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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha.... A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha desenvolvimentista Renato Antonio Dal Maso * 1 INTRODUÇÃO A última façanha da política desenvolvimentista no RS foi a construção da infraestrutura de serviços básicos entre 1980 e 2008. Este trabalho analisa o papel do Governo do RS na construção da infraestrutura de energia elétrica, telecomunicações, saneamento básico e de estradas rodoviárias. Trata-se de uma tarefa gigantesca, por ter requerido o estabelecimento de todas as plantas industriais de geração dos serviços e das redes de distribuição, atribuído, respectivamente, às empresas Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) e ao Departamento Autônomo1 de Estradas e de Rodagem (DAER). Este trabalho sintetiza as vicissitudes dessa política desenvolvimentista, investigando a evolução dos investimentos, os grandes planos de expansão, a forma de financiamento, as mudanças institucionais e a universalização dos serviços. Observa-se que a infraestrutura foi alçada como prioridade em sucessivos governos do RS, tendo em vista sua natureza estrutural e necessária ao desenvolvimento. O pensamento desenvolvimentista 1 foi o que mais influenciou a economia política brasileira e, especialmente, a longa experiência de políticas de planejamento no RS. 2 Segundo Ianni (1971, p. 310), “Em * Economista, Técnico da Fundação de Economia e Estatística, Doutor em Economia pela Unicamp. O autor agradece aos colegas do Núcleo de Políticas Públicas as críticas e as sugestões ao texto e o apoio de Ilaine Zimmermann, de Roberto Ronchetti Caravantes e da acadêmica Helena Tweedie. 1 Ver, sobre o pensamento desenvolvimentista, Rodrigues (1981, cap. 5) e Mantega (1991, cap. 1). 2 O planejamento foi largamente utilizado no RS, desde as décadas de 30 e 40 do século XX, através da experiência dos planos setoriais e, a partir da década de 50, dos planos globais. Cita-se como exemplo: “[...] os principais serviços públicos do Estado vêm sendo executados, paulatinamente, em obediência aos respectivos planejamentos. [...] Pode-se no entanto asseverar que a administração do Estado vem sendo exercida dentro da mais rigorosa planificação” (RS, 1949, p. 7). O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 246

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A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008:

a última façanha desenvolvimentista

Renato Antonio Dal Maso*

1 INTRODUÇÃO

A última façanha da política desenvolvimentista no RS foi a

construção da infraestrutura de serviços básicos entre 1980 e 2008. Este

trabalho analisa o papel do Governo do RS na construção da infraestrutura

de energia elétrica, telecomunicações, saneamento básico e de estradas

rodoviárias. Trata-se de uma tarefa gigantesca, por ter requerido o

estabelecimento de todas as plantas industriais de geração dos serviços e

das redes de distribuição, atribuído, respectivamente, às empresas

Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), Companhia Riograndense

de Telecomunicações (CRT), Companhia Riograndense de Saneamento

(Corsan) e ao Departamento Autônomo1 de Estradas e de Rodagem

(DAER). Este trabalho sintetiza as vicissitudes dessa política

desenvolvimentista, investigando a evolução dos investimentos, os

grandes planos de expansão, a forma de financiamento, as mudanças

institucionais e a universalização dos serviços. Observa-se que a

infraestrutura foi alçada como prioridade em sucessivos governos do RS,

tendo em vista sua natureza estrutural e necessária ao desenvolvimento.

O pensamento desenvolvimentista1 foi o que mais influenciou a

economia política brasileira e, especialmente, a longa experiência de

políticas de planejamento no RS.2 Segundo Ianni (1971, p. 310), “Em

* Economista, Técnico da Fundação de Economia e Estatística, Doutor em Economia pela Unicamp.O autor agradece aos colegas do Núcleo de Políticas Públicas as críticas e as sugestões ao texto e o apoio de Ilaine Zimmermann, de Roberto Ronchetti Caravantes e da acadêmica Helena Tweedie.1 Ver, sobre o pensamento desenvolvimentista, Rodrigues (1981, cap. 5) e Mantega (1991, cap. 1). 2 O planejamento foi largamente utilizado no RS, desde as décadas de 30 e 40 do século XX, através da experiência dos planos setoriais e, a partir da década de 50, dos planos globais. Cita-se como exemplo: “[...] os principais serviços públicos do Estado vêm sendo executados, paulatinamente, em obediência aos respectivos planejamentos. [...] Pode-se no entanto asseverar que a administração do Estado vem sendo exercida dentro da mais rigorosa planificação” (RS, 1949, p. 7).

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essência, um plano de desenvolvimento é um programa político”. A busca

do desenvolvimento econômico sempre foi o epicentro da sociedade e a

primazia da ação estatal, além de legitimar políticas em outros campos,

como a educação, a saúde, etc. O modelo desenvolvimentista estruturou-

-se, de forma consciente e deliberada, em quatro pilares basicamente: a

intervenção estatal na economia, para complementar e apoiar as

atividades privadas e, dependendo da importância do problema, propor a

substituição dos desígnios do mercado pela presença deliberada do

Estado; a diversificação da produção interna em todos os setores e da

pauta de exportações, para tornar o RS menos dependente dos mercados

externos e, assim, também oportunizar uma diversificação social

abrangente; a construção da infraestrutura por meio da socialização

desses investimentos, pois a sua inexistência era considerada um entrave

ao desenvolvimento; e o planejamento global da economia de longo

prazo. Nesse sentido, os governantes sempre buscavam vincular a política

estadual ao planejamento nacional e às políticas nacionais como forma de

atração de recursos e de investimentos; e/ou buscavam o planejamento

setorial e global como um instrumento da política consciente e deliberada,

para orientar e direcionar os investimentos públicos e privados, para

realizar a utopia do desenvolvimento e, assim, romper com o atraso

existente. Portanto, coube ao Estado função preponderante no

desenvolvimento, através de políticas de diversificação econômica e

social, de intervenção na produção, de financiamento público e de

planejamento global e/ou setorial para a construção da infraestrutura.

Para entender-se o papel das estatais do RS, é preciso

contextualizar o quadro mais amplo da política brasileira de intervenção

na economia. A presença do Estado na área de infraestrutura e em outras3

foi consenso no Brasil, de forma similar à dos países capitalistas, por não

serem de interesse privado, especialmente do capital estrangeiro. Por

3 Conforme Dain (1986, p. 306), as áreas de intervenção estatal aceitas pelos setores capitalistas eram: mineração, siderurgia, energia elétrica, portos, petróleo, telecomunicação, gás canalizado, saneamento básico e novas áreas, como energia nuclear, prospecção de petróleo, fertilizantes, petroquímica e outras.

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isso, coube-lhe implantar a infraestrutura nacional, construir as plantas

industriais e as redes de distribuição, cujo papel requereu imobilizar

vultosos capitais, planejar e implementar grandes projetos indivisíveis de

expansão, inclusive a opção pela estrutura de monopólios estatais como o

modelo mais adequado. A experiência da intervenção estatal, no caso

brasileiro, enfrentou dificuldades adicionais, como a construção da

infraestrutura num período concentrado de tempo, a necessidade de

importação de tecnologias caríssimas, a incerteza radical na forma de

financiamento e, posteriormente, os reveses da crise dos anos 80. O

modelo e a estrutura do mercado consolidaram-se na década de 60,

formando unidades estatais descentralizadas, com autonomia

administrativa e financeira e com tamanho e escala superiores de

organização capitalista em relação às empresas privadas (Dain, 1986,

cap. III).

A intervenção estatal no Brasil outorgou inicialmente a dupla tarefa

de concentrar e centralizar recursos financeiros e de construir a

infraestrutura. Esta última foi mais arrojada e gigantesca, porque

dependia da política de planejamento e do financiamento público4 (Dain,

1986, p. 267). Conforme a literatura sobre o tema,5 a política econômica

estabeleceu a forma de financiamento com base na poupança

compulsória, nas instituições públicas de crédito e na indução ao crédito

externo. Ancorado nesse financiamento, o Estado realizou uma política

ativa de gastos diretos e através das estatais, bem como proveu crédito

via BNDES, Banco do Brasil e Banco Nacional da Habitação (BNH),

cobrando juros subsidiados, além de criar taxas e fundos setoriais para

esse fim.

4 As fontes de recursos eram as seguintes: (a) recursos fiscais – impostos ad valorem, empréstimos compulsórios e a criação de fundos setoriais; (b) recursos próprios – tarifas com base em custos ou “verdade tarifária”, taxa de remuneração dos investimentos de 12% a. a. e correção monetária do ativo fixo; (c) recursos de bancos oficiais – BNDES, Banco Brasil S/A, Caixa Econômica Federal (CEF), Banco Nacional da Habitação (BNH), bancos de desenvolvimento regional, como Banco do Nordeste, BRDE, etc. Ver Decreto nº 200/1967 (BR, 2009).5 Ver, dentre outros, Dain (1986), Belluzzo (1987), Almeida (1988) e Bier et al. (1988).

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É impossível pensar-se o desenvolvimento brasileiro sem a presença

do Estado e das estatais no planejamento de longo prazo e,

especialmente, nos planos de expansão das grandes holdings setoriais, na

coordenação e na orientação dos investimentos públicos e privados. Dessa

forma, o acréscimo de dispêndios públicos não só beneficia a economia

como um todo, como os investimentos criam uma nova capacidade

produtiva. Por isso, a construção da infraestrutura e a dinamização das

demais áreas, inexoravelmente, alavancaram a industrialização no Brasil.

Ressalva-se, entretanto, que as estatais não se impõem na qualidade de

empresa capitalista monopolista que usa o poder de mercado para

valorizar seu capital, devido à natureza pública do capital social ou à sua

“cara” pública. Ao contrário, internalizaram uma instabilidade na forma de

financiamento, como o contencioso do crédito, o rebaixamento das tarifas

e do mark-up. Portanto, a “cara” pública das estatais abriu um flanco para

serem utilizadas como instrumento da política de estabilização e de

acumulação privada (Tavares, 1998, p. 277). A seguir, apresentam-se as

proposições investigadas no trabalho.

A primeira proposição, mais geral, afirma que coube às estatais a

tarefa de construir a infraestrutura de serviços básicos no contexto dos

processos em curso de industrialização e de urbanização acelerada,

contextualizando o papel da intervenção estatal no subperíodo de 1980 a

1998. Esses processos impulsionavam o consumo crescente por serviços

de energia elétrica, telecomunicações, abastecimento de água e por

melhores estradas rodoviárias. Na verdade, havia grande carência de

serviços básicos e viviam-se tempos de construção da

infraestrutura, de edificar as plantas industriais e as redes de

distribuição dos serviços e a malha rodoviária interligando cidades e

regiões. A realização dessa façanha contou com a primazia dos sucessivos

governos do RS, marcados por decisões arrojadas de políticas de

desenvolvimento e respaldados pela forma de financiamento vigente.

