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A CONSTRUÇÃO DO SAMBA PATRIMÔNIO E O GENOCÍDIO DOS TAMBORES Quercia Oliveira 1 Resumo: Quando, em 2004, a UNESCO lançou convocatória para constituição da terceira lista dos patrimônios imateriais da humanidade, acirrados debates em torno dos sambas e suas possibilidades de representantes da identidade nacional foram retomados no Brasil. Como representante da nação brasileira foi apresentada a candidatura do Samba de Roda do Recôncavo Baiano, proclamado em 2005 como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. Os processos de inventário e divulgação da inserção do samba de roda na lista da UNESCO, entretanto, foram acompanhados por publicações jornalísticas e acadêmicas que referendavam seu lugar matricial em relação ao samba, tido nacional. Desta forma, questionamos: quais os desejos subjacentes à candidatura do samba de roda ao título de patrimônio cultural da humanidade? Palavras-Chave: Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Política Patrimonial Brasileira e Baiana, Manifestação negro-diaspórica 1. DO BATUQUE AO SAMBA: A FABRICAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONAL Nas décadas de 1910 e 1920, os intelectuais brasileiros, dentre eles os eugenistas, ao se darem conta da inevitabilidade da mestiçagem e da presença negra no Brasil, veem a necessidade de constituir um discurso diferenciado sobre a nação, sua população e sobre as possibilidades de progresso. Necessária, também, seria a adoção de um marco teórico e paradigmático, que explorassem as ideias de originalidade, ineditismo e exclusividade da composição e postura raciais brasileiras. Nesta nova configuração de necessidades discursivas, mas em uma aplicação confusa e determinista do conceito de cultura empreendido por seu professor Franz Boas, Gilberto Freyre formulou aquele que seria o paradigma racial brasileiro de maior durabilidade e adesão, o da democracia racial. Buscando uma ruptura com o cientificismo e as perspectivas 1 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de História da rede municipal de Juazeiro-BA. E-mail: [email protected].

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A CONSTRUÇÃO DO SAMBA PATRIMÔNIO E O GENOCÍDIO DOS TAMBORES

Quercia Oliveira1

Resumo: Quando, em 2004, a UNESCO lançou convocatória para constituição da terceira

lista dos patrimônios imateriais da humanidade, acirrados debates em torno dos sambas e suas

possibilidades de representantes da identidade nacional foram retomados no Brasil. Como

representante da nação brasileira foi apresentada a candidatura do Samba de Roda do

Recôncavo Baiano, proclamado em 2005 como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da

Humanidade. Os processos de inventário e divulgação da inserção do samba de roda na lista

da UNESCO, entretanto, foram acompanhados por publicações jornalísticas e acadêmicas que

referendavam seu lugar matricial em relação ao samba, tido nacional. Desta forma,

questionamos: quais os desejos subjacentes à candidatura do samba de roda ao título de

patrimônio cultural da humanidade?

Palavras-Chave: Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Política Patrimonial Brasileira e

Baiana, Manifestação negro-diaspórica

1. DO BATUQUE AO SAMBA: A FABRICAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

NACIONAL

Nas décadas de 1910 e 1920, os intelectuais brasileiros, dentre eles os eugenistas, ao se darem

conta da inevitabilidade da mestiçagem e da presença negra no Brasil, veem a necessidade de

constituir um discurso diferenciado sobre a nação, sua população e sobre as possibilidades de

progresso. Necessária, também, seria a adoção de um marco teórico e paradigmático, que

explorassem as ideias de originalidade, ineditismo e exclusividade da composição e postura

raciais brasileiras.

Nesta nova configuração de necessidades discursivas, mas em uma aplicação confusa e

determinista do conceito de cultura empreendido por seu professor Franz Boas, Gilberto

Freyre formulou aquele que seria o paradigma racial brasileiro de maior durabilidade e

adesão, o da democracia racial. Buscando uma ruptura com o cientificismo e as perspectivas

1 Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Professora de História da rede municipal de Juazeiro-BA. E-mail: [email protected].

