BEYER (2004), o modo de expresso do estgio

    sensrio-motor integra gesto, som e movimento, possibilitando sintonizar o

    desenvolvimento motor e rtmico com a msica. Isso podemos observar na criana de 1

    a 2 anos, quando comea a repetir apenas os finais de palavras, frases ou parte do

  • 32

    refro das msicas que lhe so cantadas. Como, por exemplo, quando a me e/ou

    cuidadora canta atirei o pau no gato to-to ... e a criana canta to to; ou a me canta

    no meu stio tinha um gato... e a criana canta ia-ia-. Gradativamente vai

    apresentando um domnio em relao entoao meldica, com memorizao de

    desenhos meldicos e ritmos que utiliza nas canes que ouve.

    Atravs das interaes que a criana vai estabelecendo, inicia-se uma forma de

    expresso por meio dos sons. A linguagem verbal (balbucios da fala) um fenmeno

    oral que relaciona a comunicao e o prprio pensamento. Os balbucios e o ato de

    cantarolar do beb nos mostram a tentativa de imitar o que ouve, com a explorao de

    vocalizaes e tambm de objetos sonoros. Observaes e descobertas so feitas a

    partir da escuta de diferentes sons, provocando diversas reaes na criana. Assim, os

    modos de expresso musical e da linguagem vo sendo ampliados.

    Bebs e crianas pequenas pedem, buscam e iniciam interaes musicais com objetos e pessoas. Os ritmos e melodias dos adultos servem como elemento de relao com os bebs, aproveitando a natureza intuitiva de comunicao musical dos mesmos. Por sua sensibilidade para as qualidades musicais do som, bebs e crianas pequenas provocam atitudes musicais nos adultos que interagem com elas (CUSTODERO, 2002, p.4).

    Em consonncia com a fase em que a representao mental j faz parte do seu

    desenvolvimento, a partir dos dois a trs anos, a criana integra a msica s demais

    brincadeiras e jogos, conferindo significados simblicos aos objetos sonoros ou

    instrumentos musicais e sua produo musical, caracterizando o estgio pr-

    operatrio. Ela se torna capaz de interiorizar suas aes musicais diferenciando objetos

    de seus representantes, libertando o pensamento do controle exclusivo da percepo.

    Na construo da inteligncia, novos esquemas adquiridos vo sendo integrados s

    estruturas j existentes, exigindo uma reorganizao do que j estava constitudo num

    patamar superior, o que permitir ao sujeito maior ao sobre o meio.

    A educao musical na infncia permite que a criana exera sua ao

    espontnea sobre o som, possibilitando interaes mais significativas entre elas e os

    objetos musicais. A busca de explorar instrumentos musicais faz com que a criana

    perceba a necessidade de se respeitar uma ordem, semelhante ao que acontece na

    estrutura da emisso das palavras. A escuta pode ser ampliada pelo fazer musical,

  • 33

    desde que a criana tenha a oportunidade de agir sobre diferentes gneros e estilos

    musicais, assim como um aumento no seu vocabulrio.

    O modo de perceber e de compreender da criana, anteriormente colocado, ser

    superado nos estgios posteriores com a construo do pensamento lgico,

    caracterizado pela capacidade de reversibilidade. A criana alm de conseguir reunir,

    classificar e realizar outras operaes de forma interiorizada ser capaz tambm de

    revert-las, o que permite antecipar e reconstituir aes, numa perspectiva de aes,

    numa perspectiva dedutiva, caracterstica do pensamento lgico (PIAGET, 1976, 37-

    38). O pensamento lgico configura a forma mais apurada da inteligncia e,

    consequentemente, o mais alto grau de desenvolvimento do ser humano. Esse

    momento nem sempre alcanado na Educao Infantil, mas importante que o

    professor de msica lance desafios para a criana nesse sentido.