A segunda proposição afirma que houve intervenção estatal

truncada em relação aos aspectos econômicos, particularmente verificada

no papel do Governo do RS. Um dos aspectos expoente foi a crise dos O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 249

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anos 80, que veio explicitar a fragilidade da forma de financiamento das

estatais, bem como a crise fiscal estadual. Ambas afetaram o desempenho

das estatais e atenuaram a força das políticas de planejamento e de

financiamento público, sem, contudo, derrotar a utopia

desenvolvimentista. Além disso, a política de estabilização passou a exigir

novos papéis das estatais, como o de ser instrumento de combate à

inflação e o de favorecer a acumulação privada, bem como estas sofreram

rigoroso controle da Secretaria Especial da Empresas Estatais (Sest)6

(sobre os dispêndios globais, etc.) e do Ministério da Fazenda (sobre

tarifas, crédito bancário, etc.). Portanto, esses fatores truncaram a

expansão da infraestrutura e internalizaram crise financeira e

endividamento.

Tendo presente esse contexto adverso, afirma-se que o Governo do

RS manteve a realização dos grandes planos de construção da

infraestrutura até meados da década de 80, apesar de as estatais

enfrentarem problemas de financiamento, de endividamento crescente e

dos agravantes da política macro. Nos anos seguintes até início dos anos

90, elas mantiveram um nível de investimentos muito insuficiente e

retardaram a implantação da infraestrutura dos serviços básicos.

Entretanto o desenvolvimentismo ainda se impunha nas políticas

estaduais, mantendo a infraestrutura como prioridade governamental e,

especialmente, a planificação de grandes planos da CEEE, da CRT, da

Corsan e do DAER. Mesmo assim, a capacidade de geração dos serviços

não atendia ao consumo crescente por serviços básicos, fato que colocou

em xeque o papel das estatais nos anos 90, sob a hegemonia das políticas

mais liberais e favoráveis às reformas e às privatizações.

A terceira proposição postula que houve decisão deliberada de

recomposição da forma de financiamento das estatais, tendo em vista a

sua preparação para a privatização. No contexto econômico, viviam-se

6 A Sest foi criada em outubro de 1979, vinculada ao Ministério do Planejamento, com o objetivo de controlar os gastos de custeio e os investimentos do setor produtivo estatal (SPE) e do setor público descentralizado. O instrumento básico de controle era o orçamento de dispêndios globais. No RS, apenas a CEEE foi atingida diretamente.

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tempos de reformas do Estado e de revisão das áreas de interesse

do setor privado. A recomposição do financiamento iniciou-se pelo

desbloqueio dos controles da área econômica sobre as tarifas, sobre o

crédito dos bancos oficiais, sobre os dispêndios globais e os

investimentos. Promoveram-se o rebalanceamento das tarifas, a extinção

dos subsídios, a definição de tarifas com base em custos, o

equacionamento da dívida das estatais, os ajustes operacionais, o corte de

pessoal, dentre outros. Notavelmente, a nova forma de financiamento

criou expectativas para as estatais planejarem a expansão e realizarem

pesados investimentos. Por sua vez, as reformas do Estado faziam parte

de um processo intencional e deliberado de mudanças das instituições,

sustentado por uma aliança política poderosa nacional e estadual,

legitimando as ações do Estado, para criar mercado privado dos serviços

básicos.

Nesse contexto, afirma-se que a recomposição do financiamento e o

ato político intencional das mudanças criaram, em parte, as expectativas

dos agentes privados entrantes na área dos serviços básicos. Assim, as

decisões de investimentos dos agentes privados foram influenciadas,

principalmente, porque as plantas industriais e as grandes redes nacionais

já estavam construídas, a imobilização de capital em ativos fixos em

infraestrutura não necessitava de vultosos capitais como dantes, já existia

uma massa de usuários cadastrados e incorporados às redes, e as

tecnologias disponíveis tinham preços acessíveis e potenciavam altas no

mark-up das prestadoras. Assim, a privatização ocorreu, porque a

infraestrutura estava construída e porque foram asseguradas condições

sustentáveis de financiamento e valorização do capital na produção dos

serviços básicos.

Na quarta e última proposição, afirma-se que, nos mercados criados

e regulados pelo Estado, agora, foi atribuído às prestadoras públicas e

privadas o papel de complementar as plantas e as redes instaladas para

garantir a disponibilidade, a continuidade e a qualidade do atendimento.

Isso redefine o papel das prestadoras de serviços básicos nos anos

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recentes. Além disso, por serem serviços com características essenciais,

foi atribuído o papel adicional de universalização para todos. Assim, cabe

investigar-se, na experiência das prestadoras de energia elétrica, telefonia

e saneamento básico, a universalização dos serviços básicos.

O texto estrutura-se da seguinte forma: no item 2, examinam-se a

evolução dos investimentos, os grandes planos de expansão das estatais,

a forma de financiamento e os respectivos resultados na construção da

infraestrutura entre 1980 e 1998. No item 3, analisam-se, sucintamente,

as reformas e os modelos de mercado criados, a recomposição do

financiamento das estatais, a partir de 1995, e as privatizações em 1998,

bem como se avalia a universalização dos serviços básicos. Por último,

registram-se as Considerações finais.

2 TEMPO DE CONSTRUÇÃO DA INFRAESTRUTURA ENTRE 1980 E

1998

Neste item, analisa-se a trajetória da CEEE, da CRT, da Corsan e do

DAER no papel de construção da infraestrutura, entre 1980 e 1998,

investigando-se a evolução dos investimentos, os grandes planos de

expansão e a questão-chave do financiamento, destacando-se os fatores

que demarcaram a trajetória truncada das prestadoras. Observa-se que os

truncamentos tiveram origem tanto nas estratégias arrojadas das

empresas, como, principalmente, nos efeitos da política macroeconômica

e nos controles da Sest, que impuseram a ruptura na forma de

financiamento, a fragilidade financeira e o endividamento crescente.

Entretanto o modelo desenvolvimentista foi mantido nos sucessivos

governos do RS, especialmente priorizando a infraestrutura e utilizando

largamente políticas de planejamento de grandes obras. Inclusive, foi

mantida a fase de expansão dos investimentos até meados dos anos 80,

tendo em vista que os controles nas estatais federais ocorreram a partir

do final dos anos 70. Nesses termos, objetiva-se responder à proposição

mais geral, relativa à tarefa de construção da infraestrutura, e a segunda,

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mais específica, relacionada às respectivas trajetórias truncadas das

estatais durante a crise, que rebaixaram os investimentos para um nível

muito insuficiente e retardaram a implantação dos serviços básicos até o

início dos anos 90.

2.1 A infraestrutura de estradas rodoviárias

O papel do DAER na construção da malha rodoviária do RS pode ser

sintetizado em dois aspectos principais, tendo-se em vista a sua

importância histórica na gestão das vias de transporte e o tipo de

investimento público, que tem uma natureza autônoma e fiscal. O

primeiro apresenta-se fazendo uso de um lema antigo que dizia "Governar

é construir estradas"7. A veracidade desse lema tomou-se dos registros

nas Mensagens do Governador à Assembléia Legislativa do Rio Grande do

Sul, que mostram as realizações no setor de transporte rodoviário. Os

argumentos destacados são os seguintes: a façanha engenhosa de

planejar a malha rodoviária do RS desde o final dos anos 30, cujo plano

rodoviário inspirou o planejamento rodoviário nacional nessa época; a

prática da política estadual de sempre vincular os planos de

desenvolvimento do RS aos planos nacionais e à política nacional de

financiamento do setor (Dal Maso, 1992); o tipo de investimento público e

autônomo alocado para a função transporte, que sempre esteve

susceptível a cortes no orçamento fiscal; o alto patamar dos investimentos

na função transporte nos sucessivos governos do RS; enfim, a construção

da malha rodoviária interligando regiões, integrada com os traçados das

rodovias federais (BRs) e ligando os portos e os grandes centros urbanos.

Portanto, o transporte rodoviário sempre constituiu uma das principais

prioridades da política de desenvolvimento do Governo do RS, como

revelam as dotações anuais das despesas de capital por função entre

7 Lema do Presidente Washington Luís (1926–30), que não foi levado a sério na época, porque o País não tinha dinheiro para construir estradas (Bairro..., 2009).

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1971 e 2002, tendo a função transporte a maior participação entre as

demais.8

O outro aspecto destaca as mudanças no financiamento do DAER

para a construção de estradas, que passou a contar com outras fontes de

recursos. Durante os anos 70, os investimentos rodoviários foram

bancados com recursos não onerosos dos orçamentos, principalmente do

Governo do RS e da União, mais o Imposto Sobre o Consumo de

Combustíveis, vinculado ao setor transporte. No que se refere às

atividades de construção das estradas em si, faziam-se por contratação

junto às empreiteiras privadas, principalmente, ou através das 17

unidades do DAER, equipadas com maquinário e localizadas

estrategicamente no RS. Porém, nos anos 80, as dotações de recursos

fiscais para o DAER expandir, manter e pavimentar a malha rodoviária

foram menores, devido às perdas de receitas fiscais. Durante a crise

fiscal, o Governo do RS captou financiamento alternativo dos organismos

internacionais, especialmente do BIRD e do BID, e, assim, manteve o

transporte como prioridade. Inclusive, os recursos externos passaram a

representar uma das principais fontes do DAER nos anos 90 (Fundap,

1997, p. 99). O Gráfico 1 mostra a importância da função transporte nas

despesas de capital não financeiras, ou a participação anual dos

investimentos em transporte no total dos investimentos do Governo do

RS. A participação da função transporte representou, em média, 35,6%

entre os anos de 1981 e 2002. Porém importa destacar-se que as

aplicações em construção, manutenção, sinalização, obras de arte,

pavimentação, enfim, para modernização das estradas rodoviárias,

representavam mais do que 93,0% desses investimentos na função

transporte.

Além dos aspectos destacados sobre o papel do DAER na construção

da malha rodoviária, o setor contou também com a atuação da Companhia

Intermunicipal de Estradas Alimentadoras (Cintea), para apoiar os

municípios na construção das estradas vicinais. Suas atividades focavam a

8 Ver Brunet (2007, tab. C).

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construção, a reconstrução, a melhoria e a edificação de obras de arte,

financiadas com recursos das três esferas de governo, especialmente com

dotações dos programas da União.

A seguir, apresentam-se informações sobre os resultados do

desempenho do DAER na tarefa de construção da malha rodoviária, com o

objetivo de mostrar que as principais vias do RS, onde trafega o maior

número de veículos, já estavam construídas em 1998, bem como

pavimentadas e modernizadas. Essa era a condição das rodovias

estaduais não pedagiadas junto aos nove polos rodoviários criados no final

dos anos 90. Observa-se, entretanto, que a manutenção e a

modernização das rodovias exigem inversões regulares anualmente.