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anteriores, o novo paradigma argumentava que as diferenças raciais eram culturais e sociais,

não biológicas. Na escrita de Casa Grande & Senzala (1995 [1933])2, entretanto, os termos

raça e cultura, como nos aponta Ari Lima (2003), não estão radicalmente diferenciados, nem

as noções racistas, biológicas e doutrinárias do conceito de raça abandonadas. Tem-se, desta

forma, a constituição de “um conceito confuso e pendular, ora relacionado à natureza racial,

ora relacionado ao clima, ora relacionado a influências sociais, históricas e/ou culturais”

(LIMA, 2003: 61). A miscigenação, por sua vez, é considerada como um processo físico-

psicológico a partir do qual seriam geradas as mentalidades e aptidões que se transformariam

na cultura, fenômeno que, sendo mais nobre do que a perfectibilidade humana, atuaria na

correção das distâncias sociais entre europeus, indígenas e africanos (SANTOS, 2002).

Assim, Freyre investiu na constituição de uma metarraça, a mestiça, e de uma nação

supostamente livre do racismo que afligia o resto do mundo, o Brasil moreno, mestiço desde

sua fundação. Neste processo discursivo de assimilação, contudo, foram esquecidos pelo autor

os conflitos e as marcas das violências engendradas pela colonização.

Também não puderam ser apagados os rastros das teorias e práticas do racismo explícito

engendrado pelo Estado e pelas classes dominantes. Ainda compreendido com um ser

inferior, o negro dependia da miscigenação, fosse ela realizada na África com os povos árabes

ou no Brasil com os europeus, para o melhoramento de seus fenótipos, genótipos e cultura. De

acordo com Freyre, “os negros que chegavam ao Brasil não eram quaisquer negros, eram

especiais, de nível superior. A superioridade era causada pela sua proveniência de lugares

influenciados pela cultura e pelo sangue árabe” (SANTOS, 2002: 157). Nas Américas, por sua

vez, o negro estaria em contato com o plástico português, já adaptado ao processo de

miscigenação. Percebemos, desta forma, que atrelada à ideia de democracia racial estava a de

ideologia do branqueamento racial, em outras palavras, mais uma estratégia de genocídio da

negritude no Brasil, como aponta Abdias do Nascimento:

Monstruosa máquina ironicamente designada ‘democracia racial’ que só concede

aos negros um único ‘privilégio’: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por

fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é

inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação,

miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada

a crença na inferioridade do africano e seus descendentes (2002: 141, grifos do

autor).

Longo e antigo, o genocídio perpetrado contra o negro, como aponta Nascimento (2002), tem

se utilizado de várias formas e estratégias. Portando uma posição privilegiada por conta da sua

2 A data entre colchetes refere-se ao ano de publicação da 1ª edição da obra.

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complexidade simbólica e da infiltração nas esferas econômicas e políticas da sociedade, o

campo cultural se estabeleceu como espaço de confrontos e disputas entre o Estado, as elites,

as festas, as manifestações e tambores negros, como também nos aponta João José Reis

(2002).

Debruçando-se sobre o século XIX, Reis (2002) assinala a oscilação das elites baianas entre a

proibição e a liberação das festas negras. Argumentando a necessidade de coibir o

ajuntamento e a elevação dos ânimos negros ou a de tolerar espaços nos quais as tensões

sociais poderiam ser amenizadas, ambas as atitudes, no entanto, tinham o mesmo fim: a

manutenção da ordem social e o esmaecimento da pressão realizada pelos escravos e negros

livres nas estruturas sociais brasileiras dos mil e oitocentos. Depois de superado o medo de

revoltas e confrontos sociais diretos e de grandes proporções, dos quais a Revolta do Malês

era a representação maior no imaginário social, as posturas municipais e os editais da polícia

baiana, ainda inclinados à interdição, apontavam para o subjacente desejo de erradicação dos

costumes africanos tomados como “ameaça ao projeto de uma Bahia civilizada à maneira

europeia”. Mas os tambores continuavam batendo, comunicando que “os africanos e seus

descendentes não se deixariam escravizar culturalmente” (REIS, 2002: 129).

Em meio ao calendário católico e à subversão do simbolismo europeu, uma África refeita,

miticamente reconstituída, oferecia complexos culturais a partir dos quais poderiam ser

operadas diferentes singularizações culturais. Constituídos como cultura, no entanto, tais

complexos acabaram por fundamentar as nominalistas construções identitárias empreendidas

pelo Estado e pelos intelectuais brasileiros. Não menos disputadas, estas construções

oscilaram entre as tendências de afirmação positivada da mestiçagem e as perspectivas

regionalistas. Firmada na retórica da democracia racial, a primeira defendia a originalidade de

um país moreno, enquanto a segunda, sem se opor à primeira, constituía o movimento de

comparação e oposição entre o Nordeste e o Sul, candidatos a representantes de uma suposta

brasilidade. Neste âmbito, o Nordeste foi construído como o lugar dos valores e tradições que

o progressista Brasil, quando representado pelo Sul, estaria perdendo. Assim, foi fixada a

significação conceitual de um Sul moderno e civilizado em detrimento de um Nordeste

tradicional, promovedor do resgate dos valores brasileiros perdidos, em poucas palavras, o

lugar do mítico original e puro.