    A evoluo do afeto e da inteligncia possibilita e acompanha o desenvolvimento

    simultneo e articulado dos diversos aspectos da criana. Nesse sentido, o

    pensamento, a linguagem e a capacidade de relao social vo se desenvolver de

    forma interdependente, numa relao em que cada um desses aspectos promove e

    potencializa o desenvolvimento dos demais (CARVALHO, 2002, p.43). Na msica

    igualmente importante o equilbrio entre os desafios intelectuais, a considerao dos

    aspectos emocionais e as relaes sociais.

    Em um cenrio social compartilhado ou sozinhas, msica significante para crianas pequenas e motiva-as a participar fisicamente, emocionalmente e cognitivamente. A expresso musical oportuniza a crianas pequenas recursos particularmente recompensadores, tanto quanto aqueles dos mundos imaginativos que elas constroem. (CUSTODERO, 2002, p.4)

    A musicalizao desenvolve na criana, alm do conhecimento musical, a

    concentrao, a coordenao motora, a socializao, a acuidade auditiva, o respeito a

    si prprio e ao grupo, o raciocnio, a afetividade e inmeros outros atributos que

    colaboram na sua formao. Msica forma de expresso, desenvolvimento esttico,

    manifestao cultural e, portanto, ter acesso a este contedo to importante quanto a

    qualquer outro.

  • 34

    As crianas gostam muito de brincar e cantarolar canes conhecidas ou

    improvisadas por elas, manusear objetos sonoros, mas muitas vezes essas atividades

    no so vistas como momentos de criao pelos adultos. Muitos pais e professores no

    compreendem que a partir dessas experincias, nas quais a criana aprende a

    combinar sons, a improvisar novas melodias e a dar significado a essas atividades, ela

    traduz a compreenso das atividades vivenciadas criando meios prprios de expresso,

    no sendo mais as imitaes apenas impostas pela figura do adulto. Por isso a

    importncia do professor estar consciente do desenvolvimento das condutas musicais

    infantis, para proporcionar cada vez mais situaes que permitam criana a

    desenvolver suas habilidades musicais, o que acontece normalmente atravs de jogos

    e de brincadeiras.

    Brincar a maior atrao para a criana. sempre um momento srio em que a

    brincadeira uma tarefa muito importante. A msica um elemento que est sempre

    presente nas brincadeiras infantis, ao proporcionar situaes nas quais ela pode se

    expressar livremente. Sendo assim, o processo de musicalizao se torna um grande

    atrativo para a criana. Musicalizar, segundo GAINZA (1988), ... tornar um indivduo

    sensvel e receptivo ao fenmeno sonoro, promovendo nele, ao mesmo tempo,

    respostas de ndole musical.

    Musicalizar um processo que completa o desenvolvimento da criana, que vai

    ao encontro dos seus interesses e proporciona benefcios que ela prpria no consegue

    avaliar, mas sentir. vivenciando som e ritmo, atravs de atividades musicais ldicas,

    que o aprendizado musical chega s crianas. Os smbolos musicais vo fazendo parte

    da vida da criana de uma maneira muito simples, alegre e agradvel.

    O professor deve estar atento que todo esse universo explorado pela criana faz

    parte de seu processo de aprendizagem. Durante a Educao Infantil, a criana mais

    receptiva a esse desenvolvimento musical, podendo-se obter excelentes resultados

    com a aplicao sistemtica de prticas musicais. A educao musical no significa

    levar a criana ao estudo de um instrumento determinado. Atravs desta vivncia os

    professores estaro formando futuros ouvintes, msicos ou simplesmente pessoas

    sensveis e equilibradas.

    No entanto, o professor tem de estar preparado para definir que perspectiva de

  • 35

    aprendizagem ele vai adotar na sua sala de aula. A seguir, fao uma reflexo sobre as

    trs perspectivas de aprendizagem que geram prticas educativas diferenciadas

    presentes nas nossas escolas.