A malha rodoviária tinha extensão de 10,6 mil km no ano de 1980 e,

no final dos anos 90, atingiu em torno de 11,3 mil km. Apesar de extensa,

a grande obra do DAER não se revela por isso e nem por novas estradas,

embora tenham sido implantadas a Estrada do Mar, a Rota do Sol e

outras. A expansão do setor exibe-se pelas melhores condições de tráfego

e, principalmente, pela construção de obras de arte e pela pavimentação

com asfalto das rodovias existentes. A condição de prioridade em todos

esses anos garantiu um fluxo de recursos para investimentos suficiente

para estruturar uma política permanente de modernização da malha

rodoviária no RS. Modernizar as rodovias significou implantar a duplicação

das estradas, construírem-se os acostamentos, a pavimentação, a

sinalização, as vias de acessos e os trevos, as pontes e os viadutos e

outros, como o revestimento primário, a capa de selagem, a patrolagem

regular, a arborização, além das operações anuais chamadas “tapa

buraco”. Certamente, as parcas informações disponíveis sobre essa tarefa

principal do DAER entre os anos de 1980 e 1998 dificultam a análise.

Mesmo assim, os indicadores mostram resultados exuberantes. Tomaram-

-se indicadores médios anuais, como a conservação de 10,3 mil km, a

pavimentação de 263km, a implantação de 320km (1980-90), a

construção de 686m de obras de arte (pontes, viadutos) e, no papel da

Cintea, a construção de 243km de estradas vicinais (1980-90), a

reconstrução de 1.281km de estradas de chão vicinais e de 1.216m de O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 255

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pontes pré-moldadas, pontilhões, bueiros, etc. No ano 2000, a malha

rodoviária pavimentada no RS tinha extensão em torno de 11.100km,

sendo 5.080km de vias federais e 6.020km de rodovias estaduais,

somados a outros 4.847km de estradas não pavimentadas. Por fim, as

estradas pavimentadas têm uma extensão em torno de 6.619km, cujas

condições pouco se alteraram nos anos recentes, embora se verifiquem

melhorias nos quesitos de manutenção, de sinalização e de segurança de

tráfego.9

2.2 A infraestrutura de energia elétrica

Neste item, examina-se o papel da CEEE na construção da

infraestrutura de energia elétrica no RS, entre os anos de 1980 e 1998,

investigando-se a evolução dos investimentos, os grandes planos de

expansão, a forma de financiamento e os fatores que demarcaram a sua

trajetória truncada. Inicialmente, destacam-se duas medidas da política

nacional de energia elétrica que influenciaram o desempenho da CEEE nos

anos 70. Uma medida criou o sistema interligado nacional de energia

elétrica, integrando também o mercado do RS. Essa medida possibilitou

garantir o suprimento de energia nas regiões e nos estados, tendo em

vista que enfrentavam carências, devido às diferenças sazonais e

geográficas na precipitação pluvial. Também propiciou maior flexibilidade

no atendimento do consumo e dos requisitos de potência, bem como a

desativação de unidades de geração a diesel. A outra medida foi

normativa e estabeleceu a equalização das tarifas de energia elétrica em

todo o Brasil, enquadrando a CEEE no marco regulador e na política

nacional. Um dos efeitos da equalização foi truncar as possibilidades de

expansão da estatal pela imposição de índices de correção das tarifas

inferiores à inflação, defasando-as em relação aos custos de produção.

9 Não se investigam a frota de veículos e suas implicações nas condições de tráfego das estradas.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 256

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

Um ciclo de investimentos relevante da CEEE iniciou-se nos anos 70

e prolongou-se até meados da década 80,10 investimentos estes aplicados

na implantação de unidades de geração, principalmente, e, por serem

projetos indivisíveis, também nas redes de transmissão de alta tensão e

de distribuição de baixa tensão. Os planos da prestadora projetavam

capacidade de geração própria para atender ao consumo crescente,

suscitado pelos processos de industrialização e da urbanização acelerada.

O prolongamento desse ciclo de investimentos foi puxado por

projetos de unidades de geração térmica e de implantação das redes,

sendo financiados basicamente com recursos próprios, pois a contratação

de crédito representou em torno de 18,5%. Seguiu-se uma fase de

paralisação dos investimentos e de aumento do endividamento,

verificados também no setor elétrico em geral, tendo como causa principal

a ruptura no financiamento. Por exemplo, a política de tarifas equalizadas,

que substituiu o sistema de tarifas realistas, impôs uma perda real de

27,3% entre 1974 e 1980 e de 25,0% entre 1980 e 1989 (Dal Maso,

1994, tab. 4). Além das pequenas recuperações nos meses que

antecederam os planos de estabilização, a tarifa média teve valorização

real de 213,7% na primeira metade dos anos 90. Por sua vez, essa

valorização possibilitou o início de um novo ciclo de expansão da

infraestrutura. No Quadro 1, apresentam-se, sucintamente, os grandes

planos de expansão da CEEE.

A prática do planejamento de longo prazo demarcou as fronteiras da

trajetória da CEEE, revelando-se truncada devido à crise econômica e a

algumas estratégias questionáveis comandadas pelos agentes das

estatais. Primeiro, planificou e construiu as plantas geradoras e as redes

de distribuição de energia elétrica, que foram complementadas pelas

redes de alta tensão da Eletrosul, unidade coligada da Eletrobrás.

10 Nos anos 70, construíram-se duas grandes hidroelétricas: Passo Real, que foi financiada com recursos próprios, empréstimos externo e do BNDES e da Eletrobrás, holding do setor, e Central de Itaúba, que entrou em operação em 1978, duplicando a capacidade de geração, e foi financiada com recursos próprios, em torno de 60% do custo do projeto, pela inversão dos dividendos pelo Governo do RS, repasses do Imposto Único Sobre Energia Elétrica, recursos do Fundo Estadual de Investimentos, empréstimos do BNDES e da Eletrobrás (Dal Maso, 1994, p. 312).

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 257

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

Segundo, a estatal também constituiu uma forma superior de organização

capitalista no RS, em relação às empresas privadas, capaz de incorporar

as pequenas prestadoras municipais e as cooperativas de eletricidade

existentes. Terceiro, implantou as usinas geradoras e as redes de

distribuição capazes de atender ao consumo crescente puxado pela

industrialização e pela urbanização acelerada. E, quarto, já referido acima,

a política de estabilização fragilizou a forma de financiamento, dada a

“cara pública” da estatal.

Em relação aos projetos das termoelétricas a carvão, eles foram

alçados como prioridade da política energética do Governo do RS e

representaram decisões arrojadas pelo grande porte das obras. A usina

Candiota II teve decisão em 1978, mas a Candiota III foi contratada em

1981, quando já teria ocorrido a ruptura na forma de financiamento. Na

verdade, a política energética fora dominada pelos interesses do lobby

carvoeiro, e a opção pela geração térmica visava explorar o minério de

carvão e dar uma solução energética ao RS (Vieira, 2002, p. 60). Não

obstante haver oferta excedente de energia no sistema interligado, a

aventura da geração térmica foi interrompida e culminou com a

paralisação dos investimentos, o endividamento crescente e a crise

financeira da CEEE.

No passo seguinte, no início dos anos 90, a política nacional orientou

o equacionamento das dívidas do setor energético em geral, liberou a

recuperação do valor das tarifas e propôs medidas que beneficiaram

particularmente a CEEE, como a federalização de Candiota III, em

dez./95, e do seu passivo acumulado. Por suposto, isso possibilitou o

início de um novo ciclo de investimentos continuado na infraestrutura de

energia elétrica no RS.

Cabe examinarem-se os indicadores de expansão da infraestrutura

de energia elétrica mais representativos da sua construção entre os anos

de 1980 e 1998. Na área de geração, os resultados da opção carvoeira na

potência instalada da CEEE apareceram em 1987, quando entrou em

operação Candiota II–Fase B (330MWh). Mas a capacidade de geração da

estatal não atendeu a todo o consumo, recebendo suprimento de energia O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 258

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

pelo sistema interligado nacional. Os aumentos na potência de geração

ocorreram a partir de 1993, com a implantação das diversas usinas

elencadas nos planos acima. Na área de distribuição, vale notar-se a

expansão das redes entre 1981 e 1995, quando o número de

transformadores aumentou 159,8%, e as redes urbana e rural foram

expandidas em 81,0% e 147,9% respectivamente.

Esses indicadores físicos da infraestrutura mostram-se mais

significativos, quando relacionados com os dados sobre o consumo de

energia e o número de novos usuários no subperíodo considerado. O

acréscimo de novos usuários residenciais urbanos incorporados à rede de

energia elétrica foi de 115,3%, e o consumo de toda a classe residencial

elevou-se 260,8%; o acréscimo de novos usuários industriais foi de

155,9%, e o consumo dos industriais foi de 137,4%; na classe comercial,

os dados foram de 98,6% e de 243,8% respectivamente; e, na classe

rural, os indicadores apontam acréscimos de 177% e de 405,4%. Esse

acréscimo generalizado no consumo de energia indica que houve grande

espraiamento das redes de distribuição, as quais incorporaram novos

usuários, num montante de 118,2%, e disponibilizaram maior

fornecimento para atender ao acréscimo total no consumo de 184,7%.

Outros dados que evidenciam a proposição mais geral foram

apropriados das pesquisas do IBGE para os anos de 1980 e 1991, que

apresentam uma visão mais clara sobre a cobertura da infraestrutura.

Tomaram-se alguns indicadores sobre as participações dos domicílios que

tinham e dos que não tinham acesso à energia elétrica. A participação do

total de domicílios que tinham acesso à energia representava 76,0% e

92,6% naqueles respectivos anos, revelando também uma redução

expressiva dos que não tinham acesso à rede de energia. Mas a diferença

mais significativa na cobertura das redes aparece mesmo entre os

domicílios beneficiados localizados nas áreas urbanas e rurais. A

participação dos que não tinham energia elétrica, que era de 8,8%,

reduziu-se para 2,2% nas cidades, e, na área rural, onde era de 60,1%,

caiu para 26,3%. Para o ano de 1998, os indicadores são notáveis: a

cobertura da rede da CEEE beneficiava 97,5% dos domicílios com acesso à O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 259

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

energia elétrica, sendo a participação de apenas 0,8% para os domicílios

urbanos e de apenas 9,9% para os rurais que não tinham acesso.

2.3 A infraestrutura de telecomunicações

Neste item, examina-se o papel da CRT na construção da

infraestrutura de telecomunicações no RS, entre os anos de 1980 e 1998,

pesquisando-se a evolução dos investimentos, os planos de expansão, a

forma de financiamento e os fatores que demarcaram a sua trajetória

truncada. O sistema de telecomunicações no Brasil foi estruturado a partir

da criação da holding Telebrás S/A, em 1972, e de uma prestadora

coligada em cada estado, mais a Embratel e o Centro de Pesquisa e

Desenvolvimento (CPqD), em Campinas (SP). O caso da CRT distingue-se

por ela ser controlada pelo Governo do RS, mas sujeita à regulação, à

política de equalização tarifária, à política tecnológica, enfim, à orientação

da política nacional do Ministério das Telecomunicações (Minicom).