Neste meandro, bens e manifestações negro-diaspóricas, mais especificamente o samba,

foram pleiteados discursivamente pelas elites, donas e dirigentes dos meios de comunicação

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de massa, pela indústria fonográfica em processo de implantação no país, pelos Estados,

federal e estaduais, e pelo grupo de sujeitos que operavam no universo do samba. Constituído

como representantes de uma brasilidade ou de uma regionalidade cujas cores foram

esmaecidas pela fundição entre as raças e os tambores domesticados pela musicalidade

erudita, o samba atendia a interesses de um Estado nacional e de uma elite modernista.

Representando uma elaboração africana reafirmada em seus batuques e letras, no entanto, era

temido pela elite baiana que, na primeira metade do século XX, ainda se projetava

europeizável (CRUZ, 2006).

Desta forma, no processo de fabricação da história social dos sambas e de suas trajetórias

entre os diferentes batuques e a atual nomeação, fundada em torno das construções

identitárias do samba nacional, que tem o Rio de Janeiro como referência territorial, e do

samba de roda, constituído em torno da Bahia, mais precisamente do Recôncavo, temos

indícios das vontades eugênicas e genocidas que circundam a mediação dos sambas e suas

conformações como representações identitárias e territoriais.

Afirmando o estado substantivo das manifestações culturais, os batuques ofertavam

resistência ao processo de nomeação e mediação branca. Suas diversidades e indisciplina

resultavam numa descrição generalista e, na maioria das vezes, pejorativa. Como aponta Lima

(2003: 109), “batuque é um termo que engloba o que não se conhecia, o que não se entendia,

o que se considerava ofensivo à civilização, imoral, selvagem, pecaminoso, lascivo, obsceno,

perturbador dos bons costumes”. Em outras palavras, aquilo que é temido por provocar

reversões no sistema simbólico de dominação.

Ainda de acordo com Lima, já no século XIX o termo samba foi utilizado em jornais para

designar algumas manifestações de rua na Bahia. Não era possível, no entanto, identificar

“quais sujeitos congregava, como se organizava, quais instrumentos musicais requisitava, se

algum complemento se associava ao termo samba, ou em que se diferenciava de outras

manifestações da época como o lundu, candomblés e principalmente o batuque” (2003: 108).

Levado nas malas de quem buscava a sorte “pras bandas do Sul”, o samba fez escola também

no Rio de Janeiro. Submerso no processo de industrialização e urbanização pelo qual passava

a capital do Brasil no início do século XX, o samba é inserido na lógica da indústria cultural,

tendo sua primeira obra registrada, e em seguida contestada, no ano de 1917. É também na

cidade carioca, quando a permissão de veiculação de propagandas promove uma

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popularização na programação das rádios, que o samba é inserido nas grades radiofônicas,

ocupando um espaço antes destinado à música erudita.

Revestido de citadino moderno e sendo amplamente difundido pelos meios de comunicação

de massa, o samba, melhor dizendo, um dos sambas praticados no Rio de Janeiro, foi alçado à

categoria de samba nacional, um dos representantes da cultura e do povo brasileiro.

Corroborando com esta perspectiva, movimentos e palcos europeus desenvolveram a partir da

década de 1930 um notável interesse pela cultura negra, contribuindo, no entanto, para a

constituição do carnaval como expressão de brasilidade e não de negritude (NOGUEIRA,

2008).

Nos discursos estatais, esta mesma década figurou como o momento de ruptura e renovação

do campo artístico a partir do qual estariam lançadas as bases para a constituição de uma

música brasileira em que modelos incultos ofertados pela prática popular seriam

transformados em experiências eruditas. Imiscuída à preocupação discursiva com o campo

artístico, está a percepção de protagonismo do campo cultural no processo de implantação de

um projeto de sociedade. Assim, o Estado Novo constituiu um alinhamento com o movimento

modernista, defendendo que o samba absorvido por grandes maestros potencializaria a

educação musical da população, ao mesmo tempo em que constituiria sentimentos de unidade

e nacionalismo. Mas, de que samba se está falando?