    2.2 Aprendizagem e a construo da Musicalidade

    A seguir trago a discusso terica das perspectivas de aprendizagens presentes

    na Educao Bsica, com o intuito de refletir sobre que postura se quer adotar na

    prtica pedaggica musical, voltada para a Educao Infantil. Defino tambm, o

    conceito de musicalizao adotado nesta tese, com o objetivo de proporcionar um

    ponto de partida para a construo do referido conceito pelos sujeitos desta pesquisa,

    como veremos no captulo seis.

    A espcie humana a nica que, alm de aprender, ensina de maneira

    sistemtica, e que foi capaz de fazer da educao um dos pilares da sobrevivncia da

    espcie (DELVAL, 2000, p.15). Os conhecimentos acumulados vo sendo passados

    de geraes em geraes, fazendo com que os humanos no sejam considerados

    como uma tbula rasa.

    Sobre a educao estabelece-se a cultura, o conjunto das aquisies que as sociedades humanas acumularam e que transmitem de uma gerao a outra. Educao e Cultura esto intimamente ligadas, j que a educao s possvel por meio da existncia de uma cultura, e a cultura se conserva por meio da educao, ou seja, estes so dois termos interdependentes (DELVAL,2000, p.15).

    Ao falar de educao num pas continental como o Brasil, necessrio

    considerar as diferenas culturais, para compreender as trs perspectivas de

    aprendizagem que geram prticas educativas diferenciadas presentes nas nossas

    escolas.

    A primeira perspectiva trata a educao como um processo de aquisio de fora

    para dentro. O Empirismo, ou ainda aprendizagem por experincia adquirida em funo

    do meio fsico ou social, uma corrente terica que explica o funcionamento da

    inteligncia por uma presso que o meio externo exerce sobre o sujeito e que vai sendo

  • 36

    gravada na sua mente ou no esprito, independente da sua atividade. O sujeito

    internaliza tudo o que vem do meio, atravs de reaes a estmulos externos, sendo

    este motivado por reforos, uma vez considerado como passivo.

    Essa perspectiva de aprendizagem gera uma tendncia curricular conteudista

    (Escola tradicional), a qual limita o conhecimento musical que o sujeito deve aprender.

    O professor detm o conhecimento e deve avaliar o aluno pela memorizao dos

    contedos apreendidos. A repetio ou treinamento de suma importncia para a

    aprendizagem de qualquer conhecimento, conforme a concepo empirista.

    A favor do empirismo est a inegvel influncia do meio externo sobre o

    desenvolvimento da inteligncia, na importncia que as experincias desempenham

    nas sucessivas fases de desenvolvimento do sujeito; mas o que se questiona como o

    meio exerce esta ao e como o sujeito procede ao registro de dados da experincia.

    Para o empirismo a experincia tem um poder autnomo, exercendo presso sobre o

    organismo, sem exigir dele uma atividade organizadora dela prpria.

    Em relao ao empirismo, Piaget apresenta trs contestaes. Primeiro,

    considerando o aumento da experincia medida que se sucedem as fases do

    desenvolvimento devido ao crescimento das atividades do sujeito, sobretudo as do

    perodo sensrio-motor, pois a experincia nada mais do que uma acomodao. (...)

    Portanto, a experincia no recepo, mas ao e construo progressivas (PIAGET,

    1987, p.341 - 342).

    Em segundo lugar, a assimilao dos dados da experincia atravs da ao do

    sujeito sobre o objeto, complementada pela acomodao, vai alm de um simples

    contato do sujeito com uma realidade diferente dele. procurando assimilar o objeto a

    um esquema anterior que a criana acomoda este quele (...) e repetindo (...) o

    movimento bem sucedido que o sujeito executa essa operao e constitui um novo

    esquema (idem, p. 342). Portanto, a experincia s progride na medida em que

    organizada e animada pela prpria inteligncia (idem, p. 344). Na verdade a repetio

    e o treinamento so importantes, mas como forma de regulaes ativas e no como

    reprodues mecnicas. A terceira e ltima, que a experincia condio necessria

    do desenvolvimento da inteligncia, mas no suficiente, pois pressupe em todas as

    fases a atividade estruturante do sujeito.