A infraestrutura de telecomunicações no Brasil foi impulsionada pela

política nacional que orientou a atuação do Sistema Telebrás de forma

distinta da experiência nos demais setores, além das semelhanças em

relação ao papel ativo da holding financeira, de concentrar capital e

financiar a expansão das coligadas. A orientação do Minicom foi

fundamental para definir a estratégia de construção da infraestrutura

interligada e com tecnologia compatível, estabelecendo a política

tecnológica, a implantação da indústria de telequipamentos no Brasil, a

política de formação de recursos humanos de excelência em tecnologias

de telecomunicações, a criação do CPqD para gerar tecnologia em parceria

com as empresas de capital nacional. Em suma, a política nacional

orientou e unificou o Sistema Telebrás, possibilitando, enfim, a

comunicação entre as cidades brasileiras.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 260

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

A atuação da CRT foi amparada pela política nacional, como a forma

de financiamento11, o crédito oficial e as tarifas, embora enfrentasse

dificuldades adicionais pela sua condição de “empresa não coligada” à

Telebrás. De forma similar, constituiu uma forma superior de organização

capitalista, em relação às empresas privadas existentes, inscrevendo nos

estatutos a tarefa gigantesca de implantar a planta industrial e todas as

redes urbanas e interurbanas de telefonia, bem como de incorporar todas

as empresas telefônicas municipais existentes. Isso não foi uma tarefa

simples, ao contrário, exigiu grande esforço financeiro, tendo em vista

haver 107 telefônicas em 1975, que foram absorvidas e reduzidas a

quatro no ano de 1980 e para apenas uma em 1985, a Cia. Pelotense de

Telecomunicações, ou CTMR.

Vale lembrar-se também que a construção da infraestrutura visava

atender ao consumo crescente, puxado pela industrialização e pela

urbanização acelerada. Nesse sentido, o crescimento do consumo por

telefonia era explosivo, o número de acessos em serviço triplicou de

190.000 para 629.000 entre 1979 e 1992, e toda a oferta de novos

acessos telefônicos fixos era comprada antecipadamente; o número de

chamadas urbanas aumentou 341,0% entre 1980 e 1991, ou seja, 31,0%

ao ano; e as chamadas interurbanas cresceram 14,7% ao ano (Dal Maso,

1994, p. 393). Portanto, havia uma grande carência por serviços básicos

de telecomunicações, o que exigia a construção da planta industrial num

período concentrado de tempo.

Para atender a essa pressão por telefonia, o ciclo de investimentos

da CRT, iniciado nos anos 70, prolongou-se até meados da década 80,

composto por grandes planos de expansão do número de acessos

telefônicos. O financiamento foi coberto com recursos próprios

basicamente, num montante de 60,0% dos investimentos para realizar

quatro planos de expansão, que previam implantar cerca de 270.000

novos acessos telefônicos. Observa-se que a questão do financiamento

11 Na forma de financiamento, a captação de recursos contou também com a venda de ações casadas com a linha telefônica (extinta em 1995) e a taxa fiscal do Fundo Nacional de Telecomunicações (FNT).

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 261

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

também foi determinante, particularmente, na CRT, pois as expectativas

otimistas referidas acima forjaram as decisões de expansão, reforçadas

pelo retorno esperado das aplicações, pela prática da venda antecipada

dos acessos telefônicos, pelo desenvolvimento da economia do RS e,

principalmente, pela demanda futura projetada com a conclusão do Polo

Petroquímico, do Polo Metal-Mecânico e do Polo Carboquímico. Outra

motivação importante derivava do desenvolvimentismo preponderante na

política do Governo do RS, que se materializava no planejamento de longo

prazo e na intervenção para construir a infraestrutura. Essas razões

prevaleceram politicamente nas decisões sobre os grandes planos da CRT

e, notavelmente, na respectiva execução, durante a ruptura na forma de

financiamento. Uma adversidade recaía sobre a desvalorização das tarifas,

que, por sua vez, se rebatia na geração de recursos próprios. Por

exemplo, a tarifa básica das ligações urbanas foi rebaixada em 115,5% no

valor real, e a tarifa básica interurbana em 46,8%, entre 1974 e 1980; e

ambas foram rebaixadas, em termos reais, em 75,9% entre 1980 e 1990

(Dal Maso, 1994, p. 374).

Diante das dificuldades que truncavam a expansão, os governantes

buscaram financiamento alternativo junto a bancos comerciais,

fornecedores de telequipamentos e pela emissão de debêntures, para

implantar a infraestrutura planejada. Essas decisões ousadas e de alto

risco em tempo de crise acarretaram altos custos financeiros, que

fragilizaram a estatal e agravaram o endividamento. Como consequência,

exigiram medidas de ajuste interno, equacionadas pelo aporte inusitado

de capital pelo Governo do RS, em 1988, para saldar empréstimos do

BNDES e do Banrisul, e pela conversão da dívida com a Telebrás em

capitalização, além da ação judicial favorável contra a União no valor de

US$ 67,8 milhões (Dal Maso, 1994, p. 319). Portanto, busca-se mostrar

os fatores que truncaram o papel da CRT entre 1985 e 1990, fase

considerada de estagnação e de ajuste interno, em que as suas atividades

priorizaram projetos de menor porte e autofinanciáveis, como elevar a

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 262

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

capacidade de acessos das centrais automáticas12, descongestionar o

sistema, através da construção de novas redes, instalar acessos DDD e

DDI, vender novos acessos, etc. Inclusive, a estatal habilitou-se para

executar o Plano Nacional de Popularização do Uso do Telefone, instalando

telefones públicos na maioria das vilas populares. Em suma, o

saneamento financeiro da prestadora, no início dos anos 90, possibilitou

começar um novo ciclo expansão continuado.

QUADRO 2

Portanto, a trajetória truncada da CRT no papel de construção das

telecomunicações, nos anos 80, tinha por perspectiva o atendimento do

consumo por serviços de telefonia fixa basicamente. Porém, nos anos 90,

também visou atender ao consumo explosivo por serviços de telefonia

celular, comunicações de dados, internet, etc. Notavelmente, o comando

da estatal promoveu um ciclo virtuoso de expansão na sua dimensão, ao

ponto de completar a construção da infraestrutura da planta industrial e

das redes urbanas e interurbanas de telefonia no RS.

Para demonstrar a expansão das telecomunicações e a capacidade

da planta de telefonia, selecionaram-se alguns indicadores. Primeiro, a

CRT substituiu todas as centrais manuais de conexão das chamadas nas

240 cidades por centrais automáticas, as quais, além de simbolizar a

modernização do setor, potencializaram a capacidade de instalação de

novos acessos telefônicos. O grau de digitalização da telefonia mede o

percentual da tecnologia digital nas centrais automáticas e nos terminais

telefônicos, o qual representava 13,4% em 1990, tendo-se elevado para

72,9% em 1998. O segundo indicador utiliza o número de acessos fixos

em serviço implantados, os quais cresceram 178,0% entre 1980 e 1990. A

densidade telefônica, medida pelo número de acessos telefônicos em

serviço por 100 habitantes, elevou-se de 3,9% para 7,5% nesses anos,

sendo similar à densidade existente no Brasil. Segundo os dados do IBGE,

apenas 10,9% da população urbana tinha telefone em 1980, mas a

cobertura da rede ampliou essa disponibilidade para 19,4% em 1991.

12 As primeiras centrais automáticas de telecomunicações foram instadas em 1986, com tecnologia de Central por Programa Armazenado Temporal (CPA-T).

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 263

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

Esses indicadores tornam-se mais expressivos nos anos 90, ao

evidenciarem a proposição relativa à construção da infraestrutura das

telecomunicações. Por exemplo, a densidade da telefonia fixa e celular no

RS, que representava 5,9% no ano de 1990, cresceu para 22,9% no ano

de 1998; a densidade dos acessos fixos, no Estado, foi ampliada de 5,9%

para 16,1% nesses anos, e, no Brasil, mudou de 6,5% para 12,4%; e a

densidade dos acessos celulares, no RS, saltou de 0,1% para 6,8% entre

1993 e 1998, e a do Brasil, de 0,5% para 4,5%. Os indicadores singulares

ganham mais significado com os dados da PNAD sobre os moradores em

domicílios que tinham, ou não, telefone. Em 1998, a participação dos sul-

-rio-grandenses que tinham telefone somava 35,0%, a dos moradores

urbanos atingia 40,0%, e a dos rurais, 14,7%.

Portanto, o alto grau de universalização da telefonia no RS foi o

resultado da grande expansão da planta industrial da CRT e da cobertura

das redes urbanas e interurbanas construídas até 1998, tendo, inclusive,

capacidade ociosa planejada. Um dado cabal do significado da façanha

desenvolvimentista republicana e da dimensão da expansão da

infraestrutura das telecomunicações no RS obtém-se do número de

acessos disponibilizados em serviço entre 1990 e 1998: foram

implantados 264.588 novos acessos fixos e celulares anualmente e/ou

132.610 acessos fixos e 80.000 acessos celulares no RS, a cada ano.

2.4 A infraestrutura de saneamento básico

Neste item, analisa-se o papel da Corsan na construção da

infraestrutura de saneamento básico, entre os anos de 1980 e 1998,

abordando os investimentos, os planos de expansão, a forma de

financiamento e os fatores que truncaram a expansão continuada da

estatal. Observa-se que a Corsan continua estatal e que, por isso,

analisam-se algumas informações para os anos posteriores àquele

período, como consta no Quadro 3. O saneamento básico compreende o

atendimento do abastecimento de água e de esgotamento sanitário, cujo

conceito tradicional foi ampliado nos termos da nova lei geral do

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 264

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

saneamento básico13, que incluiu os serviços de coleta e tratamento

adequado dos resíduos sólidos e os de assoreamento urbano. Neste texto,

analisa-se o papel da Corsan na construção dos sistemas de

abastecimento de água.

A estruturação dos serviços de saneamento básico e a tarefa de

construção dessa infraestrutura no Brasil, em parte, assemelham-se ao

modelo dos demais setores analisados. A história pode ser contada a

partir da criação do Sistema Financeiro do Saneamento (SFS), regulado

pelo BNH a partir de 1967. A função de holding financeira do setor foi um

dos principais papéis do Banco, que congregou grande massa de capital,

para implantar o Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa) entre

1971 e 1986.14 O Plano foi executado pelas prestadoras estaduais e por

algumas municipais.15 O Banco também cumpriu a função de regulação e

de orientação das atividades do setor (definição de tarifas, metas de

atendimento, seleção dos projetos financiáveis, etc.). O financiamento dos

projetos do Planasa ocorria por dois fundos principais, o Fundo Nacional

de Saneamento (Finasa), gerido pelo BNH, e o Fundo de Financiamento

Para Água e Esgoto (FAE), criado nos estados com recursos fiscais. O

Finasa foi alimentado por recursos do Orçamento da União, empréstimos

internos e externos, recursos do FGTS e pelos depósitos da caderneta de

poupança, e o FAE formou-se por recursos fiscais e pelo retorno dos

empréstimos. A contratação de crédito do Finasa estava condicionada à

criação do FAE estadual, que cedia a contrapartida de 50,0% do

empréstimo.