De acordo com Alessandra Cruz (2006), o samba carioca figurou, entre as décadas de 1930 e

1940, nos escritos de muitos intelectuais como vulgar e comercial, representante do consumo

irracional dos produtos radiofônicos e potencializador da preguiça e da revolta. Nesta

perspectiva, e atuando sob o paradigma da democracia racial, a formulação identitária

brasileira deveria partir do dócil, folclórico e mestiço samba baiano. Sobre este, contudo, é

possível verificar um impasse entre os que o entendiam como produto da cultura popular e

aqueles que, identificando as origens africanas do samba, apontavam sua impossibilidade de

assimilação e, consequentemente, sua inadequação no cenário cultural brasileiro.

O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)3, por sua vez, percebendo a impossibilidade

de conter o processo de difusão do samba carioca, adota uma postura de mediadora, tentando,

através da censura, um alinhamento ideológico entre samba e Estado. Cedendo algumas

vezes, sendo barrado em outras ou driblando a censura, fazendo passar mensagens invertidas

3 Instrumento de censura e propaganda do governo Populista de Getúlio Vargas.

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em sambas aparentemente “regenerados”, o samba carioca acabou estabelecendo relações de

proximidade com o Estado Novo, emprestando sua popularidade ao projeto de sociedade

empreendido pelo governo e alardeado pelos meios de comunicação de massa, constituindo-se

como produto nacional e moreno (CRUZ, 2006; LIMA, 2003).

Também por motivos comerciais, como aconteceu no Rio de Janeiro, a difusão massificada

através da programação radiofônica da Bahia nas décadas de 1950 e 60 operou

transformações fundamentais na experiência baiana com o samba. Partindo de conhecidos

sambistas de rua foram forjadas estrelas de rádios que realizavam apresentações solo

mediante pagamento de cachês ou salários fixos (DÖRING, 2002 apud LIMA, 2003).

Estavam inaugurados os processos de mediação midiática do samba e a profissionalização do

sambista na Bahia, o que implicava a compreensão do campo artístico como campo

comercial, no qual as relações de parceria constituídas nas rodas seriam trocadas por relações

mercadológicas. Sobre o processo de composição do repertório, antes espontaneamente

construído pelos participantes das “rodas”, passam a incidir as interferências da indústria de

entretenimento, afinal de contas, havia um público pagante a ser agradado.

Neste período, ainda, como relata Sr. Jorge Bafafá, fonte de Lima (2003), teremos demarcada

a diferenciação entre o samba de roda, para o qual eram fundamentais somente as palmas e o

prato com faca, e o samba duro, tocado com timbau, tamborim, agogô e pandeiro. Quando

apresentado em grandes grupos no período junino, recebia o título de samba junino, variação

a partir da qual iriam se constituir os grupos de pagode baiano que atualmente conhecemos.

Encontrando grande adesão do público, o pagode baiano sobre o qual incide a mediação dos

produtores, dos donos das bandas e da indústria fonográfica se consolidou como modelo

mercadológico do samba na Bahia. Chegamos assim à década de 1990, quando grupos como

o Gera Samba, que se afirmam inspirados no samba de roda da Bahia, são criados.

Voltemos um pouco, contudo. Visitemos o contexto do samba no Rio de Janeiro uma década

antes, quando o visual virou “quesito”4 e o carnavalesco assumiu o lugar de mediador cultural

nas escolas de samba. Vestido de nobre, com organdi de luxo5, o samba se afastava dos traços

que lhes eram “tradicionais”, compassando e padronizando sua música. Este fato gerou o

afastamento de muitos sambistas, que se refugiaram no partido-alto, constituindo reuniões que

4 Referência ao samba-enredo Visual, dos compositores Pintado e Nenem, que retrata o processo de absorção das

Escolas de Samba do Rio de Janeiro pela Indústria Cultural e a consequente imposição da mediação do capital. 5 Idem à nota anterior.

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ficaram conhecidas como pagodes, nome que posteriormente abrigaria uma safra de bandas

“modernas”. Como culminância deste processo, tivemos o ostracismo de sambistas cujas

performances guardavam relação com o complexo cultural negro-diaspórico e a afirmação do

samba produto cultural (LIMA, 2003).