  • 37

    A aprendizagem musical por associao, por condicionamento ou por reforo

    externo, produz pouca mudana no pensamento lgico ou ento uma extraordinria

    mudana momentnea, sem compreenso real. Para exemplificar, recordo as horas de

    estudo de um instrumentista, buscando atravs da repetio de uma pea, a perfeio

    da execuo tendo como nica referncia seu professor. De acordo com PIAGET

    (1974), reduzir a aprendizagem das estruturas lgicas a um esquema nico de natureza

    associacionista ser naturalmente suprimir o papel do sujeito no conhecimento,

    eliminando-o da atividade construtiva e inventiva que lhe prpria. Nos grandes

    conservatrios no havia espao para criao, o importante era executar com perfeio

    tcnica. O que a msica significava para o aluno, a sua interpretao, no era

    considerado.

    A segunda perspectiva de aprendizagem contrria primeira, apresentando-se

    como um processo de maturao de dentro para fora, centrada no nvel de

    desenvolvimento do sujeito. O apriorismo ou aprendizagem por maturao

    considerado como manifestao de uma srie de estruturas que se impem de dentro

    para fora percepo e inteligncia, medida que se manifestarem as necessidades

    provocadas pelo contato como meio (PIAGET, 1987, p. 336).

    Para a psicologia, esta corrente terica consiste em explicar cada inveno da

    inteligncia por uma estrutura renovada e endgena do campo da percepo ou do

    sistema de conceitos e relaes (Piaget, 1987, p.352). Segundo Beyer (2000, p.45), o

    maturacionismo foi e fortemente influenciado pela escola psicolgica da Gestalt, e

    preconiza que a aprendizagem depende da maturao do sujeito para aquele tipo de

    tarefa, decorrente de uma programao biolgica inata.

    Para PIAGET, a Gestalt tem dois pontos que se convergem em direo a suas

    ideias. O primeiro, compara o esquema a uma Gestalt, porque toda soluo inteligente

    e mesmo toda conduta que busca compreender uma situao, aparecem como

    totalidade e no como associao de mltiplos elementos. Isto , um esquema a

    estrutura ou a organizao das aes, as quais se transferem ou generalizam no

    momento da repetio da ao, em circunstncias semelhantes ou anlogas (PIAGET,

    2001, p.15, nota).

  • 38

    Em segundo lugar, h uma concordncia quando a psicologia da Gestalt busca

    encontrar as razes das estruturas intelectuais nos processos biolgicos concebidos

    como sistemas de relaes (PIAGET,1987, p.355). As prticas educativas musicais

    desta perspectiva consideram as diferenas individuais de cada sujeito e defendem um

    atendimento individualizado (Escola Nova). O papel do professor consiste agora em

    preparar um ambiente favorvel e de acordo com a faixa etria do aluno, no se

    preocupando com a transmisso de contedos, mas sim em deix-los se

    desenvolverem livremente.

    Uma situao de aprendizagem deve caracterizar-se por um aproveitamento

    timo da ao espontnea (no espontenesta) do sujeito desta aprendizagem

    (BECKER, 1983, p.28). Nesse sentido, uma aprendizagem piagetiana ope-se a uma

    aprendizagem empirista enquanto abre espao construo de novidades mesmo

    que seja apenas na forma de reconstruo do que j existe enquanto esta s admite

    a reproduo. E, tambm, a uma aprendizagem apriorista que tanto pode considerar

    um sujeito dotado de um saber hereditrio, como pode vir a conceber um sujeito

    desprovido da mesma capacidade, ou seja, refora os velhos dizeres muitas vezes

    pronunciados por professores: filho de peixe, peixinho , pau que nasce torto, morre

    torto.