As semelhanças com a estruturação dos setores de energia elétrica

e telefonia são observadas na definição da política nacional, na

centralização institucional e decisória sobre o planejamento, a forma de

13 Lei do Saneamento Ambiental n° 11.445, de janeiro de 2007.14 As metas ambiciosas do Planasa estabeleciam o atendimento com água potável a mais de 80,0% da população urbana em, pelo menos, 80,0% das cidades e em todas as regiões metropolitanas, e, ainda, serviços de esgoto às regiões metropolitanas, às capitais e às cidades maiores.15 Os serviços de saneamento básico são competências dos municípios, conforme a Constituinte, mas a grande maioria deles realizou concessões para as prestadoras estaduais.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 265

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financiamento e a regulação, bem como na descentralização das ações

através das prestadoras estaduais e municipais. O que se distinguiu no

saneamento básico foi a estratégia de fortalecer as empresas estaduais,

para se tornarem autossustentáveis, orientadas para construir a

infraestrutura de saneamento básico primeiro nas cidades maiores, pois

teriam viabilidade econômica e retorno mais rápido dos investimentos. Em

sequência, sucessivamente, a estatal construiria nas cidades menores,

com baixo retorno dos projetos, porém já tendo uma condição financeira

mais fortalecida. Portanto, a estratégia presumia que o valor das tarifas

fosse definido com base nos custos das prestadoras, tendo-se em vista a

necessidade de garantir o retorno dos empréstimos, especialmente do

Finasa. Essa característica do modelo entalhou a lógica de valorização do

capital, porque deveria remunerar os recursos do FGTS e as cadernetas de

poupança. Não obstante isso, a forma de financiamento do setor também

sucumbiu, quando posta em xeque na crise dos anos 80, implicando alta

inadimplência dos mutuários dos financiamentos habitacionais do Banco.

A Corsan passou a operar em abril de 1966, atendendo a 103 sedes

municipais, tendo o objetivo de construir a infraestrutura de saneamento

básico nas cidades do RS, exceto em Porto Alegre, Pelotas, Santana do

Livramento e São Leopoldo. A condição do abastecimento de água nas

cidades era precária e apresentava grande carência de serviços adequados

no contexto da industrialização e da urbanização acelerada. Essa façanha

exigiu que se constituísse uma estatal que tivesse uma forma superior de

organização empresarial, a capacidade de concentrar grande volume de

capital social e o planejamento de longo prazo, este como condição de

expansão e para construir a infraestrutura e ter acesso ao crédito junto

aos fundos Finasa e FAE.

No ano de 1980, dentre os 244 municipais existentes, a Corsan

atendia a 232 sedes municipais com sistemas de abastecimento de água e

18 cidades com sistema de esgotamento sanitário. Entretanto o

movimento de criação de novos municípios foi muito intenso também nos

anos 90, fato que adicionou novas sedes municipais sem sistemas de água

adequada a cada ano. Assim, a tarefa de provimento era delegada à O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 266

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

estatal, porque essas comunidades não tinham disponibilidade de

recursos. Atualmente, entre os 496 municipais existentes, a Corsan opera

as concessões dos sistemas de água para em torno de 340 cidades e as

de esgoto para 44 cidades. Conhecendo-se o modelo do setor, a seguir,

examinam-se os planos de expansão do saneamento básico.

Um ciclo de grandes investimentos ocorreu entre 1978 e 1985,

financiado com recursos próprios num montante expressivo, em torno de

74%, mais os créditos dos fundos Finasa e FAE. Mas a Companhia

também recebeu aporte do Governo do RS, entre 1981 e 1983, para

implantar os projetos estratégicos dos sistemas de saneamento no Polo

Petroquímico e no Distrito Industrial de Rio Grande. Esses projetos foram

considerados prioritários para o desenvolvimento e, por isso, absorveram

vultosos recursos próprios da Corsan e de empréstimos levantados.

Ambos foram considerados obras de saneamento básico, por se tratarem

de despoluição de efluentes industriais e por se localizarem a montante

das bacias hidrográficas, especialmente no caso da Região Metropolitana

de Porto Alegre. Os benefícios dessa infraestrutura para a industrialização

e para a preservação ambiental não estão em questão aqui. Porém o

grande aporte de recursos nesses projetos truncou a construção da

infraestrutura de saneamento básico nas cidades, porque exigiram

vultosas inversões de recursos próprios e empréstimos, que acarretaram

desequilíbrio financeiro na estatal. Além de a infraestrutura beneficiar

empresas nessas áreas industriais e representar incentivos empresariais,

vale notar-se que os custos foram socializados nas tarifas de água e de

esgoto para todos os usuários dos sistemas operados pela Corsan.

Portanto, esses projetos estratégicos fragilizaram financeiramente a

estatal, originando uma fase de paralisação dos investimentos, também

agravada pela ruptura radical da forma de financiamento com a extinção

do BNH em 1986. A ruptura poderia lesar os fundos e as cadernetas de

poupança, se as prestadoras não amortizassem os empréstimos. Por isso,

a Caixa Econômica Federal assumiu as funções de financiar o saneamento

básico, embora se sujeitasse à rigidez do contencioso da política

macroeconômica. Esses truncamentos não deixaram muitas alternativas, O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 267

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

senão uma em particular, que foi manter o valor das tarifas de água e

esgoto com reajustes reais de 58,6% e de 793,0%, respectivamente, na

década. Por consequência, retardaram a implantação dos sistemas de

água e de esgoto nas cidades.

O novo ciclo continuado das inversões iniciou-se em 1991 e atingiu

um patamar histórico entre os anos de 1996 e 2000, através da execução

dos grandes planos Projeto Pró-Guaíba e Plano de Investimentos. Foram

financiados por operações de crédito basicamente, flexibilizadas pelo

desbloqueio do crédito, e pelo novo fundo Programa de Investimentos em

Melhorias Sociais (Pimes)16, este alimentado por recursos fiscais e

externos do BIRD. Destacam-se, ainda, os 51 novos sistemas de

abastecimento de água construídos nos novos municípios criados nos anos

90, cujos valores investidos seriam de difícil retorno. Nesse sentido, os

grandes planos da Corsan compõem-se por um conjunto de projetos

destinados para diversas cidades, que envolvem obras, por exemplo, de

implantação de reservatório, de redes de distribuição, de ampliação, de

melhoria, etc.

Em relação aos anos recentes, cabe destacarem-se o Plano de

Investimentos 2003-06, que foi financiado com recursos próprios em,

basicamente, mais de 95,0% do valor dos projetos, e, especialmente, o

Plano de Investimentos 2007-10, que envolve expressivos recursos, agora

bancados pelo Orçamento da União, por operações de crédito (86,0%) e

pela Corsan.

Para demonstrar a expansão da infraestrutura de saneamento

básico e a capacidade da planta dos sistemas de abastecimento de água,

envolvendo captação, estações de tratamento, reservação, adutoras e

rede de distribuição, selecionaram-se alguns indicadores para o período de

1980 a 1998. É importante destacar-se que o abastecimento de água nas

cidades sempre foi a principal prioridade da política de saneamento

básico, por isso, examinam-se os resultados relativos apenas aos sistemas

de água nas cidades atendidas pela Corsan. No caso dos sistemas de

16 O fundo Pimes, destinado para o saneamento, a urbanização, etc., completou em torno de 9% das inversões da Corsan.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 268

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

esgotamento sanitário, a estatal prestava serviços em 18 cidades no ano

de 1980 e em 44 em 1998. A novidade no setor emergiu exatamente

devido ao crescente volume de investimentos revertidos nos sistemas de

esgoto para um patamar em torno de 35,0%, especialmente a partir do

ano 2000. Porém os índices de atendimento urbano da coleta do esgoto e,

principalmente, do tratamento do esgoto coletado são alarmantes, pois

68,0% dos domicílios urbanos do RS utilizam fossa séptica, e apenas

12,4% têm acesso à rede coletora. Assim, a infraestrutura de esgoto

existente é precária e carece muito de uma política pública continuada

para construí-la (Dal Maso, 2008).

O primeiro dado sobre a expansão da infraestrutura de

abastecimento de água é o número de 236 cidades atendidas em 1980,

passando para 279 cidades em 1990 e, depois, para em torno de 340 em

1998. A ampliação, as melhorias e a implantação de novos sistemas

refletem-se nos indicadores seguintes: a rede de distribuição, medida por

quilômetros de canos de água enterrados nas ruas, teve crescimento de

89,3% e de 25,6% nos respectivos subperíodos; o volume de produção de

água tratada aumentou 90,0% e 44,0% respectivamente; e o número de

economias atendidas ou de domicílios ligados à rede cresceu de 679.000

para 1.831.000 nesse período. É importante apontar-se que a construção

dos sistemas de rede geral nas cidades foi determinante para garantir alto

índice de atendimento urbano com água tratada. Conforme os Censos de

1980 e 1991, o percentual de domicílios urbanos que tinham acesso à

rede geral de água elevou-se de 83,3% para 91,5% naqueles respectivos

anos, coincidindo esse nível de atendimento urbano com o prestado pela

Corsan nas cidades conveniadas. A ampliação das redes de distribuição

nas periferias urbanas, bem como a implantação de pequenos sistemas de

abastecimento de água, resultou no crescente acesso à rede geral. Por

último, segundo dados da PNAD, o percentual de moradores urbanos que

tinham acesso à rede geral de água somava 93,9% em 1998, mas, nas

cidades conveniadas da Corsan, era de 97,5% da população urbana.

3 TEMPO DE UNIVERSALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS BÁSICOS

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 269

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

O tempo das reformas do Estado, do retorno dos investimentos em

infraestrutura como prioridade governamental, da recomposição da forma

de financiamento das estatais, das privatizações das prestadoras públicas

e, por essência, da universalização dos serviços básicos sucedeu na

segunda metade dos anos 90. Neste item, abordam-se, sucintamente,

essas mudanças institucionais e os seus reflexos sobre os novos papéis

das prestadoras privadas e públicas dos serviços básicos.

Na verdade, objetiva-se examinar as duas últimas proposições do

trabalho, relacionadas a dois fatos entrelaçados que mudaram os

interesses nessa área de serviços básicos: um, de natureza política,

apoiado por uma poderosa aliança nacional, que culminou nas reformas

do Estado e no ato político intencional de realizar a política econômica de

privatização; e, outro, um fato econômico também intencional, de

recompor a forma de financiamento das prestadoras, para assegurar as

condições sustentáveis de valorização do capital privado, tendo em vista

completar a infraestrutura e universalizar os serviços básicos — os novos

papéis.