Estratégia de sobrevivência e crescimento da Indústria Cultural, como nos explica Marco

Schneider, a mediação operada no indisciplinado batuque negro-diaspórico para a constituição

do pagode como gênero musical mestiço, padronizado e hegemônico, tem como paradigma a

subordinação do campo de produção simbólica aos totalizantes imperativos do capital. Afinal

de contas, em sua composição mais complexa – máquinas, redes de informação, veículos de

circulação, equipes de trabalho, etc. – a indústria cultural pertence, não aos artistas ou ao

público, mas à classe dominante, à classe do capital, uma classe cuja subjetividade é branca e

as vontades de poder estão voltadas para a constituição de margens sócio-simbólicas negras.

Daí o desejo genocida de alienar, de expropriar, sistematicamente, o “valor simbólico

historicamente acumulado pelo campo de produção simbólica, e de recalcar sua potência de

produção de valor simbólico, transformando o valor simbólico e potencial, através desta dupla

operação, em capital midiático” (SCHNEIDER, 2011: 6-7) subordinado à Indústria Cultural e

seu caráter homogeneizador.

Assim, nos grandes meios de comunicação e nos espaços públicos de lazer e entretenimento,

[...] ao se privilegiar a veiculação massiva de algumas poucas fórmulas em

detrimento de uma imensa variedade de outras, existentes e potenciais, bloqueia-se

a socialização de uma infinidade de experiências formais, que permanecem restritas ao âmbito dos músicos e dos circuitos marginais à grande mídia, sejam espaços de

elite, sejam espaços populares, ou simplesmente desaparecem. Seu desaparecimento

tem ainda duas outras consequências possíveis: leva consigo o conteúdo existencial

concreto que veicula, ou o emudecem. (SCHNEIDER, 2011: 4).

A margem, contudo, é espaço de resistência. Nas periferias, há esforços para o acúmulo de

valor simbólico autônomo, não mediado pelo capital. Nos bairros, nos morros, nas praças, no

âmbito privado, no público, uma variedade de sambas em roda ou de roda, com poucos ou

muitos instrumentos, permaneceu sendo realizada, continuando a celebração de um complexo

cultural negro-diaspórico, transmitido, sem mediações midiáticas, de geração em geração.

Esta resistência, contudo, pode se constituir como novo material simbólico a ser expropriado

de seus contextos não midiáticos específicos, como aconteceu com o jazz, estudado por Eric

Hobsbawm (1990) ou com o patrimonializado samba de roda do Recôncavo baiano.

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2. A CONSTRUÇÃO DO SAMBA PATRIMÔNIO

Inscrito no Livro de Registros das Formas e Expressões em 2004 e constituído como

patrimônio cultural brasileiro, o samba de roda do Recôncavo baiano é descrito no portal do

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)6 como uma “expressão

musical, coreográfica, poética e festiva das mais importantes e significativas da cultura

brasileira. Exerceu influência no samba carioca e até hoje é uma das referências do samba

nacional”. Então, a influência significativa do samba de roda do Recôncavo baiano na cultura

brasileira é de ter servido como base referencial para o samba carioca, tido como nacional?

Circunscrita a compleição da oposição entre o Sudeste e o Nordeste, operada em meio à

década de 1930 pelos fabricadores da identidade nacional brasileira, a instituição do samba

carioca urbanizado e industrial como samba mestiço e nacional frente à afirmação de uma

origem primária, incivilizada e baiana da manifestação confere uma posição nuclear à versão

carioca do samba, que tem subordinado uma diversidade de outras manifestações que lhe

guardam certas similaridades. Nesta perspectiva, e de acordo com a conjugação verbal do

texto descritivo transcrito acima, as diversas manifestações dos “sambas” realizados em

território baiano são sintetizadas como o samba de roda do Recôncavo no Livro de Registros

das Formas e Expressões, embrião único e já extinto (LIMA, 2012).

Contrapondo-se à perspectiva desta descrição, a apresentação do Dossiê IPHAN 4: Samba de

roda do Recôncavo baiano (2006), documento elaborado para candidatar a manifestação à

condição de Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade7 e referenciado pelo parecer que

legitima a supracitada inscrição no Livro de Registros das Formas e Expressões, argumenta

em sua apresentação que, transcendendo o lugar da ancestralidade, o samba de roda é uma

manifestação contínua, que se realiza em diferentes cidades do estado baiano e no

Recôncavo, de forma destacada, onde desempenha fundamental importância no cotidiano e na

constituição identitária das mulheres e homens que o praticam. No decorrer do texto, são

apontados os constantes processos de modificação e adaptação pelos quais passa o samba de

roda do Recôncavo e são evidencias as dificuldades impostas à continuidade destas

6 Órgão responsável pela implantação e gerenciamento da política pública patrimonial brasileira em âmbito

nacional, que se descreve como “autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, responsável por preservar

a diversidade das contribuições dos diferentes elementos que compõem a sociedade brasileira e seus

ecossistemas”. 7 Título concedido pela UNESCO.