    Para compreender essa caracterizao de aprendizagem, recorremos a Paulo

    Freire que nos mostra claramente uma definio de espontanesmo:

    [...] a opo realmente libertadora nem se realiza atravs de uma prtica manipuladora nem tampouco por meio de uma prtica espontanesta. A manipulao castradora, por isso autoritria. O espontanesmo licencioso, por isso irresponsvel. O que temos de fazer, ento, enquanto educadoras ou educadores, aclarar assumindo a nossa opo, que poltica, e ser coerentes com ela, na prtica. [...] no o discurso o que ajuza a prtica, mas a prtica que ajuza o discurso (FREIRE, 1982, p.29).

    As correntes tericas do apriorismo e do empirismo so posturas tericas

    explicativas da aprendizagem que abarcam a maioria das explicaes do processo de

  • 39

    aprendizagem musical vigente no meio educacional. Vrios professores de msica5

    demonstram nas suas prticas as perspectivas tericas expostas anteriormente.

    Um professor que ainda acredita na possibilidade de ter um dom especial, tem

    sua fala impregnada pela fora da herana gentica.

    Minha relao com a msica comeou em 1982, quando pela primeira vez vi e ouvi o som do teclado. A partir deste ano comecei a estudar piano e paralelo a ele, comecei a estudar saxofone. Em seguida veio o interesse pelo violo que foi o instrumento que particularmente aprendi sozinho, e nesse mesmo perodo o interesse pela gaita. Descobri ento que meu av tocava e reformava piano. Ento deduzo que herdei isso dele. (Prof. A)

    Pude observar que na frase em que sublinhamos, este professor deixou evidente

    a resposta que ele mesmo buscava para a sua desenvoltura com a msica. Qual seria a

    explicao para ele ter tanto talento musical, aprendendo a tocar vrios instrumentos,

    se no fosse a herana deixada pelo av? Isso caracteriza uma explicao, portanto,

    apriorista.

    Um outro professor expressa bem que a base da aprendizagem musical pela

    qual foi musicalizado, apresenta aspectos do empirismo, marcado por longos perodos

    de treinamentos:

    Sempre busquei estar envolvido com a msica. Tive um treinamento com dois professores russos. Uma das professoras me ajudou muito no sentido de tcnicas vocais, onde passava horas repetindo exerccios, para aprimorar a minha voz. O trabalho era intenso, mas no desisti. E hoje tento amenizar os ensaios com meus alunos. (Prof. B)

    J a fala deste professor, portanto, caracteriza uma postura terica que permeia

    suas ideias ligadas ao empirismo.

    A terceira perspectiva de aprendizagem a construtivista, a qual considera a

    aprendizagem como um processo de construo, em que sujeito e objeto interagem

    constantemente, no contexto sociocultural no qual se encontram. A aprendizagem se d

    atravs das aes realizadas pelo sujeito sobre os objetos, desencadeando a

    construo de esquemas sensoriais e motores no estgio sensrio-motor at alcanar,

    5 As falas dos professores A, B e C, que aparecem no texto so relatos oriundos de uma oficina de apreciao

    musical realizada para professores que atuam na E. I. em Boa Vista RR, em janeiro de 2007.

  • 40

    gradativamente, um nvel de representaes (funo simblica ou semitica) no estgio

    pr-operatrio, cujas construes derivadas deste estgio permitem a chegada ao

    estgio operatrio concreto. Neste momento, os xitos do sujeito sobre os objetos so

    mais prticos do que conceituais e, finalmente, ele atinge o estgio operatrio formal, a

    partir do qual se opera conceitualmente. Esses estgios, portanto, caracterizam o

    desenvolvimento das estruturas do pensamento, de modo geral.

    O construtivismo ou a aprendizagem mediante a ao supera ambas correntes,

    empiristas e aprioristas, rejeitando algumas de suas caractersticas e acolhendo outras

    sobre as quais acrescenta um componente que as transformam, que o processo de

    equilibrao. Esse processo ocorre sempre em duas dimenses que se complementam:

    a assimilao que a atividade transformadora exercida sobre o objeto e a

    acomodao que a atividade transformadora exercida sobre o prprio sujeito

    (BECKER, 2001, p.84).