Vale lembrar-se que a terceira proposição pondera a importância

política das mudanças, pois foi decisiva para criar as expectativas dos

agentes privados entrantes na área de infraetrutura, como a

recomposição da forma de financiamento, as privatizações e a

contemplação dos interesses dos investidores privados nacionais e

estrangeiros, etc. Entretanto afirma-se que as decisões dos agentes

privados se forjaram principalmente porque as plantas industriais e as

grandes redes nacionais já estavam construídas; porque existia uma

massa de usuários cadastrados e incorporados às redes; porque as

tecnologias disponíveis tinham preços acessíveis e potenciavam altas no

mark-up das prestadoras; enfim, porque foram asseguradas as condições

sustentáveis de valorização do capital na prestação dos serviços básicos.

A última proposição afirma que foi redefinido o papel das

prestadoras privadas e públicas, para operarem os mercados criados e

regulados pelo Estado, atribuindo-lhes os novos papéis de complementar O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 270

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

a infraestrutura existente, para garantir a disponibilidade, a continuidade

e a qualidade do atendimento, bem como o papel adicional da

universalização do acesso aos serviços para todos. Assim, cabe investigar-

-se, na experiência das prestadoras de energia elétrica, de telefonia e de

saneamento básico, a universalização dos serviços básicos.

Portanto, o cenário da infraestrutura dos serviços básicos era outro

no final dos anos 90: as plantas industriais e as redes nacionais de

distribuição tinham capacidade de atender ao consumo crescente do

sistema de produção e do funcionamento das cidades. Porém o

planejamento da sua expansão de longo prazo é uma tarefa continuada,

para criar capacidade ociosa, completar a planta, fazer manutenção,

incorporar inovações, etc., enfim, sempre há necessidade de melhorar-se

a cobertura do atendimento.

3.1 As reformas e o papel de complementar a infraestrutura

A reforma estadual no RS e a política econômica de privatização

foram realizadas entre 1995 e 1998, a partir da Lei n° 10.607, de

28.12.1995. Envolveram a alienação de estatais, a criação dos polos

rodoviários, a concessão de terminais portuários, a extinção de

instituições financeiras, a venda de patrimônio imobiliário e mobiliário e a

terceirização dos serviços públicos, etc. Importa registrar-se a presença

de dois movimentos entrelaçados no processo de ajuste fiscal, efetivados

pelos estados. O primeiro envolvia questões políticas que articulavam

fortes interesses, formavam coalizões e alianças e logravam apoio

parlamentar, para pôr em prática a política econômica das privatizações.

Cabe destacar-se, sucintamente, na negociação e na definição dessa

política, o poder das forças intervenientes no processo. Primeiro, a

representação de apoio de uma forte coalizão parlamentar na Assembléia

Legislativa Estadual, que articulou forças para a tramitação rápida dos

projetos da reforma radical. Segundo, o alinhamento dessa política

estadual com a mesma política nacional afiançou as mudanças locais,

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 271

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

porque os déficits fiscais e o crescimento da dívida dos estados

ameaçavam a estabilidade econômica. Por isso, o aval do Governo Federal

condicionou uma negociação caso a caso do ajuste fiscal com os estados e

impôs a privatização das empresas estaduais (Lopreato, 2000).17 O

terceiro parâmetro interveniente das mudanças sucedeu com os

interesses do grande capital nacional, que buscava garantir participação

nas privatizações, a qual, de fato, foi assegurada pelas mediações do

Estado nacional e do Governo do RS (Dal Maso, 2000).

Assim, os atos políticos intencionais das forças políticas efetivaram

as mudanças na forma de intervenção do Governo do RS na infraestrutura

de serviços básicos de energia elétrica, telecomunicações, transportes,

saneamento básico, instituições financeiras e de concessão dos polos

rodoviários, etc. A citação abaixo registra os compromissos do Governo do

RS, ao contratar crédito junto ao BID, para materializar a política de

privatização.

Os objetivos gerais orientadores do Programa de Reforma do Estado podem ser apresentados nos termos seguintes: recuperação do equilíbrio fiscal e financeiro do setor público, modernização e qualificação do setor público, privatização e descentralização de parte importante dos serviços públicos de infraestrutura e, consequentemente, a retomada dos investimentos, de modo a propiciar o aumento global da eficiência da economia gaúcha. (RS, 1997, p. 27).

O segundo movimento entrelaçava a questão futura da

infraestrutura, pois, em última instância, o Estado tem a responsabilidade

maior da provisão dos serviços básicos. No essencial, cabe ao Estado criar

o mercado, definir a forma de financiamento e as tarifas, regulamentar os

direitos e os deveres dos agentes prestadores públicos ou privados, etc.

Portanto, quando o Estado criou esses mercados, por um lado, eliminou a

fragilidade na forma de financiamento existente e assegurou uma

condição sustentável de valorização dos capitais privados entrantes. Por

outro, estabeleceu a função reguladora e fiscalizadora para controlar o

17 A articulação política foi amarrada pelos programas: Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados, respaldado na Lei n° 9.496/97, que autoriza a federalização das dívidas mobiliárias e bancárias, e Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 272

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

poder discricionário das prestadoras em seu jogo oligopolista, ou seja,

controlar as tarifas e o elevado poder das empresas, tendo em vista a

natureza pública dos serviços básicos, o impacto destes nos custos diretos

do sistema de produção e a sua relevância para o funcionamento das

cidades. Em relação à questão futura da infraestrutura econômica, o

arcabouço legal, ou a lei geral de cada setor, definiu obrigações de

expansão da planta industrial e as metas de universalização.

Definidos claramente os arcabouços legais e regulatórios dos

mercados dos serviços básicos e asseguradas as bases requeridas e

sustentáveis de valorização dos capitais privados e/ou de expressivo

retorno dos investimentos na área de infraetrutura, materializaram-se,

assim, as condições para os agentes privados investirem para

complementar a infraestrutura existente. No caso do esgotamento

sanitário, as plantas e as redes que faltavam ser construídas para

implantar os sistemas abarcam todas as cidades do RS. Quanto aos

serviços de telefonia, foram efetivadas extensas redes de telefonia celular

concorrentes e de outros serviços de telecomunicações pelas firmas

entrantes. Portanto, os investimentos das prestadoras privadas

completaram a planta industrial e as redes da infraestrutura existente e,

principalmente, criaram a capacidade ociosa planejada para atender ao

consumo crescente. Assim, argumenta-se, aqui, que as decisões dos

agentes privados se forjaram basicamente na ampla cobertura das redes

já construídas, nas plantas industriais instaladas e no cadastro massivo de

usuários ligados às redes. Além disso, o grande porte dos novos

investimentos poderia ser plenamente sustentável pelas grandes

empresas entrantes, bem como as inovações se apresentam atualmente

mais acessíveis, e também aumentaram as expectativas de rendimentos

futuros.

Em relação à recomposição da forma de financiamento das

prestadoras, o Governo Federal adotou a política de desbloqueio dos

controles das autoridades econômicas sobre as tarifas dos serviços

básicos, sobre os orçamentos de dispêndios globais das estatais, sobre os

seus planos de investimentos e sobre as restrições ao crédito dos bancos O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 273

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

oficiais, comerciais, do BID e do BIRD. Livres desse contencioso, os

índices de reajustes passaram a recompor o valor das tarifas, que

passaram a ser a principal fonte de financiamento a partir de meados da

década de 90. Os bancos oficiais começaram a financiar pela modalidade

de “projeto de financiamento” (project finance), tendo em vista a

mudança no perfil de risco dos tomadores de crédito. A aprovação do

financiamento dos projetos passou a exigir a respectiva viabilidade

econômica e garantias oferecidas pelas prestadoras privadas e públicas,

porque passou a correr os riscos do mercado, relacionados a

fornecedores, à contratação de serviços, a seguradoras, a bancos

comerciais, etc. Por isso, o projeto deve ter, inexoravelmente, cobertura

de receita ou um fluxo de caixa compatível, pois, se incorrer em prejuízo,

não poderá ser coberto com recursos públicos. Portanto, a fixação de

tarifas tornou-se um dos aspectos fundamentais na nova modalidade de

financiamento.18

As tarifas passaram a ser corrigidas pelo sistema price-cap19 a partir

de 1997, e, adicionalmente, as agências reguladoras corrigiram as

distorções nos sistemas de tarifação. Por exemplo, a tarifa de telefonia

passou a ser cobrada por minuto de uso dos serviços e não mais por pulso

(igual a quatro minutos), corrigida pelo Índice de Serviços de

Telecomunicações (IST). O consumo de energia elétrica e de água teve

como parâmetro os registros medidos em cada unidade residencial,

comercial, etc. As tarifas de pedágios nas estradas foram criadas junto

com a instalação dos polos rodoviários, entre 1998 e 1999, e essas

prestadoras também tiveram acesso ao crédito dos bancos oficiais.

Portanto, o sistema de valorização das tarifas possibilitou a geração

de recursos próprios para financiar a expansão da infraestrutura. No setor

de telefonia, esses recursos representavam em torno de 60,0% em 1994,

elevando-se para mais de 70,0% a partir de 1995, e as operações de

18 Ver Pego Filho et al (1999) e Dal Maso (2000, p. 409).19 O sistema price-cap atualiza o valor das tarifas com base em custos de produção. O reajuste anual é feito com base num índice de preços, cuja taxa de reajuste sofre um desconto a título de produtividade, chamado Fator X, para beneficiar o consumidor anualmente.

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 274

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

crédito somavam em torno de 20,0%. Ou seja, a manutenção do valor

propiciou ganhos substanciais entre 1998 e 2002, por exemplo, de 80,0%

na assinatura residencial, de 47,2% na assinatura não residencial, de

25,0% sobre o valor do pulso local, de 40,0% sobre a tarifa interurbana,

etc. (Dal Maso, 2006, tab. 4). No caso da Corsan, esta enfrentava

restrições de crédito por conta do endividamento excessivo, exceto entre

1995 e 1998, quando captou grande volume de crédito, que reduziu para

cerca de 37,0% a participação dos recursos próprios. Porém sua

importância saltou de 64,0% em 2002 para mais de 95,0% em 2006. A

tarifa média do metro cúbico de água teve aumento real de 42,8% entre

1995 e 1998 e de 54,4% até o ano 2000 (Dal Maso, 2008, tab. A.13). Mas

é importante registrar-se que o crédito do FGTS e do FAT foram liberados

para financiar as prestadoras de saneamento básico. Entretanto a Corsan

não teve acesso a esse crédito oficial, por conta do acordo da dívida do

Governo do RS, que estabeleceu limite de endividamento. Essa restrição

ao crédito representou um atraso extraordinário na construção da

infraestrutura de saneamento básico no RS, nos anos bem recentes. No

setor de energia elétrica, a valorização das tarifas antecipou-se, porque as

prestadoras contabilizavam prejuízos e endividamento excessivo,

necessitando buscar capitais de terceiros. Assim, a capacidade de gerar

recursos próprios da CEEE, cerca de 20,0% em 1990, elevou-se para

58,5% nos anos de 1993 a 1996.