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manifestações, sublinhando aquelas ofertadas pela indústria cultural e pelos meios de

comunicação de massa.

Neste âmbito, argumenta o dossiê do IPHAN (2006), é dever do poder público constituir

políticas públicas de salvaguarda que possibilitem a continuidade e a valorização da

manifestação em eminente risco de desaparecimento, seja total ou de traço específico parcial.

Assim, são postas as necessidades de promoção da auto-organização e autogestão dos

praticantes do samba de roda, o que possibilitaria uma maior autonomia no desenvolvimento

de suas ações.

Em novembro de 2005, o samba de roda do Recôncavo baiano foi proclamado pela Unesco

como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. O processo de inventário

assim como a divulgação da inserção do samba de roda na lista da UNESCO, entretanto,

foram acompanhados por publicações jornalísticas e acadêmicas que referendavam seu lugar

matricial em relação ao samba nacional8. Neste paradoxo discursivo, questionamos, quais o

desejos subjacentes à candidatura do samba de roda ao título de patrimônio cultural da

humanidade? Que forças estiveram em disputa no processo de constituição desta candidatura?

Pouco comentado pela literatura a que tivemos acesso sobre samba na Bahia, o parecer que

ratifica o registro do samba do Recôncavo baiano no Livro de Registros das Formas e

Expressões do IPHAN nos permite entrever alguns aspectos deste processo. De acordo com

Maria Cecília Fonseca (2004: 3, grifo da autora), relatora do documento, o principal

argumento do processo que solicita o registro seria, justamente, “o fato de o samba de roda

baiano estar na origem do samba carioca, o que é comprovado por várias fontes históricas

citadas e vem ao encontro do requisito de „continuidade história‟ mencionado no parágrafo 2º

do artigo 1º do decreto 3.551/2000”.

O fato do samba de roda continuar a ser realizado no Recôncavo, o que inclusive é citado pela

autora, pelo processo e pelo dossiê, não constituiria, por si só, o argumento de continuidade

histórica? Seria, de fato, necessário instituí-lo numa escala evolutiva em relação ao samba

feito no Rio de Janeiro? Assim posto, compreendemos que, intrínseco ao processo de

patrimonialização do samba de roda, está o intuito de patrimonializar uma matriz, uma origem

do samba carioca, tido como nacional, e inferiorizar o samba baiano, tido como regional.

8 Como pode ser percebido na matéria de Carolina Cantarino (2005), “Nas rodas de samba”, que traz como

subtítulo a seguinte afirmativa: “Não só um gênero musical mas uma completa celebração, o Samba-de-Roda do

Recôncavo Baiano está presente na origem da música que virou símbolo nacional”.

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Perante esta percepção, questionamos: por que não registrar e candidatar a Patrimônio Oral e

Imaterial da Humanidade o samba dito nacional praticado no Rio de Janeiro?

Esta questão, por sua vez, é respondida por Letícia Costa Rodrigues Vianna e Márcia

Sant‟Anna (2007), redatoras do Parecer Técnico n. 004/07 do Departamento de Patrimônio

Imaterial (DPI) – ratificado pela Gerente de Registro, que instituiu o registro das variantes

partido alto, samba de terreiro e samba enredo como matrizes do samba no Rio de Janeiro –

segundo as quais, em abril de 2004, quando a UNESCO se preparava para receber

candidaturas para a terceira edição da Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e

Imaterial da Humanidade, teria sido anunciada pelo então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, e

o Presidente do Iphan, Antonio Augusto Arantes, a intenção de encaminhar a candidatura do

samba como representante do Brasil, descrito como uma das formas de expressão musical,

poética e coreográfica mais cultuada no país. Ainda segundo as relatoras, restava evidente

para os brasileiros que a candidatura do samba reforçava “o vínculo estreito e há muito

estabelecido entre o samba e a identidade nacional, assim como a penetração e aceitação desse

gênero musical em todo o mundo”.