    Piaget busca nos conceitos de 'assimilao e acomodao de estruturas operacionais', no s descobertas, mas criadas pelo prprio sujeito a explicao do pensamento humano enquanto 'transforma e transcende a realidade', ou a explicao desta 'construo inventiva que caracteriza todo pensamento vivo. '(TP, p.88) Portanto, 'para apresentar uma noo adequada de aprendizagem, necessrio explicar primeiro como o sujeito consegue construir e inventar, e no apenas como ele repete e copia' (TP, p.88). O problema da inveno no exige soluo especial na hiptese dos esquemas, pois a organizao dos esquemas , essencialmente, construo e, portanto, inveno (BECKER,1983, p.17).

    Sob a tica construtivista, a prtica educativa musical estar calcada no

    desenvolvimento de conceitos e a abstrao em patamares de compreenso cada vez

    mais complexa e mais ampla, uma vez que esta consista na reconstruo de

    conhecimentos j assimilados e reorganizados cognitivamente.

    A Educao Musical se daria aqui no dilogo e interao entre educador e educando, com jogos de criao musical, brincadeiras imitativas, trabalhando tambm a representao aural dos sons. Os contedos so definidos a partir da observao do professor sobre os interesses de seus alunos (BEYER, 2000, p.47).

    Ao falar de construo do conhecimento preciso se envolver no processo de

    interao entre professor-aluno, o qual se estabelece dentro da sala de aula. Um

  • 41

    professor ao entrar numa sala de aula precisa sentir-se inquieto, questionador, crtico,

    desprovido de seus pr-conceitos ou suposies que envolvem o encontro com seus

    alunos. Saber que ensinar no transferir conhecimento, mas criar as possibilidades

    para a sua prpria produo ou a sua construo (FREIRE,1996, p.47).

    O conceito de ensinar se torna realmente apreendido pelos professores e pelos

    educandos quando ultrapassa as questes epistemolgicas, pedaggicas, polticas,

    concretizando a teoria nas suas experincias prticas, nas suas vivncias.

    A aprendizagem a mola propulsora do desenvolvimento cognitivo, desafiando-o

    a reconstruir novas estruturas. A aprendizagem musical possvel medida que o

    sujeito tenha estruturas permissveis assimilao e acomodao dos novos

    conhecimentos. Assim, faz-se necessrio que o sujeito vivencie e coordene suas aes,

    apropriando-se delas (processo de equilibrao), considerando toda sua experincia de

    vida (stricto sensu) e inserindo-a numa aprendizagem mais ampla (lato sensu). E o

    desenvolvimento fornecer condies estruturais para novas aprendizagens.

    Promover um ambiente de aprendizagem nesta perspectiva muito difcil,

    porque se tem de estar sempre atento em pensar certo (FREIRE, 1996 p.49) diante

    dos outros e de ns mesmos. Requer humildade para assumir a condio de humanos,

    sujeitos aos erros e acertos, sem negligenciar o rigor metodolgico necessrio a

    qualquer ao educativa.

    A partir do momento em que o sujeito se dispe a ser um professor que pensa

    certo, ele passa a ter conscincia de que somos seres culturalmente histricos e

    inacabados (FREIRE, 1996, p.50). Consequentemente est disposto a mudanas,

    aceitao da diversidade que se apresenta nas classes. Isso refletir diretamente no

    aluno, que a partir da efetivao dessa prtica, tambm poder constituir-se crtico e

    consciente da sua condio de ser inacabado.

    Ningum, na condio de ser humano, est pronto e acabado. Cada um traa

    seu destino atravs das suas aes, assumindo as responsabilidades pertinentes a

    estas. Cada um escreve sua histria a partir das suas experincias com os outros, a

    partir das oportunidades que o meio possibilita.

    E como sujeitos dessa histria, o professor e o aluno esto inseridos no mundo e

    podem modific-lo. Agora, aqueles que permanecem como espectadores da hi