3.2 A política econômica de privatização

Um dos objetivos da política econômica de privatização foi criar um

modelo competitivo, considerado mais eficiente em relação ao monopólio

estatal. Por isso, os mercados dos serviços básicos foram fragmentados

por área e por tipo de serviço. A fragmentação criou unidades com escala

e escopo menores, inclusive menor capacidade competitiva. Entretanto

atendia aos interesses do grande capital nacional em participar das

privatizações, embora a competição em si se tenha mostrado remediada e

efêmera nesses mercados, exceto nas telecomunicações. A seguir, O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 275

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

apresentam-se os modelos de mercados implantados no RS que são

similares em escala nacional.

A CEEE foi transformada em seis unidades,20 leiloadas no final de

1997, de acordo com as suas áreas de atuação na geração de energia,

transmissão e distribuição. A mudança criou uma unidade de transmissão,

duas de geração, três de distribuição e um complexo termoelétrico

(Candiota). O controle acionário de duas distribuidoras foi alienado para a

Rio Grande Distribuidora S/A (RGE) — Votorantin, Bradesco e Camargo

Correa —, a AES Sul S/A, com capital norte-americano, e a Companhia

Estadual de Energia Elétrica Participações, sociedade holding do Governo

do RS, controladora de unidades que operam segmentos de geração,

transmissão e distribuição.21 A competição projetada no mercado de

energia elétrica deveria ser efetivada pelo órgão Operador Nacional do

Sistema Elétrico (ONS), através da intermediação da venda e da compra

de energia no sistema interligado por unidades geradoras, distribuidoras e

consumidores.

Nas telecomunicações, o modelo competitivo fragmentou a rede

pública por área e por tipo de serviço. O Sistema Telebrás foi dividido em

três holdings regionais na telefonia fixa, sendo autorizada a concessão

para novas empresas entrantes; a holding Embratel prestaria a telefonia

interurbana e internacional e fez novas concessões para firmas entrantes;

e, na telefonia celular, o mercado brasileiro foi fragmentado em nove

regiões com quatro prestadoras cada. Nesse sentido, o RS compôs uma

região onde competem a Vivo, a Claro, a TIM e a Oi (Brasil Telecom

Celular).22 Em relação à CRT, o Governo do RS antecipou a sua

privatização antes do Sistema Telebrás, causando descontinuidade e

retardo na expansão da infraestrutura de telefonia no RS, tendo em vista

20 Lei Estadual nº 10.900, de dezembro de 1996. Sobre o assunto, ver Governo do Estado do RS (RS, 1997, p. 45).21 A divisão da CEEE gerou as seguintes empresas: Companhia Transmissora de Energia Elétrica S/A; Cia. de Geração Hídrica de Energia Elétrica S/A e Cia. de Geração Térmica de Energia Elétrica S/A; Cia. Sul-Sudeste de Distribuição de Energia Elétrica S/A (AES Sul); Cia. Centro-Oeste de Distribuição de Energia Elétrica S/A e Cia. Norte-Nordeste de Distribuição de Energia Elétrica S/A (RGE).22 Ver Dal Maso (2000, cap. 4) e Teleco (2009).

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 276

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

a estratégia especulativa dos capitais entrantes. A alienação das ações

ocorreu em duas etapas: em dezembro de 1996, o consórcio liderado pela

RBS Participações S/A e pela Telefónica Internacional de Espanha adquiriu

35,0% dos ativos e, depois, arrematou o restante em junho de 1998, um

mês antes do leilão do Sistema Telebrás (Dal Maso, 2000, p. 406). Por

fim, a holding Brasil Telecom incorporou a unidade de telefonia fixa no

ano 2000 e, atualmente, passou a ser controlada pela prestadora Oi e

Telemar.

O mercado de saneamento básico estrutura-se como monopólio

natural. A decisão de mudança no mercado da Corsan pelo Governo do

RS, entretanto, supôs implantar um modelo competitivo por área de

atuação e por tipo de serviço (abastecimento de água e esgotamento

sanitário), mas os parâmetros competitivos seriam estabelecidos por

metas de desempenho, ganhos de eficiência, qualidade dos serviços, etc.

e por comparação entre as nove unidades (superintendências) regionais

criadas. É importante notar-se que essas mudanças afetaram

profundamente a estrutura de governança da Corsan, devido aos ajustes

para privatizá-la posteriormente, como a redução de pessoal, o ajuste

operacional e a fragmentação da sua área de abrangência em nove

superintendências regionais23. A estatal não foi privatizada, mas o modelo

previa alienar 49,0% das suas ações, a venda da Companhia de Indústria

Eletro-Química (CIEL), empresa filiada, produtora de sulfato de alumínio

para uso no tratamento de água, e a transferência da concessão do

Sistel.24 Observa-se que a área de interesse dos agentes privados recaía

nos sistemas de abastecimento de água das grandes cidades, porque a

infraestrutura já estava construída e atendia quase toda a população

urbana. Apesar disso, foram inexpressivas as privatizações no Brasil,

pelas seguintes razões: a derrota no Congresso do projeto sobre novo

23 As nove superintendências regionais são: Região Sul, Região Litoral Norte, Região Metropolitana, Região Nordeste, Região Planalto Médio, Região das Missões, Região Fronteira Oeste, Região Central, Região Sinos. As sedes das regionais foram localizadas nas cidades de Rio Grande, Osório, Canoas, Bento Gonçalves, Passo Fundo, Santo Ângelo, Rosário do Sul, Santa Maria e Canoas respectivamente.24 Ver Mensagem do Governador à Assembléia Legislativa (RS, 1997; 1998) e Dal Maso (2008).

O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 277

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

arcabouço legal do setor e as incertezas quanto ao titular da concessão

dos serviços nas áreas metropolitanas.

Na área de transporte rodoviário, o DAER vinha desenvolvendo uma

experiência de rodovias pedagiadas desde 1991, cujos resultados

embasaram a criação de nove polos de concessões de serviços25, com

praças de pedágio envolvendo em torno de 2.816km de rodovias

pavimentadas, integrando também rodovias federais delegadas. O modelo

de polo compreende um conjunto de trechos rodoviários que convergem

para um mesmo centro (nó rodoviário). A viabilidade dos polos foi

consolidada pelo convênio de delegação da administração de rodovias

federais para o Governo do RS, envolvendo 25 trechos com extensão de

2.065km. Cinco polos foram implantados em 1998, inclusive

terceirizaram-se para agentes privados os serviços de inspeção de

segurança veicular e de expedição de carteira da habilitação de motorista

em agosto de 1996, bem como foram repassadas todas as atividades

portuárias à iniciativa privada. Notavelmente, as rodovias pedagiadas nos

polos têm grande importância na malha rodoviária e já se encontravam

pavimentadas e em condições de tráfego, necessitando de melhorias,

sinalização anuais e regulares. Portanto, as boas condições das rodovias

pavimentadas, a intensidade do tráfego existente nos polos e as taxas

generosas de pedágios definidas tornaram-nas muito atrativas aos

agentes privados.

3.3 A universalização dos serviços básicos

Na análise exposta acima, mostrou-se que as infraestruturas de

energia elétrica, telecomunicações, abastecimento de água e de estradas

rodoviárias foram construídas antes das privatizações das estatais CEEE e

CRT e das concessões dos polos rodoviários. Por isso, o estatuto das

25 Os polos rodoviários criados foram: Lajeado (Sulvias S/A), Gramado (Brita Rodovias S/A), Santa Maria (Santa Maria de Rodovias S/A), Carazinho (Coviplan S/A), Santa Cruz do Sul (Santa Cruz Rodovias S/A), Vacaria (Rodosul S/A), Caxias do Sul (Convias S/A), Pelotas (Ecovias S/A), Metropolitano (Metrovias S/A) (RS, 1998, p. 152).

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prestadoras privadas e públicas posteriormente atribuiu o papel de

expansão dessa infraestrutura para garantir a disponibilidade, a

continuidade e a qualidade para o atendimento do consumo crescente, a

universalização dos serviços e, inexoravelmente, os expressivos retornos

dos investimentos privados. A seguir, avalia-se a universalização dos

serviços nos anos bem recentes.

Afirmar que a infraestrutura estava construída antes das

privatizações não significa negar que houve expansão posteriormente. Ao

contrário, a natureza desses serviços públicos exige a necessidade de

investimentos para manutenção, reposição e permanente ampliação da

planta industrial e das redes, inclusive para incorporar e implantar novas

tecnologias e prestar novos tipos de serviços. A dinâmica do sistema de

produção e do funcionamento das cidades exige expansão e melhorias.

Citam-se, como exemplos, o alargamento da eletrificação rural, as novas

redes de telefonia das prestadoras entrantes, as redes de fibras ópticas,

etc. Observa-se também que o mercado das prestadoras não mais se

restringe ao RS, tampouco às fronteiras do Brasil, exceto o caso da

Corsan e da Companhia Estadual de Energia Elétrica Participações.

Em geral, a criação dos mercados e a regulação do Estado

privilegiaram o critério econômico, como o princípio do justo retorno dos

investimentos, as tarifas “razoáveis”, o mark-up elevado, o arcabouço

regulador claro, etc. Em outras palavras, de acordo com essa perspectiva,

a universalização ocorre como consequência do aumento do nível de

renda e de emprego dos usuários econômicos, que possibilita o acesso e o

consumo dos serviços básicos.

No caso da telefonia, dois princípios básicos orientaram a criação do

mercado. O primeiro é o princípio de universalização, que significa o

acesso a serviços de telecomunicações individuais para todos, com tarifas

comercialmente razoáveis e níveis de qualidade aceitáveis. O mercado

passou a ser o mecanismo de universalização. O segundo é o princípio

constitucional de isonomia no setor, na medida em que se ampliou o leque

de benefícios, como a exigência de padrões de qualidade e de

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regularidade adequados à sua natureza, a liberdade de escolha do

provedor de serviço, a inviolabilidade, o segredo da comunicação e a

preservação da privacidade. Nesse sentido, a noção de universalização

está referida ao direito do usuário, ao direito do consumidor individual ao

acesso, tendo a dimensão exclusiva dos usuários econômicos, os que

podem pagar pelos serviços, e não o direito ao acesso e ao uso como um

direito universal dos cidadãos (Dal Maso, 2000, cap. 4).

A universalização da telefonia pelas prestadoras Brasil Telecom

(adquirida pela Telemar através da firma coligada Oi em 2009), Global

Village Telecom (GVT) e Embratel aumentou o número de acessos fixos

em serviço em 43,7% entre 1999 e 2008, elevando o índice de densidade

de 15,2 para 24,0. Ou seja, para cada 100 sul-rio-grandenses, 24 tinham

acesso ao telefone fixo. E a densidade de telefones públicos passou de 3,5

para 6,1 “orelhões” para cada grupo de 1.000 habitantes. Os serviços de

celulares foram o carro-chefe da telefonia, tendo crescido 1.334,5% e

disponibilizado 9,7 milhões de acessos a celulares, operados pela Vivo,

Claro, Tim e pela Brasil Telecom Celular. O índice de densidade celular

expandiu-se de 22,1 para 111,3 acessos para cada 100 gaúchos.