A proposta, contudo, não teria sido bem aceita pela Unesco, que apontou a inadequação da

candidatura do samba às regras da supracitada proclamação e mesmo à concepção de

patrimônio cultural imaterial que, apesar de amplo, deveria ter destacada “a importância do

vínculo desses usos, práticas, representações, saberes e expressões com a vida, a história e o

cotidiano de comunidade e grupos. Em suma, patrimônio imaterial mais como conjunto de

práticas e expressões imbricadas na vida social do que como gênero artístico” (VIANNA;

SANT‟ANNA, 2007: 2). Neste aspecto, a ligação do samba carioca com a indústria cultural, a

fonográfica e o massificado fenômeno carnavalesco eram fatores que agravavam a

inadequação. Perante tais ponderações, e dada a impossibilidade de ter o samba9

como patrimônio da humanidade, era preciso reformular a proposta, o que levou à candidatura

do samba de roda do Recôncavo baiano.

Adjetivado, geograficamente localizado e profundamente enraizado “no cotidiano da

população negra e mestiça do Recôncavo baiano apresenta[ndo] fragilidades em seus processo

de transmissão e reprodução que colocavam elementos importantes dessa expressão em risco

de desaparecimento” (VIANNA; SANT‟ANNA, 2007: 3, grifo nosso), o samba de roda

9 Sem adjetivações, o termo samba, no imaginário coletivo brasileiro, faz referência ao samba carioca tornado

nacional, constituído como modelo hegemônico e padronizante aos demais.

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baiano se constituía como a variação do samba que melhor se enquadrava nos requisitos da

Unesco, além de referendar a fundação da versão carioca, o que teria sido apontado como uma

das questões mais relevantes no processo da escolha interna. Desta forma constituído, o

samba de roda do recôncavo baiano teria sido, de fato, reconhecido como patrimônio

brasileiro e da humanidade? Ou, ao contrário, não estaria o samba de roda do Recôncavo

baiano sendo apropriado pelos discursos do Estado com a finalidade de levar a cabo o

processo de afirmação do samba como ícone de brasilidade?

Reatualizando a proposta patrimonial do Estado Novo na qual o samba carioca, atrelado à

indústria cultural, representaria o símbolo de unificação nacional, enquanto o samba da Bahia

se configurava como representante regional a ser assimilado pelos maestros e compositores da

música clássica, tendo suas referências sempre presas à sua localização geográfica. Neste

contexto, uma diversidade de sambas realizados em outros estados brasileiros foram

estrategicamente esmaecidos, reforçando-se no imaginário coletivo “o samba” e sua versão

matricial, ainda não urbanizada, feito na Bahia.

2.1. A Construção do Samba de viola ou o Genocídio dos tambores

Numa segunda perspectiva, podemos apontar os processos de apropriação e assimilação

discursiva pelos quais passou o samba do Recôncavo para a constituição de uma manifestação

mestiça. Mais uma atualização do que fora proposto pela política patrimonial do Estado Novo,

a postura assumida pelo IPHAN (2006) destaca, em meio ao complexo cultural que constitui

o samba de roda, elementos e imagens que nos vertem a uma manifestação morena,

construída a partir da interação pacífica entre a cultura africana e a europeia. É assim que,

entre os diferentes instrumentos necessários para a realização de uma roda de samba, a viola,

em especial, a machete, assumiu uma postura central no texto do Dossiê (LIMA, 2011).

De origem europeia, responsável pela harmonia da música e representante do paradigma

patrimonial material, a viola se sobrepôs, no texto do Dossiê, aos tambores, atabaques,

pandeiros, às palmas e ao prato e faca – estes três últimos apontados pelo Sr. Bafafá (LIMA,

2003) como únicos instrumentos essenciais ao samba de roda. No plano de salvaguarda, a

viola também ganhou atenção especial, sendo proposto o registro do repertório, oficinas de

execução e o reestabelecimento da confecção do instrumento. O estado de contingência no

qual o instrumento foi tomado pelo complexo cultural negro-diaspórico, no entanto, não

esteve problematizado pelo Dossiê. De acordo com Cássio Nobre (2008), a viola foi adotada

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no Brasil pelos africanos e seus descendentes como substituta de instrumentos africanos como

o pluriarco, o lamelofone e o xilofone, o que nos evidencia a violência da escravidão e o

estado de ausência em que o instrumento foi adaptado à prática do samba.

A roda, por sua vez, tão mitificada na história social do samba, foi descrita pelo Dossiê como

figurativa, uma vez que “a forma real de disposição dos participantes pode ser antes a de um

semicírculo, ou mesmo, a depender do espaço onde acontece o samba, assemelhar-se a um

quadrado ou a uma elipse. Como no caso da famosa Távola Redonda [...]” (IPHAN, 2006:36).