Esse cenário da universalização clarifica-se mais com as pesquisas

do IBGE. Conforme os dados do Censo de 2000, os moradores dos

domicílios que tinham telefone (fixo ou celular) somavam 38,2%, o

percentual dos habitantes urbanos beneficiados era de 46,5%, e os rurais

resumiam-se a 14,7%. Porém, segundo os dados da PNAD para o ano de

2008, mudou completamente esse cenário, pois 90,7% do total dos

gaúchos tinham telefone; entre os moradores urbanos e os rurais 92,0% e

85,0% tinham telefone respectivamente. Destaca-se o fenômeno do

espraiamento da telefonia nas classes de baixa renda, tanto na cidade

como no campo. Nas cidades, os moradores com renda de até um salário

mínimo (SM) que tinham telefone somavam 38,8%, e aqueles com renda

entre um e dois SMs que tinham telefone representavam 31,1%. Mas, na

área rural, a incorporação de usuários na telefonia celular foi

extraordinária, pois os moradores com renda de até um SM e que tinham

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telefone somavam 57,1%, e, na classe com renda entre um e dois SMs,

29,0% deles tinham telefone.

A universalização da energia elétrica não é um fenômeno recente,

mas completou-se pela incorporação de 1,1% dos gaúchos entre 2000 e

2008, especialmente moradores das áreas rurais. A expansão resultou

basicamente dos incentivos da política pública Programa Luz Para Todos26

do Governo Federal, coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, sendo

financiado no montante de 75,0% dos investimentos pela Eletrobrás, além

de contar com a parceria das prestadoras CEEE, AES Sul e RGE. O

fornecimento total de energia elétrica cresceu 26,5%, o que equivale a

2,6% ao ano; exceto na área rural, onde o número de novos usuários

cresceu 34,7%, e o consumo de energia, 68,7%, ou seja, 6,8% ao ano.

Os dados desagregados por prestadora também refletem a evolução

moderada do consumo e a expansão da universalização do acesso na área

rural.

Os dados das pesquisas do IBGE revelam indicadores mais

significativos desse cenário “todos com luz”. No ano 2000, os grupos de

moradores urbanos e rurais sem acesso à energia elétrica representavam

0,5% e 9,5% respectivamente. Esse grau reduziu-se para um cenário de

universalização plena em 2008. Segundo os dados da PNAD, apenas 0,2%

dos domicílios urbanos e 1,4% dos rurais não tinha acesso à rede de luz

elétrica. Portanto, a plena universalização efetivou-se com os incentivos

da política pública e as aplicações complementares das prestadoras nos

anos bem recentes.

O conceito de universalização do abastecimento de água (e

esgotamento sanitário) utilizado compreende a disponibilidade, a

acessibilidade e a continuidade do fornecimento para todos. Essas

condições fundam a noção de serviços universais, considerando as

características de alta relevância social e econômica, a importância

estrutural no funcionamento das cidades e no sistema de produção. Os

26 O Programa Luz Para Todos foi iniciado em 2003 e buscou antecipar em sete anos a universalização da energia elétrica no País, seguindo as metas do cronograma de atendimento. Pela legislação atual, as concessionárias de energia teriam prazo até dezembro de 2015 para eletrificar todos os domicílios sem acesso à energia no Brasil.

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

atributos de alta relevância, além de serem bens insubstituíveis e

essenciais à vida, determinam que o abastecimento de água seja sempre

orientado por políticas públicas e por regulação e fiscalização

governamentais para proteção do interesse público e para provisão

adequada deles. Neste texto, tomou-se um conceito de universalização

restrito, que considera a disponibilidade e a acessibilidade da população

urbana e dos domicílios urbanos aos serviços de abastecimento de água e

de esgotamento sanitário, mediante o pagamento de tarifas estabelecidas,

sociais ou básicas, normais e comerciais (Dal Maso, 2008).

Os dados do Censo de 2000 mostram o percentual de 9,0% dos

domicílios urbanos das cidades do RS que não tinham acesso à rede geral

de abastecimento de água, mas esse grupo não atendido representa 6,0%

segundo os dados da PNAD de 2008. Esse indicador agregado mostra uma

informação importante, qual seja, os grupos com acesso e sem acesso à

rede geral, isto é, os que tinham, ou não, acesso ao fornecimento de água

tratada e ao controle de qualidade junto às prestadoras. Cabe alertar-se

sobre a quase impossibilidade de atingir-se o pleno atendimento dos

domicílios urbanos ou a plena universalização, devido às dificuldades de

mensuração derivadas do conceito de área urbana, que incorpora áreas

dispersas, despovoadas, etc. Entretanto destaca-se o alto grau de

universalização abarcado pelas redes de abastecimento de água.

Uma informação mais cabal sobre a universalização obteve-se nos

dados do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS),

gerido pelo Ministério das Cidades e alimentado pelas próprias

prestadoras. Os dados sobre a Corsan revelam que 100,0% da população

urbana das cidades conveniadas passaram a ser atendidas por rede geral

de abastecimento com água tratada a partir do ano 2000. É importante

registrar-se que, nos 340 sistemas municipais de rede geral, é distribuída

a água tratada com índice de fluoretação de 99,8%, segundo os padrões

estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Cenário similar de universalização

de 100,0% no abastecimento de água tratada revela-se nas grandes

cidades atendidas por prestadoras municipais, como no caso de Porto

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Alegre, Caxias do Sul, Pelotas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Bagé e

Santana do Livramento, inclusive o índice de fluoretação é de 100,0%.

Em relação aos serviços básicos de esgotamento sanitário, cabe

apenas uma referência: o fato de este ter sido alçado como prioridade do

Governo Federal e da prestadora Corsan no RS, que destinou expressivos

investimentos nos anos recentes, basicamente para ampliar as redes e

construir as estações de tratamento dos sistemas existentes nas 44

cidades. Sem dúvida, registra-se esse fato como a grande novidade no

saneamento: a prioridade dada para a construção da infraestrutura de

esgotamento sanitário no RS. Um indicador da grande carência desses

serviços é o percentual de esgoto tratado em relação ao volume de água

consumida pelos usuários nos sistemas da Corsan, o qual aumentou de

6,7% para 12,8% entre 1998 e 2007.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise do papel das empresas estatais do RS na construção da

infraestrutura dos serviços básicos, no período de 1980 a 2008, apresenta

algumas constatações importantes e levanta novas questões.

A abordagem da trajetória das estatais tornou-se complexa. Além

disso, a afirmação de que a política desenvolvimentista do Governo do RS

realizou a façanha de construir a infraestrutura no RS contraria o

consenso fiscalista sobre a crise fiscal do Governo do RS, sobre a sua

incapacidade de investimento, enfim, sobre a ineficiência do gasto público.

Porém os dados disponíveis evidenciam a sua construção

progressivamente e a disponibilidade crescente dos serviços básicos, o

atendimento do consumo crescente e o espraiamento da universalização.

Entre os principais fatores que determinaram essa façanha, citam-se: o

papel virtuoso da intervenção estatal; a primazia na alocação dos gastos

do Governo do RS para a infraestrutura; a perspectiva do pensamento

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

desenvolvimentismo dominante nas esferas de comando do Governo do

RS, para realizar o desenvolvimento econômico (diversificação da

produção na indústria, agricultura e nos serviços) e social; a prática do

planejamento de longo prazo como uma condição da grande empresa

estatal, para efetivar planos arrojados e pesados investimentos e outros,

como a prática de vincular as estratégias estaduais aos planos e

programas da política nacional, a capitalização das empresas e a tomada

de crédito alternativo. Portanto, a busca aguerrida dessa utopia logrou

realizar a façanha de construir a infraestrutura de serviços básicos pelos

sucessivos governos dos RS.

Por sua vez, no tempo das reformas, no final dos anos 90,

prevaleciam todas as razões econômicas que forjaram as decisões dos

agentes privados para investirem na área de prestação de serviços

básicos. A constatação da presença desses fatores, por sua vez, também

contraria os argumentos propalados que depreciaram a abrangência e a

capacidade da infraestrutura já construída no RS. Assim, ao cabo da

decisão política de realizar as privatizações, os agentes privados criaram

expectativas devido ao fato de as plantas industriais e as grandes redes já

estarem construídas; a imobilização de capital em ativos fixos não

necessitava de vultosos capitais como dantes; a existência de uma massa

de usuários cadastrados e incorporados às redes; e as tecnologias

disponíveis e acessíveis. Portando, a privatização efetivou-se, primeiro,

pelo ato político intencional, segundo, porque a infraestrutura estava

construída e, terceiro, porque foram asseguradas condições sustentáveis

de valorização e retornos expressivos do capital privado na prestação dos

serviços básicos.

Nesses termos, o papel delegado para as prestadoras privadas e

públicas nos anos recentes não é menos importante, pois estas deveriam

complementar a infraestrutura e universalizar o acesso aos sul-rio-

-grandenses. Em relação ao papel adicional da universalização, os dados

revelam que esta foi atingida, senão de forma plena, pelo menos em

altíssimo grau, tanto nas áreas urbanas, como nas áreas rurais distantes e

dispersas. Em relação à complementação da infraestrutura, cabe O movimento da produção. (Três décadas de economia gaúcha, v. 2). 2010 284

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Dal Maso, R. A. A construção da infraestrutura no RS, de 1980 a 2008: a última façanha....

distinguir-se o papel de manter e de ampliar as plantas e as redes

existentes, as quais constituem uma atividade permanente das

prestadoras, e o papel de construir a infraestrutura que faltava para

prestar os novos serviços. Nesse caso, enquadram-se as plantas

industriais e as redes da telefonia celular, internet, etc., bem como a

incorporação de inovações que integram seus interesses e foram

implantadas pelas firmas entrantes. Noutros casos, observa-se que

permanece ainda a divisão entre os interesses privados e públicos; por

exemplo, na construção dos sistemas de esgotamento sanitário em todas

as cidades do RS, bem como da rede de energia elétrica na área rural, as

quais não são de interesse privado pelos seus altos custos de implantação.

Por isso, deverão ser erguidas pela intervenção estatal e/ou pelos

incentivos das políticas públicas.

Por último, faz-se um registro de novas questões para estudo nessa

área de políticas públicas. Um tema relevante que merece ser

investigando é a infraestrutura de esgotamento sanitário nas cidades do

RS. Essa área apresenta serviços precários em todas as cidades do RS,

entretanto tem merecido crescente primazia na destinação dos

investimentos do PAC e das prestadoras nos anos bem recentes. A

questão da regulação dos serviços básicos também é um tema que

merece um estudo aprofundado, para avaliar a qualidade do atendimento

das prestadoras e, especialmente, a política tarifária, considerando a alta

relevância para o sistema de produção e o funcionamento das cidades.

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