Da Távola Redonda? Referência ao conjunto mítico inglês? Por que não à cabaça, objeto que,

mesmo assumindo vários formatos, na prática, representa, dentro da mitologia negro-

diaspórica, o redondo mundo? Por que não fazer referência à concepção cíclica da energia,

que propõe às manifestações religiosas negro-diaspóricas a formação circular? Entre muitas

possibilidades de exemplificação, o redator optou pela europeia Távola Redonda, o que nos

leva, mais uma vez, a apontar o desejo subjacente de constituir uma manifestação morena na

qual coabitem elementos constituidores do nosso mito de fundação.

Implícita também em outros espaços de descrição, a intenção de constituir o samba de roda

como uma manifestação baiana mestiça, e não negra, é manifestada, de forma literal, quando,

em sua justificativa, o texto do Dossiê contra-argumenta a origem africana atribuída ao samba

de roda pelos seus praticantes. Vejamos o texto:

Essa convicção expressa pelos praticantes do samba é, como já foi visto,

corroborada pelos registros históricos. Mas ela não exclui o fato de que o samba de

roda é resultado de um processo de trocas interculturais. Sendo uma atividade de

afro-descendentes, e exibindo traços culturais de origem africana, ele não deixa de

comportar, desde seus primeiros registros históricos, elementos trazidos pelos

europeus. (IPHAN, 2006:72-73).

Na sequência, o redator aponta a adoção do prato e da faca, utensílios domésticos de origem

europeia; os instrumentos cordofones europeus, como o violão e, novamente, a viola; os

cortes estróficos; o ritmo poético; e a língua portuguesa. A presença de tais elementos é, de

fato, constatável. A sua utilização argumentativa, contudo, é testemunha de um

posicionamento político. Contrapô-las à afirmação de que o samba de roda teria origem

africana nos dá indícios do motivo pelo qual a viola, utilizada de forma destacada somente

pelos praticantes do samba chula, é tomada como instrumento símbolo do samba de roda do

Recôncavo e não os tambores, atabaques ou pandeiros, presentes também na modalidade

conhecida como samba corrido. A ausência de problematização das relações raciais

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brasileiras, também é um índice do paradigma moreno sob o qual o Dossiê está elaborado.

Desta forma, as imposições linguísticas que resultam no uso do idioma e das regras poéticas

do português, assim como a potencialidade presente no processo de reversão do simbolismo

europeu, quando o prato e a faca são constituídos como instrumentos musicais, são tomadas

simplesmente como “trocas interculturais”.

O esmaecimento dos conflitos, seja por ausência de criticidade, como pondera Lima (2003)

quando discute o processo de constituição do samba como gênero musical, seja por adesão

consciente ao projeto cultural e patrimonialista conduzido pelo Estado brasileiro, resguarda o

genocídio há muito perpetrado contra o complexo negro-diaspórico no país. Se, no final do

século XIX, o confronto direto instituído pelos editais de polícia não logrou êxito, a política

genocida de assimilação resguardada pelo paradigma da democracia racial, forjada em meio

ao movimento modernista, ao desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e ao

populista Estado Novo, incidiu o primeiro golpe nos tambores negros no samba. Falamos do

processo de mediação do Estado, do carnavalesco e do produtor cultural, inserido no seio do

samba, transformado em símbolo nacional urbanizado, quando praticado no Rio, e em

regional dócil e folclorizado, quando feito na Bahia.

Mesmo contestado a partir da década de 1950, o paradigma da harmônica e democrática

relação racial no Brasil, e todas as pulsões genocidas que lhes são subjacentes, é

constantemente reatualizado, sobrevivendo à ditadura militar, ao processo de abertura política

e à entrada do Brasil na era das políticas públicas. Neste contexto, o processo de

patrimonialização do samba de roda desfere um novo golpe aos tambores do samba, mas,

agora, somente no baiano. Implícita à postura política assumida pela relatoria do Dossiê, o

paradigma da morenidade brasileira elege as cordas europeias, as trocas interculturais e a

posição matricial em relação ao samba nacional como representantes maiores do samba de

roda de roda do Recôncavo. Em outras palavras, e parafraseando Santos (2005), o samba de

roda do Recôncavo é negro-diaspórico, na origem, mas base para a mestiça nacionalidade, na

concepção.

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